Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
1469/12.6TVLSB-A.L1-6
Relator: TERESA PARDAL
Descritores: ARTICULADO SUPERVENIENTE
FACTOS INSTRUMENTAIS
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 10/13/2016
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: N
Texto Parcial: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: IMPROCEDENTE
Sumário: -Os factos constitutivos, modificativos e extintivos do direito que sejam super- venientes, previstos no artigo 588º nº1 do CPC e que a parte pode alegar no articulado superveniente, são apenas os factos essenciais a que se refere o artigo 5º nº1 do CPC.
-Tratando-se de factos supervenientes, mas meramente instrumentais, a rejeição liminar do articulado superveniente integra-se na rejeição com o fundamento na impertinência dos factos para a boa decisão da causa, prevista no nº4 do artigo 588º.
(Sumário elaborado pela Relatora)
Decisão Texto Parcial: Acordam os juizes, do Tribunal da Relação de Lisboa.


RELATÓRIO:


C…, SA intentou acção declarativa com processo ordinário contra G…, Lda, T…, SA, B… e P… alegando, em síntese, que a 1ª ré é dona de um prédio onde tem instaladas as estruturas de um centro comercial e hipermercado de uma cadeia francesa, explorando a 2ª ré o hipermercado por via de contrato celebrado entre ambas, sendo os 3º e 4º réus gerentes da 1ª ré e o 3º ré também administrador executivo da 4ª ré e tendo todos projectado construir num terreno confinante, também da 1ª ré, novas instalações do hipermercado com respectiva galeria comercial e, neste prédio bem como em parte do outro, proceder à transformação e adaptação do edifício já existente e criar, no conjunto, um Retail Park.

Mais alegou que a autora foi convidada para participar neste projecto, que culminaria com a outorga, pela 1ª ré e pela autora, de um contrato de compra e venda de terreno e de um contrato de empreitada, o que foi aceite pela autora, encetando as partes negociações e diligências diversas, que prosseguiram ao longo de meses, até que os réus se recusaram a assinar os contratos como previsto e propuseram um projecto alternativo, em que só seria outorgado o contrato de compra e venda e não o contrato de empreitada e, perante a recusa da autora, declararam que iriam apresentar nova proposta que simultaneamente compensasse os prejuízos que a autora sofreria com a alteração, o que nunca fizeram.

Concluiu alegando que os réus são todos responsáveis, nos termos do artigo 227º do CC, pelos prejuízos sofridos pela autora com a não concretização do projecto e outorga dos contratos e pedindo a condenação dos réus a pagar-lhe a respectiva indemnização.

Os réus contestaram invocando a ilegitimidade dos 3º e 4º réus e impugnando os danos invocados; alegaram ainda que as duas rés fazem parte de um grupo de distribuição de origem francesa, no âmbito do qual a 1ª ré é proprietária dos imóveis onde estão os centros comerciais do grupo existentes em Portugal, sendo a exploração de cada centro comercial feita por uma sociedade constituída especificamente para o efeito, como é o caso da 2ª ré, que explora o centro comercial a que se refere a petição inicial, encontrando-se a exploração dos centros comerciais deste grupo económico assente na figura do “aderente”, que é o administrador e o accionista maioritário da sociedade que explora um centro e que, ao aderir ao grupo, deve ser acompanhado por aderentes que assumirão o papel de seus “padrinhos”, que compõem uma comissão à qual têm de ser submetidos, para aprovação, todos os novos projectos do apadrinhado.

Mais alegaram que no caso dos autos o aderente é o 3º réu, administrador da sociedade 2ª ré, sendo seus “padrinhos” várias sociedades do grupo, uma delas o “padrinho” principal, não podendo a 2ª ré iniciar e prosseguir com o projecto sem a sua prévia aprovação, acontecendo que, após a conclusão dos vários estudos do projecto, as duas rés ponderaram em conjunto com os padrinhos do 3º réu a forma de o executar, tendo sido decidido, também pelos padrinhos, entregar a empreitada a terceiro, obrigando o 3º réu e a 2ª ré a rever o projecto, sem que nada o fizesse prever e contra a sua vontade.

