Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
326/11.8TNLSB.L1-7
Relator: CARLOS OLIVEIRA
Descritores: IMPUGNAÇÃO DA MATÉRIA DE FACTO
CONTRATO DE TRÂNSITO
CONTRATO DE TRANSPORTE
CONTRATO DE TRANSPORTE MULTIMODAL
RESPONSABILIDADE CIVIL
CONVENÇÃO DE BRUXELAS DE1924
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 02/02/2021
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Texto Parcial: N
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: IMPROCEDENTE
Sumário: I. O contrato de transporte caracteriza-se pela obrigação principal de resultado, vinculando-se o transportador a deslocar os bens de um local para outro, entregando-os incólumes ao seu destinatário.
II. Aquele distingue-se do contrato de trânsito, em que a obrigação principal é essencialmente de meios, pois o transitário pode assumir a obrigação de celebrar um contrato de transporte, mas só como intermediário entre o expedidor e transportador.
III. A circunstância da Ré neste processo ser uma empresa que tem por objeto o exercício da atividade de transitária, só por si, não a impede, nas relações jurídicas que estabeleça em concreto com os seus clientes, de vir a assumir as obrigações próprias do transportador, não lhe estando vedado por lei exercer acessoriamente essa atividade comercial.
IV. O transitário que assume perante o seu cliente a obrigação de rececionar a mercadoria, por si ou a seu mando, e de a colocar no destinatário, com autorização para contratar terceiros para realizar os atos materiais de transporte necessários para o efeito, assume obrigações típicas do contrato de transporte e fica sujeito à responsabilidade civil estabelecida por lei para o transportador.
V. Em todo o caso, nos termos do Art. 15º n.º 1 e n.º 2 do Dec.Lei 255/99 de 7/7, a empresa transitária responde perante o seu cliente pelo incumprimento das suas obrigações, bem como pelas obrigações contraídas por terceiros com quem hajam contratado, sem prejuízo do direito de regresso, ficando a sua responsabilidade sujeita aos limites estabelecidos, por lei ou convenção, para o transportador a quem seja confiada a execução material do transporte.
VI. Implicando o transporte acordado a deslocação dos bens por terra e por mar, com subcontratação de empresas diversas de transporte, o contrato celebrado assume-se como um contrato de transporte multimodal.
VII. Inexistindo ainda uma disciplina jurídica específica para o transporte multimodal, seja de direito interno, seja de direito internacional, pois ainda não entrou em vigor a Convenção de Genebra de 1980 sobre Transporte Internacional Multimodal de Mercadorias, a solução jurídica passa pela fragmentação do transporte multimodal em tantas prestações unimodais quantas aquelas que se verificaram em cada caso concreto, aplicando a cada uma dessas prestações o regime jurídico que lhe é próprio.
VIII.-No caso, como os danos se verificaram no decurso do transporte marítimo, aplica-se o regime jurídico resultante da Convenção de Bruxelas de 1924 (publicada no Diário do Governo, I.ª Série, n.º 128, de 25 de junho de 1932 e retificado no Diário do Governo I.ª Série de 11 de julho de 1932) e os Dec.Lei n.º 37.748 de 1 de fevereiro de 1950 e n.º 352/86 de 21/10.
IX.- A responsabilidade civil do transportador marítimo está limitada, nos termos do Art. 4.º, parágrafo 5, da Convenção de Bruxelas de 1924, conjugada com n.º 1 do Art. 31º do Dec.Lei n.º 352/86, de 21/10 e Art. 25.º do Dec.Lei n.º 323/2001 de 17/12, ao valor de €498,80 por volume ou unidade de carga.
X. Nos termos do Art. 24.º n.º 1 do Dec.Lei n.º 352/86 de 21/10 consideram-se volumes ou unidades de carga os que estiverem enumerados no conhecimento de carga. Só se o conhecimento de carga for omisso a esse respeito é que se deve ter em conta o contentor como volume ou unidade de carga para efeitos do cálculo do limite da indemnização estabelecido na convenção de Bruxelas de 1924 (Cfr. Art. 31.º n.º 2 do Dec.Lei n.º 352/86 de 21/10).
XI.-No caso, o conhecimento de embarque ou de carga (Bill of Landing) identificava que no contentor se encontravam 1835 volumes de produtos alimentares, sendo esse número de volumes o relevante para efeitos do cálculo do limite legal da indemnização que seja devida pelo transportador marítimo.
Decisão Texto Parcial:
Decisão Texto Integral: Acordam os Juízes na 7ª Secção do Tribunal da Relação de Lisboa:

I- RELATÓRIO
A [ ….Restauração, Lda.]  e B [ ….Verde, Lda.]  vieram intentar ação de condenação, em processo declarativo comum, contra C […,S.A.], D [ …. Marítimos S.A.] , E [ ….Trânsitos, Lda. ] e F [ …. Navegação, Lda] ., pedindo: a condenação solidária das R.R. no ressarcimento de todos os danos causados às A.A. pela sua conduta, em concreto, à A. A, €28.903,24, e à A. B, €45.742,13; ou, caso assim não se entenda, a condenação solidária da R. C e da R. concretamente responsável pelos factos danosos no ressarcimento dos referidos prejuízos; ou, caso assim não se entenda, a condenação da R. C no ressarcimento dos referidos prejuízos; ou, caso assim não se entenda, a condenação da R. concretamente responsável pelos factos danosos no ressarcimento dos prejuízos; acrescendo às quantias objeto da condenação juros de mora à taxa legal a contar da citação e até integral e efetivo pagamento.
Para tanto alegou em síntese, que no âmbito das suas atividades comerciais, as A.A. acordam entre si no sentido da A fornecer à B produtos alimentares, pelos quais a B pagaria o valor total de €28.903,24. Para esse efeito, a 1.ª A. encarregou a R. C para efetuar todas as operações necessárias ao transporte desses produtos alimentares congelados de Portugal até à Ilha do Sal, mediante o pagamento do valor de €3.936,25, encarregando-se a R. C dos produtos em questão desde o momento em que os mesmos lhe fossem entregues, em Portugal, por uma empresa a mando da A, até à sua entrega, no Porto de Palmeira, na Ilha do Sal, à empresa Translogistic, que os iria levantar, a mando da R. C, e entregá-los-ia à B.
Os produtos alimentares foram entregues à R. Arnaud em 12.10.2010, a qual foi informada, pela A e pela Portral, Lda., de que a mercadoria em questão tinha de ser mantida a uma temperatura não superior a –18º Celsius.
O camião saiu das instalações da Portral, em Sintra, só depois de ter sido estabilizada a temperatura de conservação necessária, tendo sido atribuído e selado pela R. C, ou por alguém a seu mando.
A mercadoria entregue pela Portral, por conta da A, consistiu em 1835 volumes de produtos alimentares, com peso bruto de 12.658,85kg, em perfeitas condições de conservação, salubridade e embalagem e cumpriam todas as regras aplicáveis à mercadoria dessa natureza.
Esses produtos alimentares foram carregados no navio TT..., no terminal do porto de embarque, pela R. C, ou por alguém a seu mando, tendo essa R. encarregue a R. Cabomundo, representada pela R. Ninfetrans, de efetuar o transporte das mercadorias já referidas.
A R. C não fez incluir na “Bill of Landing” qualquer reserva segundo a qual a mercadoria transportada estivesse em mau estado de conservação, tendo o navio TT... saído de Portugal para Cabo Verde com um atraso considerável face à data prevista, sendo que o contentor só foi descarregado na Ilha do Sal no dia 13.11.2010, mas a bordo do navio TS..., porque o contentor foi indevidamente descarregado noutro porto, o que sucedeu por intervenção da R. Polar.
Á chegada ao Porto de Palmeira, em 13.11.2010, o contentor foi descarregado, tendo sido transportado para a zona do terminal de frio, verificando-se que toda a mercadoria contida no contentor já estava irremediavelmente estragada quando o contentor foi descarregado nesse porto.
Em consequência desta situação, as A.A. suportaram prejuízos diretamente resultantes da conduta das R.R., sendo devido à A. Narest Portugal o valor de €28.903,24, correspondentes ao valor da mercadoria que se perdeu e que esta vai ter de pagar integralmente ao seu fornecedor de carne (Portral, Lda.). À Narest Cabo Verde são devidos €1.408,85, correspondentes a todas as despesas indevidamente suportadas como resultado da destruição da mercadoria; €4.925,92, a título de lucros que esta empresa deixou de obter com a revenda da mercadoria que se perdeu; e prejuízos atualmente computados em €39.407,36, a título de lucros que esta A. tem deixado de auferir pelo facto de desde novembro de 2010 se encontrar, para todos os efeitos, impedida de retomar a importação de contentores de Portugal.
Citada, a R. C contestou, por exceção e por impugnação, sustentando que apenas assumiu perante a 1.ª A. o planeamento, controlo e coordenação do transporte por via marítima de determinada mercadoria acondicionada em um único volume de carga (vulgo contentor) e não a obrigação de efetuar todas as operações necessárias ao transporte, tendo a R. C tido necessidade de subcontratar entidades terceiras para efetuar as referidas operações de transporte, não tendo sido quem efetuou o acondicionamento da mercadoria na unidade de carga, fornecida pela R. Ninfetrans. Pelo que, qualquer avaria que possa ter ocorrido na mesma será da sua responsabilidade e/ou seu proprietário e nunca da R. C, que agiu como empresa transitária.
Mais sustentou que, se a única unidade de carga em apreço nos presentes autos não foi transportada nas condições contratadas aquando do seu percurso de transporte marítimo (quer por avaria ou negligência), apenas poderão ser imputadas eventuais responsabilidades à entidade que tinha o controlo, manuseamento e estiva efetivas de tal único contentor, a R. Cabomundo (agenciada pela também R. Ninfetrans, em Portugal e pela R. Polar em Cabo Verde), sendo que a R. C agiu sempre com a devida diligência e no cumprido do contratado com a A..
Invocou ainda a limitação à responsabilidade do transportador decorrente do paragrafo 5.º do artigo 4º da Convenção de Bruxelas.
No mais, impugnou a factualidade alegada pelas A.A.. Mas, salvaguardando a possibilidade de condenação, defende que lhe deveria ser reconhecido o direito de regresso sobre as demais R.R..
No final, concluiu pela procedência das exceções invocadas e pela sua consequente absolvição do pedido. Em qualquer caso, pugnou pela improcedência da ação, pedindo a ainda a intervenção acessória provocada da Transportes Casal da Mira, Lda. e da Companhia de Seguros H, S.A..
As R.R. E e D, também contestaram, por exceção e por impugnação, defendendo a ineptidão da petição inicial, por não terem sido alegados pelas A.A. quaisquer factos que fundamentassem os pedidos em relação à R. E.
 Invocaram ainda a ilegitimidade passiva da R. D, afirmando que nunca mantiveram com as A.A. qualquer relação comercial no âmbito do transporte em causa nos presentes autos, nem tão pouco alguma vez contactaram com elas diretamente, não sendo sujeitos da relação material controvertida alegada. No demais impugnaram a factualidade alegada na petição inicial, concluindo pela procedência das exceções alegadas, com a sua consequente absolvição da instância ou, caso assim não se entendesse, pela improcedência da ação e consequente absolvição do pedido.
A R. F também contestou, invocando que não é, nem nunca foi, detida pela D, nem foi contratada, nem pelo exportador, nem sequer pelo transitário, mas pela D, proprietária do navio TS... (navio em que chegou a mercadoria), para assegurar o agenciamento da descarga do contentor nº 0000000000/0 no porto de destino, tendo a sua intervenção ocorrido apenas no dia 13.11.2010, na ilha do Sal. Assim, não deu causa ao descongelamento das carnes importadas para Cabo Verde, tendo agido com total diligência e prontidão quando soube que o contentor estava avariado, assegurando a sua reparação no mesmo dia. Nessa medida, cumpriu, integral e atempadamente, as obrigações inerentes ao agenciamento marítimo no Porto da Palmeira, que assumiu face à R. D, não existindo qualquer título ou fundamento para a sua condenação nesta ação. No final, concluiu pela procedência da exceção perentória invocada e sua consequente absolvição dos pedidos, pela total improcedência da ação e pela condenação das A.A., como litigantes de má-fé, em indemnização igual ao valor dos honorários que vierem a ser pagos aos mandatários constituídos, ou, se assim não se entender, ao pagamento das despesas relativas a procuradoria condigna.
As A.A. responderam às contestações, pugnando pela sua improcedência das exceções invocadas pela R. C, reafirmando que a mesma agiu como empresa transportadora e não como transitária e que a falta de pagamento integral do preço do transporte pela 1.ª A. não impede a procedência dos pedidos que a mesma formulou, sendo que a limitação legal ao valor da responsabilidade que deve suportar é superior ao valor aqui peticionado pelas A.A..
Relativamente às exceções deduzidas pelas R.R. E e D pugnou pela sua improcedência.
No tocante à matéria da contestação da R. Polar, afirmam as A.A. que, até à instauração da presente ação, só tiveram a informação que as R.R. lhe deram e todas estas se negaram a explicar o que aconteceu, provindo toda a informação que recolheram dos documentos que lograram obter e de alguns poucos factos que lhes foram comunicados informalmente, a partir dos quais, e de acordo com as regras da experiência comum, não puderam deixar de, com razoabilidade, considerar que a R. Polar também tinha tido contribuído para os prejuízos causados, assim sustentando a improcedência do pedido de condenação das A.A. como litigantes de má fé.
As A.A. requereram ainda a intervenção principal da ALG…, SLU.
Entretanto, veio a ser julgada extinta a instância por inutilidade superveniente da lide quanto às R.R. D, e E, por terem sido declaradas insolventes por decisões transitadas em julgado. No mesmo despacho foi admitida a intervenção acessória de G [ … Mira, Lda ] . e da H [ Companhia de Seguros .. S.A.] , cuja citação então determinada. Já o pedido de intervenção principal da ALG…, SLU veio, posteriormente, a ser julgado improcedente.
A Interveniente G contestou argumentando só ter tido intervenção no percurso terrestre efetuado no dia 13.10.2010, desde o momento em que a mercadoria lhe foi entregue nas instalações da Portral – Comércio e Indústria de Carnes, Lda. e até ao seu descarregamento no porto de Lisboa, transporte que cumpriu pontualmente, nada tendo que ver com toda a demais logística associada ao transporte da mercadoria in casu até Cabo Verde. Pelo que, concluiu pela sua absolvição do pedido.
A Interveniente H também contestou por adesão à defesa apresentada pela R. C, invocando que celebrou com esta um contrato de seguro, no âmbito do qual se encontra garantida a atividade de transitária desenvolvida pela R., sendo que quando teve conhecimento do sinistro sub judice já se encontrava esgotado o limite de capital contratado pela apólice referente à anuidade correspondente ao período decorrente de 01.10.2010 até 30.09.2011, apesar da R. C ter participado mais sinistros durante o mesmo período, que também não foram indemnizados em virtude do capital contratado pela apólice já se encontrar esgotado, o que conduz à exclusão do sinistro em apreço da cobertura da apólice de seguro referida. Por outro lado, defendeu que não poderia resultar a imputação de qualquer responsabilidade à R. C nem, por consequência, à Interveniente H, na medida em que a intervenção daquela R. foi apenas enquanto transitária, sendo que a 1.ª A. não procedeu ao pagamento da quantia de €28.903,24, não tendo relativamente a esta quantia qualquer prejuízo suscetível de ser reembolsado ou ressarcido pelos presentes autos. Quanto aos montantes de €1.408,85 e de €4.925,92, alegadamente devidos a título de despesas suportadas com a destruição da mercadoria e de lucros não rececionados, não seriam do conhecimento da Interveniente. Sustentou ainda que não foram demonstrados os lucros cessantes no montante de €39.407,36, tal como peticionados pela 2.ª A.. Defendeu ainda que, caso se entenda que R. C é responsável pelos prejuízos peticionados pelas A.A., a  responsabilidade será contratual, no que à 1.ª A. respeita, e será extracontratual no que à 2.ª A. se refere e, não tendo a A. provado, ou sequer alegado, ter existido culpa por parte da R. C na produção dos danos alegados e não existindo qualquer relação de causalidade adequada entre o alegado dano e a conduta da R. C, não poderá impender sobre aquela o pagamento de qualquer quantia peticionada pela 2.ª A. e não poderá, por consequência, tal responsabilidade recair sobre a Interveniente. Defendeu também que, a haver direito ao pagamento de qualquer indemnização, nos termos em que é alegado pelas A.A., estas apenas teriam direito ao pagamento do montante de €498,80, devido por se tratar de um único volume de carga.
Em conformidade, concluiu a interveniente pela procedência da exceção perentória de insuficiência do capital seguro alegada e, em consequência, pela sua absolvição do pedido. Em qualquer caso, a ação deveria ser julgada improcedente, por não provada e, em consequência, a R. C, deveria ser absolvida do pedido, devendo ser julgado procedente o direito de regresso da Interveniente contra os responsáveis pelos prejuízos alegados pelas A.A..
As A.A. replicaram às contestações apresentadas pelas Intervenientes.
Quanto às exceções arguidas pela Interveniente H, pugnam pela sua improcedência, alegando, em suma, que a mesma incumpriu o que dispõe o artigo 146º, n.º 2, da LCS, devendo pagar os danos, com exclusão dos demais credores do segurado. Ou caso assim se não entendesse, sempre seria aplicável o artigo 142º da LCS, sobre pluralidade de responsáveis, dando lugar ao rateio do valor do capital remanescente após o reembolso do primeiro sinistro pelas diversas pretensões conhecidas e comprovadas, entre as quais figurava a das A.A.. Ainda que assim não se entendesse, se as eventuais indemnizações pagas pela seguradora não alcancem o limite máximo do capital seguro, tal não significa que não se possa operar uma transferência do capital que ficou por utilizar para outros anos, sobretudo se é nesses outros anos que se toma conhecimento do sinistro.
As A.A. vieram, em seguida, requerer a convolação da intervenção da H nos presentes autos em intervenção principal provocada, na qualidade de R., pedido que veio a ser indeferido.
Findos os articulados, veio a proceder-se ao saneamento do processo, com dispensa de audiência prévia, sem terem sido decididas nenhuma das exceções alegadas, mas fixando-se o objeto do litígio e os temas de prova.
Admitida a prova requerida, veio a realizar-se a audiência final e finda a produção da prova e a discussão da causa, veio a ser proferida sentença que decidiu o seguinte:
a) Condenar a R. C a pagar à A. A a quantia de €32.839,49 (trinta e dois mil e oitocentos e trinta e nove euros e quarenta e nove cêntimos), acrescida de juros de mora, contados, à taxa legal, desde a citação até efetivo e integral pagamento;
b) Condenar a R. C a pagar à A. B a quantia de €6.113,57 (seis mil e cento e treze euros e cinquenta e sete cêntimos), acrescida de juros de mora, contados, à taxa legal, desde a citação até efetivo e integral pagamento; e
c) Absolver a R. F dos pedidos contra a mesma formulados pelas A.A. A e B .
É dessa sentença que a R. C vem apresentar recurso de apelação, constando do final das suas alegações as seguintes conclusões:
A. A mui douta sentença ora recorrida encontra-se ferida de nulidade prevista no Art. 615º do C.P.C., já que pelo menos um mesmo facto ali surge como provado e como não provado, resultando assim, para além da sua ambiguidade, uma oposição entre tal douta decisão e seus fundamentos;
B. Por outro lado, e com o devido respeito, esteve mal a douta sentença ora recorrida ao não qualificar a relação contratual entre Recorrente e Recorridas como de contrato de prestação de serviços de transitário,
C. Ou, no limite, como de um contrato de expedição,
D. E ao invés a ter qualificado como contrato de transporte,
E. Porquanto resultando dos autos, em particular da sua prova documental, que a intervenção da Recorrente na expedição in casu o foi, apenas e só, como transitária,
F. Celebrado contratos de transporte, por conta e em nome das Recorridas com vista à prestação de serviços conectados com a expedição de suas mercadorias,
G. Mercadorias acondicionadas em um contentor,
H. Por via marítima entre Portugal e Cabo Verde.
I. Resultando de toda a documentação dos autos que o transporte efetivo de tais mercadorias foi, e desde a sua recolha no seu ponto de origem, sempre efetuado numa única unidade de transporte,
J. Resultando ainda provado que tal unidade de transporte sofreu avaria no trajeto de transporte marítimo, por avaria de sua unidade de frio quando já a bordo e em viagem de alto mar no navio Terry Três do transportador D,
K. Que tal avaria resultou de um caso de força maior e fortuito, alheio à vontade de todos e qualquer interveniente em tal transporte marítimo, e consequentemente a Recorrente,
L. Que diligentemente todos os intervenientes procuraram obter a mais rápida reparação de tal avaria que originou, inclusive, a descarga de tal contentor no porto de Las Palmas, nas Canárias,
M. Tendo seguido de novo viagem com destino a Cabo Verde após a sua reparação, já a bordo do navio da D TS...,
N. Ter-se como aplicável à Recorrente a exclusão de toda e qualquer eventual responsabilidade por qualquer dano decorrente desta expedição por via marítima, por força do estatuído no n.º 5 do Art. 4.º da Convenção de Bruxelas, a ela aplicável por força do Art. 15.º do Decreto-Lei N.º 255/99, de 7 de Julho e, ainda, do regime decorrente das Condições Gerais de Prestação de Serviços pelas Empresas Transitárias (Publicadas no DR, III Séria nº 51 de 01/03/2001);
O. Subsidariamente, tendo presente de novo a matéria dado como assente pelo douto Tribunal a quo, teremos sempre que uma eventual responsabilidade imputável à Recorrente se encontra, sempre, limitada nos termos do disposto no Art. 31.º do Decreto-Lei Nº 352/86, de 21 de Outubro, face ao disposto no n.º 5 do Art. 4º da Convenção de Bruxelas, aplicável à Recorrente – sempre – por força do Art. 15.º do Decreto-Lei N.º 255/99, de 7 de julho e, ainda, do regime decorrente das Condições Gerais de Prestação de Serviços pelas Empresas Transitárias (Publicadas no DR, III Séria nº 51 de 01/03/2001);
P. Assim, e com o devido respeito, deverá sempre a douta decisão ora em apreço ser revogada e substituída por outra que, aplicando as regras legais supra enunciadas absolva in totum a Recorrente nos pedidos da Recorridas, por exclusão da sua eventual responsabilidade nos danos ocorrido ou, subsidiariamente,
Q. Que limite a sua responsabilidade ao limite legal decorrente das normas supra identificadas, em particular o limite resultante do Art. 31.º do Decreto-Lei Nº 352/86, de 21 de Outubro, nos termos supra enunciados,
R. mas sempre com a alteração da matéria de facto dado como assente no ponto 14 da douta fundamentação de facto da douta decisão ora em apreço,
S. ficando ali como assente que “A primeira A. encarregou A Ré C de efetuar todas as operações de planeamento, coordenação e controle necessárias ao transporte de produtos alimentares congelados acima referidos de Portugal a Cabo Verde”;
T. Por outro lado, deverá ser aditado aos factos provados, como ponto 87.1 o seguinte facto:
U. “À Ré C apenas foi solicitado o planeamento, controlo e coordenação do transporte por via marítima de determinada mercadoria acondicionada em um único volume de carga – vulgo contentor – com origem em Portugal e destino na Ilha do Sal em Cabo Verde.”,
V. sendo, assim, dado pleno provimento ao presente recurso e, por via dele, aplicada por V.Exªs a mui douta e costumada JUSTIÇA.
