Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
509/20.0GBMTJ.L1-9
Relator: CARLOS DA CUNHA COUTINHO
Descritores: OFENSA À INTEGRIDADE FÍSICA
PODER DEVER DE CORRECÇÃO
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 01/12/2023
Votação: MAIORIA COM * VOT VENC
Texto Integral: S
Texto Parcial: N
Meio Processual: RECURSO PENAL
Decisão: PROCEDENTE
Sumário: I - A conduta do menor desrespeitou o pai, desobedecendo-lhe e violando o seu dever previsto no artigo 1878.º, n.º 2 do Código Civil, não respondendo aos seus telefonemas, mantendo, alegadamente, o seu telemóvel no silêncio, depois de ter perdido dois autocarros, sendo certo que já há muito que havia terminado as aulas, não dando conta do seu paradeiro ao seu progenitor.
II - A punição foi legítima, porque o arguido é o pai do ofendido e agiu com a intenção de o corrigir, dada a sua atitude desrespeitosa e desobediente. A bofetada foi um castigo leve e proporcional à atitude desrespeitosa do filho e foi também actual.
III - De tudo resulta que a punição física que o arguido infligiu ao seu filho, cumpre os pressupostos para considerarmos excluída a ilicitude desses factos, nos termos do artigo 31.º, n.º 1 e 2 b) do Código Penal (exercício de um direito)
Decisão Texto Parcial:
Decisão Texto Integral: Acordam, em conferência, os Juízes que integram a 9.ª Secção Criminal do Tribunal da Relação de Lisboa:
A) Relatório:
1) No Tribunal Judicial da Comarca de Lisboa, Juízo Local do Montijo – Juiz 1, nos autos de Processo Comum Singular com o n.º 509/20.0GBMTJ, após a realização da audiência de julgamento, foi proferida sentença, datada de 02/02/2022, onde se decidiu condenar o arguido A, na pena de 120 dias de multa, à taxa diária de €6,00, perfazendo um total de 720,00€ (setecentos e vinte euros) pela prática de:
- Um crime de ofensa à integridade física simples, previsto e punível pelo artigo 143.º, n.º 1, do Código Penal.
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2) Inconformado com esta decisão, da mesma interpôs o arguido o presente recurso, formulando no termo da motivação as seguintes conclusões:
1.º Salvo o devido respeito não assiste razão ao Tribunal “a quo” ao condenar o recorrente pela prática, em autoria material, na forma consumada, de um crime de ofensas à integridade física p. e p. no art.º 143°, n.°1 do Cód. Penal na pena de 120 dias de multa à taxa diária de 6,00€, o que perfaz um total de 720,00€;
2.º Entende a Mma. Juiz “a quo” que desde a reforma de 1977 que passou a afirmar-se um novo princípio na ordem jurídica interna portuguesa ligado ao respeito mútuo, ao respeito como dever que vincula simultaneamente pais e filhos;
3.º E que neste novo panorama e contexto, não têm cabimento as interpretações que admitiam correções moderadas pois atendendo ao disposto no art.º 19º nº. 1 da Convenção Europeia dos Direitos da Criança consagra-se para os estados aderentes à mesma uma política de tolerância-zero relativamente a qualquer tipo de agressões ou violência física administrada em crianças;
4.º O douto tribunal entende que não é tolerável admitir que as crianças e os jovens sejam o único grupo de pessoas que convivem em sociedade e que, legitimamente, podem ser agredidos sem qualquer tipo de punição, pelo que;
5.º In caso não ter qualquer cabimento a exclusão da ilicitude por inexistir qualquer “poder de correção que legitimasse a conduta do arguido. Ora;
6.º Salvo o devido respeito, não assiste razão ao douto Tribunal “a quo” ao decidir que o dever de educação dos pais para os filhos não abarca ou inclui a possibilidade de corrigi-los com recurso a agressões físicas ou humilhantes;
7.º O “tribunal a quo “deu como provado que: (…);
8.º Na motivação o douto tribunal “a quo” considera que o recorrente justificou esta atitude, nomeadamente que o que o levou a chegar a este ponto foram circunstancialismos extremos como sejam, o desespero pelo desconhecimento do paradeiro do filho, suspeitas de que o desaparecimento estivesse associado à mãe do filho, sem que tal lhe tivesse sido comunicado e irritação pela desobediência e pela mentira que acreditava este lhe tivesse dito. Considerou também que o recorrente estava desesperado à procura do filho pois tinham agendado no inicio desse dia que o filho apanharia um autocarro após o terminus das aulas, o recorrente foi à escola e ao campo de futebol adjacente a esta para o encontrar sem logro, que já tinha ligado para o filho cerca de 20 vezes sem sucesso, após o que decidiu mandar mensagem à mãe do filho informando-a de que iria contactar as autoridade se o menor não aparecesse e minutos depois o filho retornou a chamada e informou da sua localização, ato continuo o recorrente dirigiu-se ao filho e simultaneamente zangado e desesperado deu-lhe uma bofetada no rosto;
9.º A bofetada desferida foi segundo as palavras do recorrente “um sacudido de moscas;
10.º “O artigo 1878.° do CC estabelece como conteúdo das responsabilidades parentais, “velar pela segurança e saúde (...), prover ao seu sustento, dirigir a sua educação, representá-los (...) e administrar os seus bens”, do qual se destaca o poder dever de educar que encontra assento no artigo 1885.° do CC e que PIRES DE LIMA e ANTUNES VARELA (código civil anotado; Vol. V) definem como “educar é (...) preparar o menor para a autonomia, para a independência (...) mas preparar para a vida numa sociedade civilizada, que tem regras necessárias de conduta individual e social”. E no qual se poderá incluir o “poder de correção” numa perspetiva restritiva, que depende do preenchimento de um conjunto de exigentes pressupostos, a fim de garantir os direitos e a dignidade das crianças;
11.º FIGUEIREDO DIAS, TAIPA DE CARVALHO e PINTO DE ALBUQUERQUE consideram que o poder de correção pode configurar, desde que preenchidos determinados requisitos, uma causa de exclusão de ilicitude de determinadas condutas castigadoras que, porque típicas, deveriam ser tidas como ilícitas;
12.º De entre os quais se podem mencionar os seguintes: (i) Que o agente tenha agido com uma finalidade meramente educativa; (ii) Que o castigo seja aplicado de forma criteriosa e proporcional, devendo ser leve; (iii) A necessidade de moderação na aplicação do castigo, não colocando em causa os direitos e a dignidade da criança. Devendo-se ainda atentar à situação do caso concreto e respetivas circunstâncias, revelando-se o castigo necessário, adequado, proporcional e razoável;
13.º Por sua vez Leandra Correia defende que a aplicação de CF pelos progenitores deve considerar-se justificada, contudo a exclusão da ilicitude só ocorrerá quando verificados um conjunto de pressupostos que só num juízo casuístico, perante uma situação concreta, poderão ser aferidos;
14.º Em primeiro lugar há dois pressupostos subjetivos:
1. legitimidade do agente;
2. finalidade/intenção educativa por parte do aplicador, não podendo ser uma forma de descarregar tensões ou raiva, nem uma forma de prevenção geral/ intimidação aplicando um castigo a um filho de forma a que os restantes aprendam.
Em segundo lugar, há quatro requisitos objetivos:
1. proporcional - entre a gravidade da falta do menor e a intensidade do castigo, nunca podendo ultrapassar o limite do razoável suscetível de colocar em causa a dignidade do menor por mais grave que tenha sido a falta cometida, não podendo ser um castigo violento e abusivo;
2. adequado - ter em consideração a idade, grau de maturidade, grau de discernimento e desenvolvimento, tendo sempre em atenção eventuais patologias do menor (...) (somos da opinião que quando estamos perante, por exemplo, uma criança hiperativa a aplicação de CF por parte dos pais dever ser alvo de um juízo mais criterioso);
3. necessário - consideramos que se devem privilegiar métodos positivos de educação como o diálogo, devendo partir-se de uma mera advertência ao menor e apenas mediante reiteração do comportamento, em último recurso se devem aplicar CF;
4. atual - consideramos que os educadores apenas devem lançar mão do seu direito de correção, aplicando CF quando, a falta cometida pelo menor, justificativa da conduta dos pais, tiver ocorrido num curto espaço de tempo pois, quanto mais dilatado for este, menos efeitos produz, principalmente quanto mais pequena for a criança, dada a propensão para o rápido esquecimento;
15.º M. Miguez Garcia/J. M. Castela Rio, in “CP – Com notas e comentários”, Almedina 2ª ed., 2015, págs. 600/601, defendem o seguinte: “... 7. As Causas de justificação mais frequentes e mais significativas são o consentimento (art.149°) a; legítima defesa (art. 32°) e o direito de educar. O direito dos pais corrigirem os (seus) filhos deverá ser considerado uma causa de justificação. A legitimação dos pais deduz-se do direito de educar (art.ºs 1877°, 1828° e 1885° do CC). As condições de justificação são três: que o agente atue com finalidade educativa que o castigo seja criterioso e portanto proporcional; e que ele seja sempre e em todos os casos moderado, WESSELS/BEULKE 2011, p 143;
16.º Como refere FILIPE MONTEIRO “quem cometer um facto previsto numa norma incriminadora, não comete necessariamente sempre um facto ilícito, pois pode haver alguma causa que a priori exclua a ilicitude desse facto”, adiantando que este “é assim justificado porque o interesse protegido pela norma permissiva é considerado superior ao interesse protegido pelo tipo incriminador”, não violando assim o princípio da unidade da OJ, ao mesmo tempo que se respeita o princípio da subsidiariedade da lei penal (ultima ratio);
17.º A maioria da doutrina e jurisprudência, continua a considerar o exercício do direito de correção como um comportamento lícito, “porque autorizado pela lei civil”. Um pai ao aplicar um CF ao seu educando está a cometer um facto ilícito típico de OIF simples (art.º 143°do CP) ainda que este tenha sido um puxão de orelhas de leve intensidade. Contudo apesar da ilicitude do comportamento, à primeira vista, o art.º 31º n.ºs 1 e 2 al. b) do CP prevê a exclusão da ilicitude do facto considerando a OJ na sua totalidade, nomeadamente, não se considera ilícito o facto praticado no exercício de um direito;
18.º A questão de sabermos se há alguma causa que exclua a ilicitude deve ser resolvida mediante uma análise casuística, através da averiguação se, no caso concreto, o agente atuou ao abrigo de uma eventual causa de exclusão da ilicitude da conduta, nos termos do art.º 31° n.ºs 1 e 2 al. b) do Código Penal;
19.º In caso, o menor para além de não ter cumprido com o que tinha combinado de manhã com o pai, que era apanhar o autocarro quando terminasse as aulas e ir para casa, manteve o telemóvel sem som, não respondeu aos telefonemas do pai, este desconhecia o seu paradeiro, vivendo uma situação de desespero pelo desconhecimento do paradeiro do seu filho, para além de achar que o menor estava a mentir-lhe quando disse que tinha estado sempre a jogar no campo de futebol porque o recorrente já lá tinha estado e o menor não estava no campo a jogar;
20.º A punição física que o recorrente infligiu ao seu filho, cumpre os pressupostos para considerarmos excluída a ilicitude desses factos, nos termos do art.º 31º/1/2-b) do CP (exercício de um direito);
21.º A punição foi legítima, porque o recorrente é pai do menor e partilhava a sua guarda conjunta alternada com a mãe; agiu com a intenção de corrigir a atitude desrespeitosa do filho; uma bofetada foi um castigo leve e proporcional à atitude desrespeitosa do filho (que não obedeceu ao acordado e esteve incontactável); adequada, atenta a idade do filho; necessária, uma vez que o filho não pediu desculpa pela sua atitude limitando-se a dizer que tinha estado sempre no campo a jogar; atual porque produzida no momento imediatamente seguinte ao comportamento do filho;
22.º Estamos perante uma ofensa proporcional, moderada e leve, fundamentada numa finalidade meramente educativa, motivada por um sentimento de impotência e de prevenção geral, perante um filho que não respeitou o seu pai;
23.º O recorrente com a sua conduta não atingiu a saúde e bem-estar do menor, e, consequentemente, não violou o princípio da dignidade da pessoa humana;
24.º Tendo apenas e tão só a intenção de educar o seu filho, que desrespeitou o recorrente;
25.º Estamos perante um ato isolado, perpetrado num contexto de desespero em que o filho adota uma postura incorreta perante o recorrente, seu pai.
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3) Notificado do requerimento de interposição de recurso o Ministério Púbico respondeu ao recurso interposto pelo arguido, pugnando pela sua improcedência e confirmação do acórdão recorrido, concluindo que:
1. Por nosso entendimento, e perante os factos dados como provados na sentença condenatória, que não foram contrariados pelo arguido, andou bem o Tribunal a quo na subsunção dos factos ao crime de ofensa à integridade física simples;
2. Atendendo aos contornos do caso concreto, bem como ao ordenamento jurídico em vigor, arredada fica a possibilidade de o arguido ter agido ao abrigo de um direito de correcção que legitimasse a sua actuação e que excluísse a ilicitude dos factos;
3. E assim é porquanto acompanhamos o exposto na fundamentação da matéria de Direito da sentença recorrida;
4. Entendemos que os fundamentos que permitiram ao Tribunal decidir pela ilicitude dos factos que resultaram provados na sentença são conformes com a interpretação sistemática do nosso quadro legal em face dos diplomas internacionais a que a Republica Portuguesa está subordinada, designadamente, o art.º 19.º, n.º 1 da Convenção Europeia dos Direitos da Criança e o art.º 29.º, n.º 1, al. d) da Convenção dos Direitos da Criança;
5. O exercício das responsabilidades parentais e, consequentemente, o dever de educação dos filhos menores, não permite o exercício deste poder através da agressão física e humilhação dos filhos.»
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4) O recurso foi remetido para este Tribunal da Relação e aqui, com vista nos termos do artigo 416º do Código de Processo Penal, a Ex.ma Senhora Procuradora – Geral Adjunta, emitiu parecer no sentido de o recurso ser julgado improcedente, aderindo à resposta apresentada pelo Ministério Público junto da 1ª instância e acrescentando (em suma) que:
- A argumentação do recorrente tem subjacente uma visão retrógrada e ultrapassada, desde as alterações legislativas aos art.ºs 1878° e 1906° do CC dadas pela Lei 61/2008, de 31 de outubro, impondo que as responsabilidades parentais sejam exercidas de harmonia com o princípio do superior interesse da criança;
- O dever de educação tem de ser exercido tendo em conta o primado dos interesses e direitos da criança e o direito penal não pode ser alheio a esta evolução legislativa;
- Neste caso, ao dar uma bofetada ao filho num campo desportivo na proximidade da Escola Secundária Poeta Joaquim Serra, onde este se encontrava com os amigos, tal acto do arguido constitui uma agressão física e humilhação ao filho;
- Não sendo o atraso deste, na ida para casa, uma circunstância extrema justificativa da conduta punitiva do arguido;
- E, para além do atraso, não decorre que o filho estivesse a fazer qualquer ato ou atividade imprópria quando foi encontrado;
- Por isso, a conduta do arguido não integra o poder/direito de correção, em muito excede o dever de educação e o exercício da correção do comportamento do filho menor, é desproporcional às necessidades de educação do filho e desadequada aos propósitos educativos.
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5) Cumprido o disposto no artigo 417.º, n.º 2, do Código de Processo Penal, o arguido não apresentou resposta.
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6) Colhidos os vistos, foram os autos à conferência.
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Cumpre apreciar e decidir.
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B) Fundamentação:
1. Âmbito do recurso e questões a decidir:
O âmbito do recurso é dado pelas conclusões extraídas pelo recorrente da respectiva motivação, face ao disposto no artigo 412º, nº 1, do Código de Processo Penal, que estabelece que “a motivação enuncia especificadamente os fundamentos do recurso e termina pela formulação de conclusões, deduzidas por artigos, em que o recorrente resume as razões do pedido”; são, pois, apenas as questões suscitadas pelo recorrente e sumariadas nas respectivas conclusões que o Tribunal de recurso tem de apreciar, sem prejuízo das de conhecimento oficioso (identificação de vícios da decisão recorrida, previstos no artigo 410.º, n.º 2, do Código de Processo Penal, pela simples leitura do texto da decisão, por si só ou conjugada com as regras da experiência comum, e verificação de nulidades que não devam considerar-se sanadas, nos termos dos artigos 379.º, n.º 2, e 410.º, nº 3, do mesmo diploma legal). O que é pacífico, tanto a nível da doutrina como da jurisprudência (cf. Germano Marques da Silva, Direito Processual Penal Português, vol. 3, Universidade Católica Editora, 2015, pág. 335; Simas Santos e Leal-Henriques, Recursos Penais, 8.ª ed., 2011, pág. 113; bem como o Acórdão de Fixação de Jurisprudência do STJ, nº 7/95, de 19.10.1995, publicado no DR 1ª série, de 28.12.1995; e ainda, entre muitos, os Acórdãos do STJ de 11.7.2019, in www.dgsi.pt; de 25.06.1998, in BMJ 478, pág. 242; de 03.02.1999, in BMJ 484, pág. 271; de 28.04.1999, in CJ/STJ, Ano VII, Tomo II, pág. 193.
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2. No caso dos autos face às conclusões da motivação apresentadas pelo arguido, as questões a decidir são as seguintes:
- Impugnação da matéria de facto;
- Verificação em concreto de causa de exclusão da ilicitude assente no exercício do poder de educação do arguido em relação ao ofendido.
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3. A sentença recorrida:
Naquilo em que a mesma releva para o conhecimento do objeto do recurso, é o seguinte o teor da sentença impugnada:
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«(…) FACTOS PROVADOS
Após ter sido discutida toda a matéria de facto e produzida a prova em julgamento, resultaram provados os seguintes factos com relevância para a decisão a proferir:
1. O arguido é pai do ofendido B, nascido a 6.9.2007.
2. No dia 16.10.2020, pelas 18h45m, num campo na proximidade da Escola Secundária ..., sita na ..., no Montijo, porque o menor tinha terminado as aulas às 17h00m, já tinha perdido dois autocarros e mantinha o telemóvel no bolso sem som, não respondendo aos telefonemas do arguido, este dirigiu-se ao local, e encontrando o ofendido B, desferiu-lhe uma bofetada no rosto;
3. Como consequência necessária da conduta do arguido, o ofendido sentiu dor no local agredido.
4. O arguido agiu de forma livre, voluntária e consciente, ciente que a sua conduta era apta a provocar dor no corpo do menor, de o atingir na sua saúde física, o que quis e logrou.
5. Em relação ao seu descrito comportamento, o arguido sempre teve, além disso, perfeito conhecimento que o mesmo é proibido porque punido por lei;
Mais se apurou que:
6. Mais do que a dor da bofetada, B ficou incomodado com a humilhação e constrangimento do ato realizado na frente dos amigos.
7. Por desconhecer o paradeiro do ofendido e temer pela segurança deste, o arguido foi procurá-lo à Escola ... e ao campo desportivo próximo desta.
8. Foi a primeira vez que o arguido reprimiu fisicamente qualquer um dos seus dois filhos;
9. O arguido vive com a sua mulher e os dois filhos desta, em casa arrendada para a qual paga uma renda de €350,00 mensais.
10. O arguido encontra-se desempregado, sendo que a sua mulher se encontra de baixa médica, auferindo o primeiro o subsídio de desemprego e a segunda um salário de aproximadamente €650,00.;
11. O arguido encontra-se a pagar dívida decorrente de cartão de crédito de aproximadamente €2.000,00;
12. O arguido é tido como um bom pai aos olhos da comunidade familiar em que se encontra.
13. O arguido tem o 12º ano de escolaridade.
14. O arguido não tem antecedentes criminais.»

Factos não provados.
Com relevância para a decisão da causa, nada ficou por provar.
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O Tribunal recorrido fundou a decisão de facto, nos seguintes termos:
(…) “Conjugado o art.º 124º do CPP com o art.º 127º do mesmo diploma legal, facilmente se compreende que devem ser carreados para a instrução todos os factos que assumam relevância para a existência, ou não, do crime a aplicar, cuja prova será apreciada pelo Tribunal segundo as regras da experiência e a convicção a que livremente chegou sobre esta.
Esse exame crítico não poderá senão traduzir-se nos motivos que levaram o Tribunal a optar pela maior ou menor valoração de um meio de prova em detrimento de outro, tendo em conta a apreciação conjunta da globalidade dos elementos probatórios apresentados e uma análise crítica de toda a prova produzida, atendendo sempre às regras da experiência, juízos de normalidade e espírito crítico, nomeadamente:
* Declarações do arguido A, prestadas em sede de audiência de julgamento;
* Depoimento da testemunha B, prestadas em sede declarações para memória futura a fls. 129 a 131;
* Depoimento da testemunha C prestadas em sede de audiência de julgamento;
* Depoimento da testemunha D, prestadas em sede de audiência de julgamento;
* Assento de nascimento de fls. 30.
* Certificado de Registo Criminal de fls. 232-234.
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O facto 1 e 14 foram dados como provados atento o teor dos documentos de fé pública juntos aos autos e que fazem prova plena do respetivo teor: o assento de nascimento do menor e ofendido B e o certificado de registo criminal do arguido.
A prova da matéria de facto elencada do ponto 2 ao 5 dos factos provados baseou-me não apenas no teor das declarações do ofendido e filho do ora arguido, como também na admissão de parte dos factos levada a cabo pelo arguido e, bem assim, da sua corroboração pela testemunha C.
Nas declarações prestadas em audiência de julgamento, o arguido mostrou-se sincero com o relato dos factos tal como descrito na acusação, apesar de ter procurado justificar a sua atitude e do que o levou a chegar a esse ponto com base em circunstancialismos externos, em parte seus (desespero pelo desconhecimento do paradeiro do filho), em parte relativo a terceiros (suspeitas de que esse desaparecimento estivesse associado à mãe do ofendido, sem que tal lhe tivesse sido comunicado, em virtude de desavenças afetas ao alegado processo de regulação das responsabilidades parentais que se encontra a correr termos entre ambos), e em parte atinentes ao próprio menor (irritação pela desobediência e pela mentira que acreditava que este lhe tivesse oferecido).
Com efeito, pelo pai foi dito que realmente se encontrava desesperado à procura do ofendido uma vez que tinham previamente agendado no início desse dia que B apanharia um autocarro após o termino das aulas, tendo ido à escola e ao campo de futebol adjacente a esta para o encontrar sem logro; que nesse desespero já lhe tinha igualmente tentado ligar cerca de 20 vezes sem sucesso, após o que decidiu mandar mensagem à mãe do ofendido informando-a de que iria contactar as autoridades caso o menor não aparecesse; que minutos depois do sucedido B retornou a chamada e informou-o da sua localização, tendo o arguido ali se dirigido e, simultaneamente zangado e desesperado, lhe deu uma bofetada no rosto.
Por outro lado, entende também o arguido que a bofetada que desferiu no menor B foi apenas um “sacudido de moscas”, até porque, no seu entendimento, como o menor havia colocado aparelho há poucos dias, caso a bofetada tivesse sido efetivamente forte, ter-lhe-ia ferido o lábio, o que não aconteceu; que aquilo que o B sentiu foi, sim, “vergonha” e não propriamente dor, pois “e/e não se queixou, não o magoei”. Disse também que após deixar o B com a mãe ao final desse mesmo dia, pediu-lhe desculpas através de mensagem telefónica, as quais foram aceites e retribuídas pelo ofendido.
Confrontado o teor das declarações do arguido com as declarações prestadas em sede de memória futura pelo ofendido B, podemos constatar: (i) que o relato dos factos corrobora o teor da acusação, nomeadamente, que devia ter apanhado autocarro a determinada hora para ir para casa, não o tendo feito, que tinha deixado o telemóvel no silêncio para ir jogar com os amigos no parque ao lado da escola, que tinha 12 chamadas não atendidas do pai e, quando as viu, devolveu a chamada, que assim que o pai chegou desferiu- lhe logo uma bofetada em frente de toda a gente sem lhe dizer nada; bofetada essa que “não foi com muita força, mas foi com força’’ (suficiente para doer), “com raiva”; (ii) B encara e lida com a conduta do pai (dar uma bofetada) como uma atitude exagerada, mesmo no contexto que a precedeu, i.e., mesmo estando aquele desesperado sem saber de si há 1h30m; reconhece, porém, e também, que não tem medo de estar sozinho com o seu pai e, bem assim, que foi mais a vergonha do episódio ter decorrido em praça pública, junto dos seus amigos, do que medo da agressividade do seu progenitor que o deixou incomodado.
Todos estes factos foram ainda corroborados pelo depoimento de C, a qual, apesar de não ter presenciado o ato de agressão física do arguido ao ofendido, acompanhou o arguido desde o momento em que o ofendido não apareceu na hora combinada a casa, com ele procurou-o na escola e no parque e viu no marido a aflição e desespero à procura do menor.
Assim, e pese embora o arguido ter desvalorizado a ilicitude dos atos que praticou, a qual sucessiva e reiteradamente procurou justificar como tendo sido de ligeira gravidade, um ligeiro “sacudir de moscas” nas suas palavras, ou como uma forma de reprimir o filho pela desobediência e irresponsabilidade da sua atitude, a verdade é que o mesmo arguido não podia ignorar e sabia que agredir o menor não deixava de ser uma conduta ilícita e igualmente censurável, até porque reconhece nunca o ter feito e recusar-se a voltar a fazê-lo no futuro.
Por outro lado, e relativamente aos factos 6, 7 e 8, foram igualmente considerados provados atenta toda a prova produzia, em particular do que acima já ficou descrito e, bem assim, do teor do depoimento de C e D, que corroboram a correta postura e comportamento educacional do pai perante os filhos ao longo dos tempos e a excecionalidade da ocasião reportada nos presentes autos.
Uma vez que todos eles são factos benéficos ao arguido, entendeu o tribunal despicienda a necessidade de os comunicar ao arguido.
Já os factos 9 a 13 restaram provados em razão das declarações do arguido acerca das suas condições socioeconómicas que, pela sua espontaneidade, mereceram credibilidade do Tribunal.
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Em face desta factualidade, o Tribunal de 1ª instância fez o seguinte enquadramento jurídico (transcrição):
«(…)  ENQUADRAMENTO JURÍDICO DOS FACTOS
 ... DO CRIME DE OFENSA À INTEGRIDADE FÍSICA SIMPLES, p. e p. 143, n.º 1 do Código Penal
I. Dita o art.º 143, n.º 1 do Código Penal que: “Quem ofender o corpo ou a saúde de outra pessoa é punido com pena de prisão até 3 anos ou com pena de multa”.
O bem jurídico protegido pelo tipo penal previsto nesta norma é a integridade física da pessoa humana, tal como prevista nos termos do art.º 25º da CRP.
A previsão do tipo incriminador em causa basta-se com a verificação de qualquer ofensa física ou psíquica perpetrada contra a vítima, independentemente do tipo de lesão e sua gravidade, ou mesmo da dor, sofrimento ou incapacidade para o trabalho de que esta venha a padecer.
O crime de ofensa à integridade física é simultaneamente um crime material e de dano, pressupondo a consumação de um resultado no corpo ou saúde da vítima.
A gravidade da lesão apurada deve ser analisada objetivamente no âmbito da medida concreta da pena a aplicar, com recurso a elementos como a duração da agressão ou a intensidade com que o bem jurídico foi afetado, sem nunca desconsiderar as qualidades especiais que caracterizem quer o agressor, quer a vítima (v.g. robustez ou vulnerabilidade física etc.).
A consumação do tipo objetivo basta-se, assim, com (i) a verificação de uma ofensa, (ii) perpetrada no copo ou saúde da vítima.
O crime é recortado negativamente, porém, pelas condutas que causem lesões insignificantes, insuscetíveis de serem verdadeiramente consideradas como ofensas ao corpo ou saúde da vítima, em obediência aos princípios penais da dignidade do bem jurídico e da intervenção mínima do direito penal.
Entende o Tribunal que todos os elementos objetivos do tipo se deram como verificados. O arguido, com sentimentos simultaneamente de raiva e desespero, desferiu uma bofetada no seu filho num local público e, com isso, provocou dores no ofendido, ainda que ligeiras, assim lesando-o na sua saúde e integridade físicas.
No que tange ao tipo subjetivo do crime, resulta da conjugação do art.º 143º, n.º 1 do Código Penal com o art.º 13º e 148º do Código Penal a incriminação do crime de ofensa à integridade física não apenas por dolo, mas também por negligência.
Da factualidade dada como provada resulta que o arguido representou todas as circunstâncias de facto que preenchem os elementos objetivos do ilícito (elemento intencional do dolo) e, ainda assim, deliberadamente decidiu, querendo, agredir o ofendido fisicamente, mesmo sabendo mesmo sabendo que ao atuar na forma descrita iria infligir dor ao seu filho e que quaisquer tipos de agressões físicas são censuradas e punidas por lei.
Resta senão concluir que o arguido agiu com dolo direto e, nessa medida, dá-se por integralmente preenchido o dolo do tipo exigido pela norma em causa (cfr. art.º 14.º, n.º 1 e art.º 143º, n.º 1 do Código Penal).
Dá-se por integralmente verificado que o arguido praticou, em autoria material e na forma consumada, um crime de ofensas à integridade física simples, p. e p. pelo art.º 143º, n.º 1 do Código Penal.
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 II. Poderia ser aqui questionado, até porque foi levantado pela defesa em sede de julgamento, do cabimento do designado “poder de correção” que tanto inspirou o legislador até à Reforma de 1977 e que hoje continua a dividir a jurisprudência e doutrina, que o aceita, ainda que de forma claramente minoritária.
O enquadramento dos presentes factos ao abrigo de tal instituto, que não colhe hoje qualquer tipo de previsão no sistema jurídico nacional, implicaria a possível verificação de uma causa de exclusão da ilicitude nos termos do art.º 31º, n.º 1 e 2, al. b) do Código Penal.
Nos termos deste dispositivo, “o facto não é punível quando a sua ilicitude for excluída pela ordem jurídica considerada na sua totalidade. 2 - Nomeadamente, não é ilícito o facto praticado: b) No exercício de um direito (...)”.
Alguma doutrina portuguesa minoritária tem entendido que o ordenamento jurídico português deve tolerar e justificar determinadas agressões ao abrigo deste poder correcional, com isso excluindo a ilicitude do facto criminoso, desde que se verifiquem circunstâncias muito peculiares e que sejam obedecidos certo número de requisitos, a aferir casuisticamente em função do facto concreto.
Entre os vários requisitos atendidos, conta-se: (i) a legitimidade do agente corretor, i.e., se é sobre o agente que pratica a agressão que impendem os deveres inerentes às responsabilidades parentais sobre o ofendido; (ii) a existência de um motivo pedagógico/educativo na conduta praticada, o que necessariamente acaba por excluir agressões motivadas por raiva, tensão, tão-pouco podendo ser utilizado como uma forma intimidatória de aplicar um castigo a determinado filho para aprendizagem dos restantes.
Cumpridos estes dois elementos essenciais base, também a própria agressão acaba ser escrutinada sob um prisma de proporcionalidade em sentido amplo, de tal forma a que: (i) a relação entre a gravidade do erro/falta do menor e a intensidade da agressão, não poderá ultrapassar os limites do razoável, i.e., não se poderão tolerar agressões que atinjam diretamente na própria dignidade do menor, pelo seu carácter violento ou abusivo quando estiverem em causa faltas ligeiras e menos graves praticadas por este; (ii) a agressão sempre teria de ser adequada à idade, discernimento e maturidade do menor ofendido; (iii) necessidade, i.e., com a imposição de um certo escalamento de sanções que passem por tentativas de diálogo instrutivo e pedagógico que precedam, após reiteração de comportamentos inadequados e incorretos, uma agressão corporal; e (iv) atualidade da agressão, uma vez que qualquer repressão física haveria de estar associada a um evento ocorrido num curto espaço de tempo, já que a dilação temporal acabaria por afetar a produção de efeitos úteis na aprendizagem e correção do menor [CORREIA, Leandra, in “Direito de Correção dos Pais ou Poder-Dever de Educação - Corrigir Como Educar e não Como Punir”, Universidade de Coimbra, 2017, págs. 39/40].
Mas este não é, porém, o entendimento deste Tribunal, que partilha da aceção de que o poder-dever do exercício das responsabilidades parentais e, por conseguinte, o dever de educação dos pais para os filhos não abarca ou inclui a possibilidade de corrigi-los com recurso a agressões físicas ou humilhantes.
Desde a Reforma de 1977 que a legislação portuguesa deixou de fazer qualquer menção expressa ao designado “poder de correção” como um poder incluído naquele exercício das (hoje designadas) responsabilidades parentais. É verdade que o abandono desta expressão deixou um vazio legislativo cuja interpretação apenas cabe ao intérprete; como também é verdade que o atual sistema jurídico não inclui qualquer referência expressa a proibir esse poder de correção, quer o seu contrário (permiti-lo).
Com a chegada da Reforma de 1977 e a alteração legislativa em causa, passou a afirmar-se um novo princípio na ordem jurídica interna portuguesa ligado ao respeito mútuo, ao respeito como dever que vincula simultaneamente pais e filhos e, em particular, do respeito pela autonomia dos últimos. Neste novo panorama e contexto, o cabimento de interpretações que admitam correções moderadas, i.e., proporcionais, razoáveis e adequadas (pois nunca foram admitidas formas de castigo físico mais severo ou desproporcional) mantinha-se mais difícil de sustentar.
Até porque o surgimento crescente de legislação internacional relativa à proteção dos direitos da criança no final do século XX, em particular a Convenção Europeia dos Direitos da Criança, em vigor em Portugal desde 1990, impunha uma interpretação em conformidade com as novas diretrizes europeias e internacionais na forma de encarar os conflitos familiares, a disciplina e a correção de menores.
Merece aqui destaque o disposto art.º 19º, n.º 1 desta Convenção, o qual dita que “os Estados Partes tomam todas as medidas legislativas, administrativas, sociais e educativas adequadas à proteção da criança contra todas as formas de violência física ou mental (...) tratamento negligente, maus tratos (...) se encontrar sob a guarda de seus pais ou de um deles”.
O preceito em causa acaba por consagrar uma política de tolerância-zero relativamente a qualquer tipo de agressões ou violência física administrada em crianças. Quando interpretado em situações em que quem esteja em causa sejam jovens-adultos, e não já crianças, sempre se poderia dizer que o preceito colhe, por maioria de razão, ainda mais cabimento: afinal, se relativamente a menores, com maior dificuldade de perceção e compreensão da incorretude das suas condutas não existi qualquer complacência perante atos de violência, certamente ainda menos existirá quando estejam em causa jovens adolescentes, com maior capacidade de compreensão e perceção de sentidos de comunicação e linguagem verbal, com maior consciência e noções de correto e errado, bem e mal, já com maior proximidade à idade adulta e um nivelamento intelectual quase equiparado a de um adulto.
Entende este Tribunal que, na sociedade contemporânea, simplesmente não é tolerável admitir que as crianças e os jovens sejam o único grupo de pessoas que convivem em sociedade e que, legitimamente, ser agredidos sem qualquer tipo punição.
Um entendimento que diga o contrário acaba por desconsiderar crianças e jovens como pessoas, pese embora sejam os adultos de amanhã; acaba por desconsiderá-los como sendo igualmente titulares de direitos fundamentais tal como os seus pais ou terceiros são, mais desconsiderando a vulnerabilidade da posição que ocupam quer no seio familiar, quer na própria sociedade que integram. A noção de respeito e consideração não colhe cabimento apenas entre adultos, mas entre adultos e crianças ou jovens entre si.
Tal como qualquer tipo de agressão ou maltrato não constitui uma ideia neutra e despedia de conteúdo, antes lhe estando tendo associado um juízo de valor, que faz sentido e se enquadra no âmbito de relações sociais de domínio, poder, autoridade, indiferença entre certos grupos sociais; esta não é uma noção que a sociedade deve ou pretende integrar no conceito de família.
A conceção de família, antes pelo contrário, haverá de pressupor e plantar noções de democracia, igualdade, participação, integração, equiparação, respeito mútuo, fraternidade; deve-se, neste pequeno nicho, estimular a presença destes descritivos e nunca, nunca, admitir ou tolerar aqueloutros pejorativos típicos de grupos desnivelados e dependentes, onde a imposição pela força admite e se compadece com qualquer forma de agressão. Na conceção de família, todos os seus elementos, dos mais jovens aos mais idosos, devem poder gozar do direito e liberdade de se exprimir livremente, de se construírem num ambiente são e aberto ao diálogo, onde a obediência, existindo sempre, deve ser temperada com políticas de respeito mútuo e de reconhecimento da autonomia gradual dos filhos como pressuposto fundamental ao seu saudável crescimento e desenvolvimento físico, moral e psicológico.
Paralelamente, há ainda que perspetivar estas ideias à luz do art.º 29º, n.º 1, al. d) da Convenção dos Direitos da Criança, a qual dita que, entre os objetivos que devem presidir à educação de uma criança e da sua preparação para a sua futura integração na sociedade, vale o sentido de responsabilidade para viver numa sociedade livre, com espírito crítico, com direito e espaço à compreensão, à paz, à tolerância, à igualdade, à democracia entre todos e cada um, livre de preconceitos baseada em sexos, idades, raças, religiões, políticas, nacionalidades. Uma educação que se pretende ser implementada à luz destes princípios e desta visão, não pode ser complacente e tolerar a utilização e recurso de castigos físicos ou psíquicos, humilhantes, aplicados pelos pais, mas sim pugnar pelo uso e recurso a mecanismos como o afeto e o exemplo.
Assim, e pese embora o entendimento algo que enraizado na sociedade portuguesa de que castigar moderadamente os filhos é admissível sempre que necessário, impõe-se uma maior reflexão e consciencialização da dignidade da pessoa humana das crianças e jovens adultos, dirigida a combater esta mentalidade precária e tradicional ancorada numa visão hierarquizada de sociedade e de família, subalternizadora da posição dos filhos no seio familiar e castradora da autonomia e livre desenvolvimento destes.
Afinal, a criança ou um jovem não é um ser inferior a nenhum outro adulto; razão pela qual não se podem tolerar políticas que, pressupondo-o, justifiquem a perpetuação de pequenos maus-tratos ou castigos corporais para corrigir comportamentos desviantes ou incorretos dos filhos.
Termos em que, justificada que está a posição do Tribunal, entende-se não ter qualquer cabimento a ponderação de uma eventual exclusão da ilicitude por inexistir qualquer “poder de correção” que legitimasse a conduta do arguido».
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4. Apreciação do recurso
Face ao que resulta das conclusões do recurso, o recorrente, embora sem o referir expressamente, acaba por impugnar a matéria de facto na 24.º conclusão quanto à intenção com que agiu, alegando que agiu, “apenas e tão só a intenção de educar o seu filho, que desrespeitou o recorrente”.
Vejamos.
Com é sabido, a matéria de facto pode ser sindicada por duas vias: a primeira, num âmbito mais restrito, dos vícios previstos no artigo 410.º, n.º 2, do Código de Processo Penal e a segunda, num contexto mais amplo da matéria de facto, prevista no artigo 412.º, n/s 3, 4 e 6 do mesmo diploma legal. Na primeira via de impugnação, estamos perante vícios decisórios previstos nas alíneas do artigo 410.º, n.º 2 do Código de Processo Penal, cuja indagação, como resulta do preceito, tem de resultar da decisão recorrida, «por si só ou conjugada com as regras da experiência comum», não sendo admissível o recurso a elementos estranhos àquela, para a fundamentar, como por exemplo, quaisquer dados existentes nos autos, mesmo que provenientes do próprio julgamento: como referem Manuel Simas Santos e Manuel Leal-Henriques (in recursos Penais, 9.ª edição, Rei dos Livros), neste caso o recorrente “não pode ir buscar outros elementos para fundamentar o vício invocado fora da decisão, nomeadamente ir à cata de eventuais contradições entre a decisão e outras peças processuais, como por exemplo recorrer a dados do inquérito, da instrução ou do próprio julgamento”.
Na segunda via de impugnação um outro âmbito, por via da impugnação “ampla” da matéria de facto (também chamada recurso amplo ou recurso efectivo da matéria de facto), a apreciação não se restringe ao texto da decisão recorrida, alargando-se à análise do que contém e pode ser extraído da prova documentada produzida em audiência, dentro dos limites dados pelo recorrente no estrito cumprimento do ónus de especificação imposto pelo artigo 412.º, n.ºs 3  e 4 do Código de Processo Penal.
Enquanto na primeira via de impugnação, o recorrente invoca vícios da própria decisão recorrida, «por si só ou conjugada com as regras da experiência comum», na segunda, o recorrente invoca erros de julgamento com base nas provas produzidas e “erradamente” apreciadas pelo Tribunal recorrido. Neste último caso, o recorrente pretende é que o Tribunal de recurso se debruce não apenas sobre o texto da decisão recorrida, mas sobre a prova produzida no Tribunal recorrido (cf. com o Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa de 09/05/2017 (www.dgsi.pt). Como também sabido, impõe-se ao Tribunal recorrido que explique e fundamente a sua decisão sobre a matéria de facto, pois só assim é possível saber se fez a apreciação da prova segundo as regras de um entendimento correto e normal, isto é, de harmonia com as regras comuns da lógica, da razão e da experiência acumulada. Como salienta Germano Marques da Silva (in Curso de Processo Penal, III Vol, página 289), “as decisões judiciais, com efeito, não podem impor-se apenas em razão da autoridade de quem as profere, mas antes pela razão que lhes subjaz”. Como acrescenta o mesmo autor, o objectivo dessa fundamentação é o de permitir “a sindicância da legalidade do acto, por uma parte, e serve para convencer os interessados e os cidadãos em geral acerca da sua correcção e justiça, por outra parte, mas é ainda um importante meio para obrigar a autoridade decidente a ponderar os motivos de facto e de direito da sua decisão, actuando, por isso como meio de autodisciplina”.
Como se escreve no acórdão proferido por esta Relação de Lisboa, datado de 02/07/2020, relatado pelo Sr. Desembargador Abrunhosa de Carvalho (consultado em www.dgsi.pt), “normalmente, os erros de julgamento capazes de conduzir à modificação da matéria de facto pelo tribunal de recurso consistem no seguinte: dar-se como provado um facto com base no depoimento de uma testemunha que nada disse sobre o assunto; dar-se como provado um facto sem que tenha sido produzida qualquer prova sobre o mesmo; dar-se como provado um facto com base no depoimento de testemunha, sem razão de ciência da mesma que permita a referida prova; dar-se como provado um facto com base em prova que se valorou com violação das regras sobre a sua força legal ; dar-se como provado um facto com base em depoimento ou declaração, em que a testemunha, o arguido ou o declarante não afirmaram aquilo que na fundamentação se diz que afirmaram; dar-se como provado um facto com base num documento do qual não consta o que se deu como provado; dar-se como provado um facto com recurso à presunção judicial fora das condições em que esta podia operar”.
No caso dos autos, o Tribunal recorrido deu como provado que o arguido, ora recorrente, ao desferir a bofetada no rosto do filho, nas circunstâncias de tempo e de lugar descritas no ponto 4 da matéria de facto provada, “agiu de forma livre, voluntária e consciente, ciente que a sua conduta era apta a provocar dor no corpo do menor, de o atingir na sua saúde física, o que quis e logrou”. Lendo a motivação da matéria de facto acima transcrita, verifica-se que para dar como provado o ponto 4, o Tribunal recorrido fundamenta-se, no essencial, nas declarações do próprio arguido mas, a partir delas, por presunção judicial, concluiu que o mesmo agiu com a intenção de “atingir o menor na sua saúde física”.
Como é sabido, no que diz respeito à prova da intenção e do dolo do agente é admissível o recurso às presunções judiciais, como aliás é prática judiciária. Na verdade, como se escreveu no acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra de 06/07/2016 (processo n.º 340/08.0PAPBL.C1), “o dolo, o conhecimento e vontade de praticar o facto com consciência da sua censurabilidade, em qualquer das modalidades previstas no art.º 14º do C. Penal, é sempre um facto da vida interior do agente, um facto subjectivo, não directamente apreensível por terceiro. Por isso, a sua demonstração probatória, sobretudo, quando não existe confissão, não pode ser feita directamente, designadamente, através de prova testemunhal. Nestes casos, a prova do dolo tem que ser feita por inferência isto é, terá que resultar da conjugação da prova de factos objectivos – em particular, dos que integram o tipo objectivo de ilícito – com as regras de normalidade e da experiência comum”.
As presunções judiciais, simples ou de experiência, assentam no simples raciocínio de quem julga (…) inspiram-se nas máximas da experiência, nos juízos correntes de probabilidade, nos princípios da lógica ou nos próprios dados da intuição humana” – cf. com Pires de Lima e Antunes Varela in Código Civil (3ª edicção revista e actualizada, Coimbra editora, 1982, volume I). Como entendeu o STJ no Acórdão de 23/11/2006, relatado pelo Sr. Conselheiro Santos Cabral (consultado em www.dgsi.pt), “as normas dos artigos 126° e 127° do CPP podem ser interpretadas de modo a permitir que possam ser provados factos sem que exista uma prova directa deles. Basta a prova indirecta, conjugada e interpretada no seu todo (…) interpretação que não ofende quaisquer princípios constitucionais, como o da legalidade, ou das garantias de defesa, ou da presunção de inocência e do contraditório, consagrados no art.º 32.º, n.º 1, 2, 5 e 8 da Constituição da República Portuguesa, desde que haja uma fundamentação crítica dos meios de prova e um grau de recurso em matéria de facto para efectivo controlo da decisão”. No mesmo sentido decidiu o Tribunal da Relação do Porto no acórdão de 18/03/2015 (processo n.º400/13.6PDPRT.P1), entendendo que “em processo penal são admissíveis as provas que não forem proibidas por lei (art. 125.º do Cód. Proc. Penal), pelo que não pode ser excluída a prova por presunções (art.º 349.º do Cód. Civil), em que se parte de um facto conhecido (o facto base ou facto indiciante) para afirmar um facto desconhecido (o factum probandum) recorrendo a um juízo de normalidade (de probabilidade) alicerçado em regras da experiência comum que permite chegar, sem necessidade de uma averiguação casuística, a um resultado verdadeiro”, acrescentando que “o sistema probatório alicerça-se em grande parte neste tipo de raciocínio (indutivo) e, para certos factos, como sejam os relativos aos elementos subjetivos do tipo (doloso ou negligente), não havendo confissão, a sua comprovação não poderá fazer-se senão por meio de prova indireta”.
No caso dos autos, o Tribunal recorrido, dos factos provados directamente (porque o menor tinha terminado as aulas às 17h00m, já tinha perdido dois autocarros e mantinha o telemóvel no bolso sem som, não respondendo aos telefonemas do arguido, este dirigiu-se ao local, e encontrando o ofendido B, desferiu-lhe uma bofetada no rosto) retirou os fatos relativos aos elementos subjectivos do tipo da ofensa à integridade física.
No entanto, se tivessem sido valoradas apenas as declarações do arguido que se “mostrou sincero” na audiência de julgamento, teria de se concluir, salvo o devido respeito por opinião contrária, que este agiu como “forma de reprimir o filho pela atitude de desobediência e desrespeito pela pessoa do outro (no caso, o pai)”. Acresce que não era inevitável que o arguido, ao dar a bofetada ao filho, tivesse de saber que a sua conduta era proibida por lei, porque como se entendeu no acórdão desta Relação de Lisboa 02/07/2020, supra citado, “os métodos educativos com recurso à punição física são ainda muito aceites na comunidade, mais ainda nas camadas de menor nível sócio-económico, e porque certamente, terá sido objecto desses métodos educativos, sendo as pessoas têm tendência a reproduzir os métodos educativos que lhes foram aplicados), como porque a intenção de molestar fisicamente o filho não é a única causa provável para a sua acção, sendo admissível que tenha agido com a intenção de corrigir a atitude reprovável deste, convencida que essa acção era legítima”. Como se afirma no mesmo acórdão, apesar da evolução positiva que vem sendo registada, paulatinamente, no modo como é encarado o exercício das responsabilidades parentais, ainda não se pode dizer “que o cidadão médio tem a consciência de que é sempre ilícito o uso de punição física como método educativo”, pelo que “na normalidade dos casos, quem dá uma bofetada sabe que esta causa algum grau de sofrimento físico, pelo que, havendo dúvidas quanto ao dolo do arguido e aplicando o princípio in dúbio pro reo, o que se pode concluir com suficiente segurança, por presunção judicial, é que agiu com intenção de corrigir a atitude reprovável do filho, conformando-se com a necessária consequência da sua conduta: o sofrimento físico que tal bofetada causou neste”. Não se concorda, assim, com o Tribunal recorrido quando escreve na fundamentação, que o arguido, “não podia ignorar e sabia que agredir o menor não deixava de ser uma conduta ilícita e igualmente censurável”.
Não se pode exigir a uma pessoa comum o conhecimento da interpretação da lei efectuada pelos juristas e que nem sequer é unânime; na verdade, não existe lei que expressamente proíba o uso de castigos corporais como forma de educação. Daí que se fale em “vazio legislativo”: a lei mantém-se a mesma desde 1977, sendo que nessa altura se iniciou a mudança do paradigma relativo ao poder/dever de educação dos pais, mudança essa que continua em evolução.
Aliás, no caso dos autos, se o Tribunal recorrido considerou que “o arguido mostrou-se sincero com o relato dos factos tal como descrito na acusação”, mesmo não recorrendo a qualquer presunção judicial, devia, consequentemente, ter dado como provado que aquele agiu com a intenção de “reprimir a atitude do filho de desobediência e desrespeito pela pessoa do outro (no caso, o pai)”.
Assim, iremos alterar a matéria de facto fixada no facto provado 4), passando este a ter a seguinte redacção: “o arguido agiu de forma livre, voluntária e consciente, com a intenção de reprimir a atitude do filho de desobediência e desrespeito pela pessoa do outro (no caso, o pai),  sabendo que a sua conduta era apta a provocar dor no corpo do menor, mas conformando-se com tal”. Por aplicação do mesmo princípio, daremos como não provado que “em relação ao seu descrito comportamento, o arguido tivesse conhecimento que o mesmo é proibido porque punido por lei”.
É, pois, procedente, nesta parte, o recurso.
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Segunda questão:
O recorrente alega que a “punição física que o recorrente infligiu ao seu filho, cumpre os pressupostos para considerarmos excluída a ilicitude desses factos, nos termos do art.º 31º/1/2-b) do CP (exercício de um direito)”.
Vejamos.
Decorre do disposto no artigo 31.º, n.º 1 do Código Penal que «o facto não é punível quando a sua ilicitude for excluída pela ordem jurídica considerada na sua totalidade». Nos termos do n.º 2 do mesmo artigo, “nomeadamente, não é ilícito o facto praticado: a) em legitima defesa; b) no exercício de um direito; c) no cumprimento de um dever imposto por lei ou por ordem legítima da autoridade; ou d), com o consentimento do titular do interesse jurídico lesado». Como escreve Paulo Pinto de Albuquerque in Comentário do Código Penal (universidade católica, 5. º edição actualizada, Lisboa 2022), em anotação ao artigo 31.º, As causas de justificação não estão subordinadas ao princípio da legalidade, nos mesmos termos que os tipos incriminadores, (…), podendo admitir-se causas de justificação provenientes de outros ramos do direito, incluindo o direito da União Europeia. Os elementos objectivos da causa de justificação devem ser submetidos à teoria da causalidade adequada, isto é, devem ser previsíveis para o homem médio colocado na posição do agente, munido dos conhecimentos especiais deste. Para agir justificadamente, o agente tem de possuir um conhecimento actual dos pressupostos fácticos do tipo justificador (…). O tipo justificador não tem apenas elementos objectivos, mas também tem elementos subjectivos. A presença dos elementos subjectivos do tipo justificador afasta o desvalor da acção. A causa de justificação da prossecução de interesses legítimos não depende da existência de uma situação de perigo actual nem da sensível superioridade do bem jurídico a salvaguardar, mas depende da verificação dos princípios da proporcionalidade e da necessidade.
Está em causa a prática pelo arguido, de um crime de ofensa à integridade física simples, previsto e punido pelo artigo 143.º, n.º 1 do Código Penal. Comete o crime «quem ofender o corpo ou a saúde de outra pessoa». No sentido médico-legal, a ofensa corporal deve ser entendida aqui como lesão corporal, ou seja nas palavras do Prof. Pinto da Costa, como “perturbação ilícita da integridade corporal morfológica ou do funcionamento normal do organismo ou das suas funções psíquicas”. São elementos do tipo, a ofensa no corpo ou na saúde de outrem. Quanto aos elementos subjectivos do tipo, é um crime doloso e, dada a matéria de facto acima fixada, a conduta do arguido integraria a prática de um crime de ofensa à integridade física simples, com dolo necessário (cf. o disposto no artigo 14.º, n.º 2 do Código Penal).
Diz o recorrente que “não assiste razão ao douto Tribunal “a quo” ao decidir que o dever de educação dos pais para os filhos não abarca ou inclui a possibilidade de corrigi-los com recurso a agressões físicas ou humilhantes”.
Como escreve Paula Ribeiro de Faria (in “O Castigo Físico dos Menores no Direito Penal” - Homenagem ao professor Doutor Ribeiro de Faria), “a discussão em torno da legitimidade ou da ilegitimidade da aplicação de castigos a menores (…), acompanha de perto a evolução de sentido do poder paternal que, tendo começado por ser um poder de domínio, quase de propriedade sobre os filhos, passou progressivamente a ser entendido como um poder-dever, funcionalizado, exercido sempre no interesse do menor (artigo 1878.º do Código Civil) e relaciona-se com “a consagração de direitos fundamentais da criança” e com a Convenção dos Direitos da Criança, ratificada pela Assembleia da República em 1990.
No entanto, ainda hoje, não é unânime a nível internacional, a abolição absoluta da possibilidade de aplicação de castigos a menores. Como é sabido, foi a Suécia que começou por proibir expressamente a sua utilização como meio de correção no princípio dos anos oitenta, tendo sido seguida por outros, nomeadamente pela Alemanha no início do novo milénio (alterando o artigo 1631, n.º 2 do BGB - Bürgerliches Gesetzbuch) e mais recentemente Espanha também parece seguir o mesmo caminho, na redação actual do código civil [1]. Outros países, pelo contrário, ainda mantém a possibilidade de aplicação de castigos corporais[2].
Em Portugal, o Código Civil não estabelece restrições à natureza dos meios educativos utilizados ou empregues pelo educador, pelo que como entende Paula Ribeiro de Faria, “poderá ser tida como legítima a aplicação de um castigo moderado, no desempenho da tarefa educativa, sempre que as circunstâncias do caso não apontem para uma violação da dignidade do menor”.
Efectivamente o artigo 1878.º, n.º 1 do Código Civil[3] que regula o conteúdo das responsabilidades parentais, limita-se a estabelecer que «compete aos pais, no interesse dos filhos, velar pela segurança e saúde destes, prover ao seu sustento, dirigir a sua educação, representá-los, ainda que nascituros, e administrar os seus bens[4]. Por sua vez, no n.º 2 do mesmo artigo, dispõe que «os filhos devem obediência aos pais; estes, porém, de acordo com a maturidade dos filhos, devem ter em conta a sua opinião nos assuntos familiares importantes e reconhecer-lhes autonomia na organização da própria vida». Como escreve Leandra Patrícia Monteiro Correia (in Direito de Correção dos Pais ou Poder-Dever de Educação - Corrigir Como Educar e não Como Punir, Dissertação em Ciências Jurídico-Forenses, Janeiro de 2017, Faculdade de Direito de Coimbra), a doutrina maioritária define as responsabilidades parentais como poderes-deveres funcionais, um complexo de poderes atribuídos pela Ordem Jurídica aos pais para que exerçam a sua função de cuidar dos filhos, impulsionando a sua autonomia e independência, e já não como direitos subjetivos: abrangem um conjunto de poderes-deveres sendo eles, “poder-dever de velar pela segurança do filho, o poder-dever de velar pela sua saúde, poder-dever de prover ao seu sustento, poder-dever de dirigir a sua educação, poder-dever de o representar e o poder- dever de administrar os seus bens”.
Não obstante se admitir um “vazio legislativo”, como lhe chama o Tribunal a quo, também concordamos, no plano dos princípios, que o exercício do poder-dever das responsabilidades parentais, não deveria abarcar ou incluir a possibilidade de corrigir os filhos com o recurso a agressões físicas ou humilhantes. Subscrevemos o entendimento vertido da decisão recorrida, quando se escreve que na conceção da família, “haverá de pressupor e plantar noções de democracia, igualdade, participação, integração, equiparação, respeito mútuo, fraternidade”. Do mesmo modo, concordamos com a invocação da Convenção dos Direitos da Criança, ao abrigo da qual, “uma educação que se pretende ser implementada à luz destes princípios e desta visão, não pode ser complacente e tolerar a utilização e recurso de castigos físicos ou psíquicos, humilhantes, aplicados pelos pais, mas sim pugnar pelo uso e recurso a mecanismos como o afeto e o exemplo”[5].
Porém, como entende Paula Ribeiro de Faria (ob. cit.), “a proibição de todas as formas de castigo físico e psicológico pela lei civil pode constituir decerto um importante instrumento de mudança das mentalidades relativamente a tais formas de castigo, prevenindo fenómenos de violência familiar, mas temos dúvidas sobre se não se deixam exceder deste modo, e já ao nível do próprio direito civil, as funções que normalmente andam associadas a este ramo do direito, o que se torna claro onde alguns autores sublinham a natureza “programática” de uma disposição desta natureza”.
Como acrescenta Paula Ribeiro de Faria no trabalho citado, a questão que se coloca é a de saber se, sendo proibida expressamente ou mesmo não o sendo, na lei civil, toda a forma de castigo, deve o Direito Penal ficar “vinculado a um juízo de ilegitimidade paralelo? deve o direito penal acompanhar o juízo de ilicitude civil sobre estas formas de comportamento pela lesão da integridade física que consubstanciam? ou até que ponto é que, ao centrar-se predominantemente o juízo de ilicitude penal sobre uma ideia global de valoração da conduta e não sobre um desvalor do resultado, não deve este ramo do direito entrar em linha de conta com outras considerações que se relacionam com as funções que lhe cabe desempenhar ?”.
A decisão recorrida parece partir daquilo a que Paula Ribeiro de Faria, invocando a Doutrina alemã, chama de “criminalização automática”, o que não se aceita tendo em conta que o direito penal “apenas deve intervir nas relações familiares em casos extremos”, podendo o funcionamento de mecanismos sancionatórios ser “profundamente desestruturante da célula familiar”, como continua a mesma autora[6], que acrescenta ainda que “a lei penal não constitui um decalque da lei civil ou de outros ramos do ordenamento, tem uma intencionalidade própria, que a obriga a ceder (no sentido de não os ter como ilícitos) a sentidos sociais menos intensos e a sentidos sociais que são inclusivamente contrariadas por outras normas e pela aplicação de outras sanções[7].
Pela nossa parte entendemos que a sensibilização da opinião pública, a desejável modificação das atitudes das pessoas em relação ao uso de castigos corporais no cumprimento da tarefa educativa e o “entendimento algo que enraizado na sociedade portuguesa de que castigar moderadamente os filhos é admissível sempre que necessário” (como se refere na decisão recorrida), não pode passar pela utilização dos meios do direito penal, porque,  como refere Paula Ribeiro de Faria, “a mudança de mentalidades ou a ajuda da família em crise não é tarefa da norma penal[8].
Estará, porventura, por fazer no nosso país, o desenvolvimento de acções de sensibilização social e cultural que procurem alcançar as almejadas mudanças de comportamentos no que diz respeito ao exercício das responsabilidades parentais, algo que não se alcançará apenas numa geração. Como escreve Leandra Patrícia Monteiro Correia (in Direito de Correção dos Pais ou Poder-Dever de Educação - Corrigir Como Educar e não Como Punir, Dissertação em Ciências Jurídico-Forenses, Janeiro de 2017, Faculdade de Direito de Coimbra), “a Suécia foi o primeiro país a afastar a aplicação de castigos físicos por parte dos progenitores, em 1979. Contudo, até que esta concretização normativa ocorresse, foi percorrido um longo processo prévio de sensibilização social e cultural, iniciado em 1930, através de campanhas publicitárias, divulgadas nas rádios e jornais, dirigidas aos pais. Desenrolaram-se reuniões, palestras, apresentações de organizações não-governamentais, associações educativas e indivíduos que envolviam pais e outros responsáveis de todo o país, em discussões sobre como criar os filhos sem violência. Todo este processo levou à consciencialização de que as crianças que são agredidas ficam com marcas para toda a vida, aprendendo não a corrigir os seus comportamentos, mas sim, que violência gera violência”. Nesse sentido se pronunciou com acerto o Tribunal recorrido, quando escreveu que se impõe “uma maior reflexão e consciencialização da dignidade da pessoa humana das crianças e jovens adultos, dirigida a combater esta mentalidade precária e tradicional ancorada numa visão hierarquizada de sociedade e de família, subalternizadora da posição dos filhos no seio familiar e castradora da autonomia e livre desenvolvimento destes”.
Entretanto, há que ter em conta que, como refere Paula Ribeiro de Faria (ob. cit.), “o sentido social dominante é aquele que ainda admite o uso de certas formas de castigo como meio para o cumprimento da tarefa educativa”. Até porque “a valoração global da conduta do educador que leva a afirmar um sentido social positivo penalmente relevante encontra ainda, à luz da nossa ordem jurídica, pontos de apoio legais, designadamente no artigo 1878.º do Código Civil”.
Neste quadro, voltando ao caso dos autos, concordamos com o que se escreveu no acórdão de 02/07/2020, proferido por esta Relação já citado e relatado pelo Sr. Desembargador Abrunhosa de Carvalho e também não concordamos com a jurisprudência porventura maioritária, por também entendermos que “embora desejável, a abolição completa da punição física, não corresponde ao estado actual da consciência jurídica da generalidade da população, não só por desconhecimento ou crença (para que se atinja um tal estado é necessário, como diz vária doutrina, que se faça uma campanha publica de esclarecimento e capacitação), como, muitas vezes, por falta de recursos educativos alternativos”. Consequentemente, em termos penais, também seguimos de perto a posição defendida por Leandra Correia (ob. cit.), quando concluiu que “... a aplicação de castigos físicos pelos progenitores deve considerar-se justificada, contudo a exclusão da ilicitude só ocorrerá quando verificados um conjunto de pressupostos que só num juízo casuístico, perante uma situação concreta, poderão ser aferidos”. Como requisitos subjetivos, Leandra Correia aponta a “legitimidade do agente e a “finalidade/intenção educativa por parte do aplicador, não podendo ser uma forma de descarregar tensões ou raiva, nem uma forma de prevenção geral/ intimidação aplicando um castigo a um filho de forma a que os restantes aprendam. Como requisitos de natureza objetiva, a autora refere que o castigo deve ser “proporcional - entre a gravidade da falta do menor e a intensidade do castigo, nunca podendo ultrapassar o limite do razoável suscetível de colocar em causa a dignidade do menor por mais grave que tenha sido a falta cometida, não podendo ser um castigo violento e abusivo; adequado - ter em consideração a idade, grau de maturidade, grau de discernimento e desenvolvimento, tendo sempre em atenção eventuais patologias do menor (...); necessário - consideramos que se devem privilegiar métodos positivos de educação como o diálogo, devendo partir-se de uma mera advertência ao menor e apenas mediante reiteração do comportamento, em ultimo recurso se devem aplicar castigo físico e atual - consideramos que os educadores apenas devem lançar mão do seu direito de correção, aplicando castigo físico quando, a falta cometida pelo menor, justificativa da conduta dos pais, tiver ocorrido num curto espaço de tempo pois, quanto mais dilatado for este, menos efeitos produz, principalmente quanto mais pequena for a criança, dada a propensão para o rápido esquecimento”[9].
Em todo o caso, o que se impõe ao julgador penal na valoração do caso concreto,   é levar em consideração as circunstâncias do caso, designadamente os meios empregues pelo agente, o motivo que levou ao castigo, entre eventuais outros pontos de vista interpretativos, em ordem a decidir do cumprimento de um sentido de ilicitude típico é mais razoável do que a proibição absoluta de determinadas formas ou meios de correção[10].
No caso dos autos, ponderando as circunstâncias do caso, entendemos que tem se se considerar, a conduta do menor desrespeitou o pai, desobedecendo-lhe e violando o seu dever previsto no artigo 1878.º, n.º 2 do Código Civil, não respondendo aos seus telefonemas, mantendo, alegadamente, o seu telemóvel no silêncio, depois de ter perdido dois autocarros, sendo certo que já há muito que havia terminado as aulas, não dando conta do seu paradeiro ao seu progenitor. A punição foi legítima, porque o arguido é o pai do ofendido e agiu com a intenção de o corrigir, dada a sua atitude desrespeitosa e desobediente. A bofetada foi um castigo leve e proporcional à atitude desrespeitosa do filho e foi também actual.
De tudo resulta que a punição física que o arguido infligiu ao seu filho, cumpre os pressupostos para considerarmos excluída a ilicitude desses factos, nos termos do artigo 31.º, n.º 1 e 2 b) do Código Penal (exercício de um direito).
Concluímos, assim, que embora a conduta do recorrente preencha, em abstrato, os elementos do tipo da ofensa à integridade física, a ilicitude dessa conduta está excluída, nos termos do artigo 31.º, n.º 1 e 2 b) do Código Penal, pelo que não pode deixar de ser procedente o recurso.         
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C) Decisão:
Nestes termos e pelos fundamentos expostos, acordam os juízes deste Tribunal da Relação de Lisboa em conceder provimento ao recurso interposto pelo arguido A e, em consequência, decidem:
a) Alterar a matéria de facto provada, passando o facto provado n.º 4, a ter a seguinte redacção: “o arguido agiu de forma livre, voluntária e consciente, com a intenção de reprimir a atitude do filho de desobediência e desrespeito pela pessoa do outro (no caso, o pai)  sabendo que a sua conduta era apta a provocar dor no corpo do menor, mas conformando-se com tal e dando como não provado que, em relação ao seu descrito comportamento, o arguido tivesse conhecimento que o mesmo é proibido porque punido por lei;
b) Absolver o arguido da prática do crime pelo qual vinha condenado.
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Sem custas.
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Notifique.
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Lisboa, 12 de Janeiro de 2023 (o presente acórdão foi elaborado pelo relator e integralmente revisto pelos seus signatários – artigo 94.º, n.º 2, do Código de Processo Penal).
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Carlos da Cunha Coutinho (relator por vencimento);
Raquel Lima (1.ª Adjunta);
Paula Penha (com voto de vencido).
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Declaração de voto: Voto vencida o acórdão.
Não acompanho a sobredita decisão de absolvição do arguido, pois considero que devia ter sido mantida incólume a decisão da 1ª instância. Isto pelas razões a seguir indicadas.

Em primeiro lugar, os factos constantes da acusação pública foram considerados provados pelo Tribunal da 1ª instância, após a feitura da audiência de discussão e julgamento, constando dos números 1 a 5 da factualidade assente nessa sentença (para a qual se remete na íntegra) e constando desta a respectiva motivação do tribunal (aqui dada por reproduzida na íntegra).
No recurso apresentado pelo arguido (salvo melhor opinião) este não questionou aquela factualidade dada como assente nem a respectiva motivação, tendo cingido a sua pretensão recursiva de absolvição com base na alegada causa de exclusão de ilicitude – questão de direito a decidir nesta sede recursiva.

Em segundo lugar (salvo melhor opinião), tão pouco se extrai do texto da sentença da 1ª instância que esse tribunal tivesse incorrido em erro notório na apreciação da prova a propósito dos factos assentes números 4 e 5 – com os seguintes dizeres respectivos (transcrição):
o arguido agiu de forma livre, voluntária e consciente, ciente de que a sua conduta era apta a provocar dor no corpo do menor, de o atingir na sua saúde física, o que quis e logrou”;
Em relação ao seu descrito comportamento, o arguido sempre teve, além disso, perfeito conhecimento de que o mesmo é proibido porque punido por lei”.
E a propósito da seguinte motivação (transcrição da respectiva parte):
Conjugado o art.º 124º do CPP com o art.º 127º do mesmo diploma legal, facilmente se compreende que devem ser carreados para a instrução todos os factos que assumam relevância para a existência, ou não, do crime a aplicar, cuja prova será apreciada

pelo Tribunal segundo as regras da experiência e a convicção a que livremente chegou sobre esta.
Esse exame crítico não poderá senão traduzir-se nos motivos que levaram o Tribunal a optar pela maior ou menor valoração de um meio de prova em detrimento de outro, tendo em conta a apreciação conjunta da globalidade dos elementos probatórios apresentados e uma análise crítica de toda a prova produzida, atendendo sempre às regras da experiência, juízos de normalidade e espírito crítico, nomeadamente:
. Declarações do arguido A, prestadas em sede de audiência de julgamento;
. Depoimento da testemunha B, prestadas em sede declarações para memória futura a fls. 129 a 131;
. Depoimento da testemunha C prestadas em sede de audiência de julgamento;
. Depoimento da testemunha D, prestadas em sede de audiência de julgamento;
. Assento de nascimento de fls. 30.
. Certificado de Registo Criminal de fls. 232-234.
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(…) A prova da matéria de facto elencada do ponto 2 ao 5 dos factos provados baseou-me não apenas no teor das declarações do ofendido e filho do ora arguido, como também na admissão de parte dos factos levada a cabo pelo arguido e, bem assim, da sua corroboração pela testemunha C.
Nas declarações prestadas em audiência de julgamento, o arguido mostrou-se sincero com o relato dos factos tal como descrito na acusação, apesar de ter procurado justificar a sua atitude e do que o levou a chegar a esse ponto com base em circunstancialismos externos, em parte seus (desespero pelo desconhecimento do paradeiro do filho), em parte relativo a terceiros (suspeitas de que esse desaparecimento estivesse associado à mãe do ofendido, sem que tal lhe tivesse sido comunicado, em virtude de desavenças afetas ao alegado processo de regulação das responsabilidades parentais que se encontra a correr termos entre ambos), e em parte atinentes ao próprio menor (irritação pela desobediência e pela mentira que acreditava que este lhe tivesse oferecido).
Com efeito, pelo pai foi dito que realmente se encontrava desesperado à procura do ofendido uma vez que tinham previamente agendado no início desse dia que B apanharia um autocarro após o termino das aulas, tendo ido à escola e ao campo de futebol adjacente a esta para o encontrar sem logro; que nesse desespero já

lhe tinha igualmente tentado ligar cerca de 20 vezes sem sucesso, após o que decidiu mandar mensagem à mãe do ofendido informando-a de que iria contactar as autoridades caso o menor não aparecesse; que minutos depois do sucedido B retornou a chamada e informou-o da sua localização, tendo o arguido ali se dirigido e, simultaneamente zangado e desesperado, lhe deu uma bofetada no rosto.
Por outro lado, entende também o arguido que a bofetada que desferiu no menor B  foi apenas um “sacudido de moscas”, até porque, no seu entendimento, como o menor havia colocado aparelho há poucos dias, caso a bofetada tivesse sido efetivamente forte, ter-lhe-ia ferido o lábio, o que não aconteceu; que aquilo que o B sentiu foi, sim, “vergonha” e não propriamente dor, pois “ele não se queixou, não o magoei”. Disse também que após deixar o B com a mãe ao final desse mesmo dia, pediu-lhe desculpas através de mensagem telefónica, as quais foram aceites e retribuídas pelo ofendido.
Confrontado o teor das declarações do arguido com as declarações prestadas em sede de memória futura pelo ofendido B , podemos constatar: (i) que o relato dos factos corrobora o teor da acusação, nomeadamente, que devia ter apanhado autocarro a determinada hora para ir para casa, não o tendo feito, que tinha deixado o telemóvel no silêncio para ir jogar com os amigos no parque ao lado da escola, que tinha 12 chamadas não atendidas do pai e, quando as viu, devolveu a chamada, que assim que o pai chegou desferiu-lhe logo uma bofetada em frente de toda a gente sem lhe dizer nada; bofetada essa que “não foi com muita força, mas foi com força” (suficiente para doer), “com raiva”; (ii) B encara e lida com a conduta do pai (dar uma bofetada) como uma atitude exagerada, mesmo no contexto que a precedeu, i.e., mesmo estando aquele desesperado sem saber de si há 1h30m; reconhece, porém, e também, que não tem medo de estar sozinho com o seu pai e, bem assim, que foi mais a vergonha do episódio ter decorrido em praça pública, junto dos seus amigos, do que medo da agressividade do seu progenitor que o deixou incomodado.
Todos estes factos foram ainda corroborados pelo depoimento de C, a qual, apesar de não ter presenciado o ato de agressão física do arguido ao ofendido, acompanhou o arguido desde o momento em que o ofendido não apareceu na hora combinada a casa, com ele procurou-o na escola e no parque e viu no marido a aflição e desespero à procura do menor.

Assim, e pese embora o arguido ter desvalorizado a ilicitude dos atos que praticou, a qual sucessiva e reiteradamente procurou justificar como tendo sido de ligeira gravidade, um ligeiro “sacudir de moscas” nas suas palavras, ou como uma forma de reprimir o filho pela desobediência e irresponsabilidade da sua atitude, a verdade é que o mesmo arguido não podia ignorar e sabia que agredir o menor não deixava de ser uma conduta ilícita e igualmente censurável, até porque reconhece nunca o ter feito e recusar-se a voltar a fazê-lo no futuro.(…)”
Ora, concatenando aquela transcrita factualidade assente com esta transcrita motivação dessa factualidade, apreciada globalmente, à luz das regras de experiência e da livre apreciação da prova, não se me afigura que resulte a existência de um erro notório na apreciação da prova por parte da Exmª julgadora da 1ª instância.
Como sabemos, a propósito do nº 2 do art. 410º do CPP tem sido pacífico o entendimento (da doutrina e da jurisprudência) no sentido de considerarem que a apreciação destes vícios não implica qualquer sindicância à prova produzida no tribunal de 1ª instância – estando excluída qualquer tarefa de valoração da prova produzida em audiência ou fora dela, tal como a valoração de depoimentos gravados, de documentos ou outro tipo de provas -. Apenas envolve o texto da decisão recorrida, na sua globalidade, sem recurso a quaisquer elementos que lhe sejam externos, ainda que constem do processo.
Em face do teor do texto da decisão, apenas as regras de experiência comum podem, se necessário, servir de critério de aferição da existência, ou não, de tais vícios – cfr. a título de exemplo, entre muitos outros, os acórdãos do STJ, de 2/2/2011 no processo 308/08.7ECLSB.S1; do TRC de 9/3/2018 no processo 628/16.7T8LMG.C1, de 3/6/2015 no processo 12/14.7GBSTR.C1, de 14/1/2015 no processo 72/11.2GDSTR.C1 e de

17/12/2014 no processo 872/09.3PAMGR.C1; e do TRL, de 21/5/2015 no processo 3793/09.6TDLSB.L1-9, todos acessíveis em www.dgsi.pt.
Sendo de salientar o retrato feito no Acórdão do STJ de 15/12/2011 do relator Raúl Borges no processo 17/09.0TELSB.L1.S1, em www.dgsi: “(...)Os vícios do art. 410º, nº 2, do CPP, são vícios da lógica jurídica ao nível da matéria de facto, que tornam impossível uma decisão logicamente correcta e conforme à lei (…)O objecto da apreciação será sempre a decisão e não o julgamento”.
Também sendo de salientar os seguintes ensinamentos doutrinais feitos por Simas Santos e Leal Henriques (“Recursos em Processo Penal”, 6ª edição, págs. 69 e segs.), por Simas Santos e Leal Henriques (“Código de Processo Penal Anotado” volume II, 2ª edição, págs. 739 e segs) e por Pereira Madeira (“Código de Processo Penal Comentado”, 3ª edição revista, págs. 1290 e segs) a propósito destes três vícios e em particular no previsto na alínea c) do nº 2 do art.º 410º do CPP:
Erro notório na apreciação da prova = ocorre quando, do texto da decisão recorrida, por si só ou conjugado com o senso comum de um homem médio ou sopesado à luz das regras de experiência comum, ressalte e de forma evidente/ostensiva/sem margem para dúvidas que a prova foi erroneamente apreciada, por a factualidade aí exarada ser arbitrária, contrária à lógica, a regras científicas ou de experiência comum ou por assentar na inobservância de regras sobre o valor da prova vinculada ou das “leges artis” e que tal fique demonstrado pelo tribunal “ad quem”.

Ora, apreciando o caso concreto, não detecto tal erro/vício, na apreciação da prova, evidenciado no texto da supra transcrita decisão e, muito menos, que seja um erro evidente ou notório e sem qualquer margem de dúvidas.
Pois:
Dela constam exarados todos os elementos factuais relevantes/pertinentes que foram indagados/averiguados pelo tribunal (tendo em conta o sobredito objecto do processo), alicerçando aquela decisão de uma forma lógica (quer factual quer juridicamente) e tais elementos factuais são suficientes para, no seu conjunto e conjugado com o senso de um homem comum, suportar tal decisão factual.
Não se descortinando que, a mera alegação de um mero poder educativo punitivo - na alegada perspectiva do arguido/progenitor e dos alegados antigos paradigmas de educação através de castigos físicos -, seja, por si só e sem qualquer margem para dúvida, justificação para considerar como inquinada/viciada a apreciação da prova feita pelo tribunal recorrido.
Aliás, cingindo-nos ao texto da decisão em apreço, não resulta sequer que tivesse sido alegada e/ou discutida, durante a audiência, a existência de qualquer erro por parte do arguido. E, mesmo que o tivesse sido, tal só relevaria se resultasse, do texto da decisão recorrida, como evidente ou ostensivo e sem margem para qualquer dúvida, nos termos e com os efeitos previstos pelos art.ºs 16º e 17º do Código Penal em conjugação com o art.º 410º, nº2, al. c), do Código de Processo Penal
A apreciação da prova que foi feita pela julgadora da 1ª instância - constante do texto da motivação da sentença e à

qual o julgador do Tribunal superior está cingido – não se me afigura ilógica e/ou arbitrária e/ou destituída de fundamento e/ou contrária à lei e que daí tivesse advindo, manifesta, ostensiva e indiscutivelmente, uma decisão incorrecta e desconforme com a lei vigente.
Independentemente da alegada perspectiva do arguido/progenitor e dos alegados antigos paradigmas de educação através de castigos físicos, o que releva, para este efeito é que, perante o teor da prova constante dos autos e descrita no texto da decisão, não ressalta, por si só, que tenha havido qualquer erro grosseiro de/na apreciação daquela por parte do tribunal recorrido. Nem muito menos ressalta que, à luz das regras de experiência comum, perante o teor da prova constante dos autos, qualquer homem comum, não teria dado como provada a factualidade constante desta mesma decisão.
Em suma, fazendo a sobredita sindicância ao texto da decisão em apreço, constatamos que aquela Julgadora expressou de forma inteligível, adequada e suficiente as razões pelas quais se convenceu e o sentido da decisão que tomou, de forma adequadamente prevalecente sobre a visão subjectiva do arguido/recorrente.
Sendo de notar que - contrariamente à visão ou perspectiva subjectiva deste (parte com interesse no processo) -, aquela (julgadora no processo) esforça-se, objectivamente, para alcançar a verdade material, em face da prova constante dos autos, imprimindo “à prova a marca da razoabilidade ou racionalidade objectiva” – usando as palavras expressivas de Cristina Líbano Monteiro em “Perigosidade de Inimputáveis e
«In Dubio Pro Reo», Coimbra Editora, 1997, págs. 51-53).

Pelo que, o sistema de livre apreciação da prova (genericamente consagrado no art.º 127º do CPP) assenta na liberdade daquela julgadora, perante a inexistência de valor específico pré-determinado das provas ou que estabeleçam alguma hierarquia entre elas (com excepção da confissão integral e sem reservas do arguido; da prova pericial e dos documentos autênticos, cujo valor probatório se encontra legalmente pré- estabelecido), na admissibilidade de todos os meios de prova, em geral (de que decorre a equiparação da prova directa à prova indirecta ou por presunções judiciais), desde que não incluídos na previsão do art. 126º do CPP. Sem que esta apreciação livre seja (nem podendo ser) uma apreciação arbitrária da prova constante dos autos.
Voltando ao caso em apreço e conforme já referi, a apreciação efectuada pela Exmª Juiz de 1ª instância, nos termos explicitados nos dizeres do texto da respectiva parte da decisão (supra transcrita e para a qual se remete) foi fundamentada e explicitada de forma clara, exacta, lógica, inteligível, coerente, harmónica, destituída de factos contrários às regras da experiência comum e/ou destituída de erro patente para qualquer cidadão.
Em conclusão, da leitura dos respectivos dizeres do texto da decisão em apreço (e, em particular dos factos provados 4 e 5 e da respectiva motivação aqui dadas como reproduzidas):
não se evidencia que haja um vício do raciocínio da julgadora de 1ª instância, aquando da apreciação das provas produzidas em audiência;
não se evidencia que haja um erro de apreciação evidente que salte aos olhos do leitor médio, sem necessidade de particular exercício mental;

não se evidencia que as provas revelem claramente um sentido e a decisão sobre a respectiva matéria fáctica tenha extraído uma ilação contrária, logicamente impossível, arbitrária e/ou contrária à lógica jurídica e/ou à lei.


Em terceiro lugar, perante toda a factualidade dada como assente pelo Tribunal de 1ª instância e que (na minha modesta opinião) deve manter-se inalterada, considero (salvo melhor opinião), que o arguido (progenitor) cometeu, em autoria material e na forma consumada, relativamente ao ofendido (seu filho de 13 anos) o imputado crime de ofensa à integridade física simples, previsto e punível pelo art.º 143º, nº 1, do Código Penal.
Vejamos porquê.
No Livro II (Parte Especial) do nosso Código Penal e dentro do Título I (Dos crimes contra as pessoas) há o Capitulo III (Dos crimes contra a integridade física) onde está inserido o imputado crime de ofensa à integridade física.
Dispõe o art.º 143º, nº 1, do Código Penal (doravante com a abreviatura CP):
«1 - Quem ofender o corpo ou a saúde de outra pessoa é punido com pena de prisão até 3 anos ou com pena de multa.»
Seguindo os ensinamentos doutrinais de Paula Ribeiro de Faria (em “Comentário Conimbricense do Código Penal”, Parte Especial, Tomo I, Coimbra Editora 1999, págs. 202 a 216), de Paulo Pinto de Albuquerque (em “Comentário do Código Penal”, 4ª edição actualizada, Universidade Católica Editora, págs. 600 a 607) e de Jorge de Figueiredo Dias (em “Direito Penal – Parte Geral”, Tomo I, Gestlegal, 3ª edição 2019, págs. 593 a 597):

O bem jurídico protegido por esta incriminação é a integridade (física e/ou psíquica) de uma outra pessoa humana e viva - assim se excluindo, deste tipo legal, quer uma ofensa do agente a si próprio (auto-lesão ou automutilação, a qual não tem relevância para este efeito), quer uma ofensa a um cadáver humano (que está prevista no art.º 254º do CP).
Trata-se de um crime material e de dano, pois pressupõe (sempre), como objecto da acção do agente e a ela imputada, objectivamente, que haja uma ofensa/ataque ao sobredito bem jurídico protegido (o corpo ou a saúde de outrem) - mas, não se exige que tal ataque tenha de provocar (à vítima) dor, sofrimento, mal-estar corporal, aleijão, marca física ou incapacidade para o trabalho -. Isto é, basta haver um empurrão ou uma bofetada, sem ser necessário que daí resulte uma equimose ou sequer dor.
Também se trata de um crime de realização instantânea, pois basta para o seu preenchimento a verificação de uma ofensa (ao bem jurídico protegido - corpo humano de uma pessoa viva) como resultado ou objecto da conduta do agente, que tanto pode ser uma acção ou uma omissão (nesta quando o agente tenha um dever jurídico de garante nos termos do art.º 10º do CP) – sem prejuízo de a duração da agressão e/a gravidade dos seus efeitos e/ou a duração destes poderem ser valorados em termos de agravamento do tipo legal e/ou em termos de determinação da medida da pena.
Este tipo-legal de crime (de ofensa à integridade física simples) tem como elementos constitutivos:
1º. A verificação de uma ofensa perpetrada no corpo ou na saúde de uma outra pessoa viva = elemento objectivo.
Podendo o ataque ao corpo abranger qualquer parte anatómica, órgãos, membros, pele, até aparelhos implantados ou

permanentemente ligados ao corpo da vítima com carácter permanente. E, também, pode abranger alterações físicas em partes constitutivas da figura humana da vítima (tal como a cabeleira natural vir a ser cortada à escovinha ou o bigode vir a ser rapado ou uma parte do corpo vir a ser pintada com uma tatuagem).
A propósito do elemento objectivo do tipo há que ressalvar condutas atípicas em que o respectivo ataque (ao corpo de outra pessoa viva) assume um grau mínimo de gravidade e que, à luz de um critério de adequação social (da chamada cláusula de adequação social) ou em nome de uma dimensão social de direitos fundamentais, excepcionalmente, se justifica que lhe seja retirada relevância típica criminal. Tal sucede nos exames médicos ordenados por juiz em processos judicial, na vacinação pública obrigatória, no corte coactivo de cabelo para efeitos de cumprimento do serviço militar ou na alimentação forçada de reclusos em greve de fome.
Por isso (e com interesse para o caso em apreço), não se afigura a bofetada desferida pelo arguido relativamente ao ofendido seja comparável a tais situações.

2º. A intenção de ofender a vítima = elemento subjectivo.
Podendo o agente actuar com dolo (nos termos do art.º 14º do CP) em qualquer uma das suas modalidades. Isto é: sabendo que tal actuação configura um crime, o agente actua com a intenção de o realizar; ou tendo previsto que tal actuação, necessariamente, configuraria um crime, nem por isso o agente agiu de outro modo; ou tendo previsto que tal actuação poderia configurar, possivelmente, um crime, o agente conformou-se com tal possibilidade e nem por isso agiu de outro modo.

A propósito do elemento subjectivo do tipo, é irrelevante a motivação do agente – a qual só será tida em conta aquando da determinação da medida da pena.
Por isso (e com interesse para o caso em apreço), mesmo que um progenitor ou até um professor ofenda a integridade física, respectivamente, de um seu filho ou de um seu aluno, motivados por uma alegada tarefa correctiva/educativa/pedagógica, tal ofensa à integridade física alheia (respectivamente, do filho ou do aluno), não deixa (nem pode deixar) de ser uma típica ofensa à integridade física (prevista pelo nº 1 do art.º 143º do CP).
A importância do bem jurídico (eminentemente pessoal) protegido com este tipo-legal de crime (que é a integridade física da outra pessoa humana viva) não se compadece com tais motivações do agente/agressor, nem com a inerente visão subjectiva do respectivo agente/agressor.
Por isso (e com interesse para o caso em apreço), a criminalização de uma ofensa física que preencha os sobreditos elementos constitutivos, perpetrada por um pai relativamente a um filho, nunca depende (nem pode depender) da concepção subjectiva (quer do próprio agente-agressor, quer da própria vítima, quer do próprio julgador) sobre o exercício das responsabilidades parentais e dos respectivos direitos-deveres dos progenitores.
A este propósito, importa referir que o direito de castigo por parte de um pai relativamente a um filho, aquando do exercício das respectivas responsabilidades parentais, não justifica/não legitima que tal se traduza numa concreta lesão da integridade física do filho (seu educando).

Sendo certo (com interesse para o caso em apreço) que uma bofetada desferida por um pai na cara de um filho constitui uma concreta ofensa à integridade física deste.
Aliás, nos vários dicionários da língua portuguesa (nomeadamente, dicionário.priberam.org e dicionário infopédia da língua portuguesa.dicionários porto editora, disponíveis na internet) consta a seguinte definição: uma bofetada é uma pancada dada com a mão aberta, geralmente na cara.
Por isso mesmo, uma bofetada é sempre um gesto molestador da integridade física de quem recebe essa pancada com a mão aberta de outrem, mais concretamente, na região anatómica do rosto ou face - independentemente do grau de intensidade dessa pancada e da sua consequência lesiva ou não.
O art.º 25º, nº 1, da Constituição da República Portuguesa consagra (na Parte dos “Direitos e Deveres Fundamentais” e no capítulo dos “Direitos, liberdades e garantias pessoais”) que: é inviolável a integridade moral e física das pessoas.
Desde 1989 que as Nações Unidas adoptaram, por unanimidade, a Convenção sobre os Direitos da Criança que constitui o tratado de direitos humanos internacionais mais amplamente ratificado de sempre, tendo sido ratificada por Portugal em 1990 (através da Resolução da Assembleia da República nº 20/90, de 12-9). E, também Portugal, em 2014 (através da Resolução da Assembleia da República nº 7/2014, de 27-1) aprovou a Convenção Europeia sobre o Exercício dos Direitos das Crianças (adoptada em Estrasburgo em 1996 e inspirada pela sobredita Convenção sobre os Direitas da Criança): sendo todas elas aplicáveis a menores de 18 anos; sendo considerado como criança todo o ser humano menor de 18 anos; consagrando-se especial protecção aos direitos das crianças tendo sempre

presente como preocupação fundamental o superior interesse destas e a promoção dos seus direitos. Nomeadamente, consagrando a responsabilidade parental dos pais com seus inerentes deveres em assegurarem a educação, o desenvolvimento da criança, o seu bem-estar e vinculando o Estado a tomar medidas legislativas adequadas à protecção da criança contra todas as formas de violência física (cfr. os respectivos art.ºs 19º e 29º).
Neste contexto, o Código Civil (sobretudo desde a Lei 61/2008, de 31-10) consagra esse entendimento de sempre ser assegurado o superior interesse da criança, a propósito do exercício das (agora denominadas) responsabilidades parentais dos pais (em substituição da anterior expressão “poder paternal”) até à maioridade ou emancipação dos filhos (cfr. nomeadamente, os seus art.ºs 1877º, 1878º, 1885º e 1906º).
Aliás, a propósito do antigo art.º 142º, nº 1, do CP (intitulado como “Ofensas corporais simples” e com a seguinte redacção “…Quem causar uma ofensa no corpo ou na saúde de outrem será punido...”), o acórdão do Supremo Tribunal de Justiça datado de 18/12/1991 (no processo 041618 e acessível em www.dgsi.pt) por unanimidade já fixara jurisprudência (através de DR 33/92, Iª Série A, 8/2/1992) sobre esta matéria: considerando que integra a prática desse crime a agressão voluntária e consciente, cometida à bofetada, sobre uma pessoa, ainda que esta não sofra, por via disso, lesão, dor ou incapacidade para o trabalho. Também a propósito do actual art. 143º, nº 1, do CP se destaca o acórdão do STJ de 9/11/2017 (no processo 335/15.8PATVD.C1.S1).
E também os Tribunais da Relação têm aderido a esse entendimento, sendo de salientar, a título meramente

exemplificativo (e todos com publicação em www.dgsi.pt), o acórdão do TRG de 17/05/2010 (no processo nº 1379/07.9PBGMR.G1), o acórdão do TRP de 16/12/2020 (no processo nº 3204/15.8T9MAI.P1) e o acórdão do TRL de 7/4/2018, 5/6/2019, 10/3/2022 e 19/5/2022 (nos respectivos processos 160/16.9GEACB.L1-3, 6, 843/19.1PSLSB.L1  e  961/18.3PSLSB.L1),  o  acórdão  do  TRE  de
11/3/2014 (no processo 317/09.9GFSTB.E2).
Em suma, a dignidade de um ser humano (no caso, um menor de 13 anos em desenvolvimento físico e mental) não é compatível e não se compadece com castigo físico por parte do seu progenitor (agressor) que assim actue sob o pretexto de ser uma ofensa corporal (no ofendido/seu filho agredido), alegadamente insignificante porque praticada com alegada exclusão da ilicitude, por alegadamente ter finalidade correctiva ou educativa ou pedagógica relativamente ao seu educando.
Atenta a especial protecção legal dada aos menores e ao seu superior interesse, não se pode comparar qualquer ofensa ou castigo físico de um pai relativamente a um filho com as já sobreditas condutas atípicas – cujo grau mínimo de gravidade atentatória do corpo de outrem (nomeadamente do cidadão a vacinar, do recruta a admitir e do preso em greve de fome) se encontra justificado, excepcionalmente, pela adequação ou dimensão social de superiores direitos fundamentais (nomeadamente, a protecção da saúde pública justificativa da vacinação obrigatória aos cidadãos, a protecção da higiene e saúde pública no ambiente militar justificativas da rapagem de cabelo aos recrutas e a protecção da vida humana do recluso justificativa da alimentação compulsiva em caso de greve de fome).