Alegaram também que sempre foi dado conhecimento e explicado à autora que o projecto necessitava da aprovação do padrinho do 3º réu, pois, sem o financiamento do grupo, as rés não conseguiriam suportar os respectivos custos e que a 1ª ré e o 4º réu não tiveram qualquer tipo de iniciativa no processo, cabendo apenas à primeira a celebração dos contratos se o projecto fosse aprovado, mas, quando foi comunicado à autora a não aprovação do projecto, esta não aceitou estudar qualquer alternativa para o alterar, apesar de os réus estarem disponíveis e interessados em fazê-lo. 

Concluíram pedindo a procedência da excepção e a improcedência da acção.

A autora replicou, opondo-se à excepção de ilegitimidade e impugnando a versão alegada na contestação, alegando que antes da decisão de formalizar as assinaturas dos contratos, os réus afirmaram em várias reuniões que o projecto já tinha sido apreciado pelos accionistas franceses da 1ª ré.

Concluiu como na petição inicial.

Teve lugar a audiência prévia nos dias 25 de Março e 7 de Abril de 2014, onde foi proferido despacho saneador que julgou improcedente a excepção de ilegitimidade e onde foi fixado o objecto do litígio, os factos assentes e os temas de prova.

Depois da audiência prévia, em 7 de Dezembro de 2015, veio a autora apresentar articulado superveniente, juntando documentos, como o contrato de mediação que serviu para encontrar o parceiro para o projecto e mails trocados entre os vários envolvidos no processo de negociação do projecto e alegando factos que pretende provar com tais documentos e que são:
-a iniciativa da reestruturação e ampliação do centro comercial foi tomada e desenvolvida pelas rés, com conhecimento e aprovação dos legais representantes, em França, do sócio único da S…, por intermédio da sua administração, F…, da U…, por intermédio do presidente da sua administração, J… e também dos directores de ambas essas empresas e do alegado padrinho principal da 2ª ré, o referido J… e dos referidos padrinhos;
-no âmbito das relações internas do grupo, as respectivas estruturas dirigentes foram acompanhando e aprovando os diversos passos dados em Portugal pelo 3º réu em nome das duas rés, desde os estudos iniciais, conhecimento das negociações e até à aprovação definitiva sem condições;
-a forma como foi elaborado o acordo de mediação que as rés e a sua equipa utilizaram para encontrar o parceiro para o projecto demonstra que já havia sido concedida a aprovação do grupo em França;
-a 1ª ré e o 4º réu estiveram envolvidos activamente no processo;
-as negociações entre a autora e os réus não foram iniciadas e conduzidas sob qualquer reserva, não tendo sido colocada qualquer condição à autora.  

Como fundamento da superveniência dos factos, alegou ainda a autora que em Fevereiro ou Março de 2015 o representante da autora encontrou o 3º réu, e este deu-lhe conhecimento das divergências que mantinha com os outros réus e relatou-lhe os factos ora alegados, facultando-lhe os documentos que acompanham o articulado superveniente.

Concluiu a autora pedindo a admissão do articulado superveniente, com a consideração dos respectivos factos nos factos assentes e nos temas de provas, bem como a condenação das 1ª e 2ª rés e do 4º réu em multa e indemnização por litigância de má fé.

Foi proferido despacho que rejeitou liminarmente o articulado superveniente, com o fundamento de que os factos alegados no articulado superveniente não são factos constitutivos, modificativos ou extintivos do direito em discussão nos autos e determinou a notificação da autora para esclarecer quais os documentos juntos com o articulado que pretende que fiquem nos autos e para juntar a sua tradução, bem como para indicar a factualidade integrante dos temas de prova a que os mesmos se destinam a fazer prova ou contraprova.
                                                              
Inconformada, a autora interpôs recurso da decisão que não admitiu o articulado superveniente e alegou, formulando conclusões com os seguintes argumentos:

-Aos factos alegados pelos réus na contestação, que têm natureza de excepção peremptória, podia a autora responder, impugnando-os ou então alegando outros que, por sua vez, fossem impeditivos, modificativos ou extintivos da eficácia daquela excepção (contra-excepção).
-À alegação desses factos de contra-excepção aplica-se o regime dos articulados supervenientes quando a parte, neste caso a autora, só deles teve conhecimentos após o decurso do prazo de resposta à contestação, pelo que podia a autora alegá-los em articulado superveniente.
-Estes factos de contra-excepção são essenciais, na medida em que são necessários ao apuramento e improcedência da excepção peremptória invocada na contestação.
-Para além dos factos essenciais, podem também as partes alegar, ao longo do processo, factos instrumentais, razão pela qual podia a autora alegar factos dessa natureza no articulado superveniente.
                                                      
A recorrida G…, Lda contra-alegou pugnando pela improcedência do recurso.