As A.A. responderam ao recurso assim interposto, sobrelevando das suas contra-alegações as seguintes conclusões:
1.ª O recurso apresentado pela 1.ª A., C, ora Recorrente, procura fazer a impugnação da matéria de facto provada, mas sem cumprir o ónus que lhe caberia, para esse efeito, de acordo com o artigo 640.º do CPC, em particular, incumprindo inapelavelmente as exigências que resultam do n.º 1, alínea b), e n.º 2, desse preceito.
2.ª Com efeito, a Recorrente, embora procure contestar a decisão sob recurso, aliás num único ponto (o ponto 14 dos factos provados), não indica os concretos meios de prova que lhe permitiriam chegar a diferente conclusão, nem sequer chegando a analisar a exaustiva fundamentação da matéria de facto que a Douta Sentença apresenta.
3.ª E como tal, o recurso deve ser liminarmente rejeitado, na parte em que se refere à impugnação da matéria de facto (cf. n.ºs 1 e 2 do artigo 640.º do CPC). Tal rejeição, no entender das Recorridas, arrasta consigo, necessariamente, a rejeição total do recurso, uma vez que o mesmo surge suportado precisamente nessa impugnação da matéria de facto, que não apresenta, assim, a mínima hipótese de procedência.
4.ª Não procede a alegada nulidade da Douta Sentença relacionada com o ponto 93 dos factos provados. O ponto 93 dos factos provados tem a mesma redação do 15.º facto dado como não provado, mas é evidente para qualquer pessoa que se trata de um lapso de escrita manifesto, apenas suscetível de retificação pelo Tribunal a quo, nos termos do artigo 614.º do CPC.
5.ª Lendo, no contexto, o ponto 93 da matéria de facto provada e, no contexto, o 15.º facto não provado, e lendo a fundamentação de Direito, torna-se evidente que o Meritíssimo Tribunal considerou esse facto como não provado, designadamente, em face do que o Tribunal diz, por exemplo, acerca do papel da C como mandante no transporte terrestre do contentor vazio até às instalações da Portral e daí até ao porto de Lisboa.
6.ª Não há, pois, qualquer nulidade da Sentença, podendo, isso sim, haver lugar a uma mera retificação de lapso de escrita.
7.ª Apesar do que se disse supra, acerca da rejeição do recurso, sempre se dirá, por cautela de patrocínio, que a Recorrente não consegue apresentar quaisquer razões para colocar em causa o decidido pelo Tribunal a quo no que diz respeito à questão que a Recorrente elege como principal: a da qualificação do contrato celebrado entre a 1.ª A., ora Recorrida, e a 1.ª Ré, ora Recorrente.
8.ª Nas suas alegações, a Recorrente entende que o Tribunal a quo errou ao considerar a atuação da Recorrente como sendo transportadora e não mera transitária, e vem, no fundo, repetir, sem acrescentar qualquer aspeto novo, a sua confusa, escassa e improcedente argumentação, acompanhada da citação de diversa jurisprudência que funciona claramente contra a sua posição.
9.ª Além das fragilidades da argumentação da Recorrente do ponto de vista jurídico, verifica-se, ainda, algo que é notório quando se faz uma leitura conjunta da Douta Sentença e das alegações de recurso: é que não atacando a Recorrente mais do que um único ponto da extensíssima factualidade provada, resulta óbvio que a Recorrente está a discutir Direito “em seco”, isto é, está a fazer uma discussão de Direito que é improcedente, desde logo, por não ter a mínima aplicabilidade à matéria de facto que ficou provada e que a Recorrente, no essencial, não impugnou.
10.ª O contrato celebrado entre a Narest Portugal e a R. C (e a B, como destinatária do transporte) deve ser considerado, na parte que mais releva para o resultado da ação, um contrato de transporte marítimo, como bem o qualificou o douto Tribunal a quo, ao considerar na sentença, a fls._, que (…) “está, desde logo, em causa um contrato de transporte marítimo de produtos alimentares (de Portugal para Cabo Verde) celebrado entre a Autora A e a Ré C.”
11.ª Esta afirmação tem um inequívoco suporte na matéria de facto provada. Não apenas no ponto 14 dos factos provados, que a Recorrente, ainda que sem cumprir o ónus imposto pela lei, tentou impugnar, mas em uma série de outros factos provados, que a Recorrente não tentou impugnar e que, manifestamente, só podiam permitir aquela conclusão: em especial, os pontos 15 a 19, 22, 25, 26, 28, 29, 88, 100 e 148 da matéria de facto provada.
12.ª Como foi reconhecido pelo douto Tribunal a quo, a pedra de toque dessa qualificação do contrato é a assunção, pelo transportador, de uma obrigação de resultado, qual seja, a de colocar os bens, íntegros, no local de destino, entregando-os ao destinatário. Não há dúvidas de que a Recorrente C assumiu essa obrigação de resultado perante a Recorrida A, como expedidora (e a B, como destinatária dos bens).
13.ª E isso evidentemente não é posto em causa pela circunstância de não ter sido a Recorrente C a efetuar materialmente o transporte e todas as demais operações implicadas pelo mesmo, ao contrário do que a Recorrente quer fazer crer nas suas alegações de recurso.
14.ª Pelo contrário: como muito acertadamente sublinha a Douta Sentença, um dos elementos que consolida a convicção de ter sido celebrado um contrato de transporte é o facto de o transporte ter tido mais do que uma via: uma terrestre, entre a Portral e o Porto de Lisboa, outra marítima, entre o Porto de Lisboa e o Porto de Palmeira, e essas várias vias serem claramente geridas, autonomamente, pela Recorrente.
15.ª É exatamente essa a mensagem que se extrai inequivocamente da concatenação dos factos provados, factos esses que, mais uma vez, a Recorrente desprezou, e que não procurou impugnar – relevando, em especial, como se viu, os pontos 15, 16, 17, 19, 22, 26, 28, 29, 30, 92, 100, 148 e 149 dos factos provados.
16.ª Mais uma vez de forma que manifesta o seu (incompreensível) desprezo pela matéria de facto provada, que a Recorrente não impugnou, a Recorrente invoca, nas suas alegações, as condições gerais aplicáveis aos agentes transitários, como se elas fossem aplicáveis ao presente contrato; mas a Recorrente não provou (e nem sequer alegou) que o contrato tenha ficado submetido a tais condições gerais, o que exigiria a prova de que as mesmas foram levadas ao conhecimento da 1.ª A. e por esta aceites antes da conclusão do contrato (artigo 5.º, n.º 3, da Lei das Cláusulas Contratuais Gerais).
17.ª A qualificação do contrato nos termos decididos pelo Tribunal a quo está bem apoiada na doutrina e na jurisprudência, incluindo desse Venerando Tribunal da Relação de Lisboa, como sucedeu no Douto Acórdão de 03-03-2016, proc. 293-07.2TNLSB.L1-6, que a Recorrente cita, mas sem se aperceber de que o mesmo contraria totalmente a sua tese.
18.ª Atenta a relação de transporte que se estabeleceu entre a Recorrente e as Recorridas (e também, note-se, por força do artigo 15.º do Decreto-Lei n.º 255/99, mesmo que a relação fosse de trânsito, o que apenas por hipótese académica se admite), a Recorrente responde perante as Recorridas por qualquer tipo de incumprimento desta prestação, como veio a verificar-se, independentemente que quem for o responsável concreto pelas operações necessárias ao transporte, já que todos os intervenientes foram contratados diretamente pela Recorrente. A recorrente poderia, claro, exercer posteriormente quaisquer direitos de regresso que considerasse ter face àqueles com quem contratou.
19.ª Este foi o entendimento sufragado pela Douta Sentença objeto do presente recurso, e não poderia ter sido outra a decisão, atento o enquadramento normativo aplicável, extensamente versado na Sentença.
20.ª A Recorrente manifestamente não ilidiu (pelo contrário) a presunção de culpa que sobre si impendia, pelas suas ações e pelas daqueles por cuja prestação ela respondia.
21.ª A presunção de culpa e inerente ónus da prova que sobre a Recorrente impendia obrigá-la-ia a demonstrar que o contentor não avariou por falta de manutenção, ou por falha humana do pessoal que ia a bordo do barco, ou por qualquer outra razão censurável. Nada disso foi alegado, quanto mais provado.
22.ª A Recorrente parece esquecer-se que, não se provando a causa da avaria, funciona sempre a presunção de culpa: é responsável o devedor da obrigação de fornecer um contentor a funcionar, que, perante as Recorridas, era a Recorrente.
23.ª Basta atentarmos, em especial, na matéria de facto provada nos n.ºs 35, 36, 60, 129, 130, 131, 133, 134, 135, 136, 137, 138, 139, 140, 141, 142, 143, 144 e 145, para se compreender que, salvo o devido respeito, é caricata a pretensão da Recorrente de que foi ilidida qualquer presunção de responsabilidade: o que ficou provado, isso sim, foi uma negligência extrema das pessoas por cuja prestação a Recorrente responde.
24.ª Quem disponibiliza e tem à sua guarda um contentor refrigerado, que sabe conter alimentos congelados e tem de ser mantido a 18 graus negativos, tem de fazer duas coisas essenciais: assegurar que ele está em boas condições de funcionamento (aplicando equipamento dentro da sua vida útil, fazendo manutenção preventiva e corretiva, etc.), e vigiá-lo cuidadosa e frequentemente.
25.ª Neste caso, manifestamente, houve falhas gravíssimas na vigilância; também houve falhas com uma tentativa de reparação ineficaz; e quanto às causas das avarias, nada se provou, mas quando o ónus está contra o devedor e nada se prova sobre a causa do incumprimento, obviamente sabe-se que a questão é decidida contra a pessoa sobre a qual impende o ónus.
26.ª De tudo isto resulta, não que a Recorrente e as pessoas por quem ela responde se tenham eximido da sua responsabilidade, mas pelo contrário, um quadro de grosseiro desinteresse, descuido e incumprimento dos seus deveres de fornecimento de um contentor funcional e de guarda diligente desse contentor durante o transporte, por parte de quem, a mando da Recorrente, tinha a seu cargo o contentor, ao ponto de nem sequer se aperceber de que o contentor esteve, várias vezes, durante dias a fio, sem qualquer refrigeração, e estava mesmo desligado, sem que ninguém se apercebesse disso, quando chegou ao Porto de Palmeira.
27.ª A ora Recorrente, sentindo perfeitamente a fragilidade da sua posição quanto ao pretenso afastamento da sua presunção de culpa, procura, assim, concentrar os seus esforços em ressuscitar a ideia da limitação da responsabilidade de acordo com a tese de que o contentor seria o (único) volume de carga, posição que a Douta Sentença, com justa e exaustiva fundamentação, rejeitou.
28.ª Como é hoje em dia claro, quer na doutrina, quer na jurisprudência, quer na própria Convenção de Bruxelas, quer na lei nacional, a polémica tese da identificação entre o volume e o contentor só poderia acontecer em caso de omissão de quantificação do número ou peso da mercadoria transportada.
29.ª Ora, como bem se refere na douta sentença, “as Autoras lograram provar a quantidade de unidades transportadas e descritas no conhecimento (…), o respetivo preço e o bom estado da mercadoria deslocada aquando da sua entrega para embarque.”
30.ª É forçoso concluir, da matéria de facto provada, assente nos documentos juntos com a petição inicial (em especial, mas não apenas, a BL, doc. 8 junto à PI) e com a contestação da Recorrente, que esta e todas as outras empresas com quem esta (sub)contratou a execução do transporte foram informadas, e o conhecimento de carga referia expressamente, que os produtos alimentares a transportar (a mercadoria) consistiam em 12.688,85 kg de carne de suíno e bovino, embaladas em 1835 volumes que estavam acondicionados, esses sim, e obviamente, dentro do contentor (v. em especial os pontos 23, 24 e 33 da matéria de facto).
31.ª Como explica o Tribunal a quo com grande profundidade e acerto, a tese segundo a qual aquela limitação de responsabilidade se faria de acordo com a única unidade do contentor parte de pressupostos que neste caso não se verificaram. A Recorrente forneceu um contentor vazio, que foi levado à Portral, por uma empresa contratada pela Recorrente, para ser carregado, tendo o contentor sido selado pela Recorrente ou outrem a seu mando; e o número de volumes e peso da mercadoria carregada no contentor estavam perfeitamente identificados.
32.ª Tudo isto torna simplesmente indefensável aplicar o valor indemnizatório pré-fixado a todo o contentor, rejeitando-se por completo (também) essa alegação da Recorrente. Assim bem entendeu a Sentença recorrida, que não merece, por isso, qualquer censura.
Pedem assim que o recurso interposto seja julgado totalmente improcedente, mantendo-se a decisão recorrida.
O recurso foi admitido por despacho omisso sobre a matéria da invocada nulidade da decisão recorrida, tendo o relator ordenado a baixa do processo à 1.ª instância, para o Tribunal a quo tomar posição expressa sobre essa matéria, nos termos do Art. 617.º n.º 1 e n.º 5 do C.P.C.. No mesmo despacho, ora constante de fls 854, foi ainda determinado o cumprimento do contraditório relativamente à questão da rejeição do recurso em matéria de impugnação da decisão sobre a matéria de facto, ao abrigo dos Art.s 655.º n.º 2 e 654.º n.º 2 do C.P.C..
Por Requerimento de 5/11/2020, veio a R.- Recorrente sustentar a admissibilidade do recurso nos seguintes termos:
I. Decorre do Art. 640º do C.P.C. a possibilidade de ser impugnada a decisão reativa à matéria de facto desde que invocados os factos considerados incorretamente julgados com especificação dos “meios probatórios, constantes do processo ou de registo ou gravação nele realizada” que fundamentam tal impugnação;
II. A Recorrente nas suas alegações de recurso indicou quais os factos que considera incorretamente julgados (pontos 8, 21, 38 a 43 destas, entre outros),
III. E especifica quais os meios probatórios constantes do processo para sua tal pretensão (pontos 4, 5, 7, 29, 58 e 59, entre outros);
IV. Entende, assim, ter sido dado pleno cumprimento aos requisitos insertos no Art. 640º do C.P.C., pelo que a rejeição liminar do recurso na parte em que impugna matéria de facto requerida pelas Recorridas não deverá ter provimento e, consequentemente
V. Ser o presente recurso sujeito à douta apreciação deste Tribunal, na íntegra.
Por seu turno, o Mm.º Juiz do Tribunal a quo veio pronunciar-se sobre a nulidade da sentença recorrida, por despacho de 23 de novembro de 2020, nos seguintes termos:
«A Recorrente invocou a nulidade da sentença, com fundamento na al. c) do artigo 615.º do CPC, por contradição entre factos dados como provados e não provados, evidenciada na circunstância do facto considerado provado no ponto 93. da decisão da matéria de facto, se encontrar, igualmente, com a mesma redação, na lista dos factos não provados (correspondendo ao 15.º facto não provado).  A Recorrida respondeu, considerando não se verificar a invocada nulidade, mas antes um lapso de escrita manifesto, suscetível de retificação pelo Tribunal a quo, nos termos do artigo 614.º do CPC.
Analisada a sentença proferida, constatamos a existência da contradição apontada pela Recorrente, que de imediato sanaremos, referindo que a indicação do facto 93. como provado se deveu efetivamente a lapso de escrita, mantendo-se no elenco dos factos provados um facto que efetivamente se considerou não ter sido provado como, ademais, bem interpretou a Recorrida.
Com efeito, tal resulta evidente do contexto em que se insere o ponto 93. da matéria de facto considerada provada (mormente os pontos 92. e 94. que indicam claramente que a D não teve sempre o controlo direto sobre a unidade de carga em causa, o seu modo de estiva e acondicionamento no navio) e o 15.º facto não provado (mormente atentando ao 16.º facto não provado). Por outro lado, a apreciação, crítica e conjunta, dos documentos juntos a fls. 89/91, 161/163 e 310/331 e do depoimento prestado por AV… (indicada em sustento da convicção sobre a verificação dos factos julgados provados sob os pontos 88. a 95.) não permite dar como provado o facto constante do ponto 93., antes o contrariando (no sentido da D não ter tido sempre o controlo direto sobre a unidade de carga em causa, o seu modo de estiva e acondicionamento no navio), sendo ainda certo que nenhum outro elemento de prova foi produzido que tivesse firmado uma convicção positiva sobre tal facto.
Sendo assim, apesar da indicação do referido facto como provado se tratar de um manifesto lapso de escrita, a verdade é que também consubstancia a nulidade invocada pela Recorrente, que aqui se supre, determinando-se que se tenha por não escrito o ponto 93. dos factos provados (onde consta “No caso em apreço, quem sempre teve controlo direto sobre a unidade de carga em causa, o seu modo de estiva e acondicionamento no navio foi o transportador efetivo daquela, subcontratado pela Ré C e aqui também Ré D (agenciada pela Ré E)”) e ainda que o mesmo se tenha por excluído da motivação relativa à convicção formada sobre a verificação dos factos julgados provados sob os pontos 88. a 95. (que assim se reporta apenas aos factos julgados provados sob os pontos 88. a 92., 94. e 95.), mantendo-se tal facto no elenco daqueles que não se provaram, em virtude de ter sido contrariado pela prova produzida.  Esta decisão considera-se complemento e parte integrante da sentença, ficando o recurso interposto a tê-la também como objeto (artigo 617.º, n.º 2, do CPC)».
II- QUESTÕES A DECIDIR
Nos termos dos Art.s 635º, n.º 4 e 639º, n.º 1 do C.P.C., as conclusões delimitam a esfera de atuação do tribunal ad quem, exercendo uma função semelhante à do pedido na petição inicial (vide: Abrantes Geraldes in “Recursos no Novo Código de Processo Civil”, Almedina, 2017, pág. 105 a 106). Esta limitação objetiva da atuação do Tribunal da Relação não ocorre em sede da qualificação jurídica dos factos ou relativamente a questões de conhecimento oficioso, desde que o processo contenha os elementos suficientes a tal conhecimento (cfr. Art. 5º n.º 3 do Código de Processo Civil). Também não pode este Tribunal conhecer de questões novas que não tenham sido anteriormente apreciadas porquanto, por natureza, os recursos destinam-se apenas a reapreciar decisões proferidas (Vide: Abrantes Geraldes, Ob. Loc. Cit., pág. 107).
Assim, em termos sucintos, as questões essenciais a decidir são as seguintes:
a) A nulidade da sentença recorrida;
b) A impugnação da matéria de facto e sua rejeição;
c) A qualificação do contrato celebrado com a R. como contrato de prestação de serviços de transitário ou de expedição ou como contrato de transporte;
d) A responsabilidade civil da R., seus pressupostos legais, incluindo a matéria da existência de presunção de culpa;
e) A limitação da responsabilidade civil nos termos do Art. 4.º n.º 5 da Convenção de Bruxelas “ex vi” Art. 15.º do Dec.Lei n.º 255/99 de 7/7, conjugada com o Art. 31.º do Dec.Lei n.º 352/86 de 21/10.
Corridos que se mostram os vistos, cumpre decidir.
III- FUNDAMENTAÇÃO DE FACTO
A sentença sob recurso considerou como provada a seguinte factualidade:
Da petição inicial
1. A primeira A. (doravante A) é uma sociedade comercial dedicada à prestação de serviços de restauração e conexos, nos termos que constam do documento 1 junto com a petição inicial, que se dá por integralmente reproduzido.
2. A segunda A. (doravante B) é uma sociedade comercial que se dedica à restauração, importação e comércio de produtos alimentares, em Cabo Verde, nos termos que constam do documento 2 junto com a petição inicial, que se dá por integralmente reproduzido.
3. No âmbito da sua atividade comercial, as A.A. acordaram entre si o fornecimento de produtos alimentares pela primeira à segunda.
4. A quantidade e o custo desses produtos alimentares são faturados pela primeira A. à segunda A., que os paga.
5. Tais produtos alimentares são enviados de Portugal para Cabo Verde, onde são utilizados pela segunda A. para o desenvolvimento da sua atividade.
6. No âmbito desta atividade, a Narest Portugal comprometeu-se a fornecer à B os produtos alimentares – carnes frescas congeladas – constantes da fatura n.º 228/2010, com data de 30.09.2010, pelos quais a B pagaria o valor total de €28.903,24, nos termos que constam do documento 3 junto com a petição inicial, que se dá por integralmente reproduzido.
7. Para cumprimento do combinado com a Narest Cabo Verde, a Narest Portugal adquiriu a mercadoria referida à Portral, Comércio e Indústria de Carnes, Lda., pelo valor de €28.903,24, que a Narest Portugal já pagou.
8. Estes produtos alimentares consistiam em cerca de 12 toneladas (12.688,85kg) de carne de suíno e bovino, conforme lista entregue e aprovada pela Direção Geral de Veterinária do Ministério da Agricultura, do Desenvolvimento Rural e das Pescas, como anexo do certificado sanitário e de salubridade para exportação de carnes frescas para países de língua e expressão portuguesa com o n.º 571/10/DIVO, nos termos que constam do documento número 5 junto com a petição inicial, que se dá por integralmente reproduzido.
9. Nesse certificado, datado de 12.10.2010, certificou-se que “as carnes acima referidas satisfazem os requisitos da Diretiva 2002/99/CE, de 16 de dezembro de 2002, que estabelece as regras de polícia sanitária aplicáveis à transformação, distribuição e introdução de produtos de origem animal destinados ao consumo humano”.
10. Certificou-se também que as carnes referidas “possuem uma marca comprovativa de que: as carnes provêm de animais abatidos em matadouros oficialmente aprovados – as carnes foram desmanchadas num estabelecimento de desmancha, corte e desossagem oficialmente aprovado – as carnes foram armazenadas num entreposto oficialmente aprovado”.
11. Certificou-se também que “estas carnes são reconhecidas como próprias para consumo humano na sequência de uma inspeção veterinária efetuada de acordo com o Regulamento (CE) n.º 854/2004, de 29 de Abril, que estabelece regras específicas de organização dos controlos oficiais de produtos de origem animal destinados ao consumo humano”.
12. Certificou-se, por fim, que “os veículos ou meios de transporte, bem como as condições de carga desta expedição estão conforme as exigências de higiene definidas no Regulamento n.º 853/2004 (CE), de 29 de abril, que estabelece regras específicas de higiene aplicáveis aos géneros alimentícios de origem animal”.
13. Para a mesma mercadoria foi igualmente obtida a autorização sanitária de importação n.º 127/2010, datada de 18.10.2010, da Direção Geral de Agricultura, Silvicultura e Pecuária de Cabo Verde, para importação para esse país de 11.000kg de carne suína e derivados e 2.000kg de carne bovina e derivados, com origem na Narest Portugal e destino na Narest Cabo Verde, por via marítima, através do Porto de Palmeira, nos termos que constam do documento 6 junto com a petição inicial, que se dá por integralmente reproduzido.
14. A primeira A. encarregou a R. C Logis – Soluções Logísticas Integradas, S.A. (doravante, C), de efetuar todas as operações necessárias ao transporte dos produtos alimentares congelados acima referidos de Portugal até à Ilha do Sal, mediante o pagamento do valor de €3.936,25, nos termos que constam do documento 7 junto com a petição inicial, que se dá por integralmente reproduzido.
15. O combinado foi que a R. C se encarregaria dos produtos em questão desde o momento em que os mesmos lhe fossem entregues, em Portugal, por uma empresa a mando da Narest, até à sua entrega, no Porto de Palmeira, na Ilha do Sal, à empresa Translogistic.
16. A Translogistic iria levantar os produtos em questão a mando da R. C e entregá-los-ia à Narest Cabo Verde.
17. A fatura passada pela R. C à Narest contemplou os seguintes serviços e despesas: (i) taxa de porto; (ii) despacho aduaneiro; (iii) camionagem – armazém Portral; (iv) SSC/ISPS/TSC; (v) atribuição de contentor/selagem; (vi) BAF/Fuel Surcharge; (vii) congestion surcharge; (viii) (freight surcharge); (ix) Terminal Handling Charge; (x) General Rate Increase; (xi) taxa de porto; (xii) Emissão/Validação BL/AWB/FCR.
18. A SSC é a Ship Security Charge; a ISPS é a taxa relativa ao cumprimento do International Ship and Port Facility Security (ISPS) Code; a TSC é a Terminal Security Charge, ou seja, são taxas relativas a requisitos de segurança; a BAF é a Bunker Adjustment Factor, que é uma taxa sobre o combustível.
19. A entrega da mercadoria foi feita pela Portral à R. C ou a alguém a seu mando, em 13.10.2010, que levou o contentor vazio, de camião, às instalações da Portral em Sintra, onde o mesmo foi carregado com os produtos alimentares.
20. A R. C foi informada pela Narest Portugal e pela Portral, Lda., de que a mercadoria em questão tinha de ser mantida a uma temperatura não superior a -18º Celsius.
21. O camião saiu das instalações da Portral em Sintra só depois de a sua temperatura ter sido estabilizada na temperatura de conservação necessária.
22. O contentor foi atribuído e selado pela R. C ou por alguém a seu mando.
23. A mercadoria entregue pela Portral por conta da Narest Portugal consistiu em 1835 volumes de produtos alimentares, com peso bruto de 12.658,85 kg.
24. Em 13.10.2010, quando a Portral, por conta da Narest, entregou à R. C os produtos alimentares, estes estavam em perfeitas condições de conservação, salubridade e embalagem e cumpriam todas as regras aplicáveis à mercadoria dessa natureza.
25. O certificado de salubridade foi entregue à R. C ou a alguém a seu mando.
26. A partir do momento em que entregou o contentor, a Narest Portugal perdeu qualquer contacto com o mesmo.
27. Os produtos alimentares foram carregados no navio TT..., no contentor n.º 0000000000/0.
28. O contentor foi movimentado no terminal do porto de embarque pela R. C ou por alguém a seu mando.
29. A carga do contentor no navio foi feita pela R. C ou por alguém a seu mando.
30. A R. C encarregou a R. D Shipping Line, Transportes Marítimos, S.A. (doravante, D), representada pela E – Navegação e Trânsitos, Lda. (doravante, E), de efetuar o transporte das mercadorias já referidas, nos termos que constam do documento 8 junto com a petição inicial, que se dá por integralmente reproduzido.
31. O navio que iria proceder ao transporte seria o TT....
32. O porto de destino da mercadoria era o porto da Ilha do Sal.
33. A mercadoria entregue à R. D consistia em 1835 volumes com 12.658,85 kg de peso, acondicionados no contentor CBSU 200107/0.
34. A R. D, por intermédio da R. E, foi informada de que o contentor continha produtos alimentares.
35. A mercadoria em questão estava sujeita a controlo de temperatura (“temperature controlled unit/cargo”), o que foi especificado na Bill of Landing, nos termos que constam do documento 8 junto com a petição inicial, que se dá por integralmente reproduzido.
36. Especificava-se na mesma Bill of Landing que a mercadoria deveria ser mantida, a todo o tempo, a uma temperatura de -18ºC (dezoito graus Celsius negativos) (“this must be maintained at all times at: temp: -18Dec.C.”).
37. A R. C não fez incluir na Bill of Landing qualquer reserva segundo a qual a mercadoria transportada estivesse em mau estado de conservação.
38. O contentor CBSU 200107/0, relativo à Bill of Landing n.º CM10LISSID1432, foi descarregado na Ilha do Sal no dia 13.11.2010, nos termos que constam dos documentos 9 a 13 juntos com a petição inicial que se dão por reproduzidos.
39. O dito contentor chegou à Ilha do Sal a bordo do navio TS... e não do navio TT..., nos termos que constam dos documentos 10 a 15 juntos com a petição inicial que se dão por reproduzidos.
40. O contentor, que tinha como destino o Porto de Palmeira, na Ilha do Sal, no navio TT..., foi entretanto descarregado noutro porto.
41. O contentor foi reembarcado na semana seguinte no navio TS..., da mesma companhia (D), e foi nesse navio que seguiu para o Porto de Palmeira na Ilha do Sal.
42. À chegada ao Porto de Palmeira, em 13.11.2010, o contentor foi descarregado, tendo sido transportado para a zona do terminal de frio.
43. Aí tentou-se ligar o contentor, mas o mesmo não deu sinal de luz.
44. O agente do navio e um responsável da R. Polar foram avisados desse facto no mesmo dia 13.11.2010.
45. Por volta das 20.00h do mesmo dia, o contentor foi reparado por um técnico a mando da empresa Polar e ficou ligado à corrente até ao dia 16.11.2010.
46. Toda a mercadoria contida no contentor já estava irremediavelmente estragada quando o contentor foi descarregado no porto de Palmeira.
47. Logo no dia 13.11.2010, Paulo Leite, responsável da Narest Cabo Verde, quando o contentor foi descarregado, notou que o disco diagnóstico revelava que o contentor tinha estado desligado durante muito tempo.
48. E por esse motivo recusou-se a receber o contentor e a permitir que fosse retirado o respetivo selo.
49. E solicitou de imediato a realização de inspeção sanitária ao conteúdo do contentor.
50. Em 15.11.2010, a mercadoria foi inspecionada pelo Inspetor AAP… dos Serviços de Inspeção Fitossanitária da DGASP de Cabo Verde.
51. O referido Inspetor detetou que “de acordo com o disco diagnóstico de temperatura o contentor manteve desligado durante vários dias (cópia em anexo) levando o contentor a uma variação de temperatura de -18ºc para 15ºc”.
52. O disco diagnóstico de temperatura revela, com efeito, uma quebra acentuada da temperatura de conservação do contentor, que se prolongou por vários dias, nos termos que constam do documento 16 junto com a petição inicial que se dá por reproduzido.
53. O mesmo Inspetor referiu também que “Pela Informação contida nos lotes das mercadorias, a conservação deve ser de -12ºc negativos ou inferior”.
54. O referido Inspetor refere ainda que “Da inspeção realizada nas mercadorias (carnes diversas) existe a formação de uma camada de gelo misturado com sangue derivado do descongelo” e que “Constata-se uma mudança da cor característica da mercadoria inspecionada.”.
55. Conclui-se o relatório de inspeção referindo que “sendo que o produto inspecionado não se encontra em condições para consumo humano, as partes envolvidas no processo estão de acordo que a mercadoria deve ser destruída o mais urgente possível”.
56. Esta apreciação foi confirmada por um parecer técnico pedido pela B à SAHAL - Saúde Animal e Higiene Alimentar, subscrito pela Dr.ª MFS…, Médica Veterinária com a cédula profissional n.º 0000, da Ordem dos Médicos Veterinários de Portugal, cuja cópia foi junta como documento 17 da petição inicial que se dá por reproduzida.
57. A referida veterinária inspecionou em 16-11-2010, no Porto da Palmeira – Ilha do Sal, o conteúdo do referido contentor CSBU 200107/0, proveniente de Portugal, do fornecedor A, contendo carne Bovina e Suína.
58. O parecer técnico subscrito pela referida Médica Veterinária foi no sentido de que “o registo gráfico de temperaturas do referido contentor indica que o mesmo foi desligado (ver cópia do disco) o que levou a uma grande oscilação de temperatura, verificando-se uma elevação de temperatura até 15ºc (quinze graus positivos)”.
59. Refere-se ainda no parecer que se verifica “Alteração de cor característica das carnes inspecionadas” e “Presença de gelo sanguinolento dentro das embalagens, o que indica descongelação do produto”.
60. Atendendo à carga térmica acumulada, para que um contentor com 12 toneladas de carne conservado a 18º Celsius negativos descongele, é necessário que esteja sem qualquer refrigeração durante quase dois dias.
61. Conclui finalmente o parecer acima referido que “dado que as carnes transportadas no contento, segundo indicação do rótulo deviam ser conservadas a temperatura inferior a -12ºc (doze graus negativos), e perante os factos observados, conclui-se que os produtos estão impróprios para consumo humano. Posto isto, não devem ser introduzidos no mercado salvaguardando a saúde pública”.
62. Na sequência destas inspeções e pareceres, toda a mercadoria contida no contentor em questão foi transportada para aterro sanitário, onde foi destruída, nos termos que constam dos documentos 13, 14 e 18 a 20 juntos com a petição inicial que se dão por reproduzidos.
63. Em 18.11.2010 a A enviou uma carta à R. C na qual relatou o sucedido com o contentor em questão e solicitou de imediato o ressarcimento de €28.903,24, correspondentes ao valor da mercadoria, informando que a esse valor acresceriam os custos do frete, destruição da matéria-prima, transporte do contentor em Cabo Verde e todos os outros inerentes ao processo de destruição da matéria-prima, nos termos que constam do documento 21 junto com a petição inicial que se dá por reproduzido.
64. Em 24.11.2010, a B enviou à R. F uma reclamação quanto ao tratamento dado ao referido contentor, dando conta de todos os prejuízos sofridos, referentes: ao custo dos bens alimentares, cuja cópia da fatura anexou; à impossibilidade de cumprir com os compromissos de abastecimento assumidos com os clientes a quem a empresa fornece carnes; à necessidade de adquirir no mercado do Sal as carnes necessárias ao funcionamento dos refeitórios onde a empresa presta serviço; aos custos de movimentação do contentor e destruição do seu conteúdo, anexando cópias das faturas, nos termos que constam do documento 21 junto com a petição inicial que se dá por reproduzido.
65. Perante a ausência de qualquer resposta, a A enviou em 30.11.2010 uma carta à R. C, dando conta da relação dos custos diretos sofridos, no valor de € 34.248,34, cujo ressarcimento se solicitou, juntando-se à referida carta cópia de todos os documentos de despesa, nos termos que constam do documento 23 junto com a petição inicial que se dá por reproduzido.
66. A A nunca foi paga do preço da mercadoria que se perdeu e que era de €28.903,24.
67. A R. C faturou à A, pelos seus serviços, o valor de €3.936,25.
68. A B pagou à ENAPOR o valor total de € 338,41 relativos aos serviços e bens constantes das faturas 20107353, 20107354 e 20107474 (descarga e movimentação do contentor, fornecimento de energia elétrica ao contentor e passagem das certidões dos documentos relativos ao processo), nos termos que constam dos documentos 10, 11 e 24 juntos com a petição inicial que se dão por reproduzidos.
69. A B pagou ao despachante RFA… o valor de €12,92 pelos serviços e taxas constantes da requisição n.º 001583, ocasionados pelo envio da mercadoria para destruição, nos termos que constam do documento 19 junto com a petição inicial que se dá por reproduzido.
70. A B pagou à empresa SAHAL, pelo parecer técnico emitido por essa empresa, o valor de € 27,21, nos termos que constam do documento 25 junto com a petição inicial que se dá por reproduzido.
71. A B pagou à Translogistic o valor de €373,30 relativos aos serviços constantes da fatura n.º 003881/10 (transporte do contentor), nos termos que constam dos documentos 14 e 15 juntos com a petição inicial que se dão por reproduzidos.
72. A B pagou à Salimpa o valor de €435,31 pela deposição e destruição da mercadoria estragada no aterro sanitário, nos termos que constam do documento 20 junto com a petição inicial que se dá por reproduzido.
73. A B pagou ainda o valor de €221,70 referentes a taxas pela liquidação sanitária da mercadoria, nos termos que constam do documento 26 junto com a petição inicial que se dá por reproduzido.
74. A B acordou com a empresa “Bom Gosto – Indústria de Produtos Alimentares e Afins, Lda.” fornecer-lhe carne de vaca, porco, frango, peru, coelho, legumes e peixe congelado, de forma contínua, nos termos que constam do documento 27 junto com a petição inicial que se dá por reproduzido.
75. Nesse acordo previa-se o envio de Portugal de um contentor de 20 pés mensalmente.
76. Pelos factos que levaram à destruição da totalidade da mercadoria do contentor, a B não pôde fornecer essa mercadoria aos seus clientes, e designadamente à Bom Gosto.
77. A compra de carne para revenda no mercado local, em Cabo Verde, afigura-se economicamente inviável, atentos os preços de retalho praticados nesse mercado, indicados no documento 28 junto com a petição inicial que se dá por reproduzido.
78. Os preços que a B paga pela carne que importa são preços de venda por grosso.
79. Aos quais a A, quando fatura à B, não acrescenta qualquer margem face ao valor que paga ao fornecedor grossista.
80. A margem de lucro associada à revenda pela B, à Bom Gosto e aos seus outros clientes, das mercadorias que estavam no contentor é de pelo menos 15% do valor correspondente ao custo da mercadoria comprada à A acrescido dos custos de importação da mercadoria.
81. A B paga à A não só o valor da fatura da mercadoria, como todos os custos relativos à sua importação para Cabo Verde (fretes, taxas aduaneiras, etc.), e depois sobre esse valor coloca uma margem de lucro de pelo menos 15%, revendendo a mercadoria pelo preço resultante.
82. No caso concreto deste contentor, a B teria de pagar à A o valor de €28.903,24 (valor da fatura), mais €3.936,25 (valor cobrado pela R. C pelo transporte das mercadorias). 
83. Com a destruição da totalidade das mercadorias deste contentor, a B deixou de obter um lucro correspondente a €4.925,92 (15%*€32.839,49).
84. Desde novembro de 2010 que o contrato existente entre a A. B e a empresa Bom Gosto não é executado.
85. Apesar das tentativas de contacto das AA. junto das RR., nunca estas mostraram qualquer intenção efetiva de resolver o problema.
86. O facto que determinou a quebra de temperatura que levou à destruição da mercadoria e danos decorrentes ocorreu entre o momento em que o contentor foi entregue à R. C e antes da entrega do contentor no terminal do frio do Porto de Palmeira.
Da contestação da Ré C
87. A R. C é uma sociedade comercial que exerce a atividade de transitária.
88. A R. C subcontratou entidades terceiras para efetuar as referidas operações de transporte, entidades essas que atuam no mercado com capacidade técnica específica para o efeito.
89. A R. C subcontratou o transportador que efetuou a recolha da mercadoria já acondicionada no único volume de carga – um contentor – nas instalações da Portral – Comércio e Industria de Carnes, Lda. na Abrunheira, em Sintra, e o transportou para o porto de Lisboa para embarque em navio da Ré D com destino a Cabo Verde.
90. A R. C subcontratou o transporte marítimo com origem em Lisboa e destino em Cabo Verde à R. D, por intermédio da sua agente em Portugal, a R. E.
91. A R. C não tem, por si, nem capacidade nem condições técnicas de “efetuar” tais operações de transporte.
92. A unidade de carga foi fornecida pela R. E.
93. (eliminado).
94. A unidade de carga (recolhida nas instalações da Portal já com a sua carga acondicionada) foi confiada à R. D para efeitos de transporte em seu navio mas de acordo com as instruções contantes do BL respetivo.
95. Os danos sofridos pelas A.A. tiveram origem em atos e/ou omissões dos transportadores marítimos efetivos e seus agentes da unidade de carga em causa.
96. A primeira A. que ainda não pagou os serviços prestados à R. C.
Da contestação das R.R. D e E
97. A R. D é uma sociedade comercial que se dedica ao Transporte marítimo nacional e internacional de mercadorias e de passageiros.
98. Para o exercício da sua atividade possui diversos contentores para acondicionar as mercadorias dos seus clientes procedendo ao aluguer de navios para efetuar o transporte dos mesmos.
99. A R. E, é uma sociedade comercial que se dedica à atividade de agente de navegação e transitário.
100. Em momento algum existiu uma relação comercial entre as referidas R.R. e as A.A. no âmbito do transporte em causa nos presentes autos, nem tão pouco alguma vez contactaram diretamente.
101. Os produtos alimentares foram carregados no navio TT…, no contentor n.º 0000000000/0.
102. O referido navio saiu de Lisboa, em Portugal, com destino à Ilha do Sal, em Cabo Verde, tendo como porto de escala Las Palmas, em Espanha.
103. Durante a viagem, antes da sua escala no referido porto, a tripulação do navio encarregue de proceder à vigilância e registo das temperaturas dos contentores, verificou que o contentor em questão se encontrava com uma avaria no sistema de refrigeração.
104. De imediato, o comandante do navio reportou esta situação à R. D.
105. A R. D ao ter tomado conhecimento de que estava a ocorrer uma avaria no contentor ao nível da refrigeração, deu ordem para descarregá-lo no porto de escala de Las Palmas, a fim de se proceder à sua imediata reparação, nos termos que constam do documento n.º 3 junto com a contestação da R. D, que se dá por reproduzido.
106. Esta decisão teve por base evitar que a mercadoria ficasse danificada ou pelo menos tentar minorar os prejuízos.
107. A mercadoria seguiu no navio imediatamente seguinte, ou seja, no Terry Três com destino a Cabo Verde.
108. À R. E, enquanto agente, não foi transmitida a informação de que existia uma avaria.
Da contestação da Ré Polar
109. A Ré Polar foi contratada pela R. D, proprietária do navio TS… (navio em que chegou a mercadoria, como se explica adiante), para assegurar o agenciamento da descarga do contentor nº 0000000000/0 (adiante contentor) no Porto de destino. 
110. A intervenção da Polar ao nível do agenciamento do navio TS... ocorreu apenas no dia 13 de Novembro de 2010 na ilha do Sal. 
111. Pelos Serviços que prestou à R. D no âmbito da operação, a R. Polar debitou à R. D o valor de 265.934 escudos Cabo-verdianos, o equivalente a € 2.411,76, nos termos que constam do documento n.º 3 da contestação da R. Polar que aqui se dá por reproduzido. 
112. A R. Polar enviou à R. D a Nota de Débito n.º 36/10, emitida em 6 de dezembro de 2010. 
113. Essa Nota de Débito tem o valor de 1.783.208 Escudos Cabo-verdianos, o equivalente a € 16.172,01.
114. Os montantes que estiveram na origem dessa Nota de Débito eram de diferentes origens, reportando-se, na sua quase totalidade e com exceção do montante remuneratório dos serviços da Ré Polar, a despesas efetuadas pela R. Polar por conta da R. D.
115. A remuneração dos serviços prestados pela R. Polar à R. D é contemplada nos nºs 7 (comissão carga import export), 8 (Agency Free) e 9 (comissão F/S) da Nota de Débito.
116. No dia 19 de outubro de 2010, o Senhor JL…, empregado da R. Nifetrans, agente da R. D em Portugal no quadro desta operação, enviou um e-mail ao Sr. PB..., empregado da Ré F, ao qual anexou o manifesto de carga emitido no Porto em que foram embarcados os contentores.
117. Do manifesto de carga consta o contentor CBSU20010?0, contendo produtos alimentares, para descarga na Ilha do Sal, nos termos que constam do documento n.º 4 da contestação da R. F que aqui se dá por reproduzido.
118. A R. D solicitou à Ré F serviços de agendamento tendo em vista a descarga do contentor no Porto da Palmeira, na Ilha do Sal. 
119. O Porto da Palmeira, na Ilha do Sal, é o Porto de destino do contentor.
120. No dia 21 de outubro de 2010, a Sra. D. PL..., funcionária da R. D, remeteu um e-mail ao Sr. PB..., funcionário da Ré F, ao qual juntou o Booking do navio TT..., nos termos que constam do documento n.º 5 da contestação da R. F que aqui se dá por reproduzido.
121. Desse Booking consta, referente ao contentor: "Este contentor está em Las Palmas - será carregado no TS... V.03.11".
122. No dia 2 de novembro de 2010, a Sra. D. PL..., funcionária da R. Cabomondo, remeteu um e-mail ao Sr. PB..., funcionário da Ré F, ao qual anexou o Booking do navio TS... V.03.l1, nos termos que constam do documento n.º 6 da contestação da R. F que aqui se dá por reproduzido.
123. O contentor de que se trata constava desse Booking referente ao navio TS..., com a seguinte nota ("Remark"): "Ex TT... 02.12".
124. Essa nota confirma o transbordo do contentor, que foi efetuado em Las Palmas, do navio TT... para o navio TS....
125. O "Statment of Fact", subscrito pela Ré F e pelo comandante do navio TS..., descreve os factos relevantes relativamente à chegada do navio e à descarga, nos termos que constam do documento n.º 7 da contestação da R. F que aqui se dá por reproduzido.
