Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
1538/17.6T9LSB.L1-9
Relator: ANTERO LUÍS
Descritores: IRRECORRIBILIDADE DA DECISÃO INSTRUTÓRIA
INTERESSE EM AGIR DO ARGUIDO
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 06/06/2019
Votação: DECISÃO INDIVIDUAL
Texto Integral: S
Texto Parcial: N
Meio Processual: RECURSO PENAL
Decisão: REJEITADO O RECURSO
Sumário: 1. A decisão instrutória proferida na sequência de requerimento de abertura de instrução efectuado pelo assistente, na qual o arguido é pronunciado por alguns dos crimes constantes de tal requerimento é irrecorrível, nos termos do artigo 310º, nº 1 do Código de Processo Penal;
2. A circunstância de a decisão instrutória não pronunciar o arguido por todos os crimes constantes do requerimento de abertura de instrução do assistente, não altera a natureza irrecorrível de tal decisão já que, em relação aos crimes pelos quais o arguido não foi pronunciado, o mesmo não tem interesse em agir (artigo 401º, nº 2 do Código de Processo Penal).
Decisão Texto Parcial:
Decisão Texto Integral: DECISÃO SUMÁRIA

Efectuado exame preliminar dos autos supra identificados, nos termos do disposto nos artigos 417.º, n.º 6, alínea b) e 420.º, n.º 1, alínea b), e n.º 2, ambos do Código de Processo Penal, afigura-se-nos, pelas razões a seguir aduzidas, que não pode este Tribunal da Relação conhecer do presente recurso, devendo o mesmo ser rejeitado.

I. Relatório

Nos autos de Instrução que correram termos na Comarca de Lisboa, Juízo de Instrução Criminal de Lisboa, Juiz 4, com o Nº 1538/17.6T9LSB, em sede de Decisão Instrutória, a Meritíssima Juiz proferiu, a 11 de Dezembro de 2018, despacho de pronúncia constante de fls. 368 a 400, nos seguintes termos: (transcrição)
Investigou-se em sede de inquérito a prática por AA dos crimes de perseguição e ameaça agravada p.p. pelos artigos 1542. - A  n° 1 e 153°, 155º n° 1 al. a) com referência ao artigo 132º n° 2 al. f) do C.P..—
Findo o inquérito, o M°P° proferiu o despacho de arquivamento de fls. 155 a 161.
O assistente BB acusou para julgamento em processo comum da competência do tribunal singular AA imputando-lhe, pelos factos constantes da peça acusatória de fls. 168 a 174, a prática dos crimes de difamação e injúria p.p. pelos artigos 180° e 181° do C.P. (cfr. fls. 174).—
O M°P° não acompanhou a acusação particular, nos termos e com os fundamentos constantes de fls. 207 e seg..
O assistente requereu a abertura de instrução nos termos e com os fundamentos constantes de fls. 214 a 225, pedindo a pronúncia do arguido pela prática dos crimes p.p. pelos artigos 153° e 154° - A do C.P..
Procedeu-se a instrução com a junção de documentos, tomada de declarações ao assistente, inquirição de testemunhas e realizou-se o debate instrutório.—
O tribunal é competente.-
O M°P° tem legitimidade para exercer a acção penal.-
Inexistem outras excepções, nulidades ou questões prévias que obstem ao conhecimento do mérito da causa.--
No caso concreto, a fase de instrução decorreu apenas a impulso do assistente.
Logo, não tendo o arguido requerido a abertura de instrução, está vedado ao tribunal a apreciação dos factos que se fizeram constar na acusação particular ou dos indícios que a sustentem.
Quanto ao mais:
1.
Pretende o assistente ver o arguido pronunciado pela prática dos seguintes crimes:
Perseguição, p.p. pelo art° 154º - A do C.P., preceito que dispõe: «1 - Quem, de modo reiterado, perseguir ou assediar outra pessoa, por qualquer meio, direta ou indiretamente, de forma adequada a provocar-lhe medo ou inquietação ou a prejudicar a sua liberdade de determinação, é punido com pena de prisão até 3 anos ou pena de multa, se pena mais grave não lhe couber por força de outra disposição legal. 2 - A tentativa é punível. 3 - Nos casos previstos no nº 1, podem ser aplicadas ao arguido as penas acessórias de proibição de contacto com a vítima pelo período de 6 meses a 3 anos e de obrigação de frequência de programas específicos de prevenção de condutas típicas da perseguição. 4 - A pena acessória de proibição de contacto com a vítima deve incluir o afastamento da residência ou do local de trabalho desta e o seu cumprimento deve ser fiscalizado por meios técnicos de controlo à distância.5 - O procedimento criminal depende de queixa.»
Ameaça, p.p. no art° 153° do C.P.: «1 - Quem ameaçar outra pessoa com a prática de crime contra a vida, a integridade física, a liberdade pessoal, a liberdade e autodeterminação sexual ou bens patrimoniais de considerável valor, de forma adequada a provocar-lhe medo ou inquietação ou a prejudicar a sua liberdade de determinação, é punido com pena de prisão até um ano ou com pena de multa até 120 dias. 2 – O procedimento criminal depende de queixa
No caso, a instrução visa a comprovação judicial da decisão de deduzir acusação, em ordem a submeter ou não a causa a julgamento (cfr. art.° 286° n.° 1 do C.P.P.).
Se, até ao encerramento da instrução, tiverem sido recolhidos indícios suficientes de se terem verificado os pressupostos de que depende a aplicação ao arguido de uma pena ou medida de segurança, o juiz, por despacho, pronuncia o arguido pelos factos respectivos (cfr. art.° 308° n.° 1 do C.P.P.).
Considera-se que existem indícios suficientes quando existe um conjunto de elementos que, relacionados e conjugados, persuadem da culpabilidade do agente, fazendo nascer a convicção de que virá a ser condenado pelo crime que lhe imputam (vide Germano Marques da Silva in "Curso de Processo Penal", 1994, vol. III, pág. 184).
De acordo com o relato feito no requerimento de abertura de instrução, em síntese, o arguido, depois de ter sido despedido com justa causa de uma empresa gerida pelo assistente, começou a persegui-lo nos trajectos habitualmente percorridos por este de casa para o escritório. Mais, abordou-o proferindo expressões ameaçadoras e intimidatórias, o que também fez em mensagens enviadas. Colocou no perfil da conta skype expressões do mesmo cariz.
2.
Dos elementos de prova recolhidos:
a)
No inquérito:
O assistente juntou aos autos o contrato de trabalho celebrado entre a S…………. Lda. e o arguido (fls. 19 a 28), a carta de despedimento e o relatório final do processo disciplinar (fls. 29 a 53), fotografias (fls. 54 a 57) e impressões de mensagens e posts (fls. 58 a 66).
O ofendido foi ouvido a fls. 82 e segs., confirmando a denúncia e juntou ainda dois documentos, impressões da sua página de facebook (frl. 86 e 87). Acrescentou que no dia 4.5.2016 o arguido se posicionou em frente ao local de trabalho do assistente durante cerca de uma hora. Acrescentou que o depoente e a sua família tiveram de alterar as suas rotinas diárias, tendo aumentado as preocupações do ofendido com os filhos quando estes saem sozinhos, por ter receio de represálias contra os mesmos.
A testemunha CC, ouvida a fls. 88, disse ter sido a própria que fez as fotos de fls. 54 a 57 e ouviu o arguido dizer para ao ofendido em tom intimidatório "temos de conversar". Que teve conhecimento dos comentários de fls. 56 a 58 pelo denunciante e pelos seus colaboradores, que lhes acederam através das redes sociais. Que a situação a que se reportam os autos fez com que a testemunha e o denunciante alterassem as suas rotinas diárias, por terem receio que algo lhes aconteça bem como à restante família.
A testemunha DD (fls. 90), disse que trabalha na empresa do ofendido desde 2016, razão por que conhece o arguido. Que viu no dia 4.5.2017 a viatura do arguido estacionada em frente ao escritório do denunciante, encontrando-se o arguido no interior da mesma.
A testemunha EE (fls. 92 e seg.), labora na mesma empresa. Presenciou os mesmos factos que foram presenciados pela testemunha Inês Gomes. Acrescentou que o arguido permaneceu naquele locar cerca de duas horas.
A testemunha FF (fls. 94 e seg.), disse ter reparado que, no início do ano de 2017 e depois de o arguido já não trabalhar na empresa, o denunciante e a mulher andavam nervosos e alterados, tendo o ofendido comentado que o arguido o andava a perseguir. Já depois do denunciado ter deixado de trabalhar na empresa, viu o carro deste estacionado em frente ao escritório do denunciante, em dois dias diferentes.
A testemunha GG (fls. 96 e seg.), disse que trabalha na empresa do denunciante desde 2005, razão pela qual conhece o arguido. Que tem o contacto skype do arguido, conseguindo visualizar todos os comentários que o mesmo coloca; viu os post de fls. 59 a 65, que imprimiu e entregou ao denunciante. No princípio de 2017 e já depois de o arguido ter sido despedido, quando com o denunciante se dirigia ao escritório, viu a viatura do arguido estacionada a cerca de 50 metros do escritório, tendo o ofendido chamado a sua atenção para esse facto e comentando que mais uma vez o denunciado se encontraria nas proximidades. Que no início de 2017 o ofendido se mostrou ansioso e preocupado, o que o afetou na vida pessoa e profissional.
A testemunha HH (fls. 99 e segs.), esclareceu que o denunciado foi seu chefe durante cerca de um ano; por essa razão, comunicava com o denunciado por skype, identificando o perfil do denunciando como sendo aquele mencionado a fls. 98. Depois de o arguido ter sido despedido e em data que não se recorda mas que terá sido entre os meses de Setembro e Outubro de 2016, viu a viatura do arguido estacionada perto do local de trabalho do ofendido. Que através da sua conta skype teve acesso aos posts documentados de fls. 59 a 65.
JJ., a fls. 110 e seg., disse que, talvez no final de 2016, e por ter deixado de ver o arguido estacionar no parque onde trabalha como vigilante, viu-o perto do parque e dirigiu-se-lhe; o arguido disse-lhe que já não estacionava naquele local por ter deixado de trabalhar na empresa, por se ter chateado com o sócio. Quando o denunciante ia a entrar no parque, o arguido disse "vem aí o gajo', altura em que olhou para o ofendido e disse "tás a olhar para mim, com essa cara", não se recordando se o denunciante respondeu.
O arguido usou do direito ao silêncio a fls. 106, prestando declarações de fls. 142 a 144. No que ao caso interessa, disse então: que por via do comportamento assumido pelo assistente quanto à rescisão do contrato de trabalho, os seus objectos pessoais ficaram nas instalações da empresa sem que a eles tivesse acesso. Todas as quartas-feiras participa num almoço no Hotel ………., facto que é do conhecimento do assistente. No dia 4.1.2017, quando abandonava esse almoço, verificou que a viatura do assistente se encontrava parada em frente da sua, sem ocupantes; por ter achado tal conduta estranha, voltou ao hotel, de onde saiu novamente acompanhado por KK e LL; nessa altura, KK cumprimentou o assistente e falou com ele, encontrando-se o assistente dentro do carro do lado do condutor; de seguida, o casal abandonou o local. Voltou a falar com o assistente na Av. da República, num parque público onde são estacionados as viaturas da empresa. O MM pediu-lhe que recebesse uns currículos; no momento em que chegou o assistente disse-lhe "contigo não falo' e virou-lhe as costas. Nunca enviou qualquer mensagem por skype; nunca enviou nenhum SMS ao assistente; o assistente não faz parte da sua lista de contactos de skype ou mensager e nunca utilizou tais redes para o contactar; nunca seguiu por qualquer forma o assistente. A conta de skype referida a fls. 59 era utilizada pelo arguido exclusivamente para se relacionar com as pessoas da empresa, e deixou de aceder-lhe quando saiu da empresa; esclarece que consegue aceder à conta mas não consegue utilizá-la. Não conseguiu eliminar a conta porque está associada à sua conta pessoal. Nega a autoria dos textos de fls. 59 a 65. Quando saiu da empresa esteve algum tempo sem acesso ao número SIM 963819731.
A testemunha KK prestou o depoimento de fls. 149, esclarecendo que é amigo do assistente e do arguido desde pelo menos 2011 e todas as quartas-feiras almoçavam juntos. No que respeita ao contacto junto do Hotel ………., afirma que se dirigiu ao assistente para o cumprimentar civilizada e cordialmente; o contacto durou cerca de 30 segundos. Mantém as melhores relações com ambos.
A testemunha LL, a fls. 151, disse ser amigo do arguido há cerca de 6/7 anos. Disse que vai por vezes aos almoços de quarta-feira no Hotel …….. Em data que não pode precisar, quando saía do almoço acompanhado do arguido e da testemunha KK, reparou no carro do assistente estacionado á frente do do arguido; que junto ao carro se encontrava o assistente e a mulher. A testemunha KK cumprimentou-os e o arguido em momento algum ameaçou o assistente.
Desconhece por que razão o assistente ali estacionou por que no local havia muito espaço para estacionar.
Carlos Derriça prestou depoimento a fls.153. Disse que pediu ao arguido se lhe arranjava colocação para dois amigos, tendo-lhe entregue os currículos no local de trabalho da testemunha, concretamente no parque de estacionamento onde é segurança, sito na Av. …………. em Lisboa.
b)
Na instrução:
O assistente e as testemunhas ouvidas em sede de instrução, em síntese, mantiveram o que já resultava da prova apresentada pelo assistente na fase de inquérito.
A testemunha NN, enteado do assistente, afirmou conhecer o arguido, que tal como a testemunha, trabalhou na empresa do assistente. Disse que o arguido perseguiu o assistente de carro, seguindo-o desde casa até ao escritório; viu o carro do arguido estacionado à frente do parque onde estacionam as viaturas da empresa e à frente do escritório estacionado e apeado, bem como duas ou três vezes o viram junto à entrada de casa. Tais condutas eram "recorrentes". Esclareceu que o seu padrasto passou a utilizar o carro da mãe da testemunha por desconfiar que o próprio tivesse um localizador. Acrescentou que o seu padrasto recebeu uma mensagem anónima num novo cartão SIM privado que atribui ao arguido, desconhecendo por que forma o arguido obteve o número. O assistente tinha receio de que pudesse acontecer alguma coisa a si próprio ou à família.
A testemunha LL, também enteada do assistente, esclareceu não ter visto perseguições. Viu o arguido estacionado em frente ao local de trabalho do assistente. Soube que o arguido estacionou em frente ao parque de estacionamento que é utilizado pelos trabalhadores da empresa, talvez 6 vezes; quando o assistente fez a queixa aquela conduta cessou e depois retomou-se. Viu os posts da conta skype. Deu conta ao tribunal que o assistente é de origem indiana e, por conseguinte, a expressão "escurinho" reporta se à sua cor de pele. Face à conduta do denunciado o assistente passou a andar com outro carro e trocou de cartão de telemóvel.
A testemunha EE, empregada na empresa do assistente, viu o arguido em frente ao escritório bem como em frente ao estacionamento, coisa que acontecia "regularmente", depois de ter sido despedido e durante os primeiros três meses, pelo menos uma vez por semana. Duas ou três semanas antes do processo no Tribunal de Trabalho tal acontecia todos os dias. A testemunha ligava para o assistente, avisando-o que o arguido ali se encontrava. O assistente passou a usar o carro da mulher e trocou de cartão de telemóvel, tendo o arguido descoberto o novo número. O assistente tinha medo do arguido, tendo em conta os contactos sociais que o mesmo referia. Esclareceu que a empresa não introduziu quaisquer alterações na conta skype do arguido, não tendo a empresa conta de skype profissional.
Em declarações, o assistente disse, em síntese: que o arguido era empregado da empresa do assistente e foi objecto de um processo disciplinar. No Tribunal de Trabalho acabaram por chegar a um acordo. Depois de instaurado o processo disciplinar ao arguido, este começou a "mandar mensagens" através dos colaboradores da empresa; esperou pelo assistente à porta da garagem onde os colaboradores da empresa estacionam o carro; por várias vezes seguiu o assistente de carro de casa até à garagem da empresa; a 4.1.2017 junto ao Hotel …….., o assistente e a mulher viram o arguido junto ao carro e foram abordados por KK. Dessa mesma zona, o carro do assistente (que se encontrava acompanhado pela mulher) foi seguido e, de muito perto ultrapassado, pela viatura do arguido. Viu também o arguido por várias vezes parado à porta da sua casa. Foi seguido de carro pelo arguido até à garagem do local de trabalho. Trocou de número de telemóvel, para um outro não identificado, e recebeu uma mensagem, que entendeu ser do arguido, que lhe dava conta de o arguido saber onde o assistente se encontrava. No que respeita às mensagens (ou posts na conta skype) foram vistas por colaboradores e mesmo clientes da empresa. Depois de ter visto o post que refere a "ninhada" decidiu apresentar queixa. Acrescentou que a empresa, quando o arguido deixou de ali trabalhar, não lhe reteve o IMEI ou o cartão SIM, e o número terá sido portado a outra operadora, sendo a empresa deixou de se responsabilizar pelo pagamento do consumo. Não houve qualquer alteração da conta de skype, uma vez que a conta era particular e própria do arguido.
A testemunha CC é mulher do assistente e encontra-se de relações cortadas com o assistente. Vê o arguido, frequentemente, junto à empresa do assistente e ao parque de estacionamento; encontra frequentemente o espelho retrovisor recolhido e já encontrou também pneus rasgados. Foi a depoente quem tirou as fotografias junto ao …….. tendo sido depois seguidos, de muito perto, pelo carro conduzido pelo arguido. Os post do skype foram-lhe dados a conhecer por um colaborador da empresa. Vê também o carro do arguido estacionado, junto à casa do assistente, com os quatro piscas ligados.
A testemunha GG prestou o depoimento que consta a fls. 318 e segs.
3.
Como se disse no início, em causa está nos autos a eventual prática do crime de ameaça e do crime de perseguição.
Os dois tipos legais estabelecem para o seu preenchimento que a conduta do agente seja adequada a provocar no visado medo ou inquietação ou a prejudicar a sua liberdade de determinação.
No caso concreto, os elementos de prova testemunhal e as declarações do assistente, traduzem à saciedade a verificação daquele elemento. Na verdade, não só a conduta do arguido foi adequada a causar medo ou inquietação como efectivamente o causou. Não temos dúvida que os factos relatados pelas testemunhas - em que se inclui a permanência junto ao local de trabalho do assistente e junto à residência deste, seguimentos de casa até ao local de trabalho, abordagens quando ao assistente se encontra em momento de lazer, posts que (entre outros) fazem alusão à necessidade de o assistente abandonar o local onde se encontra acompanhado da "ninhada" -, são condutas evidentemente capazes, evidentemente idóneas, a provocar medo ou inquietação. E, apesar do arguido negar a prática dos factos, o modo como as testemunhas e o assistente prestaram declarações, fazendo-o de forma espontânea e sem hesitações, convenceu em absoluto o tribunal da veracidade do que afirmaram.
Não restaram também ao tribunal quaisquer dúvidas sobre o receio do assistente de que alguma coisa pudesse ser feita contra os seus filhos (tendo até em conta os relacionamentos sociais que o arguido dizia ter) e que o arguido pudesse atentar contra a sua integridade física. A testemunha CC, foi expressiva no incómodo que a conduta do arguido causou na vida familiar e nas alterações que sentem necessidade de introduzir para minimizar as repercussões da conduta do arguido. No que concerne ao que foi colocado na conta skype, e também apesar do arguido o negar, não restaram ao tribunal dúvidas que nada impediu o arguido de aceder à sua própria conta depois de ter sido despedido da empresa do assistente, e que continuou a utilizá-la, uma vez que nada nos post ou na gestão de conta, em data posterior à do despedimento, denota uma alteração do seu utilizador. O mesmo aconteceu com o cartão SIM, relativamente ao qual a empresa do assistente apenas deixou de suportar o seu custo, nada tendo alterado quanto à titularidade.
Para que se entenda cometido o crime de ameaça, o agente há-de ter ameaçado o visado com a prática de crime contra a vida, a integridade física, a liberdade pessoal, a liberdade e auto determinação sexual ou bens patrimoniais de considerável valor.
Em nosso entender, nenhuma das condutas descritas no requerimento de abertura de instrução e relativamente às quais existem indícios suficientes da sua prática, é susceptível de integrar aquela previsão. Na verdade, nunca o arguido foi claro em acenar com a prática de qualquer crime dos ali mencionados, deixando apenas nas entrelinhas que o assistente e a família corriam risco; espelho desta conduta é o post que se reporta à "ninhada" e às "ratoeiras" que são "perigosas". Diferentemente, no que respeita ao ilícito a que se reporta o art° 154°-A do C.P., a sua previsão está preenchida.
O arguido seguiu o assistente de carro, apareceu e permaneceu sem que se veja qualquer justificação, quer junto ao local de trabalho do assistente, quer junto à sua residência (esta sita em zona de pouco movimento de viaturas ou a pé e sem número de estabelecimentos comerciais que motive a permanência); colocou frases na conta de skype que sabia ser muito possível que chegassem ao conhecimento do arguido; abordou-o directamente no parque de estacionamento usado pela empresa e em momento de lazer junto ao ……….; segui-o de carro nos percursos habituais. Manteve esta conduta de forma persistente, reiterada ao longo do tempo, à vista de todos (nomeadamente do empregados da empresa do assistente e dos familiares deste), mostrando assim a sua presença constante e dando conta que era sabedor das rotinas do assistente. Ou seja, perseguiu e assediou o assistente, quer de forma directa (com a presença física), quer de forma indirecta (com as frases na conta skype) causando o medo e a inquietação que já se referiram.
Tendo em consideração a forma como os factos foram praticados, não há que o arguido actuou pretendendo perseguir e assediar o assistente, fazendo-o como reacção ao processo disciplinar e despedimento de que foi objecto, e que sabia serem tais condutas adequadas a causar medo.
Nesta conformidade, entendemos recolhidos nos autos fortes indícios dos factos que abaixo se enumeram, e que o arguido virá a ser condenado, quer na pena a que se refere o art° 154°-A n° 1 do C.P. quer na sanção acessória a que se refere o n° 3 do mesmo preceito.
Assim, nos termos do disposto no art° 308° n° 1 do C.P.P., deve ser proferido despacho de pronúncia relativamente ao crime de perseguição.
4.
Face ao exposto, decido:
A) Não pronunciar o arguido pela prática de um crime de ameaça p.p. pelo art° 153° n° 1 do C.P.P.
B) Para julgamento em processo comum da competência do tribunal singular, pronuncio AA, melhor identificado a fls. 104, pela prática dos factos seguintes:
1. O assistente exerce a sua actividade profissional na área da informática, sendo sócio-gerente da sociedade S ………………………., LDA.
2. O assistente é casado com CC e tem três filhos, sendo um deles menor.
3. O arguido exerceu funções profissionais de ……… na sociedade S………………, LDA, no período compreendido entre 27.12.2012 e 15.12.2016.
4. A relação existente entre o arguido e o assistente tem origem profissional, tendo o primeiro trabalhado na empresa gerida pelo segundo.
5. O arguido foi despedido com justa causa, a 15.12.2016, na sequência de processo disciplinar instaurado em 14.10.2016.
6. Na sequência da instauração do processo disciplinar ao arguido, foi este suspenso das suas funções laborais na empresa S…………LDA., desde o dia 15.10.2016, o que lhe foi comunicado por escrito e devidamente fundamentado.
7. O Arguido nunca aceitou os factos que lhes foram imputados em sede de processo disciplinar, pautando a sua conduta, a partir da data em que lhe foi remetida a Nota de Culpa, por um comportamento agressivo e de afronta para com o assistente.
8. Sendo o Assistente sócio-gerente da empresa S……………, LDA o arguido centrou os seus comportamentos na pessoa do assistente e respectiva família.
9. Nesta sequência o arguido quis vingar-se na pessoa do assistente, provocando-lhe mal-estar, humilhação e medo.
10. Por tal razão, o assistente entendeu celebrar uma transacção com o arguido, no âmbito do processo de impugnação judicial da regularidade e licitude do despedimento, processo que correu os seus termos pelo Juiz 1, do Juízo do Trabalho de Lisboa, do Tribunal da Comarca de Lisboa, sob o n° 405/17.8T8LSB.
11. O arguido, por causa do desenrolar da fase de inquérito em sede de processo disciplinar, começou a seguir o assistente nos habituais trajectos percorridos por este, entre casa e o escritório.
12. O assistente dirige-se diariamente para Praça ……………Lisboa, local onde estão instalados os escritórios da mencionada sociedade S…………..Lda.
13. No dia 02.12.2016, no período da manhã, o arguido, conduzindo a viatura automóvel de matrícula ….., seguiu o assistente que se deslocava também de carro para o escritório da empresa que gere.
14. O arguido seguiu o assistente até este ter entrado no parque de estacionamento da ………, existente na Avenida da ………… em Lisboa - parque este onde o assistente tem assinatura, estacionando nesse local o seu veículo, todos os dias, quando está no escritório da S……….., LDA., o que o arguido sabia.
15. O arguido fez por se "colar" na traseira do veículo do assistente, mantendo uma marcha bastante próxima do veículo conduzido por este.
16. O arguido procurou interceptar o olhar do assistente, fixando-o continuadamente.
17. Com intenção de o inquietar e provocar.
12. O assistente dirige-se diariamente para Praça ……………… Lisboa, local onde estão instalados os escritórios da mencionada sociedade S………. LDA.
13. No dia 02.12.2016, no período da manhã, o arguido, conduzindo a viatura automóvel de matrícula ………., seguiu o assistente que se deslocava também de carro para o escritório da empresa que gere.
14. O arguido seguiu o assistente até este ter entrado no parque de estacionamento da I------------, existente na Avenida da ……………. Lisboa - parque este onde o assistente tem assinatura, estacionando nesse local o seu veículo, todos os dias, quando está no escritório da S…………, LDA., o que o arguido sabia.
15. O arguido fez por se "colar" na traseira do veículo do assistente, mantendo uma marcha bastante próxima do veículo conduzido por este.
16. O arguido procurou interceptar o olhar do assistente, fixando-o continuadamente.
17. Com intenção de o inquietar e provocar.
18. O arguido, após o assistente ter entrado com a sua viatura para a garagem, estacionou o seu carro em frente ao portão da garagem.
19. No dia 18.12.2016 - dois dias após a recepção da decisão de despedimento -, o arguido encontrava-se, apeado, junto ao parque de estacionamento utilizado pelo assistente e já supra melhor identificado.
20. O arguido tem conhecimento da utilização de tal parque de estacionamento pelo assistente, porque que todos os trabalhadores (comerciais) da empresa ali estacionam os seus veículos, coisa que, aquando da relação laborai, também o arguido fazia.
21. Nesse mesmo dia 18.12, no momento em que o assistente ia sair do seu trabalho, viu que o arguido se encontrava junto ao parque de estacionamento e, em acto contínuo, foi o assistente abordado pelo arguido que proferiu as seguintes palavras: "Tás a olhar? Nem assim tens bom aspecto”.
22. O assistente respondeu "entre nós não há conversas" tendo seguido o seu trajecto normal.
23. O assistente sentiu medo ao ser afrontado da forma supra referida e, já na sequência do acto de seguimento do dia 02.12.2016, temeu pela sua integridade física.
24. Após ter abordado o assistente, o arguido proferiu ainda várias palavras, não perceptíveis pelo assistente, ouvidos pelo porteiro do parque de estacionamento.
25. Nos dias 19.12.2016 e 20.12.2016 o assistente, ao chegar junto da sua viatura no parque de estacionamento já referido, reparou que haviam mexido no espelho retrovisor lateral esquerdo.
26. Ainda em tais datas, o pneu traseiro do lado esquerdo da viatura do assistente foi esvaziado.
27. Tal pneu foi analisado por um perito, o qual entendeu que não existia qualquer furo ou avaria do sistema do automóvel que pudesse ter levado ao esvaziamento do pneu.
28. No dia 2.1.2017 pelas 8 h 30 m, o arguido conduzia uma viatura de marca Peugeot, viatura que estacionou junto à residência do assistente (sita na Rua …………………… Lisboa), mesmo em frente à viatura do assistente, e por forma a ser visto por este.
29. No dia 4.1.2017 cerca das 14 h 15 m, o Assistente deslocava-se a pé, na companhia da sua mulher - CC -, fazendo o trajecto entre a D…….. e o parque de estacionamento que existe junto ao Hotel ………., em Lisboa.
30. Usufruindo um momento de relaxe.
31. Ao chegar junto da sua viatura que se encontrava estacionada no parqueamento junto ao Hotel ……….. em Lisboa, reparou que a viatura do arguido também estava estacionada mesmo em frente à dele.
32. O que não se verificava quando o assistente estacionou a sua viatura naquele local.
33. Quando se preparava para entrar na sua viatura, o assistente foi abordado por três indivíduos que reconheceu, sendo eles, o arguido, outro, KK e o terceiro LL.
34. Enquanto o arguido e LL se posicionaram em linha com a viatura do arguido, KK abordou o Assistente dizendo-lhe “temos de ter uma conversa”.
35. O arguido, que se encontrava em linha com a sua viatura, praguejou e fez gestos com ambas as mãos na direcção do assistente.
36. O assistente sentiu-se intimidado e temeu pela sua integridade física.
37. Após ter respondido a KK dizendo "entre nós não há conversas'', o assistente entrou para a sua viatura onde já estava a sua esposa, esta visivelmente assustada e em pânico.
38. Nessa ocasião, a mulher do assistente tirou a fotografia cuja cópia se encontra a fls. 57 dos autos.
39. Após a abordagem descrita, o assistente iniciou a marcha ao volante da sua viatura, tendo o arguido iniciado seguimento automóvel à viatura conduzida pelo assistente.
40. 0 arguido seguia ao volante do carro e transportava como passageiros KK e LL.
41. No trajecto realizado pelo assistente entre o parque de estacionamento do Hotel …….. e a Estação ………….., em Lisboa, a viatura conduzida pelo arguido realizou uma manobra de ultrapassagem ao carro do assistente, tendo feito "razia" a esta viatura.
42. Quando concluíram essa manobra de ultrapassagem, LL abriu o vidro da viatura em andamento e, na direcção da viatura onde seguia o assistente e a sua mulher, mostrou a mão, mantendo o indicador e o anelar dobrados e o dedo médio esticado.
43. Temendo novas abordagens, o assistente deixou de se deslocar na sua viatura.
44. O assistente chegou a suspeitar que o seu carro tivesse sido sabotado e que tivesse sido colocado algum dispositivo que permitisse ao arguido localizá-lo em qualquer parte.
45. O assistente passou a deslocar-se em transportes alternativos, utilizando também o carro da mulher.
46. Fê-lo por receio de ser novamente seguido pelo arguido.
47. O assistente, assim como a sua família, vivem o seu dia-a-dia com medo e receio de um novo encontro com o arguido e temem pela sua integridade física.
48. Em consequência dos seguimentos do arguido, o assistente tornou-se uma pessoa oprimida, desconfiada, receosa, sentimentos que influenciam o seu dia-a-dia, o seu desempenho profissional e as suas relações pessoais.
49. Consequências que o arguido pretendeu.
50. No início do mês de Outubro de 2016, o arguido, ao ter conhecimento das diligências que iriam ser tomadas em relação aos seus comportamentos e violações de deveres laborais na empresa onde trabalhava, que deram lugar a procedimento disciplinar, dirigiu-se verbalmente ao Assistente, aludindo ao homicídio do gerente do bar "O ……" em Lisboa (caso que remonta a Dezembro de 2007 em que mataram o dono do bar, com recurso a uma bomba colocada no carro da vítima) dizendo: "na nossa família é assim que tratamos quem nos engana. Tem cuidado por onde andas".
51. No final do ano de 2016, KK, amigo do arguido e com quem o assistente não tem qualquer relação, enviou uma mensagem escrita (SMS) ao assistente com o seguinte texto "Caríssimo, desejo um 2017 inesquecível. Abraços, KK”.
52. Em data que não foi possível apurar concretamente, mas posterior a 14.10.2016, o arguido colocou no perfil da sua conta skype a seguinte frase "Quando será a próxima coincidência, o melhor é ir para a terra com a ninhada, que as ratoeiras são perigosas".
53. O arguido continuou a usar o perfil da sua conta skype, colocando as seguintes frases "Cada dia que passa com o que sabe que é meu ... pode ficar sem o que é dele.: mostra a todos não ter carácter ... não há coincidências ... Nunca brincar com o fogo mesmo sendo escurinho ... ou escurinha ... ".
54. O assistente tem ascendência indiana, tem uma tez escura e a sua feição é marcada com os traços próprios dos indianos.
55. O arguido, aludindo a uma das cartas remetidas pela empresa S………….., LDA., publicou a seguinte frase "Hoje recebi uma carta ... começava assim Só Vexa sabe .. Ma bla bla ... conclusão Sou Branco".
56. Juntamente com a frase supra mencionada, o arguido alterou ainda a sua foto de perfil, publicando uma fotografia de uma chamuça, prato típico de comida indiana.
57. Durante o mês de Janeiro de 2017, o Arguido alterou a foto de perfil para uma imagem com a frase "Keep Caim [Mantém a calma] que quem semeia ventos colhe tempestades” e escreveu no seu perfil "Grande arma ... silêncio".
58. Com esta conduta, o arguido usou a sua conta na rede social skype, através da publicação de frases no seu perfil para perturbar, com intuito de provocar ao assistente medo e inquietação, o que conseguiu.
59. Sabia também que pelo menos GG, trabalhador S…………, mantinha com o arguido os contactos da conta skype e poderia ver aquelas frases.
60. E que o GG as daria a conhecer ao assistente.
61. Agiu o arguido com o propósito de provocar ao assistente medo e de prejudicar e limitar os seus movimentos, bem sabendo que desse modo lesava a sua liberdade pessoal, o que conseguiu.
62. Agiu o arguido sempre de forma livre, deliberada e consciente, sabendo que as suas condutas eram proibidas e punidas por lei.—
A conduta descrita integra a prática pelo arguido, em autoria material e na forma consumada, de um crime de perseguição, p.p. pelo art° 154°-A, n° 1 do C.P..
PROVA:
Declarações do assistente.
Testemunhas arroladas a fls. 224 verso, 225 e 225 verso.
Documentos de fls. 19 a 66 dos autos,
ESTATUTO PROCESSUAL:
O arguido aguardará os ulteriores termos do processo sujeito a TIR.
Notifique.(fim de transcrição)
***
Não se conformando com a referida decisão dela veio o arguido, AA interpor o presente recurso, extraindo da respectiva motivação, constante de fls. 458 a 474, as seguintes conclusões: (transcrição)