E, tão pouco se me afigura que haja, a este respeito, um “vazio legislativo”, sob o pretexto de inexistência de lei proibitiva do uso de castigos corporais como forma de educação (como existe em certos países europeus).
Voltando ao caso em apreço, essa bofetada que o arguido (progenitor) desferiu no rosto do ofendido (seu filho menor) é um gesto molestador da integridade física deste e foi uma pancada corporal (com a mão aberta no rosto da vítima) desferida com essa mesma intenção de molestar ou agredir a integridade física da vítima, mesmo sabendo que tal actuação era proibida e punida por lei.
Sendo que, para este efeito incriminatório ou de subsunção no tipo-legal em apreço – contrariamente ao entendimento do arguido (agressor) – :
Não releva o facto de ter sido um acto isolado = mais concretamente, a primeira vez que tal sucedera e nunca antes ele houvera reprimido fisicamente qualquer dos seus filhos;
Não releva o facto de ter sido um acto actual = mais concretamente, produzido no momento imediatamente após ou perante a desobediência do filho menor;
Não releva o facto de a vítima não ter ficado com aleijão corporal ou marcas no rosto = mais concretamente só ter ficado com dor no local agredido pela bofetada;
Não releva a alegada motivação (subjectiva) educativa/correctiva/punitiva do acto do arguido (agressor) = enquanto progenitor da vítima (seu filho menor) reagindo a uma desobediência deste.
Pois, conforme já vimos, a enorme importância do bem jurídico protegido com este tipo-legal de crime (que é a integridade física da pessoa humana vítima de uma agressão)

não se compadece com tais motivações do agente (agressor), nem com a inerente visão subjectiva do mesmo.
E – ressalvando o devido respeito – não considero que ocorrera uma causa de exclusão da ilicitude da conduta do arguido(agressor/progenitor), nos termos do art.º 31º, nº 1 e nº 2, al. b), do CP, não colhendo os argumentos deste:
de que tal actuação e motivação estariam legitimadas pelo facto de ele (agressor) ser progenitor, também, com a guarda deste seu filho menor;
de que sobre o qual impenderia o alegado dever da sua educação com tal punição, aquando e por causa da desobediência deste filho ao combinado com ele;
e de que tal teria sido uma punição necessária, adequada e proporcional à desobediência do filho (vítima da agressão).
Aliás, conforme já vimos, o actual regime jurídico não prevê sequer o “poder de correção” dos progenitores e conforme sublinham os ensinamentos (respectivos) de Guilherme de Oliveira (em “Direitos fundamentais à constituição da Família e ao desenvolvimento da personalidade”, Lex Familiæ – Revista Portuguesa de Direito da Família, n.º 17 e 18 , ano 9 (2012), págs. 5 e sse), de Armando Leandro (em “Poder paternal: natureza, conteúdo, exercício e limitações. Algumas reflexões de prática judiciária”, in AAVV, Temas de Direito da Família, Ciclo de Conferências no Conselho Distrital do Porto da Ordem dos Advogados, Coimbra, Almedina, 1986,
pp. 126 e 127) e de Cristina Dias (em “A criança como sujeito de direitos e o poder de correcção”, Revista JULGAR – nº 4 – 2008,
p.15): Foi abandonada a admissão da correcção, com finalidade alegadamente educativa, através de castigos físicos ditos moderados, isto é, supostamente proporcionais, razoáveis e adequados (e não apenas de alguma forma de castigo físico mais

severa e desproporcionada). O poder de correcção dos pais mantém-se, embora não autonomizado do poder-dever de protecção e orientação, a encarar sem carácter punitivo, dentro dos limites da autoridade amiga e responsável que a lei atribui aos pais, que só pode ser exercida sem abusos, no interesse dos filhos e com respeito pela sua saúde, segurança, formação moral, grau de maturidade e autonomia. Educação não significa punição, mas implica ensinar e corrigir sem violência (física ou psíquica).
Também a jurisprudência tem alinhado, maioritariamente, neste sentido de não haver complacência perante qualquer acto de violência física administrada a uma criança e, por maioria de razão, a um jovem adulto, por parte de um seu progenitor - cfr. a título exemplificativo (todos com publicação em www.dgsi.pt) o acórdão do STJ de 9/11/2017 (no processo 335/15.8PATVD.C1.S1) acórdão do TRG de 17/05/2010 (no processo nº 1379/07.9PBGMR.G1), o acórdão do TRP de 16/12/2020 (no processo nº 3204/15.8T9MAI.P1) e o acórdão do TRL de 7/4/2021 (no processo 160/16.9GEACB.L1-3).
Ora, voltando ao caso em apreço e ao apurado quadro circunstancial [de este menor com 13 anos de idade, nesse dia de Outubro, após findar as aulas às 17 horas, ter deixado partir dois autocarros, ter ficado com colegas no campo de jogos nas imediações da escola, ter deixado o telemóvel sem som no bolso e não ter respondido aos telefonemas do pai], afigura-se-nos (como óbvio) que o progenitor (aqui arguido) não precisava de ter recorrido à ofensa física deste seu filho.
Este comportamento do menor, por si só, não era de molde a (objectivamente) justificar tal reacção do progenitor.

Perante este comportamento do filho, o progenitor sempre teria tido ao seu alcance muitas outras formas de correcção/repreensão/castigo do filho pelo sucedido, sem ter de recorrer a qualquer agressão física – nomeadamente, retirando-lhe o telemóvel por algum período de tempo e/ou não o deixando sair e/ou jogar com os amigos.
Aliás, tal comportamento do filho (em plena luz do dia, com atraso de cerca de 1h e 45m, estando no campo de jogos anexo à Escola a jogar com os amigos e sem atender o telemóvel que estava em silêncio), não justificava tal reacção desproporcional por parte do progenitor.
Mesmo estando preocupado, ansioso e/ou nervoso pelo sucedido, o progenitor não tinha necessidade de descarregar tal estado emocional com uma agressão no filho (pancada dada com a mão aberta no rosto do filho menor). E muito menos tal agressão serviria para exercer efeito de prevenção ou intimidação ou repressão.
Não lhe assistia (enquanto progenitor/educador) o alegado direito correctivo com tal castigo físico e de eventual efeito preventivo ou intimidatório ou repressivo.
Tanto mais que não foi alegado nem apurado que o menor estivesse a fazer algo de impróprio e/ou grave juntamente com os amigos e, muito menos, que o menor tivesse oferecido algum tipo de resistência verbal e/ou física ao deparar-se com a presença do progenitor.
Sendo manifestamente desnecessária, injustificada, desadequada e desproporcional tal actuação do arguido e, por isso, não se enquadra na alegada cláusula de insignificância excludente de ilicitude.

Em suma, considero que a bofetada em apreço que foi desferida pelo arguido (progenitor) no rosto do ofendido (seu filho menor), nestas provadas circunstâncias, não é uma ofensa excepcionalmente insignificante, nem incluída em alegado exercício de um direito/poder parental do arguido (agressor/progenitor) relativamente ao ofendido (agredido/filho menor daquele).
Em face desta factualidade e das actuais concepções jurídico-sociais dominantes, não lhe assistia tal alegado direito de correcção através deste castigo corporal físico que, de forma desnecessária, injustificada, desadequada e desproporcional, atingiu a integridade física do menor não o protegendo e, muito menos, realizando uma acção educativa enquanto progenitor deste seu filho menor.
Posto isto, considero que devia ter sido mantida a decisão da 1ª instância.
(A juiz desembargadora Paula de Sousa Novais Saúde Penha)

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[1] Código Civil espanhol (versão actualizada em 06 de Setembro de 2022):
Artículo 154: Los hijos e hijas no emancipados están bajo la patria potestad de los progenitores.
La patria potestad, como responsabilidad parental, se ejercerá siempre en interés de los hijos e hijas, de acuerdo con su personalidad, y con respeto a sus derechos, su integridad física y mental.
[2] Chama no entanto a atenção Paula Ribeiro de Faria (ob. cit.), que “ainda hoje existirão em países de língua anglo-saxónica, designadamente nos EUA, a defesa de um direito de natureza consuetudinária à aplicação de castigos físicos nomeadamente nas escolas”.
[3] Código Civil português - Artigo 1878.º (Conteúdo das responsabilidades parentais):
«1. Compete aos pais, no interesse dos filhos, velar pela segurança e saúde destes, prover ao seu sustento, dirigir a sua educação, representá-los, ainda que nascituros, e administrar os seus bens.
2. Os filhos devem obediência aos pais; estes, porém, de acordo com a maturidade dos filhos, devem ter em conta a sua opinião nos assuntos familiares importantes e reconhecer-lhes autonomia na organização da própria vida».
[4] Aliás, escreve a este propósito o Professor Guilherme de Oliveira (in “Temas de Direito da Família, Coimbra Editora, 1999, “A criança maltratada”), que «a reforma do Código Civil de 1977 mostrou pudor de manter a redacção anterior do artigo1884.º que reconhecia aos pais o poder de “corrigir moderadamente o filho nas suas faltas (embora ninguém pretenda que os pais tenham realmente perdido aquela faculdade de correção, usando castigos proporcionados e moderados”.
[5] Não podendo ser ignorado, no entanto, que se vem assistindo, ao mesmo tempo, de forma igualmente preocupante, a uma “mudança nas relações entre pais e filhos, no qual verifica-se uma inversão da hierarquia em que os filhos assumem e têm o poder de controlar e gerir a relação entre ambos, em que, gostam de ter sucesso na sua tirania, não se colocam no lugar do outro e não toleram a frustração o facto de a mudança perigo”, parecendo existir “um paradoxo, ao mesmo tempo que se fala de pais mais liberais (traduzindo-se assim uma alteração nos valores e nos limites parentais) de modo a tornarem os filhos mais autónomos, os jovens são cada vez menos responsabilizados pelas suas atitudes” - Raquel Silva de Oliveira, A Violência Filioparental – violência exercida pelos filhos contra os seus progenitores, Tese submetida como requisito parcial para a obtenção do grau de Mestre em Psicologia, Especialidade em Psicologia Clínica, 2018
[6] Acrescenta ainda a mesma autora: o Direito da Família pode determinar efectivamente a ilicitude de tais formas de conduta mas não pode prejudicar uma decisão genuinamente penal como é a de tomar posição acerca da criminalização dessa conduta e a sua punição com uma sanção penal”(...) “Se se comunicasse a um leigo que a ordem jurídica apenas deixa a escolha entre dois termos que são sentidos como injustos, a permissão dirigida aos pais no sentido de proceder a castigos pedagogicamente discutíveis ou a penalização dos pais, ele iria presumivelmente duvidar da justiça”.
[7] Como escreve a autora que vimos citando, “ao direito penal não importam determinadas formas de conduta que se mostram (ainda) socialmente adequadas, pese embora a intenção legislativa de alterar esse sentido de coisas. Não se perde de vista que deste modo se acaba por enfraquecer a “intenção educativa” da lei civil, mas não se pode esquecer que a quebra desse sentido útil apenas é feita tendo presente ou perante os olhos a diferente intencionalidade normativa de que o direito penal se encontra imbuído (mesmo que não se recorra a uma ideia de adequação social, pode-se admitir que o princípio bagatelar enquanto critério interpretativo funciona como um princípio de direito penal material a que se há-de atender na aplicação da lei penal, diferentemente do que sucede para efeitos de aplicação da lei civil).
[8] Paula Ribeiro de faria cita na doutrina alemã, REICHERT-HAMMER que defende que “um comportamento pedagogicamente justo não pode ser imposto pelos meios do direito penal. É necessário por isso reconhecer dentro de determinados limites um espaço livre de direito penal.
[9] A questão deve ser resolvida mediante de uma análise casuística, através da averiguação se, no caso concreto, o agente atuou ao abrigo de uma eventual causa de exclusão da ilicitude da conduta, nos termos do art.31º nºs 1 e 2 al. b) do CP. ...”
[10] Não pode o Julgador ignorar que, como chama a atenção Raquel Silva de Oliveira (ob. cit.), foi-se estruturando um modelo educativo apoiado na recompensa, na tolerância e numa educação mais democrática e flexível e menos na punição que é um comportamento, atualmente, criticado (Cecconello, De Antoni & Koller, 2003) como na disciplina, que pode resultar numa sociedade cada vez mais permissiva (Ceberio, 2016). Torna- se complicado perceber o que é ou não aceitável relativamente ao comportamento que os filhos adotam face aos seus progenitores e vice-versa, verificando-se uma fragilidade na sua autoridade, que resulta também da crença de que os pais têm a função de proteger os seus filhos, contribuindo para a negação e a desvalorização das atitudes violentas de que sofrem por parte dos seus filhos (Patuleia, Alberto & Pereira, 2013).
Como acrescenta a mesma autora, “a partir do século XX, na cultura ocidental, verificou-se alterações ao nível das relações entre os progenitores e os filhos, tendo vindo a tornarem-se cada vez mais simétricas (Etxebarria, Apodaca, Fuentes, López & Ortiz, 2009 cit. por Calvete, Gámez-Guadix & Orue, 2014), o que dificulta os pais manter a autoridade e limites perante os filhos”.