126. O navio chegou ao Porto da Palmeira no dia 13 de novembro às 8:30H, a descarga foi iniciada no mesmo dia às 10:15H, e foi concluída no mesmo dia às 20:12H.
127. A intervenção da R. F, na qualidade de agente, ocorreu no quadro da descarga no Porto da Palmeira, dos contentores transportados pelo navio TS..., entre as 10:15H e as 20:12H, do dia 13 de novembro de 2010.
128. Antes da data da chegada do navio TS... ao Porto das Palmeira, a R. F não teve qualquer contacto com o contentor.
129. O disco diagnóstico de temperatura revela uma quebra acentuada da temperatura de conservação do contentor que se prolongou por vários dias.
130. A maior das falhas foi a de permitir que o contentor, durante o transporte, estivesse exposto, durante um período prolongado, a temperaturas de +15° Ce1sius.
131. O contentor esteve desligado durante um período muito prolongado de tempo.
132. Quando o contentor chegou à Ilha do Sal em 13.11.2010, a mercadoria já estava completamente imprópria para consumo.
133. O contentor esteve desligado o tempo suficiente para que 12 toneladas de carne descongelassem.
134. O descongelamento das carnes resultou da subida da temperatura do contentor em vários dias, durante a viagem.
135. Na declaração da Enapor - Empresa Nacional de Administração dos Portos, SA, emitida em 13 de Novembro de 2010, foi dito que: Os serviços de operações da ENAPOR do Porto da Palmeira descarregaram um contentor de frio no dia 13 de Novembro de 2010; Tal contentor foi transportado para a zona do terminal de frio onde foi ligado, mas não deu sinal de luz; Nessa altura foi contactado o agente do navio (a Ré F); Por volta das 20:00 horas do mesmo dia o contentor foi reparado por um técnico da responsabilidade da Ré F, , nos termos que constam do documento n.º 9 da petição inicial que aqui se dá por reproduzido.
136. Pelos serviços de Inspeção Fitossanitária responsáveis foi dito, em carta com data de 15 de novembro de 2010 e remetida à Delegação Aduaneira de Palmeira, que de acordo com o disco de diagnóstico de temperatura o contentor manteve-se desligado durante vários dias, levando o contentor a uma variação de temperaturas entre -18ºC e + 15°C.
137. Pela SAHAL - Saúde e Qualidade, Lda. foi declarado, em Parecer Técnico emitido a 18 de novembro de 2010, que "o registo gráfico de temperaturas do referido contentor indica que o mesmo foi desligado (ver cópia do disco), o que levou a uma grande oscilação de temperatura, verificando-se elevação de temperatura até 15° C (quinze graus positivos)".
138. O contentor foi ligado no dia 12 de outubro de 2010, e trabalhou quase um dia com uma temperatura de 3°C.
139. Depois disso, o contentor trabalhou até ao dia 16 de outubro de 2010 em condições normais.
140. De 16 a 20 de outubro de 2010 a temperatura do contentor foi de 0°C.
141. Do dia 21 ao dia 31 de outubro de 2010 o contentor trabalhou a -18°C.
142. No dia 1 de novembro de 2010 a temperatura do contentor subiu para os -5ºC.
143. Depois disso, o contentor trabalhou a -18°C e até ao dia 5 de novembro de 2010.
144. Entre 5 e 11 de novembro de2010, o contentor trabalhou a +5ºC. 
145. Nos dias 12 e 13 de novembro (data da descarga do contentor) a temperatura do contentor atingiu os +15ºC.
146. A R. F não teve qualquer influência ou intervenção nas variações de temperatura registadas no contentor.
Da contestação da Interveniente G.
147. A G é uma empresa que se dedica ao transporte rodoviário de mercadorias.
148. No âmbito da atividade comercial da “G” e por já se relacionar comercialmente há cerca de 13 anos com a “R. C”, foi a primeira, contratada para efetuar o transporte terrestre de uma mercadoria desde as instalações da “Portral – Comércio e Indústria de Carnes, Lda.”, sita na Abrunheira em Sintra até ao porto de Lisboa sito em Santa Apolónia.
149. Transporte terreste este, a efetuar entre o ponto da recolha da mercadoria (“Portral – Comércio e Indústria de Carnes, Lda.”) e o ponto da entrega da mesma (porto de Lisboa), sendo que entre ambos dista cerca de 30 km.
150. O transporte em questão foi efetuado no dia 13.10.2010 por um dos colaboradores da G o Sr. CGA….
151. O veículo automóvel, propriedade da G, que efetuou o transporte terrestre da mercadoria de produtos alimentares, chegou às instalações da “Portral – Comércio e Indústria de Carnes, Lda.” às 08:45 horas sendo que saiu daquelas instalações às 15:10.
152. A mercadoria chegou ao porto de Lisboa cerca das 15:50 horas, nos termos que constam do documento n.º 2 da contestação da R. G que aqui se dá por reproduzido.
153. O transporte terrestre em questão demorou cerca de 40 minutos, entre Sintra e Lisboa.
154. A G não foi a responsável pelo contentor onde a mercadoria foi transportada até à Ilha do Sal, Cabo Verde nem tão pouco pelo seu acondicionamento.
155. A G deixou de ter qualquer contato com a mercadoria desde que a entregou no porto de Lisboa, no dia 13.10.2010 por volta das 15:50 horas.
Da contestação das Interveniente H
156. No âmbito da atividade seguradora desenvolvida pela Interveniente H, foi celebrado entre esta e a R. C um contrato de seguro do ramo responsabilidade civil-profissional, titulado pela apólice 000000000000000, nos termos que constam do documento 3 junto com a contestação da R. C que aqui se dá por reproduzido.
157. Ao abrigo do mencionado contrato de seguro, encontra-se garantida a atividade de transitária desenvolvida pela R. C.
158. Para além das condições previstas na apólice de seguro supra mencionada, o presente contrato rege-se ainda pelas condições gerais e pela condição especial 022.
159. O limite máximo de indemnização previsto, por sinistro e anuidade, pela presente apólice de seguro é de €100.000,00.
160. O seguro teve início em 01.10.2007 e celebra-se por um ano e seguintes vencendo-se no dia 01.10 de cada ano.
161. A cargo do segurado ficará, em caso de sinistro, o pagamento do valor da franquia nos termos e nos montantes contratados na apólice que, no presente caso, corresponderá a 10% do valor da indemnização, num mínimo de €500,00 e máximo de €5.000,00.
162. Na anuidade correspondente ao período decorrente de 01.10.2010 a 30.09.2011, a R. C participou à Interveniente H dois sinistros em relação aos quais pagou indemnização: Sinistro ocorrido em 30.12.2010, indemnizado pela ora interveniente à 1ª ré pela quantia de € 883,50; e sinistro ocorrido em 15.09.2011, indemnizado pela ora interveniente à 1ª ré pela quantia de € 99.116,50; nos termos que constam dos documentos n.ºs 3 e 4 da contestação da H que aqui se dão por reproduzidos.
163. O sinistro sub judice não foi participado à Interveniente H nem na data em que o mesmo terá ocorrido.
164. A R. C participou mais sinistros à Interveniente H ocorridos durante o período de 01.10.2010 a 30.09.2011, que não foram indemnizados em virtude do capital contratado pela apólice já se encontrar esgotado, nos termos que constam do documento 5 junto com a contestação desta interveniente que se dá por reproduzido.
*
O Tribunal julgou por não provados os seguintes factos:
1- O navio TT... é propriedade da R. D.
2- O navio TT... saiu de Portugal para Cabo Verde com um atraso considerável face à data prevista.
3- O contentor foi indevidamente descarregado noutro porto por intervenção da R. F, (doravante, F Lda.), empresa detida pela R. D.
4- A periodicidade mensal prevista no acordo junto a fls. 131/135 vinha sendo mantida, tendo, desde a celebração do contrato, sido já sido enviados dois contentores.
5- As A.A. não podem suportar qualquer novo envio de mercadoria enquanto não forem ressarcidas dos prejuízos causados pela conduta dos R.R..
6- As A.A. só conseguiam manter o fluxo de mercadoria entre si desde que os contentores anteriores estivessem rentabilizados, pois seria daí que viria o capital necessário para reinvestir.
7- Foi o que aconteceu com os dois contentores que tinham sido enviados anteriormente.
8- Estes factos levaram a que a B, desde novembro de 2010, venha perdendo a possibilidade de auferir, por mês, um lucro igual ou superior a 15% do preço da mercadoria que pode ser transportada num contentor mais custos de importação.
 9- Lucro esse que não é inferior ao que poderia ter sido obtido com este contentor – € 4.925,92.
10- Desde Novembro de 2010, a B já perdeu a oportunidade de auferir pelo menos €39.407,36 de lucros (4.925,92€*8 meses).
11- À R. C apenas foi solicitado o planeamento, controlo e coordenação do transporte por via marítima de determinada mercadoria acondicionada em um único volume de carga – vulgo contentor –, com origem em Portugal e destino na Ilha do Sal em Cabo Verde.
12- Não foi a R. C que efetuou o acondicionamento da mercadoria na unidade de carga, não sabendo se a descrição da mercadoria vertida na petição inicial confere com a efetivamente carregada.
13- A atuação da R C é sempre limitada apenas ao planeamento e coordenação de serviços de transporte, não sendo ela quem efetua o transporte efetivo da mercadoria, não tendo assim possibilidade de, em todos os percursos de trânsito das mercadorias, dirigir tais operações de transporte, como, por exemplo a sua correta estiva ou o seu correto acondicionamento e manutenção no meio de transporte utilizado.
14- Tal direção durante o momento de transporte é sempre efetuada pelo transportador efetivo, entidade que gere e tem controlo direto sobre os meios e modos de transporte utilizados.
15- No caso em apreço, quem sempre teve controlo direto sobre a unidade de carga em causa, o seu modo de estiva e acondicionamento no navio foi o transportador efetivo daquela, subcontratado pela Ré C e aqui também R. D (agenciada pela Ré E).
 16- R. D foi a única entidade a ter o controlo efetivo do transporte.
17- O contentor n.º 0000000000/0 encontrava-se em perfeitas condições, nomeadamente no que concerne ao sistema de refrigeração.
18- Quando a mercadoria foi colocada no contentor, este estava em perfeitas condições, não evidenciando qualquer avaria ou risco de tal vir acontecer, o que foi verificado através da respetiva inspeção.
19- A interveniente apenas teve conhecimento dos factos que se discutem nos autos, em 02.08.2012.
Tudo visto, cumpre apreciar.
IV- FUNDAMENTAÇÃO DE DIREITO
Estabelecidas as questões que fazem parte do objeto do presente recurso de apelação cumprirá sobre elas tomar conhecimento pela sua ordem de precedência lógica, começando pela alegada nulidade da sentença recorrida.
1. Da nulidade da sentença recorrida.
A Recorrente veio sustentar a nulidade insanável da sentença recorrida, por ter feito uma incorreta apreciação crítica dos factos em discussão nos autos, em particular quanto aos pontos 87 e 93 dos factos provados, porquanto toda a atuação da R. dada por provada foi apenas enquanto “shipper”, ou seja como “expedidor”, conforme decorre do documento n.º 8 junto com a petição inicial, nunca tendo estado sob a sua alçada a gestão do contentor com a mercadoria das A.A.. Nessa medida, defende que esteve mal o Tribunal a quo ao qualificar o contrato dos autos como contrato de transporte, verificando-se ainda incoerências na decisão em apreço, como sejam a de ter sido dado por provado o que consta do ponto 93 da matéria de facto provada pela sentença recorrida e, simultaneamente, ser dada por não provada exatamente a mesma factualidade, o que conduz à incerteza sobre o decidido e constitui nulidade nos termos do Art. 615.º n.º 1 al. c) do C.P.C., por ambiguidade e oposição entre a decisão e os seus fundamentos.
As Recorridas vieram realçar que efetivamente a matéria do ponto 93 dos factos provados está em contradição com o facto não 15, mas sustentaram que se trata de mero lapso de escrita suscetível de mera correção ao abrigo do Art. 614.º do C.P.C.. Quanto ao mais pugnaram pela coerência e acerto interno da decisão recorrida.
Como vimos o Tribunal a quo, ao abrigo do Art. 617.º n.º 1 e n.º 5 do C.P.C., veio efetivamente a reconhecer o lapso, eliminando dos factos provados na sentença o seu ponto 93, onde se tinha dado por provado que: «No caso em apreço, quem sempre teve controlo direto sobre a unidade de carga em causa, o seu modo de estiva e acondicionamento no navio foi o transportador efetivo daquela, subcontratado pela R. C e aqui também R. D (agenciada pela R. E)». O que estava evidentemente em oposição com o ponto 15 dos factos não provados, que, como podemos constatar, tem precisamente a mesma redação.
Ao proceder desse modo, o Tribunal Recorrido supriu a nulidade verificada, devendo considerar-se esse despacho como complemento e parte integrante da sentença recorrida, ficando o recurso interposto a ter como objeto essa nova decisão (Art. 617.º n.º 2 do C.P.C.).
Ora, de acordo com a nova decisão, já não existe contradição entre os factos provados e não provados, tendo ficado perfeitamente claro que a convicção do Tribunal a quo foi no sentido de julgar por não provada a matéria que agora consta apenas do ponto 15 dos factos não provados.
Em todo o caso, a Recorrente sustentou igualmente a nulidade da sentença recorrida num alegado erro de julgamento dos factos, que no seu entender não poderiam conduzir à solução jurídica pugnada, nomeadamente no que se refere à qualificação do contrato que consigo foi celebrado.
Com o devido respeito, esse concreto alegado vício, não é enquadrável na previsão do Art. 615.º n.º 1 al. c) do C.P.C., tal como sustentado nas alegações de recurso, pois estamos essencialmente perante uma questão de mérito, que não é matéria de nulidade da sentença.
Como ensinava Alberto dos Reis (“Código de Processo Civil Anotado”, Vol. V, 1984, pág. 113) há que distinguir vícios respeitantes ao conteúdo da sentença, encarada como julgamento (vícios substanciais) e vícios respeitantes à sua forma, encarada como exercício de atividade (vícios formais). Citando mais concretamente uma passagem sobre este assunto, escreveu o mesmo Autor: «Temos, assim dois tipos de sentença viciada: a sentença injusta e a sentença nula. A primeira enferma de erro de julgamento; a segunda enferma de erro de atividade (erro de construção ou formação)» (Alberto dos Reis in Ob. Loc. Cit., pág. 122). Só este último tipo de situações integra a previsão do Art. 615.º n.º 1 do C.P.C..
Dito isto, nos termos do Art. 615.º n.º 1 al. c) do C.P.C., a sentença será nula quando os fundamentos estejam em oposição com a decisão ou ocorra alguma ambiguidade ou obscuridade que torne a decisão ininteligível.
Neste contexto, não pode haver contradição lógica entre os fundamentos e a decisão, no sentido de que, na fundamentação da sentença, se o julgador segue determinada linha de raciocínio que aponta para determinada conclusão, e depois, em vez de a tirar, decide em sentido divergente, então verifica-se essa oposição (cfr. Acórdãos do S.T.J. de 13/2/1997 – Relator: Nascimento Costa, in BMJ n.º 464, pág. 524; de 22/6/1999 – Relator: Ferreira Ramos, in C.J. Tomo II, pág. 160; e do Tribunal da Relação de Coimbra de 11/1/1994 – Relator: Cardoso Albuquerque, in BMJ n.º 433, pág. 633).
Realidade distinta desta é o erro na subsunção dos factos à norma jurídica ou erro na interpretação desta, ou seja, quando – embora mal – o juiz entenda que dos factos apurados resulta determinada consequência jurídica e este seu entendimento é expresso na fundamentação ou dela decorre. Neste último caso, o que existe é erro de julgamento e não oposição nos termos aludidos (cfr. Lebre de Freitas in “A Ação Declarativa Comum”, 2000, pág. 298). Por outras palavras, se a decisão está certa, ou não, é questão de mérito e não de nulidade da mesma (cfr. Acórdão do S.T.J. de 8/3/2001 – Relator: Ferreira Ramos, acessível em www.dgsi.jstj/pt).
Como é evidente, a não concordância da parte com a subsunção dos factos às normas jurídicas e/ou com a decisão sobre a matéria de facto de modo algum configuram causa de nulidade da sentença (cfr. Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa de 17/5/2012 – Relator: Gilberto Jorge, Proc. n.º 91/09, disponível em www.dgsi.pt).
No caso dos autos, o que a Apelante põe em causa é a interpretação e aplicação do direito aos factos provados, numa análise crítica que faz sobre a possibilidade de com a matéria de facto provada e com a prova documental (e testemunhal) apreciada, poder qualificar-se o contrato dos autos como contrato de transporte. Ora, a ser incorreta tal interpretação ou aplicação do direito aos factos, ocorrerá um erro de julgamento e não uma contradição entre os fundamentos e a decisão. Pelo que, a nulidade invocada não ocorre no caso em apreço, como claramente ressalta do explanado, improcedendo as conclusões que sustentam o contrário.
2. Da impugnação da matéria de facto e sua rejeição.
A Recorrente pretendeu por em causa o julgamento da matéria de facto, não só com base na contradição interna entre os factos provados e não provados, nomeadamente no que se refere aos pontos 87 e 93, por contraposição ao facto não provado constante do ponto 15, mas também quanto ao ponto 14, pretendendo ainda ver aditado um ponto “87.1” com redação que sugeriu.
As Recorridas, para além de sustentarem que a oposição entre o ponto 93 dos factos provados e o ponto 15 dos factos não provados não passava de lapso de escrita, suscetível de correção por mero despacho, vieram logo suscitar a questão da rejeição liminar o recurso na parte em que se impugna a matéria de facto, por não terem sido cumpridos os ónus legais estabelecidos no Art. 640.º n.º 1 e n.º 2 do C.P.C., principalmente porque a Recorrente não identificou os concretos meios de prova que impunham decisão diversa, limitando-se a sugerir alterações aos factos provados, sem indicar quais os testemunhos donde resultam a alterações pretendidas e quais os segmentos desses depoimentos que estariam em causa, nem indicando os documentos ou passagens dos documentos em que se pudessem sustentar as alterações pretendidas.
A Recorrente, convidada para esse efeito, respondeu a esta pretensão, defendendo que nas alegações de recurso havia indicado os factos que considera incorretamente julgados, nos artigos 8, 21, 38 a 43, e quais os meios probatórios que justificavam a sua pretensão, nos artigos 4, 5, 7, 29, 58 e 59.
Apreciando, temos de partir do disposto no Art. 662º n.º 1 do C.P.C., que estabelece que a Relação deve alterar a decisão proferida sobre a matéria de facto, se os factos tidos por assentes, a prova produzida ou um documento superveniente, impuserem decisão diversa. No entanto, nos termos do Art. 640º n.º 1 do C.P.C., quando seja impugnada a matéria de facto deve o recorrente especificar, sob pena de rejeição, os concretos factos que considera incorretamente julgados; os concretos meios probatórios constantes do processo ou de registo ou gravação nele realizada, que imponham decisão sobre os pontos da matéria de facto impugnados diversa da recorrida; e a decisão que, no seu entender, deve ser proferida sobre as questões de facto impugnadas. Nos termos do n.º 2 do mesmo preceito concretiza-se que, quanto aos meios probatórios invocados incumbe ao recorrente, sob pena de imediata rejeição, indicar com exatidão as passagens da gravação em que funda o recurso. Para o efeito poderá transcrever os excertos relevantes. Sendo que, ao Recorrido, por contraposição, caberá o ónus de designar os meios de prova que infirmem essas conclusões do recorrente, indicar as passagens da gravação em que se funda a sua defesa, podendo também transcrever os excertos que considere importantes, isto sem prejuízo dos poderes de investigação oficiosa do tribunal.
A lei impõe assim ao apelante específicos ónus de impugnação da decisão de facto, sendo o mais importante dos quais o de fundamentar a discordância quanto à decisão de facto proferida, o qual implica a análise crítica da valoração da prova feita em primeira instância, tendo como ponto de partida a totalidade da prova produzida em primeira instância.
De acordo com o Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 28/4/2016 (Relator: Abrantes Geraldes - disponível em www.dgsi.pt) deve falar-se aqui de um ónus multifacetado cujo cumprimento não é fácil, mas que tem diversas justificações, entre as quais:
«- A Relação é um Tribunal de 2.ª instância, a quem incumbe a reapreciação da decisão da matéria de facto proferida pela instância hierarquicamente inferior;
«- A Relação não procede a um segundo julgamento da matéria de facto, reapreciando apenas os pontos de facto enunciados pelos interessados;
«- O sistema não admite recurso genéricos contra a decisão da matéria de facto, cumprindo ao recorrente designar os pontos de facto que merecem uma resposta diversa e fazer a apreciação crítica dos meios de prova que determinam resultado diverso;
«- Importa que seja feito do sistema uso sério, de forma a evitar impugnações injustificadas e, com isso, os efeitos dilatórios que são potenciados pelo uso abusivo de instrumentos processuais» (negrito e sublinhados nossos).
No mesmo sentido também o sumário do Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 24/01/2018 (Revista n.º 1869/12.1TYLSB.L1.S1 - 6.ª Secção – Relator: Fonseca Ramos – disponível em “sumários de acórdãos” no sítio: www.stj.pt): «III - A exigência legal imposta ao recorrente de especificar os pontos de facto que pretende impugnar constitui corolário do princípio do dispositivo no que respeita à identificação e delimitação do objeto do recurso, pelo que não pode deixar de ser avaliada sob um critério de rigor, mas sem se reconduzir a um rigorismo formalista que desconsidere os aspetos substanciais constantes das alegações, que não se coaduna com o espírito do sistema radicado na necessidade de preservar o uso sério do regime do recurso da matéria de facto por forma a impedir a utilização abusiva de instrumentos processuais com efeitos dilatórios.»
Já no sumário do acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 20/11/2018 (Revista n.º 67/09.6TBVPA.P1.S1 - 7.ª Secção – Relator: Salazar Casanova – disponível no mesmo sítio: www.stj.pt) é dito que: «II- A inobservância desse ónus leva a que o tribunal não possa deitar a adivinhar, calcular ou supor, a partir de uma impugnação insuficiente, o sentido a impugnação que o recorrente teria porventura em vista. Assim procedendo, o tribunal infringe o Art. 685.º-B do C.P.C. (Art. 640.º do NCPC (2013)), que dita um comando legal – ónus de impugnação –, que obriga o juiz ao seu escrupuloso respeito, não havendo lugar, nestes casos, à possibilidade de uma intervenção oficiosa subsidiária do tribunal».
Do mesmo relator, no acórdão do S.T.J. de19/5/2015 (Revista n.º 267287/10.3YIPRT.L1.S1 – 6.ª Secção – disponível no mesmo sítio), resulta que se deve entender que, face ao estatuído nos artigos 635.º n.º 4, 637.º n.º 2, parte inicial e 639.º do NCPC (2013), devem necessariamente constar das conclusões «a questão concreta consistente nessa impugnação da matéria de facto determinada».
No Acórdão do S.T.J. de 2/2/2016 (Revista n.º 2000/12.9TVLSB.L1.S1 - 1.ª Secção – Relator: Mário Mendes – sempre no mesmo sítio da dgsi) especifica-se que: «II- A delimitação concreta dos pontos de facto considerados incorretamente julgados e demais ónus impostos pelo Art. 640.º do CPC, há-de ser efetuada no corpo da alegação. III- Nas conclusões bastará fazer referência muito sintética aos pontos de facto impugnados, e às razões porque se pretende a sua alteração, sem necessidade de transcrever ou repetir o que a respeito se escreveu no corpo da alegação sobre a mesma matéria».
Mas o Supremo também já decidiu que os Recorrentes que pedem na apelação a reapreciação da matéria de facto, mas não indicam os meios de prova que impõem decisão diversa, não cumprem o ónus previsto no Art. 640.º n.º 1 do C.P.C. (vide: Ac. S.T.J. de 8/10/2019 – Proc. n.º 3138/10.2TJVNF.G1.S2 – Relatora: Maria João Vaz Tomé). Tal como o não cumprem se também não indicarem qual a decisão que no seu entender deveria ser proferida (Idem: Ac. do S.T.J. de 6/11/2019 – Proc. n.º 1092/08.0TTYBRG.G1.S1 – Relator: Chambel Mourisco), nem fizerem referência aos concretos pontos de facto que constam da sentença que pretendam ver alterados, eliminados ou acrescentados à factualidade provada, devendo por isso ser rejeitados (Vide: Ac. S.T.J. de 13/11/2019 – Proc. n.º 4946/05.1TTLSB-C.L1.S1 – Relator: António Leones Dantes). Não sendo suficiente que nas conclusões se limite o recorrente a «consignar a globalidade da matéria de facto que entende provada, mas sem indicar, por referência aos concretos pontos de facto que constam da sentença e que impugna, os que pretende que sejam alterados, eliminados ou acrescentados» (Ac. S.T.J. de 16/5/2018 – Proc. n.º 2833/16.7T8VFX.L1.S1 – Relator: Ribeiro Cardoso  – todos estes disponíveis em www.dgsi.pt).
A impugnação genérica e a manifestação do propósito de se fazer uma repetição completa do julgamento, sem especificação dos concretos segmentos de facto impugnados ou dos meios de prova que justificam a impugnação, é completamente contrária ao nosso sistema legal de recurso sobre a matéria de facto.
Acresce que o não cumprimento desses ónus de impugnação dos factos é insuscetível de despacho de aperfeiçoamento, por ser o recurso a este expediente processual restrito à matéria de direito e nunca à matéria de facto (Vide: Ac. S.T.J. de 13/9/2016 - Revista n.º 166472/13.7YIPRT.P1.S1 – Relator: Hélder Roque – disponível em sumário do S.T.J.; e Ac. S.T.J. de 18/6/2019 – Proc. n.º 152/18.3T87GRD.C1.S1 – Relator: José Rainho – disponível em www.dgsi.pt).
Conforme refere Abrantes Geraldes (in “Recursos no Novo Código de Processo Civil”, 4.ª Ed., pág. 153) o legislador recusou soluções que: «pudessem conduzir-nos a uma repetição de julgamentos, tal como foi rejeitada a admissibilidade de recursos genéricos contra a errada decisão da matéria de facto», o legislador optou por: «restringir a possibilidade de revisão de concretas questões de facto controvertidas relativamente às quais sejam manifestadas e concretizadas divergências por parte do recorrente» (idem, no mesmo sentido: Ac. do T.R.L. de 13/11/2001 in C.J. – Tomo V, pág. 84; e Ac. do T.R.P. de 19/9/2000 in C.J. – Tomo V, pág. 186).
Quanto à inserção sistemática do cumprimento dos ónus de impugnação estabelecidos no Art. 640.º n.º 2 do C.P.C., o Supremo Tribunal de Justiça já decidiu que a rejeição da apelação respeitante à impugnação da matéria de facto pode radicar na falta de especificação, nas conclusões do recurso, dos concretos pontos de facto que o recorrente considera incorretamente julgados, pois os demais ónus relativos à falta de especificação dos meios de prova e sentido da decisão a proferir, apenas se revelam indispensáveis na “motivação” ou “corpo alegatório” (Vide: Ac. S.T.J. de 19/6/2019 – Proc. n.º 7439/16.8T8STB.E1.S1 – Relator: Hélder Almeida – disponível em www.dgsi.pt).
No entanto, no acórdão do S.T.J. de 31/10/2018 (Proc. n.º 2820/15.2T8LSB.L1.S1 – Relator: Chambel Mourisco) defendeu-se que da conjugação do Art. 640.º n.º 1 al.s a) e c) e Art. 639.º n.º 1 do C.P.C. resulta que para impugnar a matéria de facto devem constar das conclusões os concretos pontos de facto que se pretendem impugnar e a decisão que no entender do recorrente deverá ser proferida (no mesmo sentido: Ac.s STJ de 18/2/2016 – Proc. n.º 558/12.1TTCBR.C1.S1 e de 13/11/2019 – Proc. n.º 4946/05.1TTLSB-C.L1.S1 – em ambos os caso o Relator foi o Senhor Conselheiro António Leones Dantas).
Seja como for, também está firmemente assente no Supremo Tribunal de Justiça o entendimento de que não se deverá ser excessivamente formalista na apreciação do cumprimento dos ónus de impugnação estabelecidos na lei processual.
Assim, no acórdão do S.T.J. de 11/9/2019 (Proc. n.º 42/18.0T8SRQ.L1.S1 – Relator: Ribeiro Cardoso) defende-se que é nas conclusões que deverá o recorrente indicar os concretos pontos de facto cuja alteração pretende e o sentido e termos dessa alteração, mas «o cumprimento dos referidos ónus não pode redundar na adoção de entendimentos formalistas do processo por parte do Tribunal da Relação, devendo aquela ser moderada por princípios de proporcionalidade e razoabilidade». Assim, «tendo a recorrente procedido, no corpo das alegações, à indicação discriminada dos factos que considerava incorretamente julgados e consignado a decisão que entendia dever ser proferida relativamente a cada um deles, decisão que reproduziu nas conclusões, mas sem repetir aí aquela indicação discriminada, limitando-se a referir os pontos da fundamentação em que procedera àquela especificação, cumpriu suficientemente os ónus impostos pelo Art. 640.º n.º 1 al.s a) e c) do Código de Processo Civil».
Na mesma senda, o acórdão do Supremo de 12/9/2019 (Proc. n.º 1238/14.9TVLSB.L1.S2 – Relatora: Rosa Ribeiro Coelho), julgou que cumpre suficientemente esses ónus de impugnação quando a recorrente elabore as suas alegações em termos tais que não deixem dúvidas sobre aquilo que pretende ver sindicado, assim definindo o objeto do recurso nessa parte, através da enunciação suficientemente clara da questão que submete à reapreciação do recurso.
De igual modo, no Acórdão do STJ de 11/7/2019 (proc. n.º 334/16.2T8CMN-G1.S2 – Relator: Ricardo Costa) se defendeu que não poderá ser extraído o efeito gravoso da rejeição ou não conhecimento da impugnação da matéria de facto «se o julgador compreenda o tema recursivo para a apreciação do mérito do recurso, tendo em conta e desde que o mesmo seja percetível e/ou dedutível das Conclusões apresentadas, ainda que com prejuízo para o intuito de a parte recorrente inverter a decisão recorrida». Embora se deva acrescentar que este acórdão expressou o entendimento de que deveria ser rejeitado o recurso quando, ainda que se identificassem os concretos pontos de facto julgados incorretamente, se manifestasse apenas discordância quanto à valoração de um certo meio probatório, sem oferecer com exatidão meio de prova alternativo para se obter o resultado pretendido e sem se especificar a decisão diversa sobre a questão de facto impugnada.
O Supremo Tribunal de Justiça também tem defendido de forma recorrente que os Art.s 640.º e 662.º do C.P.C. impõem ónus de impugnação diversos que importa distinguir. Por um lado, haveria “ónus primários”, que são os estabelecidos nas alíneas do n.º 1 do Art. 640.º do C.P.C., relativos à exigência de concretização dos pontos de facto incorretamente julgados, à especificação dos concretos meios probatórios convocados e à indicação da decisão a proferir. Por outro, os “ónus secundários”, estabelecidos no n.º 2 do Art. 640.º do C.P.C., que visariam apenas facilitar o acesso aos meios de prova gravados relevantes para a apreciação da impugnação deduzida. Por regra, só a violação dos primeiros implicaria a rejeição automática do recurso. Já a violação dos “ónus secundários” só poderia levar a rejeição se a omissão ou inexatidão das alegações for de tal modo grave que dificultasse fortemente o exercício do contraditório e/ou o exame da prova pelo tribunal de recurso (vide: Ac. STJ de 3/10/2019 – Proc. n.º 77/06.5TBGVA.C2.S2 – Relatora: Maria Rosa Tching e Ac.s STJ de 29/10/2015 e de 2/6/2016 – Proc.s n.º 233/09.4TBVNBC.G1.S1 e n.º 725/12.8TBCHV.G1.S1 – ambos relatados pelo Senhor Conselheiro Lopes do Rego)
Os mesmos argumentos foram utilizados no acórdão do S.T.J. de 17/3/2016 (Proc. n.º 124/12.1TBMTJ.L1.S1 – Relator: Tomé Gomes) quando nele se afirma que a impugnação da matéria de facto pelo Tribunal da Relação não visa propriamente um novo julgamento da causa, mas apenas a reapreciação do julgamento proferido pelo Tribunal a quo com vista a corrigir eventuais erros da decisão recorrida, ficando a apreciação do erro de julgamento «circunscrita aos pontos impugnados». É esse o sentido da imposição ao recorrente do ónus de especificar os concretos pontos de facto que considera incorretamente julgados e a decisão que, no seu entender, deve ser proferida sobre tais pontos, sob pena de rejeição do recurso na parte afetada, nos termos do Art. 640.º n.º 1 al.s a) e c) do C.P.C.. Por isso, nesse acórdão também se decidiu que não observa esse ónus quando o impugnante se limita a convocar e analisar determinados meios de prova, nomeadamente depoimentos de parte e de testemunhas, sem especificar, de forma inteligível quais os pontos concretos da decisão de facto que impugna, nem que decisão sobre eles deve ser proferida, concluindo-se que «não compete ao tribunal de recurso inferir, sem mais, dos depoimentos assim convocados, quais os pontos de facto que o recorrente pretende impugnar, sob pena de violação dos princípios do dispositivo, do contraditório e da imparcialidade do julgador, como corolários que são do princípio latitudinário do processo equitativo».
Ora, no caso concreto dos autos, a Recorrente, na resposta à questão da rejeição parcial do recurso em matéria de impugnação da matéria de facto, afirma que identificou os factos que impugna nos artigos 8.º, 21.º e 38.º a 43.º das suas alegações de recurso. Mas, na verdade, apenas no artigo 8.º identifica como incorretamente julgados os pontos 87 e 93 da matéria de facto provada na sentença recorrida. O artigo 21.º reporta-se a prova documental (doc. n.º 8 da petição) e a conclusões de natureza meramente jurídica sobre a natureza do contrato que celebrou, o mesmo se devendo dizer relativamente aos artigos 38.º a 43.º das alegações de recurso. Quanto aos meios probatórios, diz a Recorrente, que especificou os mesmos nos artigos 4.º, 5.º, 29.º, 58.º e 59.º das suas alegações de recurso. Mas os artigos 4.º e 5.º limitam-se a referir que a decisão recorrida assenta apenas nos documentos n.º 7 e n.º 8 da petição inicial, queixando-se que foi ignorada a demais documentação junta, sem especificar qual. O artigo 29.º das alegações só refere que está junto aos autos o documento n.º 8 da petição inicial, e os artigos 58.º e 59.º reportam-se ao documento n.º 2 da petição inicial, que se reporta apenas à guia de transporte terrestre emitida pela Interveniente G. No entanto, não é feita a mínima apreciação crítica da prova por referência aos concretos factos que a Recorrente pretende impugnar, os quais não são, como é evidente, nem o dado por provado no ponto 87, nem o dado por provado no ponto 93. Isto, porque, o primeiro (87) – relativo à atividade comercial prosseguida pela R. – é favorável à Recorrente, sendo claro que esta não se opõe à manutenção do mesmo na matéria de facto provada. Já o segundo (93) – relativo à identidade de quem assumiu efetivamente o controlo do transporte –, apesar de ser favorável á Recorrente, foi dado por não escrito pelo despacho de fls 866 a verso, que supriu a nulidade relativa à contradição entre esse ponto dos factos provados e o ponto 15 dos factos não provados, com a mesma redação.
Decorre do exposto que as justificações apresentadas pela Recorrente, em resposta à questão da rejeição do recurso, suscitada pelas Recorridas nas contra-alegações, não têm cabimento algum.
Analisadas as alegações de recurso objetivamente, a matéria da impugnação da matéria de facto ficou resumidamente exposta apenas nos artigos 100.º a 104.º.
Ora, o que aí se pode ler é o seguinte:
«100) Por outro lado, resultando dos autos, e em particular da prova testemunhal e documental junta que a intervenção da Recorrente nestes autos o foi apenas e só como transitária (veja-se, nesse sentido, por exemplo, documentos emitidos pelas Recorridas junto à sua petição inicial como Documentos 21, 22 e 29),
«101) Pelo que deverá sempre ser proferida decisão que altere a matéria de facto dado como assente no ponto 14 da douta fundamentação de facto da douta decisão ora em apreço
«102) Ficando ali como assente que “A primeira A. encarregou A Ré C de efetuar todas as operações de planeamento, coordenação e controle necessárias ao transporte de produtos alimentares congelados acima referidos de Portugal a Cabo Verde”;
«103) Por outro lado, deverá ser aditado aos factos provados, como ponto 87.1 o
«104) “À Ré C apenas foi solicitado o planeamento, controlo e coordenação do transporte por via marítima de determinada mercadoria acondicionada em um único volume de carga – vulgo contentor – com origem em Portugal e destino na Ilha do Sal em Cabo Verde.”».
Resta dizer que as conclusões de recurso que se reportam especificamente à matéria da impugnação da decisão da matéria de facto também incidem unicamente sobre estes 2 pontos: a alteração da redação do ponto 14 (cfr. conclusões R. e S.) e o aditamento de um novo ponto “87.1” (cfr. conclusões T. e U.). Portanto, a impugnação da matéria de facto apresentada em via de recurso de apelação só pode ter por objeto o ponto 14 e a alegada omissão da matéria pretendida aditar pela Recorrente com a redação mencionada na conclusão U.
Sucede que, a Recorrente pretende ver alterada e aditada esta matéria com base na “prova testemunhal e documental junta” (sic – artigo 100.º das alegações). Não se identificam as testemunhas, nem os concretos depoimentos donde pudesse resultar julgamento diverso e, apesar de se indicarem alguns documentos pelo seu número, não se relevam deles as concretas passagens que levariam a concluir pela procedência da impugnação, sendo certo que, de todo o modo, os mesmos, visto per se, também não fazem prova suficiente.
Como é evidente, estamos no âmbito da “impugnação genérica”, pretendendo-se que o Tribunal da Relação opere um segundo julgamento, apreciando toda a prova, com o alegado propósito de obter decisão que seja mais adequada à visão proposta pela Recorrente, como se não tivesse existido qualquer decisão sobre a matéria pela primeira instância.
Nestes termos, só poderemos concluir que a Recorrente não cumpriu os ónus de impugnação estabelecidos no Art. 640.º n.º 1 al. b) e n.º 2 al. a) do C.P.C., devendo ser rejeitado o recurso nesta parte, procedendo as conclusões das contra-alegações das Recorridas apresentadas neste sentido. Em consequência, não poderemos apreciar as conclusões da Recorrente nos termos das quais se pretendia impugnar a decisão da matéria de facto.
3. Da natureza do contrato celebrado com a R..
Passando agora ao conhecimento do mérito da causa, cumpre relembrar que as A.A. vieram intentar a presente ação visando a condenação das R.R. – embora para a presente apelação releve particularmente o pedido de condenação da 1.ª R., C – no ressarcimento de todos os danos causados pelo facto de determinados produtos alimentares terem ficado irremediavelmente estragados devido à circunstância de se ter avariado o sistema de frio, no contentor onde seguiam, durante a execução do seu transporte por via marítima.
Logo na petição inicial, as A.A. sustentaram que a 1.ª A., A, encarregou a R. C para efetuar todas as operações necessárias ao transporte desses produtos alimentares congelados de Portugal até à Ilha do Sal, mediante o pagamento do valor de €3.936,25, ficando essa R. encarregue desses produtos desde o momento em que os mesmos lhe fossem confiados, em Portugal, até à sua entrega à 2.ª A., B, no Porto de Palmeira, na Ilha do Sal. Sustentaram assim que foi estabelecido um contrato de transporte entre a 1.ª A. e a R..
A R. C, por seu turno, sustentou na sua contestação que havia sido apenas celebrado um contrato de prestação de serviços de transitário, o que teria as suas consequências jurídicas relativamente à possibilidade da mesma poder ser responsável pelos prejuízos ocorridos durante a execução do transporte, que teria sido realizado por empresas terceiras.
A sentença recorrida veio a sustentar que essa R., no quadro da relação comercial estabelecida com a A., assumiu obrigações típicas do contrato de transporte e, por isso, condenou a mesma a indemnizar as A.A. pelos prejuízos que julgou por provados.
A R., ora Recorrente, vem agora, por via de recurso, sustentar de novo a sua tese inicial, constante da defesa por si apresentada na contestação, no sentido de que apenas celebrou um contrato de prestação de serviços de transitário, ou um “contrato de expedidor”. Já as Recorridas defendem o posicionamento que resulta da sentença recorrida.
Importa, assim, antes de mais, fazer a devida qualificação jurídica do contrato celebrado inicialmente entre a 1.ª A. e a R..
O contrato de transporte é um contrato comercial típico, regulado nos Art.s 366º e ss. do Cód. Comercial, o qual se traduz no acordo celebrado entre uma entidade, que pretende fazer conduzir determinada coisa ou pessoa de um lugar para outro, e outra, que, por determinado preço, se encarrega dessa condução (Vide: Cunha Gonçalves – “Comentário ao Código Comercial Português”, 2º. pág. 394 e Adriano Anthero – “Comentário ao Código Comercial” Vol. II, pág. 39).
Na prática neste contrato intervêm 3 entidades: o incumbente do transporte (expedidor); o que se encarrega dele (transportador); e a pessoa a que as coisas se destinam (destinatário).  Sendo certo que o transportador pode utilizar outros intervenientes para cumprir essa obrigação de transporte, quer sejam seus empregados, quer sejam outras empresas contratadas com esse mesmo fim (Art. 367º do Cód. Comercial).
O transportador, desde que recebe as coisas objeto do transporte até que as entrega, é responsável pelas perdas e deteriorações que as mesmas venham a sofrer, salvo caso verificação de caso fortuito, de força maior, vício do objeto, culpa do expedidor ou do destinatário (Art. 383º do Cód. Comercial).
Temos de referir que os Art.s 366.º a 393.º do Código Comercial foram todos revogados pelo Art. 26.º do Dec.Lei n.º 329/2003 de 4/10, mas apenas no que estritamente se refere ao contrato de transporte rodoviário de mercadorias, pelo que continuam a ter aplicação, por exemplo, ao transporte marítimo.
Posto isto, do regime jurídico, assim sucintamente resumido, decorre que o contrato de transporte de mercadorias caracteriza-se fundamentalmente pela obrigação de proporcionar um determinado resultado, que consiste, para além da deslocação dos bens do ponto de origem para um ponto de destino, na obrigação que impende sobre o transportador de entregar esse bens, íntegros, ao seu destinatário (Cfr. Menezes Cordeiro in “Introdução ao Direito dos Transportes” – Centro de Estudos de Direito Marítimo e dos Transportes I Jornadas de Lisboa de Direito Marítimo – “O contrato de transporte marítimo de mercadorias”, Coimbra, Almedina, 2008, pág. 24).
Neste sentido também o acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa de 17/2/2005 (Relator Granja Fonseca – Proc. n.º 837/2005 da 6.ª Secção, disponível em www.dgsi.pt), quando aí se afirma que: «a obrigação nuclear e caracterizadora do contrato de transporte situa-se no campo das obrigações de resultado: o transportador obriga-se a proporcionar um concreto resultado que satisfaz o interesse creditório, final e primário, a saber, a entrega da mercadoria transportada ao destinatário (…) incólumes ao seu destino».
Diferente do contrato de transporte é o contrato de expedição ou trânsito, que se define como o contrato pelo qual uma parte (transitário) se obriga perante outra (expedidor) a prestar-lhe certos serviços – que tanto podem ser atos materiais como atos jurídicos – ligados ao contrato de transporte, o que pode incluir celebrar um ou mais contratos de transporte em nome e em representação do cliente (cfr. Costeira da Rocha in “Contrato de transporte de mercadorias”, pág. 80; Ac. S.T. de 16/9/2008 - Proc. n.º 08A1991 – Relator: Nuno Cameira e Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa de 3/3/2016 – Relatora: Regina Almeida - Proc.º n.º 293/97.2TNLSB.L1-6, disponível em www.dgsi.pt).
Mónica Marques da Silva Vitto (in “A responsabilidade civil do transportador no transporte multimodal de mercadorias”, 2016, pág. 38) refere a propósito que: «A distinção teórica entre contrato de transporte de mercadorias e contrato de trânsito não se afigura problemática, na medida em que os seus objetos se encontram bem delineados. Por um lado, no contrato de transporte a obrigação principal do transportador reside na deslocação dos bens de um local para outro; por outro, no contrato de trânsito, o transitário assume a obrigação de celebrar um contrato de transporte – é o intermediário entre o expedidor e transportador».
O contrato de expedição inclui-se, portanto, no âmbito típico da atividade das empresas transitárias, pressupondo a autonomia dessa figura jurídica contratual a inexistência de qualquer obrigação de controlo sobre as coisas transportadas, sob pena de poder ficar compreendido no âmbito típico dos contratos de transporte.
Inequivocamente que a R., aqui Recorrente, é uma empresa que tem por objeto o exercício da atividade de transitária (facto provado 87), a qual é regulada pelo Dec.Lei n.º 255/99 de 7 de julho.
Nos termos do Art. 1.º n.º 2 desse citado diploma legal: «A atividade transitária consiste na prestação de serviços de natureza logística e operacional que inclui o planeamento, o controlo, a coordenação e a direção das operações relacionadas com a expedição, receção, armazenamento e circulação de bens ou mercadorias, desenvolvendo-se nos seguintes domínios de intervenção:
«a) Gestão dos fluxos de bens ou mercadorias;
«b) Mediação entre expedidores e destinatários, nomeadamente através de transportadores com quem celebre os respetivos contratos de transporte;
«c) Execução dos trâmites ou formalidades legalmente exigidos, inclusive no que se refere à emissão do documento de transporte unimodal ou multimodal».
O transitário tem assim fundamentalmente a seu cargo uma obrigação de meios. É um intermediário entre o expedidor e o destinatário, um mero prestador de serviços que define a arquitetura dos transportes necessários à operação de colocação dos bens no destinatário, executando os atos e diligências que se imponham, com vista à satisfação do interesse dos seus clientes.
Em todo o caso, a circunstância da R. C ser uma empresa que tem por objeto o exercício da atividade de transitária, só por si, não a impede, nas relações jurídicas que estabeleça em concreto com os seus clientes, de vir a assumir as obrigações próprias do transportador, nos termos supra considerados. A assunção de obrigações típicas do contrato de transporte não é proibida às empresas que exercem a atividade comercial do transitário (vide, a propósito: Ac. do S.T. de 4/11/2010 – Proc. n.º 3219/04 - Relator: Gonçalo Xavier Silvano, também disponível no sítio da “Jusnet”).
Desde há longa data que a jurisprudência se tem debruçado por diversas vezes sobre estas situações, pois na prática nem sempre serão tão claros os limites efetivos das atividades de empresas de transporte e das empresas transitária, importando averiguar que riscos foram assumidos numa concreta relação comercial que implicou a execução material dum transporte.
Assim, como referido, o transportador será aquele que tem de efetuar a deslocação da mercadoria e a sua entrega nas condições e segundo as ordens dadas pelo expedidor.  Já os transitários são meros intermediários, ou prestadores de serviços, que não realizam o ato material de transportar, podendo intermediar o transporte por conta do expedidor (vide, a propósito: Acórdão do Tribunal da Relação do Porto de 27/11/1995 in C.J. - Tomo V, pág. 210).  Por esse motivo, os transitários só estão obrigados a segurar o risco da sua atividade e não os decorrentes de contrato de transporte mediado por conta do expedidor (Cfr. Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa de 13/5/1993 in C.J.- Tomo III, pág. 97).
Simplesmente, esta distinção subtil, nem sempre na prática é muito clara e não raros são os casos em que empresas transitárias assumem de facto obrigações próprias dos transportadores, esquivando-se posteriormente na invocação da sua qualidade de transitárias, quando contra elas lhes é dirigido pedido indemnizatório relativo aos prejuízos do próprio transporte (Vide, a propósito: Acórdão do S.T.J. de 14/1/1993 in C.J.S.T.J. – Tomo I, pág. 44).
Interessará assim saber o que foi concretamente acordado entre as partes, independentemente da mera consideração do objeto da sociedade comercial que o pratica, sendo indiferente se o transportador é ou não uma empresa transitária, desde que tenha assumido as responsabilidades inerentes a um contrato de transporte (Vide: Acórdãos do S.T.J. de 25/11/1993 in C.J.S.T.J. – tomo III, pág. 86; de 14/1/1993 in C.J.S.T.J – Tomo I, pág. 44; de 25/2/1997 in C.J.S.T.J. – Tomo II, pág. 21; 20/5/1997 in C.J.S.T.J. – Tomo II; pág. 84; e Acórdão do Tribunal da Relação do Porto de 1/2/1999 in C.J. – Tomo I., pág. 208 ).
Na mesma linha de raciocínio, continua hoje a jurisprudência mais recente, nela se incluindo o já citado acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa de 3/3/2016 (Proc.º n.º 293/97.2TNLSB.L1-6 – Relatora: Regina Almeida), onde é defendido que: «não obsta à qualificação como contrato de transporte o facto de a parte se dedicar a atividades próprias de um transitário, se foi para além do que é a atividade típica do transitário: obrigação de celebrar um contrato de transporte com um transportador, em nome próprio ou do expedidor, mas sempre por conta deste, assumindo também a obrigação de prestar ao expedidor serviços de natureza logística e operacional que assegurem a deslocação da mercadoria».
No mesmo sentido vão também os Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 16/9/2008 (Proc. n.º 08A2433 – Relator: Sebastião Póvoas), de 14/04/2011 (Proc. n.º 283/09.0YFLSB.S1 – Relator: Oliveira Vasconcelos) e de 4/11/2010 (Proc. n.º 3219/04.1TVLSB.S1 – Relator: Gonçalo Silvano - todos disponíveis em www.dgsi.pt) que, sem prejuízo de imputarem às empresas transitárias a mera organização da logística do transporte, planeando e organizando dos planos e formalidades de circulação, deixando o transporte a terceiros, não deixam de admitir a possibilidade de, quando concluídas as formalidades de expedição ou trânsito, na prática, essas empresas transitárias poderem exercer também a função de transportadores.
Seja como for, ao contrário do que é sustentado pela Recorrente, no final, a responsabilidade pelo transporte por parte das empresas transitárias não é afastada, mas antes reafirmada, pelo Art. 15º n.º 1 e n.º 2 do Dec.Lei 255/99 de 7/7 que, como vimos, regula o regime jurídico do acesso e exercício da atividade transitária.
Efetivamente, o que decorre desse normativo é que: «1 — As empresas transitárias respondem perante o seu cliente pelo incumprimento das suas obrigações, bem como pelas obrigações contraídas por terceiros com quem hajam contratado, sem prejuízo do direito de regresso. 2 — À responsabilidade emergente dos contratos celebrados no âmbito deste diploma aplicam-se os limites estabelecidos, por lei ou convenção, para o transportador a quem seja confiada a execução material do transporte, salvo se outro limite for convencionado pelas partes».
A responsabilidade civil aqui estabelecida para as empresas transitárias é uma responsabilidade objetiva, ao jeito da responsabilidade civil do comitente (v.g. Art. 500.º do C.C.), na medida em que não tem como requisito explícito a culpa do transitário, pressupondo apenas a responsabilidade da empresa que executou materialmente o transporte, desde que tenham sido contratadas pelo transitário, assegurando-se a este último o direito de regresso relativamente ao autor material do facto danoso que obriga à reparação. Mesmo que assim não se entendesse, poderia sempre sustentar-se que, nos termos do Art. 15.º do Dec.Lei n.º 255/99 de 7/7, a responsabilidade do transitário tem pelo menos sempre o mesmo âmbito da responsabilidade do transportador que contratou.
Cumpre ainda dizer que, por força do Art. 3.º n.º 1 do Dec.Lei n.º 352/86, o contrato de transporte de mercadorias por mar está sujeito à forma escrita, mas o n.º 2 do mesmo preceito faz incluir no âmbito da forma escrita as cartas, telegramas, telefaxes e outros meios equivalentes criados pela tecnologia moderna. Assim sendo, o contrato de transporte é regulado primordialmente de acordo com aquilo que as partes convencionarem por escrito (Art.s 405.º e 406.º n.º 1 do C.C.), mas na ausência de regulamentação escrita, há que considerar os regimes legais supletivos, sendo que os “títulos de transporte” podem servir de meio de prova sobre os termos da relação contratual concretamente estabelecida (v.g. Art.s 369.º e ss. do Cód. Comercial). Em todo o caso, importará sempre ter em atenção aquilo que efetivamente foi acordado entre as partes.
Nuno Castelo-Branco Bastos (in “Direito dos transportes”, pág.s 80 e ss.) indica vários fatores indiciários para determinar o papel do transitário, como por exemplo: a discricionariedade que possa ter na sua atuação, concedida por quem o contratou; a emissão de documentos e modo os como emitiu – em nome próprio ou não; e o conteúdo da obrigação contratualmente assumida, isto é, se se comprometeu a transportar ou tão só à celebração do contrato de transporte e sua organização através de atos jurídicos para que ele aconteça.
Dito isto, no caso concreto dos autos ficou provado que o combinado entre as partes foi que a R. C se encarregaria dos produtos em questão desde o momento em que os mesmos lhe fossem entregues, em Portugal, por uma empresa a mando da Narest, até à sua entrega, no Porto de Palmeira, na Ilha do Sal, à empresa Translogistic (facto 15); a Translogistic iria levantar os produtos em questão a mando da R. C e entregá-los-ia à B (facto 16); a entrega da mercadoria foi feita pela Portral à R. C ou a alguém a seu mando, em 13.10.2010, que levou o contentor vazio, de camião, às instalações da Portral em Sintra, onde o mesmo foi carregado com os produtos alimentares (facto 19); o contentor foi atribuído e selado pela R. C ou por alguém a seu mando (facto 22); o certificado de salubridade foi entregue à R. C ou a alguém a seu mando (facto 25); a partir do momento em que entregou o contentor, a A perdeu qualquer contacto com o mesmo (facto 26); o contentor foi movimentado no terminal do porto de embarque pela R. C ou por alguém a seu mando (facto 28); a carga do contentor no navio foi feita pela R. C ou por alguém a seu mando (facto 29); a R. C encarregou a R. D (doravante, D), representada pela E (doravante, E), de efetuar o transporte das mercadorias já referidas, nos termos que constam do documento 8 junto com a petição inicial, que se dá por integralmente reproduzido (facto 30); a R. C subcontratou entidades terceiras para efetuar as referidas operações de transporte, entidades essas que atuam no mercado com capacidade técnica específica para o efeito (facto 88); e em momento algum existiu uma relação comercial entre as referidas R.R. e as A.A. no âmbito do transporte em causa nos presentes autos, nem tão pouco alguma vez contactaram diretamente (facto 100).
Perante esta factualidade provada é evidente que a R. assumiu obrigações típicas do contrato de transporte, que passaram pelo controlo da mercadoria a expedir para Cabo Verde, desde que as rececionou até à sua posterior entrega, ainda que para esse efeito tivesse subcontratado terceiros para a realização material dessas operações de transporte.
O tão propalado documento n.º 8, junto com a petição inicial, que é uma cópia da “Bill of Landing” (cfr. doc. de fls 90 a 91), onde a R. é identificada como “Shipper” –  ou seja “o expedidor” –, e a Translogistic, Lda. como “consignee” – ou seja, depositária/transportadora – não é suficiente para afastar, só por si, a prova do que efetivamente foi acordado entre as partes. Esse documento serve de prova escrita para a existência de um contrato de transporte por mar (cfr. Art. 3.º n.º 2 do Dec.Lei n.º 352/86 de 21/10), mas conjugado com as demais guias de transporte juntas (cfr. doc.s de fls 80, 106, 161), faxes de fls 162 a 163 e fatura de fls 89, mais não é que a mera expressão duma realidade material (fáctica) de que a R., nesse documento, assumiu as vestes de “expedidor”, mas fê-lo no interesse da 1.ª A., perante a qual havia assumido obrigações típicas, como transportadora, de assegurar que os bens chegariam ao seu destino, tomando controlo da mercadoria e de todas as operações necessárias para esse efeito.
A subcontratação de terceiros, documentada no caso do transporte marítimo pelo “Bill of Landing” de fls 90 a 91, foi assim formalizada com o propósito único de dar cumprimento à obrigação principal da R. e, por isso, não determina a exclusão da sua responsabilidade pelos danos ocorridos na execução do transporte, tendo em atenção o disposto no Art. 800.º n.º 1 do C.C..
Diga-se ainda que os documentos n.º 21 e 22, juntos com a petição inicial de fls 109 a 112, correspondentes a troca de correspondência entre as partes já após o sinistro, também não têm a virtualidade de modificar a factualidade provada.
Finalmente o documento 29, também junto com a petição inicial de fls 117 a 124, que é composto por “cláusulas contratuais gerais de prestação de serviços de empresas transitárias”, é inconsequente e irrelevante para o caso, pois esse documento não está sequer assinado por nenhuma das partes, desconhecendo-se sequer se as A.A. foram dele informadas, caindo assim sob a alçada do disposto nos Art.s 5.º e 8.º do Dec.Lei n.º 446/85 de 25/10.
Em face de todo o exposto, concordamos com a posição sustentada na sentença recorrida e pelas contra-alegações das Recorridas, no sentido que que a R. C assumiu obrigações típicas do contrato de transporte e, nessa medida, pode ser diretamente responsável pelos prejuízos decorrentes do incumprimento ou cumprimento defeituoso dessa prestação, improcedendo as conclusões que sustentam o contrário.
4. Da responsabilidade civil da R.
Como vimos, a R., mesmo como empresa transitária, sempre responderia pelo incumprimento das suas obrigações, bem como pelas contraídas por terceiros com quem hajam contratado (Art. 15º n.º 1 do Dec.Lei n.º 255/99 de 7/7), ficando a sua responsabilidade sujeita aos limites estabelecidos, por lei ou convenção, para o transportador a quem materialmente tenha confiado o transporte (n.º 2 do mesmo preceito).
A especificidade do caso dos autos é que a mercadoria foi transportada, quer por via terrestre, quer por via marítima, em operações materiais concretas que tiveram por executores, dos respetivos transportes, entidades diversas, ainda que todas sob o controlo e mando da R. C. Portanto, estamos perante uma situação de “transporte multimodal”.
A Convenção de Genebra de 1980 define o transporte multimodal internacional de mercadorias como o: «transporte de mercadorias efetuado por, pelo menos, dois diferentes modos de transporte, na base de um contrato de transporte multimodal, de um lugar no país onde as mercadorias são tomadas pelo operador de transporte multimodal para um lugar designado para a entrega, situado num país diferente. As operações de levantamento e de entrega dos bens transportados, realizados no âmbito de performance do contrato de transporte unimodal, não devem ser consideradas como transporte internacional multimodal».
O contrato de transporte multimodal é uma subespécie do contrato de transporte, nele intervindo: 1) o expedidor (carregador) – que assume as obrigações de entregar as mercadorias ao operador de transporte multimodal, entregando todos os documentos inerentes à mercadoria, descrevendo essa mercadoria e obrigando-se a pagar o preço de transporte, ficando como direito de disposição e o direito de deslocação das mercadorias, no mesmo estado de conservação em que as entregou; 2) o operador de transporte multimodal – que assume contratualmente a obrigação de deslocação das mercadorias, no mesmo estado de conservação em que as recebeu, e de as entregar no local de destino, com direito, em contrapartida, à prestação pecuniária devida pelo cumprimento da prestação a que se encontra adstrito, designada por frete; e 3) o destinatário – que é a pessoa a quem devem ser entregues as mercadorias transportadas, adquirindo o direito à entrega da mercadoria transportada e o direito de disposição (vide, a propósito: Mónica Marques da Silva Vitto (in Ob. Loc. Cit., pág.s 27 a 29).
Reconhecidamente não existe uma disciplina específica para o transporte multimodal, seja de direito interno, seja de direito internacional, não tendo sequer entrado em vigor a Convenção de Genebra de 1980 sobre Transporte Internacional Multimodal de Mercadorias que atrás citámos. Pelo que, a solução jurídica que se tem apresentado como mais acertada tem sido, sempre que possível, fragmentar o transporte multimodal em tantas prestações unimodais quantas aquelas que se verificaram em cada caso concreto, aplicando a cada uma dessas prestações o regime jurídico que lhe é próprio.
No caso, ficou provado que os danos se verificaram no decurso do transporte marítimo, estando em causa a aplicação do regime jurídico resultante da Convenção de Bruxelas de 1924 (publicada no Diário do Governo, I.ª Série, n.º 128, de 25 de junho de 1932 e retificado no Diário do Governo I.ª Série de 11 de julho de 1932) e os Dec.Lei n.º 37.748 de 1 de fevereiro de 1950 e n.º 352/86 de 21/10.
A Convenção de Bruxelas de 1924 compreende o transporte desde o momento em que as mercadorias são carregadas a bordo do navio até ao momento em que são descarregadas (Art. 1.º al. e)), sendo que o Dec.Lei n.º 37.748 de 1 de fevereiro de 1950 veio estabelecer que, a partir de 1 de março de 1950, os Art.s 1.º a 8.º da Convenção de Bruxelas se aplicava a todos os conhecimentos de carga emitidos em território português, qualquer que seja a nacionalidade das partes contratantes.
Na prática o conhecimento de embarque ou de carga funciona como título que dá forma ao contrato de transporte por mar (Art. 3.º n.º 1 e n.º 2 do Dec.Lei n.º 352/86 de 21/10 e Art. 1.º al. b) da Convenção de Bruxelas de 1924), servindo como documento representativo das mercadorias aí descritas, suscetível de transmissão como título de crédito (Art. 11.º do Dec.Lei n.º 352/86 de 21/10).
A circunstância de, no título representativo da mercadoria para efeitos do seu transporte por mar (“Bill of Landing”), não se identificar a R. como “transportadora”, mas sim como “expedidora”, não invalida a conclusão de que esse concreto contrato de transporte mais não é que a expressão duma subcontratação, que visou apenas facilitar e dar forma legal a essa concreta modalidade de transporte incluída no acordo mais amplo estabelecido entre a 1.ª A. e a R..
Temos de reconhecer que, uma vez que o contrato de transporte pelo mar é um negócio jurídico sujeito a forma legal – por documento escrito, cfr. Art. 3.º do Dec.Lei n.º 352/86 de 21/10 –, a regra aplicável será que não podem as declarações assim formalizadas valer com um sentido que não tenha o mínimo de correspondência com o texto, tal como estabelece o Art. 238.º n.º 1 do C.C.. No entanto, o n.º 2 do mesmo preceito estabelece também que, se esse sentido (o sentido real efetivamente querido) corresponder à vontade real das partes e as razões determinantes da forma se não opuserem a essa validade, deve prevalecer a vontade real. Ora, é isso mesmo que decorre dos autos. A R. figura como “expedidor”, mas só o fez para facilitar a formalização por escrito do transporte por mar em observância do Art. 3.º n.º 1 do Dec.Lei n.º 352/86 de 21/10. Na verdade, a R. havia assumido o transporte dessa mercadoria, em acordo celebrado com a 1.ª A., e a formalização do “Bill of Landing”, nesses termos, traduzia somente a expressão duma subcontratação, que é formalmente válida e que não deixa de corresponder também à vontade da 1.ª A., que era a expedidora efetiva no quadro do contrato de transporte multimodal.
Posto isto, a responsabilidade civil da R., perante a 1.ª A. recorta-se no quadro da responsabilidade contratual, sendo claro que a R. cumpriu a sua prestação de forma defeituosa, uma vez que a mercadoria veio a ser entregue ao destinatário com avaria.
Competia ao “armador” (proprietário do navio/transportador – cfr. Art. 1.º n.º 1 al. a) da Convenção de Bruxelas de 1924) o carregamento, manutenção, estiva, transporte, guarda, cuidados e descargas das mercadorias (Art. 2.º da Convenção de Bruxelas de 1924), ficando obrigado a exercer, com razoável diligência, as obrigações de preparar e por em bom estado os porões, os frigoríficos e todas as outras partes do navio em que as mercadorias são carregadas (cfr. Art. 3.º n.º 1 al. c) da Convenção de Bruxelas de 1924) e, bem assim, a manter o estado e condicionamento das mercadorias que recebeu, de acordo com o conhecimento de carga (Art. 3.º n.º 3 al. c), n.º 4 da mesma Convenção), sendo nula qualquer cláusula, convenção ou acordo em contrato de transporte que exonere o armador ou o navio da responsabilidade por perda ou dano concernente a mercadoria proveniente de negligência culpa ou omissão de deveres ou obrigações previstos no Art. 3.º da Convenção (cfr. Art. 3.º n.º 8).
Objetivamente a prestação da R., ainda que materialmente executada pela “D”, a seu mando (cfr. facto 30), não corresponde ao cumprimento integral e pontual do convencionado (Art.s 406.º n.º 1 e 762.º n.º 1 do C.C.). O seu comportamento é, nessa medida, ilícito, até por não se verificar qualquer causa legal de justificação da ilicitude, sendo a culpa de presumir, desde logo nos termos do Art. 799.º do C.C..
Acresce que, a responsabilidade do transportador por perdas ou deterioração que a mercadoria transportada venha a sofrer só é afastada quando resultar de caso fortuito, força maior, vício do objeto ou culpada do expedidor ou do destinatário (cfr. Art. 383.º do Cód. Comercial).
Evidentemente, no caso dos autos, que não existe o mínimo indício de responsabilidade das A.A., enquanto entidade expedidora e destinatária da mercadoria.
Também não se provou que os produtos alimentares estivessem deteriorados antes de terem sido entregues à A., não sendo por defeito da própria mercadoria que verificaram os danos provados, prevalecendo aqui as presunções legais emergentes da Convenção de Bruxelas de 1924 no seu Art. 3.º decorrentes relativos à ausência de reservas no conhecimento de carga, relativos ao estado da mercadoria (cfr. facto provado 36).
Também não se pode falar que os danos resultem de caso fortuito ou de força maior.
De facto, a tradição romana herdada de Ulpiano, caracterizavam o caso fortuito pela sua imprevisibilidade (nullum humanum consilium proevidere potest) e o caso de força maior pela sua irresistibilidade (omnem vim cui resisti non potest). Estes dois conceitos partilham um elemento comum que é a verificação de um facto ou de um obstáculo invencível ou intransponível para o devedor que motiva a impossibilidade de cumprir, por razão não atribuível, nem à vontade do credor, nem à vontade do devedor.
Ora, em abstrato, é sempre previsível a possibilidade de ocorrência de avarias no sistema de frio do contentor onde a mercadoria estava acondicionada, exigindo-se ao transportador especial dever de cuidado quando em causa está o transporte de produtos alimentares sujeitos a meios de conservação que implicam o controlo da temperatura, sendo que a menção a esse facto constava explicitada no “Bill of Landing”, como decorre do documento de fls 90 (doc. n.º 8 junto com a petição inicial). Pelo que, se se verificou que este contentor, em vez de manter a temperatura constante a menos de “-18ºC”, esteve durante longos períodos com temperaturas superiores, que chegaram aos “+15ºC”, tendo-se constatado que tal resultou do facto do contentor ter sido desligado (cfr. facto 58), então é evidente que não estamos perante um facto fortuito ou de força maior, mas perante um comportamento humano que estava no domínio do transportador.
Por outro lado, também não se alegaram ou provaram quaisquer dos fatores objetivos de exclusão da responsabilidade previstos no Art. 4.º n.º 1 e n.º 2 da Convenção de Bruxelas de 1924, aplicáveis igualmente por força do Art. 9.º n.º 3 do Dec.Lei n.º 352/86 de 21/10, cujo ónus de prova sempre competia à R. (cfr. Art. 342.º n.º 2 do C.C.). A situação concreta do n.º 5 do Art. 4.º será adiante apreciada de forma autónoma, até por constituir apenas um limite à responsabilidade patrimonial pelos danos e não uma causa de exclusão da responsabilidade civil do transportador.
De referir ainda que, nos termos do Art. 6.º do Dec.Lei n.º 352/86 de 21/10, estabelece-se ainda que a responsabilidade do transportador marítimo pela mercadoria no período que decorre entre a receção e o embarque, fica subordinado às disposições legais respeitantes ao contrato de depósito regulado na lei civil. Pelo que, o transportador tem o dever de guarda da coisa depositada (Art. 1187.º al. a) do C.C.) e se confiar a coisa a terceiro, ainda que para tanto autorizado, será responsável por culpa sua, na escolha dessa pessoa (Art. 1197.º do C.C.). O risco de perda ou deterioração da coisa, durante o período de custódia do depositário, é da responsabilidade do depositário, que está obrigado a restituir a mesma quando lhe for exigida (Art. 1185.º do C.C.).
Podemos assim concluir com segurança dos factos provados que a deterioração verificada nos produtos alimentares transportados resultou de ação humana, objetivamente imputável ao transportador, a qual se afigura, no mínimo, negligente, por ser exigível e possível o cumprimento de deveres de cuidado que poderiam evitar os danos verificados.
É ainda de ponderar que poderia sustentar-se que a R. não celebrou qualquer contrato com a 2.ª A., B. No entanto, esta última era a destinatária última da mercadoria que acabou por ser danificada com o transporte pelo qual a R. era responsável. Pelo que, mesmo que se entendesse desse modo, tudo o que dissemos sobre a existência de comportamento voluntário da R., sua ilicitude e culpa, sempre teriam aplicação no contexto da responsabilidade civil extracontratual, nos termos do Art. 483.º do C.C..
Quanto aos danos, os mesmos não foram sequer postos em causa pelas alegações da Recorrente, que centra a sua oposição à sentença recorrida noutras considerações de natureza mais jurídica, que culminam com razões relacionadas com limites à sua eventual responsabilidade civil, muito em particular, com os decorrentes do disposto no Art. 4.º n.º 5 da Convenção de Bruxelas de 1924.
Assim, no que se refere aos danos e ao nexo causal, limitamo-nos a acompanhar a sentença recorrida.
Em causa estavam apenas danos patrimoniais, que incluíam danos emergente e lucros cessantes, ambos suscetíveis de reparação (Art. 564.º do C.C.), devendo a obrigação de indemnização compreender os danos que o lesado provavelmente não teria sofrido se não fosse a lesão (Art. 563.º do C.C.), sendo que não havia, no caso, a relevar qualquer culpa dos lesados para a consumação dos prejuízos verificados (Art. 570.º do C.C.).
Também não há particular discussão quanto à questão do estabelecimento do nexo causal entre os danos verificados, relevados pela sentença recorrida, e os factos voluntários, ilícitos e culposos que os determinaram.
No caso, não sendo possível a reconstituição natural, a indemnização deverá resultar de compensação em dinheiro (Art. 566.º n.º 1 do C.C.).
Ora, resulta da matéria de facto que a 1.ª A. perdeu a mercadoria danificada, no valor de €28.903,24 e teve de suportar o custo do transporte, de €3.936,25, que lhe foi cobrado pela R. C.
Por seu turno, a 2.ª A. teve de suportar despesas com a descarga e movimentação do contentor, fornecimento de energia elétrica ao contentor e passagem das certidões dos documentos relativos ao processo, no valor de €338,41; pagou ao despachante €12,92 por serviços e taxas ocasionados pelo envio da mercadoria para destruição; pagou €27,21 pelo parecer técnico emitido pela empresa SAHAL; pagou €373,30 pelo transporte do contentor à Translogistic; mais €435,31, relativos à deposição e destruição da mercadoria estragada no aterro sanitário; e €221,70 de taxas pela liquidação sanitária da mercadoria. Por outro lado, essa A. destinava essa mercadoria importada à venda no mercado, a cliente de que já possuía encomendas, esperando obter com tal negócio um lucro correspondente a €4.925,92.
Em suma, as perdas patrimoniais da 1.ª A. ascenderam a €32.839,49 e as da 2.ª A. a €6.113,547. Tendo sido por isso que a sentença recorrida condenou a R. ao pagamento de indemnizações em montantes equivalentes, tendo em atenção o disposto nos Art.s 562.º, 563.º, 564.º n.º 1 e 566.º n.º 1 do C.C., acrescidas de juros de mora à taxa legal desde a citação até integral e efetivo pagamento (cfr. Art.s 559.º, 805.º n.º 1 e 806.º n.ºs 1 e 2 do C.C). O que não oferece qualquer censura.
Improcedem assim todas as conclusões que defendem a não verificação dos pressupostos da responsabilidade civil da R..
5. Da limitação da responsabilidade da R.
A R. C sustentou, logo na contestação, que a sua responsabilidade civil estaria limitada apenas a um volume, consistente no próprio contentor, o que corresponderia ao limite de €498,80. Como a sentença recorrida julgou improcedente essa exceção, vem agora nas alegações de recurso renovar o mesmo entendimento, tendo em atenção o disposto no Art. 4.º n.º 5 da Convenção de Bruxelas 1924, aplicável por força do Art. 15.º do Dec.Lei n.º 255/99 de 7/7 e dos limites provados pelo Art. 31.º do Dec.Lei n.º 352/86 de 21/10.
Também esta questão tem sido objeto recorrente de decisões dos tribunais superiores em sentido diverso do exposto nas alegações de recurso da Recorrente, como bem é realçado nas contra-alegações das Recorridas.
Antes de mais, há que realçar que esta 7.ª Secção do Tribunal da Relação de Lisboa, que atualmente assume a competência especializada em matéria de Direito Marítimo, já se debruçou sobre esta questão no acórdão de 24 de novembro de 2020, proferido no âmbito do Proc. n.º 141/16.2TNLSB.L1, relatado pela Sr.ª Juíza Desembargadora Carla Câmara e também subscrito pelo relator do presente acórdão, como 2.º Adjunto, de cujo sumário, da responsabilidade exclusiva da relatora, se destaca:
«I- O regime de limitação da responsabilidade civil do transportador marítimo de mercadoria, previsto nos termos do artigo 4º, nº 5, da Convenção de Bruxelas é de aplicação oficiosa pelo Tribunal, não estando a sua aplicação dependente da sua invocação pelo interessado a quem beneficia. Tal regime é o regime regra, cuja aplicação a lei não faz depender da arguição pelos interessados. Consequentemente, não ocorre excesso de pronúncia gerador de nulidade da sentença (615º, nº1, d) do CPC).
«II- A responsabilidade civil do transportador alicerça-se, em regra, no contrato realizado entre o expedidor e o transportador e refere-se, assim, à responsabilidade obrigacional. Todavia, a ressarcibilidade pelos danos que advenham do transporte marítimo de mercadorias encontra, igualmente, guarida nas regras da responsabilidade extracontratual: independentemente de qualquer relação contratual entre as partes, a responsabilidade poderá advir da prática pelo transportador de um facto ilícito que convoque a aplicação do artigo 483º, nº 1, do CPC.
«III- Tendo a A. fundado a sua pretensão indemnizatória na responsabilidade contratual, pretendendo por via do recurso que se afira a verificação dos pressupostos da responsabilidade extracontratual, não está inviabilizado a este tribunal de recurso fazê-lo, alicerçando tal conhecimento nos factos jurídicos concretos alegados e que se vieram a apurar. Tal não constitui questão nova, cujo conhecimento está vedado a este Tribunal.
«IV- No contrato de transporte internacional de mercadorias, que no caso tinha como destinatário a entidade que solicitou o transporte, existe uma presunção iuris tantum de que a mercadoria foi recebida pelo transportador em conformidade com as indicações contidas no conhecimento de carga, como previsto no artigo 3º §4 da Convenção de Bruxelas. Para responsabilizar o transportador em termos diversos do que dele consta, caberia ao destinatário contratante afastar tal presunção.
«V- O limite da responsabilidade do transportador marítimo de mercadoria, afere-se pelas «perdas e danos causados às mercadorias» como expressamente refere o artigo 4 §5 da Convenção de Bruxelas e não pelo valor de todos os volumes transportados, independentemente de terem ou não sido danificados».
No entanto, há que realçar que, nesse caso concreto, a R. que interveio como sociedade que prosseguia a atividade de transitária, agiu apenas no quadro da prestação de serviços como “transitária”, não se tendo provado a assunção de qualquer obrigação de transporte. Por outro lado, não se provou ali também que essa R. tenha omitido, muito menos de forma dolosa, a descrição da mercadoria no “Bill of Landing”, tendo-se assim dado prevalência à indemnização por contentor, com os limites do Art. 4.º n.º 5 da Convenção de Bruxelas de 1924.
O caso dos autos é ligeiramente diferente, porque a R., que exerce atividade transitária, assumiu obrigações típicas do contrato de transporte (factos 14 a 29, 88 e 100), e rececionou a mercadoria, como combinado, encarregando-se dos produtos em causa até que fossem entregues no destino (factos 15, 16 e 19). Essa mercadoria foi entregue pela 1.ª A., através da firma Portral, que a entregou à R., que para tal levou um contentor vazio, de camião, às instalações da Portral em Sintra (factos 19 e 23), contentor esse que havia sido atribuído à R., ou a alguém a seu mando (facto 22). A mercadoria entregue consistiu em 1835 volumes de produtos alimentares, com o peso bruto de 12.658,85 Kg (facto 23). Ou seja, a 1.ª A. não entregou à 1.ª R. um contentor com mercadoria. A A. entregou à R. uma determinada quantidade de volumes de mercadoria, que a R. colocou num contentor.
Evidentemente que, a partir de então, a movimentação da mercadoria passou a ser feita no contentor. Sem prejuízo, a mercadoria entregue à R. “D”, para efeitos de transporte por mar, consistiu em 1835 volumes, com 12.658,85 Kg de peso, acondicionados num contentor, identificado como “CBSU 200107/0” (facto 33). Ou seja, precisamente a mercadoria que a 1.ª A. confiou à 1.ª R. para transporte multimodal (factos 23 e 33).
Ora, no “Bill of Landing” faz-se expressa menção ao conteúdo do contentor “CBSU 200107 0”, aí se referindo a 1825 volumes (“No. of Pkgs ou Shipping Units”: 1825), descrevendo-se a mercadoria (“description of gosdss & Pkgs”) como “produtos alimentares”, embora aí se não indique o peso ou o seu valor concreto.
Desse documento constam apenas as declarações “Shipper`s Load, Count & Stow”, “FCL/FCL” e “Shipped on board” (cfr. cit. doc. a fls 90), o que pode ser entendido como não tendo havido qualquer conferência do número de volumes ou do peso da mercadoria.
Alinhamos com a ideia expressa na sentença recorrida de que a dinâmica da vida portuária não permite, com razoabilidade, garantir a realização diligente duma conferência relativa o número de volumes que se encontram dentro dos contentores. Mas, normalmente, o peso dos contentores é verificado e o seu conhecimento prévio ao embarque.
Dito isto, a Convenção Internacional para a Unificação de Certas Regras em Matéria de Conhecimento de Carga, assinada em Bruxelas em 25 de Agosto de 1924, à qual Portugal aderiu por Carta de 5 de Dezembro de 1931, publicada no Diário do Governo, I.ª Série, de 2 de junho de 1932, tornada direito interno pelo Dec.Lei n.º 37.748 de 1 de fevereiro de 1950, e, subsidiariamente, pelas disposições do Dec.Lei n.º 352/86, de 21/10, estabelece no parágrafo 5º do Art. 4º o seguinte: «tanto o armador como o navio não serão obrigados, em caso algum, por perdas e danos causados às mercadorias ou que lhe digam respeito, por uma soma superior a 100 libras esterlinas por volume ou unidade, ou o equivalente desta soma numa diversa moeda, salvo quando a natureza e o valor destas mercadorias tiverem sido declarados pelo carregador antes do seu embarque e essa declaração tiver sido inserida no conhecimento».
O referido “limite de responsabilidade” veio a ser fixado pelo n.º 1 do Art. 31º do Dec.Lei n.º 352/86, de 21/10 em Esc.: 100.000$00, correspondente atualmente a €498,80 (cfr. Art. 25.º do Dec.Lei n.º 323/2001 de 17/12).
O regime de responsabilidade civil do transporte marítimo impõe assim um limite indemnizatório em favor do transportador, em evidente desvio à função de reparação integral do dano.
Tem-se justificado esse regime como traduzindo uma espécie de compensação por se estabelecer uma forma de responsabilidade mais rigorosa sobre o transportador, visando-se assim garantir e dar condições económicas para a viabilidade das empresas transportadoras, não desencorajando a sua atividade empreendedora e evitando “uma situação de responsabilidade ilimitada, que teria como consequência a onerosidade excessiva dos serviços de transporte por mar” (vide: Hugo Ramos Alves in “Da Limitação da Responsabilidade do Transportador na Convenção de Bruxelas de 1924”), procurando equilibrar os riscos, os interesses e a posição das partes no contrato de transporte.
Assim, por princípio, o montante da indemnização a fixar ao transportador marítimo, aplicável igualmente às empresas transitárias, por força do Art. 15.º n.º 2 do Dec.Lei n.º 255/99 de 7/7, não pode exceder o limite previsto por aquela Convenção de Bruxelas, no Art. 4.º parágrafo 5.º, mas há que ter em conta a ressalva da última parte desse parágrafo que permite estabelecer uma obrigação indemnizatória cujo valor monetário seja acima do teto indemnizatório aí previsto. Mas, para tanto, deve o “carregador” declarar expressamente, antes do embarque e com inserção no conhecimento de embarque, qual a natureza e o valor da mercadoria.
Entende-se que só assim se garante que o transportador pode avaliar todos os riscos do transporte e aperceber-se do montante da indemnização que eventualmente possa vir a traduzir a sua responsabilidade para lá dos limites estabelecidos no parágrafo 5º do artigo 4º da Convenção de Bruxelas.
Nuno Castello-Branco Bastos (in “Direito dos Transportes”, Almedina, 2004, pág. 270) ressalva ainda que: «Note-se, contudo, que, sempre que o carregador declare à partida a natureza e o valor da mercadoria, este valor passará a constituir o limite indemnizatório (seja aquele valor superior ou inferior ao fixado no nº 5 do art. 4º), ainda que o transportador sempre o possa contestar, demonstrando que a mercadoria teria um valor inferior no momento do embarque. Em qualquer caso, fazendo-se a prova do valor real da mercadoria, este passará a constituir o limite indemnizatório. (…) Deste regime, parece decorrer que o limite das 100 libras esterlinas será apenas um limite supletivo que operará sempre que o valor da mercadoria seja superior a esse montante e não tenha sido declarado à partida, caso, contrário, o transportador não responderá para além do valor da mercadoria».
Alexandro Melisso Rodrigues (in “O contrato de transporte marítimo de mercadorias e o regime especial exonerativo e limitativo da responsabilidade civil do transportador no ordenamento jurídico português”, pág. 91), também afirma que: «O regime de limitação da responsabilidade civil do transportador marítimo de mercadoria está assegurado pelo cálculo do limite máximo do valor objeto da indenização em caso de perda ou avaria da mercadoria transportada. / Em regra, apurado o valor dos danos, cabe aferir se o montante do prejuízo reconhecido pela condenação excede o limite da indenização previsto pela Convenção de Bruxelas, no seu artigo 4º, nº 5, que será o montante máximo da indenização devida. / Somente com o estabelecimento expresso entre as partes, com uma declaração de valor ou outro teto indemnizatório acordado, desde que seja mais favorável ao expedidor, ou por danos que resultem de uma conduta dolosa do transportador é que será possível estabelecer uma obrigação indemnizatória cujo valor monetário seja acima do teto indemnizatório previsto na Convenção».
No caso não foi indicado no “Bill of Landing” o concreto valor da mercadoria transportada, sendo apenas indicado o número de “volumes” (1835), do qual não resulta, só por si, que as partes pretenderam claramente fixar convencionalmente outro valor para efeitos indemnizatórios diferente do estabelecido no Art. 4.º n.º 5 da Convenção de Bruxelas. Pelo que, esse limite deve ser aplicado no caso concreto, pois não se refere o valor desses 1835 volumes de “produtos alimentares” só com recurso à sua descrição do “Bill of Landing” de fls 90.
Questão diversa desta é saber se o limite de €498,80 deve ter por referência o número de “volumes” de mercadoria danificada ou o número de “contentores” onde essa mercadoria está acondicionada em conjunto.
Também se pode discutir se o limite de €498,80 (por volume ou por contentor) restringe a indemnização devida ao valor concreto da mercadoria ou se foi intenção do legislador fixar apenas um critério de cálculo máximo da indemnização devida, independentemente da natureza dos danos ressarcíveis.
Quanto à primeira questão, evidentemente que, se no conhecimento de carga, constar apenas a existência de um contentor, não há qualquer discussão, haverá apenas que considerar o limite de €498,80 por contentor (vide: Hugo Ramos Alves in “Da Limitação da Responsabilidade do Transportador na Convenção de Bruxelas de 1924, 2008, pág. 123). O problema é quando no conhecimento de carga se identifica um contentor, com a descrição do seu conteúdo, aí se identificando o número de volumes que seguem no seu interior, ainda que sem fazer qualquer menção ao seu valor.
Para Francisco Costeira da Rocha (in “Limitação da responsabilidade do transportador marítimo de mercadorias” in I Jornadas de Lisboa de Direito Marítimo, Almedina, 2008, pág. 276 a 277), a solução resulta da própria lei, quando afirma: «a posição que acabou por prevalecer (e que veio a ter consagração legislativa) foi no sentido de que, para efeitos de cálculo do limite indemnizatório, deverá ter-se em consideração o número de volumes ou unidades carregadas no contentor, desde que no conhecimento de carga conste essa enumeração». O que este Autor identifica como tendo sido o consagrado no Art. 4.º n.º 5 al. c) da Convenção de Bruxelas após 1968 e nos Art.s 24.º e 31.º do Dec.Lei n.º 352/86.
Realça-se, em particular, que no Art. 24.º n.º 1 do Dec.Lei n.º 352/86 de 21/10 se estabelece que: «Quando as mercadorias forem acondicionadas, para transporte, em contentores, paletes ou outros elementos análogos, consideram-se volumes ou unidades de carga os que estiverem enumerados no conhecimento de carga». Sendo que no Art. 31.º n.º 2 do mesmo diploma esclarece que: «Se o conhecimento de carga não contiver a enumeração a que alude o n.º 1 do artigo 24.º deste diploma, por ela não constar do conhecimento de carga referida no artigo 4.º, cada contentor, palete ou outro elemento análogo é considerado, para efeitos de limitação legal da responsabilidade, como um só volume ou unidade de carga».
A este propósito decorre do acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 29 de setembro de 2016 (Proc. n.º 293/07.2TNLSB.L1.S1 – Relator: Oliveira Vasconcelos, disponível em www.dgsi.pt) o sumário o seguinte:
«I - A Convenção Internacional para a Unificação de certas Regras em Matéria de Conhecimento de Carga, assinada em Bruxelas em 25-08-1924, a que Portugal aderiu por Carta de 05-12-1931, foi tornada direito interno pelo DL n.º 37748, de 01-02-1950 e, subsidiariamente, pelas disposições do DL n.º 352/86, de 21-10.
«II - O regime da responsabilidade civil do transporte marítimo é excecional em relação ao regime geral porque, para além de um sistema exonerativo de responsabilidade próprio, impõe um limite indemnizatório em favor do transportador, em evidente desvio à função de reparação integral do dano.
«III - Caso não seja provada qualquer causa excludente da responsabilidade do transportador, este terá um limite para reparar o dano proveniente do incumprimento da sua obrigação (art. 4.º, § 5.º, da referida Convenção, alterado pelo art. 31.º, n.º 1, do citado DL n.º 352/86); só assim não será se as partes tiverem estabelecido uma obrigação indemnizatória que supere esse teto, o que terão de fazer declarando expressamente – com inserção no conhecimento de embarque – a natureza e o valor da mercadoria.
«IV - Não constando do conhecimento de carga qualquer declaração nesse sentido (mas apenas “4 atados de chapa de telha – cada 14,04x1,00x3,2”), não pode o valor das mercadorias ser tomado em conta para a fixação da indemnização pela sua perda, aplicando-se ao caso o limite indemnizatório previsto na 1.ª parte do art. 4.º, § 5.º, da Convenção.
«V - O Protocolo de Visby de 1968 – que introduziu alterações ao limite da indemnização previsto na Convenção de Bruxelas (estabelecendo que aquela devia ser calculada tendo em conta, para além da embalagem ou unidade, o peso da mercadoria) – não foi ainda ratificado por Portugal, pelo que, não tendo sido introduzido na ordem jurídica interna, não é aplicável».
No entanto, no teor da fundamentação jurídica desse mesmo acórdão do Supremo Tribunal de Justiça a solução de direito é melhor explicitada, quando aí se diz: «No conhecimento de carga relativo às mercadorias carregadas pela autora e transportadas pela ré, apenas consta, na rubrica “quantidade e qualidade de volume”, o seguinte: “4 atados de chapa de telha” – Cada 14,04x1,00 x 3,2”.
«Não consta, assim, qualquer declaração sobre o preço ou o valor da mesma mercadoria.
       «Daí que a exceção à limitação parágrafo 5º do artigo 4º da Convenção de Bruxelas, estabelecida na última parte desse parágrafo, não pode aqui ser ajuizada.
«Na verdade, não estando o valor das mercadorias declarado no conhecimento de embarque, não pode o mesmo ser tomado em conta para a fixação da indemnização pela perda das telhas, pelo que para essa fixação temos que considerar a limitação estabelecida na primeira parte daquele nº5.
«E assim, sendo os volumes a considerar – volumes no sentido de “mercadoria contida numa embalagem” – Mário Raposo “in” Estudos Sobre o Novo Direito Marítimo, 1999, página 336 - em número de quatro, temos que a indemnização a que a autora tem direito está limitada a 1.995,2€ (498,80x4), como bem se decidiu no acórdão recorrido».
Portanto, importa, e muito, que no conhecimento de embarque conste constem 1835 volumes dentro de um contentor, mesmo que aí não se faça menção ao seu concreto valor de cada volume.
No mesmo sentido o acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa de 30/6/2015 (Relator: Rui Vouga – Proc. n.º 282/11, disponível in www.colectaneadejurisprudencia.com), defendeu que: «Em matéria de limitação da responsabilidade do transportador marítimo de mercadorias, assume especial destaque a já referida Convenção de Bruxelas de 1924 (Convenção Internacional para a Unificação de Certas Regras em Matéria de Conhecimentos de Carga, assinada em Bruxelas, em 25 de Agosto de 1924), a qual, na sua redação originária, continua a ser o único texto internacional relativo ao contrato de transporte marítimo de mercadorias a que Portugal aderiu, já que o nosso país não ratificou nem o Protocolo de 1968 (também conhecido por Protocolo de Visby ou Regras de Visby), nem o Protocolo de 1979 (também conhecido por Protocolo SDR), que alteraram a Convenção de Bruxelas de 1924.
«Ora, a limitação da responsabilidade do transportador marítimo de mercadorias está consagrada, essencialmente, no artigo 4º, nº 5, primeiro parágrafo, da cit. Convenção de Bruxelas de 1924, onde se estatui que:
"5.Tanto o armador como o navio não serão obrigados, em caso algum, por perdas e danos causados às mercadorias ou que lhe digam respeito, por uma soma superior a 100 libras esterlinas por volume ou unidade, ou o equivalente desta soma numa diversa moeda, salvo quando a natureza e o valor destas mercadorias tiverem sido declarados pelo carregador antes do seu embarque e essa declaração tiver sido inserida no conhecimento."
«O referido Protocolo de 1968 alterou profundamente esta disposição, ao introduzir uma nova unidade de conta (o franco Poincaré, em substituição da libra esterlina); ao introduzir o critério do peso bruto em quilogramas como critério alternativo ao critério do volume ou unidade para cálculo do limite do quantum indemnizatório; ao introduzir um critério para a valoração dos danos sofridos pelas mercadorias; ao introduzir uma regra especificamente dirigida ao transporte de mercadorias em contentores, paletes ou outros engenhos similares; ao introduzir uma norma expressa sobre a perda do benefício da limitação da responsabilidade quando o transportador tiver agido intencionalmente ou temerariamente e com consciência que o dano provavelmente resultaria da sua atuação ou omissão.
«Por seu turno, o mencionado Protocolo de 1979 introduziu como unidade de conta, no que se refere à limitação da responsabilidade, o chamado direito especial de saque do FMI [Fundo Monetário Internacional].
«A nível interno, há ainda que ter em conta o Decreto-Lei nº 352/86, de 21 de Outubro (Ref. 42/1986), que veio regulamentar os contratos internos de transporte de mercadorias por mar e que também regula os contratos internacionais de transporte de mercadorias que, por outra razão, se encontrem excluídos do âmbito material ou espacial de aplicação da Convenção de Bruxelas (designadamente, porque o conhecimento de carga não tenha sido emitido num Estado contratante: cf. o Artigo 10º da cit. Convenção de Bruxelas (14)), quando o Direito português for, nos mesmos termos, o competente, sendo ainda subsidiariamente aplicável, em relação ao regime contido na Convenção de Bruxelas, aos contratos internacionais de transporte de mercadorias abrangidos pelo âmbito de aplicação deste instrumento, quando o Direito português for, nos mesmos termos, o competente, subsidiariedade esta que decorre da superioridade hierárquica das fontes internacionais, reconhecida pelo art. 2.º do mesmo DL n.º 352/86 (15).
«Ora, no que diz respeito à limitação da responsabilidade do transportador, o artigo 31º deste Decreto-Lei nº 352/86 atualizou o valor referido no § 1 do artigo 1º do cit. Decreto-Lei nº 37.748, de 1 de Fevereiro de 1950 [Escudos 12.500$00], fixando-o, doravante, em Escudos 100.000$00.
«Por outro lado, na senda do referido Protocolo de 1968, os artigos 24º e 31º, nº 2, do mesmo Decreto-Lei nº 352/86 vieram consagrar os critérios a atender, no caso do transporte de mercadorias em contentores, para se apurarem os volumes ou unidades de carga relevantes para efeitos de cálculo do teto indemnizatório.
«Porém, o cit. Decreto-Lei nº 352/86 não revogou expressamente nenhuma disposição do referido Decreto-Lei nº 37.748; tendo, ao invés, atualizado o valor aí previsto em matéria de limite de responsabilidade do transportador, "pelo que o diploma de 1986 trouxe consigo, de forma acrescida, o problema de determinação do regime jurídico aplicável ao contrato de transporte marítimo de mercadorias" (16).
«Finalmente, o artigo 25º do Decreto-Lei nº 323/2001, de 17 de Dezembro (Ref. 170/2001) - diploma que procedeu à conversão de valores expressos em escudos para Euros, em legislação na área da justiça -, converteu em € 498,80 o valor (Esc. 100.000$00) fixado pelo cit. artigo 31º deste Decreto-Lei nº 352/86.
«A mencionada Convenção de Bruxelas (tanto na sua versão originária, como na redação alterada resultante dos aludidos Protocolos de 1968 e de 1979) apenas cura da responsabilidade do transportador "por perdas e danos causados às mercadorias ou que lhes digam respeito", isto é, apenas se ocupa da responsabilidade do transportador em caso de danos resultantes de perda ou de avaria das mercadorias transportadas. Consequentemente, a Convenção também só prevê, expressamente, a limitação da responsabilidade do transportador por perda ou avaria das mercadorias (Artigo 4º, nº 5).
«Perante este quadro normativo, são - inquestionavelmente - indemnizáveis, à luz da Convenção de Bruxelas, os danos físicos sofridos pelas mercadorias. Pelo que o transportador pode ser responsabilizado quer pela perda - total ou parcial - das mercadorias (isto é, pela ausência física das mercadorias), quer pela avaria das mesmas (quer dizer, pela deterioração física das mercadorias) (17).
«Uma vez apurado o valor dos danos sofridos pelas mercadorias, falta aferir se esse valor excede ou não o limite indemnizatório previsto no cit. artigo 4º, nº 5, da Convenção de Bruxelas, visto que, em caso afirmativo, o montante da indemnização ficará confinado ao valor desse teto indemnizatório (exceto se houver uma declaração de valor (18) ou um outro teto indemnizatório acordado entre as partes e mais favorável ao carregador (19); ou caso os danos resultem, nomeadamente, duma conduta dolosa do transportador).
«Do cit. artigo 4º, nº 5, da Convenção de Bruxelas decorre que o limite máximo do quantum indemnizatório é calculado por referência a dois parâmetros: um relativo à quantidade das mercadorias transportadas e outro constituído por uma unidade de conta.
«Do que se trata, não é dum critério para apuramento do valor dos danos, mas antes duma fórmula para cálculo do limite máximo do quantum indemnizatório (20).
Antes de mais, há que quantificar a carga, contabilizando o número de volumes ou unidades, para depois multiplicar o número de volumes ou unidades apurado pela unidade monetária estabelecida na Convenção.
«Ainda assim, o preceito em questão suscita problemas práticos na sua aplicação aos casos concretos.
«Logo à cabeça, a Convenção não define o que deve entender-se por volume ou por unidade, nem fornece elementos inequívocos suscetíveis de ajudar à determinação do sentido destes vocábulos.
«Quanto ao termo volume, tem sido tomado em duas aceções: uma aceção ampla e uma aceção restrita.
«Segundo uma aceção ampla, um volume é um objeto, uma entidade física, que, pela sua própria natureza, tem autonomia e, como tal, é referida no conhecimento de carga: de acordo com esta conceção ampla, um automóvel não embalado, por exemplo, constitui um volume (21).
«Diversamente, a doutrina e a jurisprudência inglesa e norte-americana, tal como a maioria da doutrina e da jurisprudência europeia equiparam o conceito de volume ao de mercadoria embalada (em sacos, caixas ou embrulhos, por ex.) e cujo número consta do conhecimento de carga. Nesta aceção, a chave do conceito está na existência de um invólucro, de uma embalagem.
«Para a doutrina portuguesa, o conceito de volume deverá ser prevalentemente entendido no sentido de mercadoria contida numa embalagem e a noção de unidade apenas será utilizada residualmente, quando não for possível utilizar o conceito de volume (22).
Porém, quanto a saber em que consiste afinal a unidade, inexistem critérios seguros para responder a esta indagação: há quem utilize a ideia de unidade de carga, em conformidade com os usos ou com o declarado no conhecimento; outros empregam um conceito baseado na unidade que serviu de base ao cálculo do frete. Mas, quando não seja possível conhecer a unidade de peso ou a medida em que se baseou o frete, faz-se apelo ao que resulta dos usos (23).
«De todo o modo, permanecem flutuantes os critérios utilizados.
«Foi precisamente para ultrapassar estas dificuldades que o referido Protocolo de 1968 introduziu, nesta matéria, um sistema misto, assente na possibilidade de o limite máximo da obrigação de indemnizar ser calculado com base no número de volumes ou unidades ou, em alternativa, com base no peso bruto da mercadoria expresso em quilogramas, consoante o limite mais elevado que se obtenha (24).
«As principais alterações introduzidas pelo Protocolo de 1968 consistiram:
«a) Na introdução duma nova grandeza para cálculo do quantum indemnizatório máximo: o quilograma de peso bruto da mercadoria;
«b) Para o cálculo do teto indemnizatório apenas passou a ser tido em consideração o peso das mercadorias efetivamente perdidas ou danificadas, e não o peso da totalidade do carregamento;
«c) Reduziu-se o número de unidades de conta a multiplicar pelos quilogramas de mercadorias perdidas ou danificadas: em vez de 10.000 francos Poincaré ou 666,67 unidades de conta para o cálculo com base no volume ou unidade, passou-se para 30 francos Poincaré ou 2 unidades de conta por quilograma;
«d) Quando se utiliza o quilograma, o peso que releva para o cálculo é o peso bruto das mercadorias - o que implica que, tratando-se de mercadorias embaladas, haverá que incluir o peso da própria embalagem e que, tratando-se de mercadorias a granel, haverá que incluir o peso de outras substâncias misturadas nas mercadorias (25).
«Relativamente ao transporte de mercadorias em contentores, pôs-se a questão de saber se o contentor (com todas as mercadorias que se encontram no seu interior) deverá ser considerado como um único volume, para efeitos de cálculo do teto indemnizatório, ou se esse cálculo deverá ser feito em função dos volumes ou unidades das mercadorias que se encontram dentro do contentor.
«Após um largo debate doutrinal e jurisprudencial, acabou por prevalecer e veio mesmo a ser consagrado na própria legislação - nomeadamente, no Artigo 4º, nº 5, da Convenção de Bruxelas (na redação introduzida pelo mencionado Protocolo de 1968) e, no nosso direito interno, pelo artigo 24º do cit. Decreto-Lei nº 352/86 - o entendimento segundo o qual, para efeitos de cálculo do limite indemnizatório, deverá ter-se em consideração o número de volumes ou unidades carregadas no contentor, desde que essa enumeração conste no conhecimento de carga (26).
«Caso o conhecimento de carga mencione apenas um contentor ou se o conteúdo do contentor não estiver claramente enumerado no conhecimento, então o cálculo do teto indemnizatório será feito em função de um único volume (27).
«Como deve ser feita a descrição dos volumes ou unidades incluídos no contentor, para que o cálculo do limite indemnizatório possa ser feito em função do número de volumes ou unidades? Será suficiente a simples enumeração dos volumes ou unidades ou será exigível uma descrição mais completa das mercadorias?
«Para a jurisprudência norte-americana, basta a enumeração (isto é, a mera quantificação) do número de volumes ou, quando as mercadorias não estejam sequer embaladas, a indicação do respetivo peso ou volume.
«Diversamente, a jurisprudência francesa costuma exigir, além da enumeração das mercadorias, a indicação de marcas, características e outros elementos que possibilitem a sua individualização.
«Segundo FRANCISCO COSTEIRA DA ROCHA (28), "a posição que tende a ser seguida atualmente preconiza a orientação da jurisprudência norte-americana (porventura a mais equilibrada, por estar mais próxima do estipulado seja na Convenção de Bruxelas, seja nas Regras de Hamburgo, quanto às indicações que devem constar no conhecimento de carga para que a limitação de responsabilidade seja calculada com base no conteúdo do contentor) (29).
«Quando o conhecimento de carga apenas mencione um contentor ou quando o conteúdo do contentor não estiver enumerado de forma clara no conhecimento de carga, preconiza-se, em ordem a corrigir a manifesta desatualização do valor do limite indemnizatório, que se proceda ao cálculo do limite indemnizatório em função do peso bruto da mercadoria perdida ou avariada (30).
«Assim é que, por exemplo, "caso tenha sido carregado um automóvel, apesar de embalado, na hipótese de estar declarado o seu peso no conhecimento de carga, a limitação de responsabilidade deverá ser feita tendo por base essa unidade de peso, pelo que a responsabilidade do transportador será o produto da multiplicação do quantum respondeatur pelo peso declarado no conhecimento de carga" (31).
«Foi esta, afinal, a solução perfilhada na Sentença ora sob recurso, em que se tomou como base de cálculo, para aferição do teto da responsabilidade do transportador, o peso bruto de 1500 kg do automóvel, da marca Volkswagen, chassis n.º 3VWSA29M9XM108712, mencionado no conhecimento de carga - o que conduziu à conclusão de que, in casu, o limite da responsabilidade da transportadora ora Ré era de 1500 kg x € 498,80 = € 748 200).
«De qualquer modo, a adoção desta solução apenas pode ter lugar "se for aplicável o Protocolo de 1968 ou as Regras de Hamburgo" - como reconhece o mesmo autor (FRANCISCO COSTEIRA DA ROCHA) que preconiza o recurso a esta solução, como forma de corrigir a notória desatualização do valor do teto indemnizatório.
«Ora - como se sabe - PORTUGAL não ratificou nem o Protocolo de 1968 (também conhecido por Protocolo de Visby ou Regras de Visby), nem o Protocolo de 1979 (também conhecido por Protocolo SDR), que alteraram a Convenção de Bruxelas de 1924.
«Inexiste, assim, base legal para aplicar ao caso dos autos uma fórmula para cálculo do limite máximo do quantum indemnizatório do transportador marítimo de mercadorias que não é aquela que está consagrada na versão originária do Art. 4º, nº 5, da Convenção de Bruxelas - o único texto internacional que está em vigor na ordem jurídica portuguesa.»
É pela partilha deste entendimento que se compreendem os acórdãos citados nas contra-alegações de recurso:
- Do Supremo Tribunal de Justiça de 16/03/2004, Proc. n.º 4A077, onde se refere: «Tendo o autor dado a conhecer à firma transitária, com quem celebrou o contrato de transporte marítimo, os concretos bens a transportar e os respetivos valores, não opera a limitação de responsabilidade prevista nos artºs. 4º, n.º 5 da Convenção de Bruxelas de 25.8.1924 e 31º, nº. 1 do DL nº. 352/86, de 21/10, porquanto a comunicação dos bens a transportar e dos respetivos valores visou precisamente acautelar a indemnização que porventura viesse a ser devida ao autor, o que foi aceite pela ré transitária».
- Da Relação do Porto de 17/06/2003, Proc. n.º 0320964, quando diz: «O limite da responsabilidade da transportadora (artigo 31 do Decreto-Lei n.352/86 de 21 de Outubro e o artigo 1 n.1 do Decreto-Lei n.37748 de 1 de Fevereiro de 1950) não existirá se quando a natureza e o valor das mercadorias tiverem sido declaradas pelo carregador antes do seu embarque e tal declaração tiver sido inserida no conhecimento».
- Da Relação de Lisboa de 03/07/2012, Proc. 143/08.2TNLSB.L1-7, com o seguinte sumário:
«II. A ideia de se reduzir a um volume e/ou a uma unidade, cada um dos contentores embarcados, nos casos em que se verificam avarias de mercadoria, assenta tão só na impossibilidade de se ter apurado a espécie das coisas transportadas nesses mesmos contentores e não às situações em que se encontram perfeitamente discriminadas as mercadorias transportadas, quer em relação à espécie, quer ao peso, no conhecimento de carga, tal decorre do disposto no artigo 4.º, n.º 5, da Convenção, aplicável nos termos do artigo 1.º, n.º 1, § 1.º do Decreto-Lei n.º 37 748, de 01 de Fevereiro de 1950 e artigo 24.º do Decreto-Lei n.º 352/86, de 21 de Outubro.
«III. A limitação de responsabilidade do transportador inscrita no artigo 4.º, n.º 5, da Convenção de Bruxelas apenas tem aplicação nos casos em que nos conhecimentos de embarque ocorra uma omissão quanto aos produtos transportados, em conformidade com o disposto no artigo 4.º, n.º 1, alínea c) e artigo 5.º, n.º 1, alínea a), do Decreto-Lei n.º 352/86, de 21 de Outubro, aplicando-se, nesse caso, o limite de responsabilidade do transportador a Pte. 100.000$00 (€ 498,80) - artigo 9.º da Convenção de Bruxelas, artigo 1.º, § 1º do Decreto-Lei n.º 37 748, de 01 de Fevereiro de 1950 e artigo 31.º, n.º 1 do Decreto-Lei n.º 352/86, de 21 de Outubro.
«IV. Quando tal omissão não ocorra, devemos nos socorrer dos elementos inscritos no conhecimento de embarque, por referência direta ao disposto nos artigos 11.º e 24.º, n.º 1 do Decreto-Lei n.º 352/86, de 21 de Outubro e artigo 4.º, n.º 5 da Convenção de Bruxelas de 25 de Agosto de 1924.”
- Da Relação do Porto de 25/02/2013, Proc. 2469/08.6TBOAZ.P1, onde se afirma que: «Se no conhecimento de embarque consta a natureza da mercadoria transportada e a indicação do número de volumes em que se mostra acondicionada (711 caixas), com indicação do peso total, da tara e do tipo de embalagens em questão, fica afastado o limite indemnizatório constante do artº 31º, nº 1 do DL 352/86, de 100 000$00 por volume ou unidade».
E ainda o Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa de 03/07/2012 desta 7.ª Secção (Proc. n.º 143/08.2TNLSB.L1-7 – Relatora: Dina Monteiro, disponível em www.dgsi.pt), donde se destaca o seguinte sumário:
«II. A ideia de se reduzir a um volume e/ou a uma unidade, cada um dos contentores embarcados, nos casos em que se verificam avarias de mercadoria, assenta tão só na impossibilidade de se ter apurado a espécie das coisas transportadas nesses mesmos contentores e não às situações em que se encontram perfeitamente descriminadas as mercadorias transportadas, quer em relação à espécie, quer ao peso, no conhecimento de carga, tal decorre do disposto no art.º 4.º, n.º5, da Convenção, aplicável nos termos do artigo 1.º, n.º1 § 1.º do Decreto-Lei n.º 37 748, de 01 de Fevereiro de 1950 e artigo 24.º do Decreto-Lei n.º 352/86, de 21 de Outubro.
«III. A limitação de responsabilidade do transportador inscrita no artigo 4.º, n.º 5, da Convenção de Bruxelas apenas tem aplicação nos casos em que nos conhecimentos de embarque ocorra uma omissão quanto aos produtos transportados, em conformidade com o disposto no artigo 4.º, n.º 1, alínea c) e artigo 5.º, n.º 1, alínea a), do Decreto-Lei n.º 352/86, de 21 de Outubro, aplicando-se, nesse caso, o limite de responsabilidade do transportador a Pte. 100.000$00 (€ 498,80) - artigo 9.º da Convenção de Bruxelas, artigo 1.º, § 1º do Decreto-Lei n.º 37 748, de 01 de Fevereiro de 1950 e artigo 31.º, n.º 1 do Decreto-Lei n.º 352/86, de 21 de Outubro.
«IV. Quando tal omissão não ocorra, devemo-nos socorrer dos elementos inscritos no conhecimento de embarque, por referência direta ao disposto nos artigos 11.º e 24.º, n.º 1 do Decreto-Lei n.º 352/86, de 21 de Outubro e artigo 4.º, n.º 5 da Convenção de Bruxelas de 25 de Agosto de 1924.»
Seguindo o entendimento exposto, como no conhecimento de carga (“Bill of Landing”) é descrito um contentor com 1835 volumes, o limite da indemnização resultante da Convenção de Bruxelas de 1924 aplicável ao caso será de 1835 volumes x €498,80 = €915.298,00. Logo, a indemnização fixada pela 1.ª instância não excede o limite resultante da aplicação do Art. 4.º n.º 5 da Convenção de Bruxelas de 1924. Por outro lado, também assentamos na conclusão de que este dispositivo legal não estabelece qualquer limite aos danos indemnizáveis, pelo que a indemnização não deve cobrir apenas as perdas materiais da mercadoria, compreendendo outras despesas e, por exemplo, lucros cessantes, na medida em que sejam «perdas e danos causados às mercadorias ou que lhe digam respeito».
Em consequência de todo o exposto, não decorre do Art. 4.º parágrafo 5.º da Convenção de Bruxelas de 1924 qualquer exclusão ou limitação à obrigação de indemnização a cargo da 1.ª R. que pudesse justificar a alteração da sentença recorrida na parte que condenou a aqui Recorrente, improcedendo as conclusões apresentadas que sustentam o oposto.
V- DECISÃO
Pelo exposto, acorda-se em julgar a apelação improcedente por não provada, rejeitando a impugnação da matéria de facto por incumprimento dos ónus estabelecidos no Art. 640.º n.º 1 al. b) e n.º 2 al. a) do C.P.C. e mantendo a sentença recorrida nos seus precisos termos.
- Custas pela Apelante (Art. 527º n.º 1 do C.P.C.).
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Lisboa, 2 de fevereiro de 2021
Carlos Oliveira
Diogo Ravara
Ana Rodrigues da Silva