1. Os factos dados como provados na douta decisão instrutória foram-no ao arrepio da prova produzida:
i. Do facto provado n.º 4 – Resulta da prova produzida (vd. os depoimentos transcritos em sede de Alegações da testemunha NN e CC, bem como as próprias declarações do Assistente igualmente transcritas) que a relação entre o Arguido e o Assistente remonta a 2005, tendo origem em relações pessoais de amizade, e o douto Tribunal dá como provado que tem origem profissional. Verifica-se um erro notório na apreciação da prova devendo o facto provado n.º 4 ser alterado, passando a ter a seguinte redacção “a relação existente entre o arguido e o assistente tem origem pessoal, de amizade, que remonta ao ano de 2005, e posteriormente, o arguido começou também a trabalhar na empresa gerida pelo assistente”
ii. Factos provados n.º 7 e 8 – Tais factos integram matéria conclusiva, vaga e genérica, sem qualquer concretização em termos de “ocorrências da vida real”, devendo, por conseguinte, ser eliminados do elenco dos factos provados.
iii. Facto provado n.º 9 – Uma vez mais, a afirmação em presença teria que estar suportada em factos dos quais pudesse resultar o propósito do Arguido em provocar mal-estar, humilhação e medo ao Assistente. “Nessa sequência”, significa que a imputação constante do facto ora dado como provado deveria estar precedida de um conjunto de comportamentos do Arguido dos quais se pudesse concluir a intenção de vingança do Arguido. Porém, dos factos provados (mas impugnados) que precedem o facto provado n.º 9 não há nenhuma imputação concreta ao Arguido que permita que se formule o juízo do douto Tribunal a quo. Por conseguinte, deverá tal facto ter-se igualmente por não escrito.
iv. Facto provado n.º 11 – A única testemunha que refere que o arguido começou a seguir o assistente nos habituais trajectos percorridos por este, entre casa e o escritório, foi o entenado do assistente, a testemunha NN (min 5:58) que, porém, nada viu, limitando-se a transmitir aos autos o que o Assistente lhe terá dito, motivo pelo qual, face ao artigo 128.º do CPC, tal depoimento não poderá servir como meio de prova.
Por outro lado, e colocando de parte “o trajecto” das alegadas perseguições, o certo é que o facto ora em apreciação, na parte em que refere “começou a seguir o assistente nos habituais trajectos percorridos por este, entre casa e o escritório”, não é mais que uma referência genérica, sem qualquer sustentação fáctica de tempo das condutas especificadas. Como tal, inexiste a possibilidade de um efectivo contraditório por parte do Arguido por este desconhecer as circunstâncias da sua suposta desvaliosa conduta.
v. Factos provados n.º 13, 14, 15 e 18 - Foram dados como provados única e exclusivamente com base nas declarações do Assistente, cujo interesse no desfecho dos autos é evidente e que tem sempre algo contra o arguido. E esse algo não é abstracto, mas sim decorrente dos factos que concretamente o assistente imputa ao arguido no processo penal em particular. Por conseguinte, as declarações do assistente – ainda que sejam válidas e livremente apreciáveis enquanto prova - não podem ser consideradas prova bastante para efeitos de pronúncia do Arguido, por tal colocar em causa o princípio da presunção de inocência, isto é, tal elemento de prova não é bastante para afastar a presunção de inocência do Arguido.
Por outro lado, questionado o Assistente sobre se o Arguido “depois fez alguma coisa”, a resposta imediata foi “não, não fez nada como é lógico” Pelo que, ainda que se admita que o Arguido praticou os factos em presença, o que apenas por mero dever de patrocínio se concebe, nunca os mesmos foram aptos a causar qualquer medo ou inquietação ao Assistente que, quiçá por conhecer a personalidade do Arguido, nunca esperou que o mesmo lhe fizesse algum mal (“não fez nada, como é lógico”).
Em face do exposto, os factos provados n.º 13 a 15 e 18, deverão ter-se por não provados, pois o Assistente não foi capaz de provar o que se propôs demonstrar contra o Arguido, pelo que, não foi capaz de afastar a presunção de inocência de que este beneficia, e bem assim, não foi produzida em sede de audiência prova suficiente para sustentar tais factos. Caso contrário, estamos perante uma violação do princípio “in dúbio pro reo”, constitucionalmente garantido no artigo 32.º, n.º2, da CRP.
vi. Factos provados  n.º 16 e 17 – Nas declarações prestadas pelo assistente (min. 27:14, supra transcritas) em momento algum é mencionado que o Arguido “procurou interceptar o olhar do assistente, fixando-o continuadamente”, pelo que também não poderá ter actuado com “intenção de o inquietar e provocar”.
vii. Dos factos provados n.º 19, 20, 21, 22 – A prova produzida, designadamente na fase de inquérito, demonstrou cabalmente a razão pela qual o Arguido no dia 18.12.2016 se encontrava junto ao parque de estacionamento utilizado pelo assistente
Na verdade, conforme o Arguido teve oportunidade de esclarecer (vd. auto de interrogatório de arguido, fls. 142 a 144), deslocou-se ao parque de estacionamento no citado dia “porque MM pediu-lhe que recebesse os currículos. Nesse dia não se encontrava MM mas um outro segurança, também de nome Carlos”
Tal versão dos factos foi corroborada por MM, conforme resulta do auto de inquirição a fls. 153.
Por conseguinte, e face a tais elementos probatórios, deverá ser aditado ao elenco dos factos provados, imediatamente após o facto provado n.º 19, o seguinte facto: “O Arguido encontrava-se junto ao parque de estacionamento utilizado pelo assistente porquanto havia combinado com o porteiro MM receber uns currículos”
viii. Facto provado n.º 23 – Não tem suporte na prova produzida, designadamente nas declarações prestadas pelo Assistente (vd. min: 29:36, declarações supra transcritas), que em momento algum refere ter temido pela sua integridade física. E há que convir que não se compreende como pode alguém temer pela sua integridade física ao ser abordado da forma que consta do facto provado n.º 21 (mas que nem reflecte as declarações do assistente supra citadas) isto é, “tás a olhar? Nem assim tens bom aspecto”. Tanto mais evidente face à presença do Porteiro do parque de estacionamento.
Por conseguinte, o facto provado n.º 23, por não se encontrar corroborado em qualquer meio de prova, designadamente nas declarações do Assistente, e por nem sequer poder resultar da “experiência comum”, ou da vivência de um “homem médio”, não poderá ser dado como provado.
ix. Facto provado n.º 24 – É colocado em causa pelo próprio depoimento do porteiro em causa a Testemunha JJ (vd. auto de inquirição n.º 8, a fls. 110 e 111). Duas conclusões há a retirar deste depoimento: por um lado, se o arguido se dirigiu ao depoente “bastante nervoso” e logo “seguiu o seu destino”, tal só pode querer significar que não esperava nem pretendia cruzar-se com o Assistente, colocando em causa a ideia que o assistente pretendeu carrear para os autos de que tal contacto foi propositado; por outro lado, não permite suportar o facto provado n.º 24, de que o arguido terá ainda proferido várias palavras, não perceptíveis pelo assistente mas ouvidos pelo porteiro do parque. Termos em que deverá ser eliminado do elenco dos factos provados o facto n. º 24.
x. Factos provados n.º 25 e 26– Não corporizam qualquer imputação ao arguido, motivo pelo qual não têm relevância criminal, devendo ser eliminados do elenco dos factos provados.
xi. Facto provado n.º 27 - Apesar de igualmente irrelevante, cai por terra atento o teor das próprias declarações do Assistente (min. 34:42), que refere apenas que “se limitou a trocar os pneus e a perguntar “ao sr. da garagem”;
xii. Dos factos provados n.º 31, 32, 33 e 34, 37, 39, 41 – O Tribunal limitou-se a  aceitar acriticamente as declarações do Assistente e da sua esposa, referentes ao episódio ocorrido junto ao Hotel ………., as quais são contraditadas pelos depoimentos, prestados em sede de inquérito, pelas Testemunhas KK (fls 149), NN (fls. 151) e pelas declarações do Arguido (fls 142 a 144).
Conforme o Assistente inclusive afirmou reconhecer (vd. minuto 11:16), todas as quartas-feiras havia um almoço entre os envolvidos (e outras tantas pessoas), que se realizavam no Hotel ….., o que sucedeu no dia a que se reportam os autos.
xiii. Atento o teor dos citados depoimentos – que o douto Tribunal nem sequer cuida de valorar – não se compreende o teor dos factos provados ora em causa, para cuja prova o douto Tribunal se bastou com as declarações da sua esposa, a qual, em sede de inquérito, nem sequer alude à existência de qualquer perseguição, conforme o douto Ministério Público sublinhou no despacho de arquivamento, limitando-se a referir que “ouviu o senhor KK a dirigir-se ao denunciante dizendo em tom intimidatório “temos de conversar” (vd. fls. 88).
xiv. A este propósito, estando a Testemunha CC no interior da viatura (vd. depoimento prestado ao minuto 15:15m) não se compreende igualmente como possa ter ouvido o teor da conversa entre o Assistente e KK.
xv. Pelo que o facto provado n.º 34, na parte em que refere que “KK abordou o Assistente dizendo-lhe “temos de ter uma conversa”, não poderá ser dada como provada, quando as testemunhas indicadas pelo Arguido referem que KK apenas o foi cumprimentar. Sendo certo que, ainda que assim não se entendesse, sempre o Arguido seria alheio ao teor da citada “conversa”, não se tendo sequer dirigido ao Assistente, nem falado com este por qualquer forma.
xvi. Facto provado n.º 35 e 36 - Face às declarações do Assistente, prestadas ao minuto 40:31, bem como ao depoimento da testemunha CC, ao min. 16:42, em momento algum resulta que o Arguido tenha “praguejado” e feito “gestos com ambas as mãos na direcção do assistente, pelo que é evidente que o facto provado n.º 35 foi incorrectamente julgado, não podendo ter-se como provado. O mesmo sucedendo com o facto provado n.º 36, pois em momento algum o Assistente refere ter-se sentido “intimidado” ou temido “pela sua integridade física”, pelo que deverá tal facto ser eliminado do elenco dos factos provados.
xvii. Facto provado n.º 37 - Conforme supra se transcreveu, e ora se dá por reproduzido, o Assistente refere apenas que a sua esposa terá ficado “estupefacta” pelos alegados “gestos obscenos”, feitos por “pessoas adultas”. Sendo que a Testemunha CC, no seu depoimento supra transcrito, também não refere qualquer “pânico”. Termos em que o facto n.º 37 encontra-se incorrectamente julgado, devendo ser eliminado dos factos dados como provados.
xviii. Face a tudo quanto antecede, é manifesto que não foi produzida prova bastante de que o Arguido se tivesse deslocado ao Hotel …………, em perseguição do Assistente. Bem pelo contrário.
xix. Do facto provado n.º 50 - Tal facto, única exclusivamente suportado nas declarações do assistente, viola o princípio da presunção de inocência. Por outro lado, o alegado contexto de tal facto (“ao ter conhecimento das diligências (…)” nem sequer surge referenciado pelo Assistente (vd. min. 57:40). De qualquer modo, tal facto foi alegado pelo Assistente (ponto 60 do Requerimento de Abertura de Instrução) com o fito de demonstrar o crime de ameaças que entendeu ter sido praticado pelo Arguido. Pelo que não se compreende a relevância do mesmo no que diz respeito ao crime de perseguição pelo qual o Arguido foi pronunciado.
xx. Do facto provado n.º 51 – Tal facto é inócuo para os presentes autos, uma vez que se reporta a uma alegada mensagem enviada por alguém que não o Arguido, nem resulta da prova produzida e, por conseguinte, dos factos provados, que tal mensagem terá sido enviada “a pedido” do Arguido (facto alegado no ponto 68 do Requerimento de Abertura de Instrução, mas não provado). Por conseguinte, e considerando que ao elenco de factos provados apenas pode ser levada matéria com relevância jurídico-penal, deverá o facto provado n.º 51 ser eliminado.
xxi. De qualquer modo, e a bem da verdade, haverá que referir que não é verdade que o Assistente “não tem qualquer relação” com KK, já que frequentava almoços organizados pelo mesmo (vd. declarações ao minuto 11:16 supra transcritas).
xxii. Dos factos provados n.º 52 a 60 - Tais factos reportam-se a alegados “posts” colocadas pelo Arguido no seu perfil do Skype. Em primeiro lugar, importa referir que não foi produzida prova séria de que tais “posts” tenham sido colocados pelo Arguido, facto colocado em causa pelo Arguido nas suas declarações. Os “prints” junto aos autos, alegadamente efectuados por um colaborador do Assistente naturalmente que não são prova bastante da autoria, imputada ao Arguido. Por conseguinte, considera o Arguido os factos n.º 52 a 60 não poderão ser dados como provados.
xxiii. De qualquer modo, ainda que se admitisse que tais posts tivessem sido colocados pelo Arguido, o que apenas por mero dever de patrocínio se concebe, não se descortina nos mesmos qualquer perseguição do Arguido ao Assistente, designadamente, que os mesmos foram colocados com o intuito de provocar medo e inquietação ao Assistente (vd. facto provado n.º 58)
xxiv. Na verdade, não poderá ignorar-se que nem o Assistente nem a sua família faziam parte da rede de contactos do Arguido (vd. depoimento da Testemunha CC ao min. 22:45), motivo pelo qual não se vê como tais “posts” poderão ser encarados como uma forma de perseguição ao assistente, com o qual não tinha qualquer contacto nesta rede social.
Sendo que, não passam de meras conjunturas as afirmações, constantes dos factos provados n.º 59 e 60, de que o Assistente “sabia que pelo menos GG, trabalhador S………., mantinha com o arguido os contactos da conta Skype e poderia ver aquelas frases” e que “GG as daria a conhecer ao assistente”. Sendo que a este propósito, a Testemunha CC, questionada pelo douto Tribunal como terá o Arguido “congeminado que estas mensagens, que não eram directamente para nenhum dos dois, chegariam ao vosso conhecimento” respondeu “pois, não sei também… também não lhe sei dizer”
Em suma, resulta à saciedade que, ainda que se admitisse que tais posts eram da autoria do Arguido, não poderão considerar-se provados os factos n.º 58, 59 e 60, por não resultarem de qualquer prova produzida nos autos.
xxv. Do facto provado n.º 61 – Atento os factos dados como provados, que se demonstraram incorrectamente julgados na sua generalidade, não poderá concluir-se que o Arguido agiu com o propósito de provocar ao assistente medo e de lesar a sua liberdade pessoal. Aliás, em momento algum o Assistente ou a testemunha CC referiram ter medo do Arguido, em virtude dos factos cuja autoria lhe é imputada.
xxvi. A testemunha CC refere ter medo do arguido “há quatro ou cinco anos”, portanto, antes dos factos ora em causa (vd. depoimento ao min. 33:27 supra transcrito).
xxvii. O Assistente refere apenas ter medo das pessoas com quem o Arguido se dá (vd. declarações prestadas ao min. 42:13), o que é corroborado pela Testemunha HH (vd. depoimento prestado ao minuto 13:24).
xxviii. Pelo que não poderá concluir-se que os factos cuja autoria é imputada ao Arguido sejam de molde a provocar qualquer medo ao Arguido, devendo o facto n.º 61, considerar-se não provado.
2. Em suma, analisada a prova produzida, é possível constar que a maioria dos factos dados como provados pelo douto Tribunal aportaram-se única e exclusivamente nas declarações do assistente.
3. Tais declarações, porém, não podem ser consideradas prova bastante para efeitos de pronúncia do Arguido, por tal colocar em causa o princípio da presunção de inocência do Arguido.
4. Ao conferir força bastante a tais declarações, a douta decisão instrutória padece de inconstitucionalidade, por violar o disposto no artigo 32.º, n.º 2, da CRP, que se requer seja declarada.
5. Por outro lado, face aos factos dados como provados, após devidamente apreciada a prova coligida para os autos – esforço que, salvo melhor opinião, o douto Tribunal se absteve de fazer, limitando-se a dar por reproduzido, in totum, o teor do Requerimento de Abertura de Instrução do Assistente -, é manifesto que a previsão normativa do n.º1 do artigo 148.º A do CP, não poderá ter-se por preenchida.
6. Em bom rigor, e ignorando, por ora, os diversos e crassos erros de julgamento, constata-se face à matéria de facto que o Tribunal deu como provado, que apenas foram “apurados” quatro episódios de putativas perseguições promovidas pelo Arguido ao Assistente:
i. No dia 02.12.2016 (factos n.º 13 a 18)
ii. No dia 18.12.2016 (factos n.º 19 a 24)
iii. No dia 02.01.2017 (facto n.º 28)
iv. No dia 04.01.2017 (factos n.º 29 a 42)
7. Admitindo tais factos, tal qual foram dados como provados, e na versão dada pelo Assistente, urge questionar se, ainda assim, os mesmos são susceptíveis de integrar a prática de um crime de perseguições. Já que, apenas comete tal crime “quem, de modo reiterado, perseguir outra pessoa”
8. Salvo melhor opinião, é manifesto que a conduta imputada ao Arguido é tudo menos “reiterada”, conceito este, alias, que o douto Tribunal nem sequer cuida de preencher.
9. Mas mais, atenta a desconstrução dos factos que supra se promoveu, ficou demonstrado que dois dos referidos episódios (factos 19 a 24 e factos 29 a 42) estão cabalmente demonstrados pelo Arguido, dos mesmos não resultando qualquer acto de perseguição do Arguido ao Assistente.
10. A razão pela qual o Assistente se encontrava nos citados locais foi devidamente elucidada e suportada pela prova testemunhal produzida.
11. Sendo assim, urge voltar a questionar: serão duas alegadas situações de perseguições aptas a preencher a previsão do artigo 154.º A do CP? É manifesto que não.
12. Face ao conjunto de factos apurados não se mostra previsível que o Arguido venha a ser condenado em pena ou medida de segurança, única situação susceptível determinar a prolação de despacho de pronúncia.
13. Acresce, igualmente, que os factos apurados não são aptos, nem foram aptos, a provocar no Assistente medo ou inquietação, nem a prejudicar a sua liberdade de determinação.
14. Em suma, o douto Tribunal recorrido andou mal ao concluir pela probabilidade do Arguido vir a ser condenado pela prática de um crime de perseguição, uma vez que são escassos os indícios dos factos enumerados pelo Tribunal.
15. O douto Tribunal violou, assim, o disposto no artigo 148.º A do CP, o artigo 308.º do CPC, o artigo 127.º do Código Penal, o artigo 410.º do CPP.

Nestes termos e no demais de Direito que V.Exas doutamente suprirão, deverá o presente recurso ser julgado procedente, por provado, e em consequência, ser revogado o despacho de pronúncia, que deverá ser substituído por um despacho de não pronúncia do Arguido, só assim se fazendo a tão acostumada JUSTIÇA!» (fim de transcrição)
***
O recurso foi admitido por despacho de fls. 454 dos autos.
***
A Digna Magistrada do Ministério Público respondeu ao recurso nos moldes constantes de fls. 494 a 497 concluindo, nos seguintes termos: (transcrição)
1. O objectivo imediato da instrução é apenas a comprovação judicial da pretensa falta de indícios suficientes constante no despacho de arquivamento.
2. A matéria de facto indiciada permite julgar preenchidos os elementos objectivos do crime de perseguição p.p. no art. 154.º-A do C.P.
3. Admitimos que face ao contraditório, em que o arguido ao manter a posição de negação dos factos em sede de julgamento, em conjunto com os depoimentos prestados pelas testemunhas, Asssitente e restantes elementos e prova, como fotografias, não ocorra qualquer dúvida razoável sobre a ocorrência dos factos e assim o arguido vir a ser condenado, face à existência de elementos de prova bastantes da prática do crime por parte do arguido.

Termos em que deve ser negado provimento ao recurso e manter-se o despacho recorrido. (fim de transcrição)
O assistente BB respondeu igualmente ao recurso nos termos constantes de fls. 477 a 492, manifestando-se pela sua improcedência.
A Meritíssima Juiz a fls. 498 deu cumprimento ao disposto no artigo 414º, nº 4 do Código de Processo Penal, mantendo o despacho recorrido.
Nesta instância, a Exma. Procuradora-Geral Adjunta emitiu o seu douto parecer de fls. 505, aderindo à alegação do Ministério Público em 1ª instância, concluindo também pela improcedência do recurso.
Cumprido o artigo 417º, nº 2 do Código de Processo Penal, não houve resposta.

II -   Fundamentação

1. Vejamos, a recorribilidade do despacho de pronúncia.
O artigo 310º, nº 1, do Código de Processo Penal sob a epígrafe de “Recursos” estatui que, “A decisão instrutória que pronunciar o arguido pelos factos constantes da acusação do Ministério Público, formulada nos termos do artigo 283º ou do nº 4 do artigo 285º, é irrecorrível, mesmo na parte em que apreciar nulidades e outras questões prévias ou incidentais, e determina a remessa imediata dos autos ao tribunal competente para o julgamento” acrescentando o número 2 do artigo que a não recorribilidade “(…) não prejudica a competência do tribunal de julgamento para excluir provas proibidas” (sublinhado nosso).
A questão da recorribilidade do despacho de pronúncia, no que respeita à própria decisão e às nulidades ou questões prévias decididas no mesmo foi, até à reforma de 2007 (Lei n.º 48/2007, de 29 de Agosto), bastante controvertida na jurisprudência, tendo o Supremo Tribunal de Justiça firmado jurisprudência pela recorribilidade no que respeita às nulidades e questões prévias e incidentais, no acórdão de fixação de Jurisprudência nº 6/2000 de 19/01/2000[1] e, posteriormente, pelo acórdão nº 7/2004 de 21/10/2004,[2] fixado que o regime de subida do recurso era imediata.
 Esta jurisprudência obrigatória do Supremo Tribunal de Justiça foi expressamente revogada pelo legislador, como se alcança da actual redacção do artigo 310º do Código de Processo Penal, na qual se consagra a irrecorribilidade autónoma de tal despacho, quer no que respeita à pronúncia pelos factos constantes da acusação do Ministério Público, quer no que respeita às nulidades, questões prévias ou incidentais decididas em tal despacho.
 É hoje para nós indiscutível, no que respeita à pronúncia com adesão à acusação do Ministério Público, que não existe recurso, nesta fase, sobre tais matérias.[3]
E no que respeita à decisão instrutória que pronunciar o arguido pelos factos constantes da acusação particular?
Pretendeu o legislador equiparar a acusação do Ministério Público à acusação particular, para efeitos de irrecorribilidade do despacho de pronúncia?
O legislador, tendo na base princípios de celeridade, em vez de consagrar a sindicabilidade autónoma nesta fase, remete a mesma para um momento posterior, isto é o julgamento.
Faz tal sindicabilidade por duas formas.
Uma relativa à validade das provas por parte do tribunal de julgamento e outra pela via do recurso final sobre a decisão que venha a ser proferida por esse mesmo tribunal. Percebe-se claramente esta tese à luz dos princípios que regem a audiência, nomeadamente o do contraditório, oficiosidade, investigação ou da verdade material e o da plenitude dos julgadores nessa fase crucial e suprema do processo penal.
Não teria lógica condicionar o tribunal de julgamento por uma decisão anterior de um tribunal superior que viesse, por exemplo, a validar um meio de prova que aquele tribunal, no conjunto das provas e em função das mesmas, em modelo contraditório, considera inválida.
Esta solução legal tem sido considerada, pela jurisprudência dos Tribunais Superiores, conforme ao texto constitucional em nada afectando o direito de defesa do arguido, incluindo o direito ao recurso.[4]
Sendo estas as razões que estão na base da irrecorribilidade da decisão instrutória, em relação à pronúncia pelos factos constantes da acusação do Ministério Público, não descortinamos razões válidas para ser diferente a solução em relação à acusação particular. Ao longo de toda a matéria que rege a instrução a acusação do Ministério Público ou do assistente, são tratadas de igual forma (cfr. artigos 286º, 287º, 289º, 302º, 303º), o mesmo acontecendo, no que respeita ao saneamento do processo já em sede de julgamento, nos termos do artigo 311º todos do Código de Processo Penal. 
Para além deste tratamento paritário entre a acusação pública e particular, o legislador consagra expressamente a irrecorribilidade da decisão instrutória nas situações em que o Ministério Público adere à acusação particular do assistente, nos termos e para os efeitos do artigo 285º, nº 4, como se alcança da letra do artigo 310º, nº 1 do Código de Processo Penal.
Neste caso, teríamos o absurdo de a decisão instrutória ser irrecorrível quando o Ministério Público adere à acusação do assistente, ainda que parcialmente e ser recorrível em relação à acusação do assistente já que a letra da lei, numa interpretação restritiva e literal, não consagra, expressamente, em tal caso, a irrecorribilidade da pronúncia no que respeita a essa acusação particular.
Não podemos esquecer que estamos em presença de um único despacho de pronúncia, mas em presença de duas acusações que até podem ser só, parcialmente, coincidentes.
Não nos parece que o legislador tenha querido esta solução a qual é contrária à harmonia do sistema e não se adequa aos princípios de celeridade que estiveram na base da mesma, sendo certo que a referência pelo legislador para as situações em que o Ministério Público adere à acusação particular (285º, nº 4), permite-nos considerar que o legislador quis também consagrar esta solução não tendo, contudo, expressado convenientemente o seu pensamento (artigo 9º do Código Civil).
Chegados aqui, impõe-se analisar a não pronúncia em relação ao crime de ameaças por que o arguido também tinha sido acusado por parte do assistente no requerimento de abertura de instrução.
Altera esta circunstância, isto é, procedência parcial do requerimento de instrução, a solução preconizada anteriormente?
A resposta só pode ser negativa, ainda que por outra e diversa ordem de razões.
Desde logo o arguido não foi vencido, isto é, a decisão instrutória, nesta parte, não foi proferida contra si (artigo 401º, nº 1 alínea b), do Código de Processo Penal).
Se por um lado o arguido não foi vencido nesta parte, por outro, não tem interesse em agir, porquanto foi essa a solução que ele preconizou no processo, a que o Tribunal a quo aderiu (artigo 401º, nº 2 do Código de Processo Penal). Tendo o arguido no processo tomado uma posição concordante com o decidido, não pode depois mudar de opinião e vir a defender o oposto.[5]
2. Em resumo, o despacho de pronúncia da Meritíssima Juiz de Instrução não é recorrível tendo, por isso, sido indevidamente admitido o recurso o que agora se declara, nos termos e para os efeitos do artigo 414º, nº 3 do Código de Processo Penal.

III- Decisão

Em face do exposto e, ao abrigo do disposto nos artigos 310º, nº 1, 414.º, n.ºs 2 e 3, 417.º, n.º 6, alínea b) e 420.º, n.º 1, alínea b), e 2, todos do Código de Processo Penal, decide-se pela rejeição do recurso por não ser admissível.

Fixo em 3UCs a taxa de justiça devida e em 3UCs a taxa a que alude o artigo 420.º, n.º 3, do Código de Processo Penal.

Notifique nos termos legais.

(Composto por trinta e uma páginas e elaborado em computador e revisto por mim, como relator (art.º 94º, nº 2 do Código de Processo Penal).

Lisboa 06 de Junho de 2019.
Antero Luís

[1]A decisão instrutória que pronunciar o arguido pelos factos constantes da acusação do Ministério Público é recorrível na parte respeitante à matéria relativa às nulidades arguidas no decurso do inquérito ou da instrução e às demais questões prévias ou incidentais”. Publicado no DR 56 SÉRIE I-A, de 2000-03-07.
[2]Sobe imediatamente o recurso da parte da decisão instrutória respeitante às nulidades arguidas no decurso do inquérito ou da instrução e às demais questões prévias ou incidentais, mesmo que o arguido seja pronunciado pelos factos constantes da acusação do Ministério Público.”Publicado no DR 282 SÉRIE I-A, de 2004-12-02.
[3] No mesmo sentido e por todos Acórdão do Tribunal da Relação do Porto de 13.02.2008, in www.dgsi.pt
[4] Neste sentido acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra 21/01/2009 in www.dgsi.pt e, por todos, acórdão do Tribunal Constitucional nº 51/2010 de 3/2/2010 in  www.tribunalconstitucional.pt/tc/acordaos/20100051.html
[5] Sobre o interesse em agir do Ministério Público, aplicável, ao nível dos princípios, a qualquer outro sujeito processual, veja-se Acórdão de Uniformização de Jurisprudência nº 2/2011 de 16 de Dezembro de 2010, “Em face das disposições conjugadas dos artigos 48.º a 53.º e 401.º do Código de Processo Penal, o Ministério Público não tem interesse em agir para recorrer de decisões concordantes com a sua posição anteriormente assumida no processo.”, DR, I Série A de 27-01-2011.