O recurso foi admitido como apelação, com subida imediata, em separado e efeito devolutivo.
                                                         
A questão a decidir é a de saber se deve ou não ser admitido liminarmente o articulado superveniente apresentado pela autora ora apelante.
                                                           
FACTOS.

Os factos a atender são os que constam no relatório do presente acórdão.
                                                           
ENQUADRAMENTO JURÍDICO.

A lei permite que, após os articulados e antes do encerramento da discussão, sejam alegados os factos constitutivos, modificativos ou extintivos dos direitos invocados pelas partes, que forem supervenientes aos prazos fixados para os articulados, por terem ocorrido posteriormente ao termo destes prazos, ou por a parte só deles ter tido conhecimento depois de eles findarem.

A possibilidade de alegar factos supervenientes está contemplada no artigo 588º do CPC, em harmonia com o previsto no artigo 611º do mesmo código, por força do qual a sentença deverá atender aos factos constitutivos, modificativos e extintivos do direito que se produzam posteriormente à propositura da acção, de forma a que a decisão corresponda à situação existente no momento do encerramento da discussão.

Sendo assim e tratando-se apenas de assegurar a actualização da descrição dos factos que são determinantes para a procedência ou improcedência da acção ou da reconvenção, os factos a atender serão só os factos constitutivos, modificativos e extintivos, ou seja, os factos essenciais que a parte tem o ónus de alegar, a que se refere o artigo 5º nº1 do CPC (cfr neste sentido ac RG 10/04/2014, p. 387/11, em www.dgsi.pt).

Na verdade, o artigo 5º nº1 do CPC estatui, no seu nº1, que “às partes cabe alegar os factos essenciais que constituem a causa de pedir e aqueles em que se baseiam as excepções invocadas”.

Por seu lado, o nº2 o referido artigo 5º prevê, nas suas alíneas a), b) e c), os factos que o juiz considerará mesmo que não alegados pelas partes, entre os quais os factos instrumentais que resultem da instrução da causa, factos estes que, embora possam ser alegados pela parte nos articulados normais, já não poderão ser alegados no articulado superveniente, destinado apenas à actualização dos factos essenciais (constitutivos, modificativos e extintivos), mas sem prejuízo de, em sede de instrução, poderem eventualmente vir a ser considerados pelo juiz (e também, se for caso disso, para efeitos de condenação por litigância de má fé).

Voltando ao caso dos autos, é manifesto que os factos alegados no articulado superveniente da apelante não são factos essenciais.
Os factos ora alegados no articulado superveniente – como as comunicações trocadas pelas partes envolvidas e os acordos celebrados com outra entidade para encontrar o parceiro para o projecto – são factos instrumentais que, não sendo subsumíveis a uma conclusão de direito que determine a procedência ou improcedência da acção, podem, eventualmente, levar à demonstração dos factos essenciais.

Tais factos não são constitutivos do direito (causa de pedir), nem integram uma excepção (artigo 576º do CPC) e, ao contrário do que a apelante alega, também não são factos de “contra-excepção” e essenciais para o conhecimento da excepção invocada na contestação dos apelados, integrando, sim, com natureza instrumental, a impugnação que a autora já deduziu, no articulado de réplica, à excepção invocada na contestação.

A rejeição liminar do articulado superveniente integra, assim, a rejeição com fundamento na impertinência dos factos para a boa decisão da causa, prevista no nº4 do artigo 588º do CPC, devendo manter-se o despacho recorrido e improcedendo as alegações de recurso. 
                                                          
DECISÃO.
Pelo exposto, acorda-se em julgar improcedente a apelação e mantém-se o despacho recorrido.                                                        
Custas pela apelante.

                                                           

Lisboa,2016-10-13

 
                                                                  
Maria Teresa Pardal                                                               
Carlos Marinho                                                              
Maria Manuela Gomes   
Decisão Texto Integral: