Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
41/21.4PFBRR.L1-9
Relator: JOSÉ CASTRO
Descritores: REVOGAÇÃO DA SUSPENSÃO PROVISÓRIA DO PROCESSO
CONTRADITÓRIO
IRREGULARIDADE
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 03/07/2024
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Texto Parcial: N
Meio Processual: RECURSO PENAL
Decisão: PROVIDO
Sumário: (da responsabilidade do relator)
- Apesar de não ser automática a revogação da suspensão provisória do processo, por incumprimento das injunções e regras de conduta, e não obstante não ter sido observado o contraditório do arguido pelo MP antes de a revogar, determinando o prosseguimento dos autos, não está em causa qualquer nulidade por violação do disposto no art.º 61º, nº 1, al. b), do CPP, norma que se dirige ao JIC ou ao juiz de julgamento, consoante os casos, mas não ao MP;
- Nessa hipótese, vigorando o princípio da legalidade (taxatividade) das nulidades por força do disposto no art.º 118º, nº 1, do CPP, não sendo o ato omitido nulo, quando muito, para o caso de se entender que o prévio contraditório é obrigatório, estaria verificada uma irregularidade procedimental, nos termos dos artgs 118º, nº 2, e 123º, nº 1, ambos do CPP;
- Seja porquanto a mesma não foi arguida tempestivamente nos termos do art.º 123º, nº 1, do CPP, estando assim sanada, seja porquanto se entenda que não é obrigatória a observância do prévio contraditório, tal questão não podia ter sido conhecida oficiosamente na sentença recorrida, pelo que se verifica a nulidade a que se reporta o art.º 379º, nº 1, al. al. c), 2ª parte, do CPP.
Decisão Texto Parcial:
Decisão Texto Integral: Acordam, em conferência, na 9ª Secção do Tribunal da Relação de Lisboa:

RELATÓRIO
No âmbito do proc. comum singular nº 41/21.4PFBRR, que corre termos no Juízo Local Criminal do Barreiro – Juiz 1, do Tribunal Judicial da Comarca de Lisboa, em que é arguido AA, com sinais identificadores nos autos, efetuado o julgamento, a 19.10.2023 foi proferida sentença (refª 429349167) com o seguinte teor (transcrição parcial, na parte relevante):
«Muito embora a acusação haja sido recebida e, então, tenham sido designadas data e hora para realização do julgamento e tivessemos procedido, justamente, à realização da audiência de discussão e julgamento nos presentes autos, não é possível - melhor compulsados os autos, na sequência da apresentação, pela defesa do arguido, AA, da contestação admitida e da análise da documentação junta à mesma - afirmar que a instância se deve ter por válida e regular.
Impõe-se – outrossim - a título de questão prévia aquilatar, justamente, da regularidade da instância, em face de tais documentos e do processado durante a fase do inquérito.
Vejamos em termos.
Após ter sido obtida a concordância do arguido e do Mm. Juiz de instrução, foi declarada, a fls. 28 dos autos, a suspensão provisória do processo, em fase de inquérito, pelo período de 4 (quatro) meses, mediante a imposição ao primeiro das seguintes injuções:
• prestar 60 (sessenta) horas de serviço de interesse público em condições a definir pela D.G.R.S.P.;
e
• não conduzir durante o período de 3 (três) meses, procedendo à entrega da sua carta de condução, no D.I.A.P. do Barreiro ou em qualquer posto policial, no prazo de 10 (dez) dias.
Por carta expedida a 21 de Julho de 2021 e depositada, no seu receptáculo postal, no dia 23 do mesmo mês e ano, o arguido, AA, foi notificado de tal despacho e, cerca de 3 (três) meses depois, por carta expedida em 18 de Outubro de 2021, foi notificado para esclarecer se consentiria na prorrogação do período de duração da suspensão provisória por mais 3 (três) meses,mediante a imposição de frequentar a actividade estruturada de reinserção social “Taxa.Zero”, em condições a definir pela D.G.R.S.P., na sequência de proposta apresentada por esta última.
AA veio confirmá-lo, anuindo, expressamente, na prorrogação a que se fez alusão, por requerimento, junto a fls. 36, em 29 de Outubro de 2021, e fez entrega de uma guia de substituição da sua carta de condução, a qual permaneceria junta aos autos até lhe ter sido devolvida em 2 de Março do ano seguinte.
Por despacho de fls. 44, foi prorrogado, por mais 3 (três) meses, o período de duração da suspensão provisória do processo, desta feita, aplicando-se ao arguido, AA, a injunção de frequentar a sobredita actividade estruturada.
AA foi notificado de tal despacho por carta que ficou depositada, no correspondente receptáculo postal, em 5 de Janeiro de 2022.
Informaria o Ministério Público, em 8 de Março desse ano, por missiva junta a fls. 52, de que iria estar ausente do país, por motivo professional, mas contactável através da sua mandatária (constituído), cujo contacto telefónico recordou, e através do seu telemóvel, cujo número também forneceu aos autos.
A 9 de Maio de 2022, o arguido, AA, tornou a informar o Ministério Público de que estava ausente do país, em trabalho, regressando em Agosto, e que poderia, então, realizar a actividade a que ficara obrigado.
A verdade é que nenhuma das suas missivas obteve resposta, não resultando sequer dos autos que haja sido dado conhecimento do teor das mesmas à D.G.R.S.P..
Por seu turno (e na sequência de várias insistências feitas nesse sentido), a D.G.R.S.P. informou, finalmente, os autos, em 8 de Junho de 2022, que não lograra contactar o arguido, AA, por via postal simples, e, em 23 de Junho de 2022, que a companheira do arguido, BB, fizera saber, por meio de contacto telefónico que, para o efeito, tomara a iniciativa de estabelecer, que o arguido se mantinha emigrado em ....
Logo de seguida e sem que qualquer outra diligência houvesse sido realizada, a 27 de Junho de 2022, foi proferido despacho a determinar o prosseguimento dos autos, por incumprimento das injunções fixadas e, em 6 de Julho de 2022, deduzida acusação pública contra o arguido, AA.
Tais despachos não foram antecedidos de qualquer notificação ao arguido, AA, ou à Ilustre Mandatária que constituiu e o primeiro não foi – sequer – notificado a qualquer dos dois.
Muito embora o arguido AA, nada tivesse suscitado, a tal propósito, na sequência da dedução de acusação, viria a fazê-lo ao contestar, remetendo a juízo cópia das comunicações que enviara ao Ministério Público, no decurso do período de duração da suspensão provisória, as quais, de resto, já se mostravam juntas aos autos.
Impõe-se, assim e, mormente, em face da contestação apresentada, importa, como já se antecipou, apreciar a questão da regularidade da instância.
Vejamos em que termos.
A suspensão provisória do processo encontra-se prevista nos artigos 281º e 282º do C.P.P, prevendo-se no artigo 282º do C.P.P que o processo prossegue e as prestações feitas não podem devolvidas, se o arguido não cumprir as injunções e regras de conduta ou, se durante o prazo de suspensão, cometer crime da mesma natureza pela qual tenha sido julgado.
Prevê-se, inversamente, no n.º 3 do artigo 282º do C.P.P que, caso o arguido cumpra as injunções e regras de conduta, o Ministério Público arquiva o processo, não podendo ser reaberto.
A opção pela dedução da acusação, ao invés do arquivamento do processo, competirá, assim, ao Ministério Publico, mas ocorrerá, unicamente, quando o arguido não cumpra total ou parcialmente as injunções ou regras de conduta impostas ou quando cometa crime durante a suspensão provisória.
Ao caso dos autos interessa a primeira das situações a que nos referimos, ou seja, a do putativo incumprimento das injunções propostas e, em concreto, da atinente à frequência da sobredita acção formative, já que resulta dos autos que o arguido, AA, fez, como lhe competia, entrega da guia de substituição do seu título de condução e não há notícia de que tenha conduzido nos três meses subsequentes.
A este propósito, vem sendo pacificamente entendido na jurisprudência que não deve haver lugar à revogação automática da suspensão provisória do processo, na medida em que o incumprimento - mormente, quando é atendido como parcial - não envolve, por si só, um juízo de culpa por parte do arguido e também não se presume culposo, antes se impondo que seja aferida da culpa do arguido quanto ao não cumprimento das obrigações que lhe são impostas.
In casu, o processo ficou suspenso pelo período de 4 (quatro) meses, subsequentemente, prorrogado por mais 3 (três).
A D.G.R.S.P. convocou-o por via postal, com vista à frequência da acção formative a que se vem fazendo alusão, mas fê-lo já depois de terem decorrido alguns meses sobre o final do período fixado e da sobredita prorrogação, ocorrido em Abril de 2022.
Ainda, no decurso de tal período (e sem que tivesse recebido qualquer convocatória), o arguido, AA, teve a preocupação, logo em Março, de comunicar que se iria ausentar, para o estrangeiro, em trabalho e até deixou os seus contactos.
Mais fez saber que estaria de volta em Agosto, disponível para cumprir a injução em causa.
A D.G.R.S.P. foi informada disso mesmo pela companheira do arguido, na sequência da convocatória – tardia - que lhe remeteu por via postal.
A verdade é, porém, que, tendo decorrido o período de suspensão fixado e não tendo sido convocado, para o aludido efeito, no decurso do mesmo, se entendeu culposo o incumprimento do arguido, AA, que, sendo convocado meses depois – em Junho de 2022 - para frequentar a acção formative em causa, fez saber que só em Agosto regressaria a Portugal e estaria disponível para o fazer.
Assim tendo sido, temos para nós que, dificilmente, se poderá - sequer - ter tal incumprimento, meramente, parcial como um incumprimento “culposo”, mas – ainda que se devesse entendê-lo - haveria de se ter dada oportunidade ao arguido – na sua pessoa e/ou na pessoa da Ilustre Mandatária que constituiu - para esclarecer/comprovar porque motivo não lhe seria possível deslocar-se, em Junho, ao nosso país.
A verdade é, porém, que, no caso em apreço, não lhe foi dada a oportunidade de dar qualquer explicação nesse particular, antes se aludindo, de forma automática, no despacho que determinou a revogação da suspensão provisória e determinou o prosseguimento dos autos, ao incumprimento das injunções fixadas.
Impondo-se ao Ministério Publico que ouvisse a defesa nesse particular, a omissão da audição do arguido em momento prévio à decisão do prosseguimento do processo íntegra nulidade nos prevista no artigo 120.º, nº 2, al. d) e artigo 61.º, nº 1, al. b) todos do C.P.P. – cfr. nesse sentido a jurisprudência que já foi proferida neste particular e, em concreto, os acórdãos do Tribunal da Relação do Porto de 09/12/2015 e do Tribunal da Relação de Guimarães de 11/01/2021.
Assim e não o tendo feito, o despacho que determinou a revogação da suspensão provisória e o prosseguimento dos autos, com dedução da acusação, é, pois, um despacho que se deve ter por inválido e como tal, assim, se declara, nos termos do artigo 120.º, nº 2, al.d) e artigo 122.º ambos do C.P.P determinando-se a remessa dos autos, novamente, ao DIAP para os fins tidos por conveniente.
Inexiste lugar a tributação – cfr. os artigos 513.º e ss., a contrario do C.P.P.
Notifique, deposite, remeta ao D.I.A.P. e dê baixa.”»
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Inconformado com tal sentença, o Ministério Público dela interpôs recurso (refª 37611487), apresentando em abono da sua posição as seguintes conclusões da motivação (transcrição):
«IV Conclusões
1. Por sentença datada de 19/10/2023, foi o arguido AA absolvido da prática de crime de desobediência, p. e p. pelo artigo 348.º, n.º 1, alínea a) do Código Penal.
2. No entendimento da Mma. Juiz, vertido na Sentença aqui posta em crise, o Ministério Público procedeu a uma revogação automática da suspensão provisória do processo, da qual beneficiara o arguido, em sede de Inquérito.
3. Operou essa revogação sem procurar ouvir o arguido.
4. Assim, com a decisão de revogação da suspensão provisória do processo, violou o Ministério Público o disposto nas normas constantes dos artigos 120.º, n.º 2, alínea d) e 61.º, n.º 1, alínea b), ambos do Código de Processo Penal.
5. Determinou assim a Mma. Juiz, por um lado a absolvição do arguido do crime pelo qual foi acusado, bem como a remessa dos autos, ao DIAP para os fins tidos por convenientes.
6. Aqui se afirma que a decisão da revogação da suspensão provisória do processo e consequente dedução de acusação não violou as normas em questão.
7. Por outro lado, a Sentença violou o disposto nos artigos 379.º, n.º 1, alínea c) do Código de Processo Penal, (sendo, portanto, nula) e no artigo 348.º, n.º 1, alínea a) do Código Penal.
8. Quanto ao artigo 120.º, n.º 2, alínea d) do Código de Processo Penal, constitui nulidade dependente de arguição a insuficiência de inquérito ou da instrução, por não terem sido praticados atos legalmente obrigatório, e a omissão posterior de diligências que pudessem reputar-se essenciais para a descoberta da verdade.
9. Não existiu Instrução no presente processo, pelo que não está em causa a insuficiência dessa fase.
10. A insuficiência de inquérito determina-se a partir dos atos que (não) foram praticados.
11. Há que distinguir entre os atos legalmente obrigatórios e os restantes.
12. Quanto aos atos legalmente obrigatórios, estes não estão em causa no presente caso, tendo sido observados todos esses atos que têm cabimento no presente caso, a constituição de arguido, prestação de TIR, interrogatório do arguido.
13. Outros atos legalmente obrigatórios não teriam sentido no presente caso, como é o caso, por exemplo, de omissão de perícia obrigatória, falta de tomada de posição do Ministério Público depois de deduzida acusação particular, omissão da informação dos eventuais lesados nos termos do artigo 75.º do Código de Processo Penal, etc…
14. Pelo que se conclui não estar em falta nenhum ato legalmente obrigatório.
15. Não constitui nulidade da insuficiência do inquérito a omissão de diligências de investigação não impostas por lei (Acórdão do TC n.º 395/2004 e Acórdão do TRP, de 02/11/2005, in CJ, XXX, 5, 211, (Comentário…ALBUQUERQUE, 4ª edição atualizada, Universidade Católica Editora, p. 320).
16. Não existiu, de igual modo, omissão posterior de diligências potencialmente essenciais para a descoberta da verdade.
17. Desde logo, este trecho está orientado para a fase de julgamento. Trata-se de uma nulidade devida pela omissão de atos processuais na fase de julgamento e de recurso.
18. Assim, não está em causa o presente trecho, tendo em conta a motivação da Sentença, procurando claramente colocar a existência de suposta nulidade na fase de inquérito.
19. Conclui-se assim, que o despacho que determinou a revogação da suspensão provisória do processo não está ferido da nulidade constante do artigo 120.º, n.º 2, alínea d) do Código de Processo Penal, porque não se verifica insuficiência de inquérito, já que todos os atos legalmente obrigatórios foram observados, e não está em causa a omissão posterior de diligências potencialmente essenciais para a descoberta da verdade.
20. Não foi, de igual modo, violada a normas constante do artigo 61.º, n.º 1, alínea b) do Código de Processo Penal.
21. Com efeito, dispõe essa norma que o arguido goza, em especial, em qualquer fase do processo e salvas as exceções da lei, do direito de ser ouvido pelo tribunal ou pelo juiz de instrução sempre que eles devam tomar qualquer decisão que pessoalmente os afete.
22. Desde logo, esta norma dirige-se ao Tribunal e ao Juiz de Instrução, não se dirigindo, pelo mesmo diretamente, ao Ministério Público.
23. Aliás, o arguido poderia ter sido ouvido pelo Juiz de Instrução, acerca da decisão que pessoalmente o afeta, de revogar a suspensão provisória do processo.
24. Poderia ter sido ouvido, tivesse requerido a abertura de instrução.
25. Não o fez.
26. Não pode o presente normativo ser interpretado no sentido de dever o arguido ser ouvido, pelo Ministério Público, em sede de Inquérito, antes de ser deduzida a acusação.
27. Tendo o arguido já sido interrogado, a dedução da acusação não carece de audição prévia do arguido.
28. Concordamos que a revogação da suspensão provisória do processo não pode ser automática, devendo o arguido ser ouvido antes de poder ser tomada tal decisão.
29. Mas poderá o arguido defender-se contra tal decisão, o que nos remete para o artigo 61.º, n.º 1, alínea b) do Código de Processo Penal.
30. O artigo 61.º deve ser entendido em bloco, como concretização de direito constitucional português e direito internacional dos direitos humanos.
31. No que mais diretamente concerne ao presente caso, deve entender-se que o arguido não viu as suas garantias de defesa beliscadas, (excetuando no facto de ter sido revogada a suspensão provisória do processo, sem que aquele tivesse oportunidade de se explicar).
32. Mesmo assim, as suas garantias de defesa mantêm-se e mantiveram-se. O direito a todas as garantias de defesa (art.º 32.º, n.º 1 da CRP, direito à presunção de inocência (art.º 32.º, n.º 2 da CRP), direito a defensor, etc…
33. A decisão de revogação da suspensão provisória do processo, pode ser confrontada em sede de Instrução.
34. Com efeito, como se pode ler no Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa de 18/05/2010, relator José Adriano, disponível em www.dgsi.pt, “Porém, optando o Ministério Público pelo prosseguimento do processo, deduzindo acusação, com base no invocado incumprimento, ainda que parcial, do arguido, esse juízo cabe exclusivamente ao Ministério Público. O juiz de julgamento não pode sindicar as razões da opção do MP, quando no final do prazo da suspensão este decide pelo prosseguimento do processo e, com esse fundamento rejeitar a acusação. Nesse caso, só o arguido se pode opor à opção do MP, requerendo, depois de notificado da acusação, a competente instrução, nela demonstrando que não houve incumprimento da sua parte ou, havendo-o, ele não ocorreu por culpa sua. Conseguindo, a final - comprovando-se a inexistência de incumprimento -, obter decisão de não pronúncia. Os seus direitos estarão sempre garantidos por essa via.”
35. Revogada a suspensão provisória do processo, sem respeito pela audição pessoal do arguido, como aconteceu, mantém-se ressalvado o seu direito à defesa e ao contraditório, através de requerimento de abertura de instrução.
36. “Revogada a suspensão provisória do processo com fundamento no incumprimento da injunção, e deduzida acusação, pode o arguido requerer a abertura da instrução e alegar factos demonstrativos de que a injunção foi cumprida ou o incumprimento não foi culposo com vista a fazer decair a acusação e obter despacho de não pronúncia.” – Acórdão do Tribunal da Relação do Porto, de 05/04/2017, relator Maria Deolinda Dionísio, disponível em www.jurisprudencia.pt.
37. No presente caso, o arguido não requereu a abertura de instrução.
38. O arguido resignou-se, processualmente falando, com a revogação da suspensão provisória do processo e consequente dedução de acusação.
39. O arguido não poderia, ex tempore, em sede de audiência de discussão e julgamento alegar que não foi ouvido, quanto à revogação da suspensão.
40. Para ser ouvido quanto a tal facto, e atacar a bondade dessa decisão do Ministério Público, só poderia o arguido lançar mão da sindicância do Juiz de Instrução.
41. O despacho que determinou a revogação da suspensão provisória do processo e consequente dedução de acusação não é nulo, nem violou o disposto no artigo 61.º, n.º 1, alínea b) do Código de Processo Penal.
42. A sentença violou o disposto no artigo 379.º, n.º 1, alínea c) do Código de Processo Penal, sendo, portanto, nula.
43. Com efeito, o Tribunal a quo conheceu de questões de que não podia tomar conhecimento.
44. A avaliação da decisão do Ministério Público só poderia ter sido feita por um Juiz de Instrução, cfr. o disposto no artigo 286.º, n.º 1 do Código de Processo Penal.
45. A Sentença proferida violou o disposto no artigo 32.º, n.º 5 da Constituição da República, no que concerne à estrutura acusatória do processo penal português.
46. Com efeito, existe uma diferença e separação entre a entidade que julga e a entidade que acusa.
47. A decisão de acusar, não é discricionária, obedecendo a um Princípio da Oportunidade, mas antes objetiva e em cumprimento da estrita legalidade.
48. Não pode o Juiz de julgamento colocar em causa a acusação, fora dos casos expressamente previstos na lei, no exercício dos sues poderes e cumprimento dos seus deveres.
49. Não pode o Juiz de julgamento controlar ou indagar do ato de Inquérito, cujo Dominus é o Ministério Público.
50. A acusação não foi rejeitada por nenhum dos motivos consagrados por lei processual penal, pelo que, estando apta, se deveria realizar o julgamento, como ocorreu.
51. A acusação proferida vinculou tematicamente o Tribunal, devendo esses factos e apenas esses factos serem averiguados em sede de discussão e julgamento.
52. O Tribunal a quo não poderia interpretar a norma constante do artigo 32.º, n.º 5 da Constituição da República Portuguesa no sentido de lhe permitir absolver o arguido, com base numa suposta ausência de audição e contraditório, no momento de revogar a suspensão provisória do processo.
53. Mais violou o Tribunal a quo a norma constante do artigo 379.º, n.º 1, alínea c) do Código de Processo Penal.
54. De acordo com o Princípio da Vinculação Temática, o Tribunal deveria conhecer das questões, dos factos, elencados na acusação, não podendo pronunciar-se, não podendo tomar conhecimento da atuação do Ministério Público, em sede de Inquérito, já que não estão em causa atos legalmente obrigatórios.
55. O Tribunal não poderia ter interpretado esta norma no sentido de lhe permitir absolver o arguido, com base numa suposta ausência de audição e contraditório, no momento de revogar a suspensão provisória do processo.
56. Por tudo exposto, conclui-se naturalmente que, com a decisão proferida, foi violada a norma constante do artigo 348.º, n.º 1, alínea a) do Código Penal, devendo o arguido ser condenado pela prática do crime pelo qual foi acusado.
57. Pelo exposto, deverá a Sentença recorrida ser revogada e substituída por decisão que condene o arguido pela prática de crime de desobediência, p. e p. pelo artigo 348.º, n.º 1, alínea a) do Código Penal,
Com o que farão, V. Exas. a tão esperada JUSTIÇA.».
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O recurso interposto pelo Ministério Público foi admitido a subir imediatamente, nos próprios autos e com efeito meramente devolutivo (cfr. despacho com a refª 430460016).
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O arguido, por seu turno, apresentou contra-alegações (refª 38142425), sem apresentar conclusões, pugnando pela improcedência do recurso interposto e pela consequente manutenção na íntegra da sentença recorrida, por entender que esta não violou nenhuma das normas invocadas pelo MP.
Em síntese, em abono da sua posição, entende que:
- Se não cumpriu todas as injunções foi porquanto a D.G.R.S.P. não cumpriu os prazos a que estava adstrita, não podendo ficar com a sua vida profissional em aberto e na total dependência dos atrasos daquele organismo, sendo certo que avisou que se iria ausentar de Portugal por motivos profissionais e que regressaria no mês de agosto, altura em que poderia cumprir as injunções;
- Não teve qualquer possibilidade de se explicar, deparando-se com a revogação quase automática da suspensão provisória do processo, sendo exigível ao MP que tomasse as providências necessárias para que o arguido se pudesse pronunciar, direito que lhe foi coartado;
- A omissão da sua audição previamente à revogação da suspensão provisória do processo consubstancia-se na nulidade a que se reporta o art.º 120º, nº 2, al. d), e art.º 61º, nº 1, al. b), ambos do CPP;
- Não foi violada a estrutura acusatória do processo, em violação do disposto no art.º 32º, nº 5, da CRP, sendo certo que o arguido é livre de requerer ou não a instrução e de pretender relegar a sua defesa para o julgamento, pelo que nada impedia o tribunal de então conhecer da questão em causa, não sendo por isso nula a sentença por força do disposto no art.º 379º, nº 1, do CPP.
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Neste Tribunal da Relação de Lisboa, por sua vez, o Exmº Sr. Procurador-Geral Adjunto, emitiu parecer (refª 21092222) com o seguinte teor (transcrição):
«No entender da Mª Juíza, a não audição do arguido por parte do Ministério Público em momento prévio à decisão de prosseguimento dos autos, após a suspensão provisória do processo, integra a nulidade prevista no artigo 120º, nº 2 al. d) e artigo 61º, nº 1 al. b) ambos do C.P.P.
Nos termos do artigo 120º, nº 2 al. d) e 122º do C.P.P., a Mª Juíza conheceu da nulidade e determinou a remessa dos autos ao DIAP.
As nulidades são:
1. Insanáveis e devem ser oficiosamente declaradas em qualquer fase do procedimento, designadamente as previstas no artigo 119º do C.P.P.
2. Dependentes de arguição – que são aquelas diversas das previstas no artigo 119º e devem ser arguidas pelos interessados, conforme resulta dos artigos 120º e 121º do C.P.P.
A Mª Juíza classifica a nulidade como estando prevista no artigo 120º nº 1 al. d) do C.P.P.
Isto é, trata-se de uma nulidade dependente de arguição. Ninguém arguiu essa nulidade. Logo, a Mª Juíza não podia dela conhecer.
Da jurisprudência citada na douta sentença do Tribunal “a quo” consta o douto acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães de 11.01.2021 Proc. 110/19.0PFBRG.G1 in www.dgsi.pt (que reproduz largamente o mencionado acórdão do Tribunal da Relação do Porto).
Todavia, no corpo do acórdão citado houve o cuidado de tornar líquidas e exatas e possíveis as opções tomadas. Diz o citado acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães:
“Entendemos que a omissão da audição do arguido em momento prévio à decisão de prosseguimento do processo integra a nulidade prevista no art.º 120º, nº 2, al. d), por violação do art.º 61º, nº 1, al. b), ambos do CPP, tendo tal omissão sido, tempestivamente, invocada pelo arguido (cfr. art.º 120º, nº 3, al. d) do CPP).” (negrito nosso).
Salvo melhor leitura, em parte nenhuma do processo, algo foi arguido. Nem a Mª Juíza afirma que o foi. Refere-se na douta sentença, o seguinte:
“Muito embora a acusação haja sido recebida e, então, tenham sido designadas data e hora para realização do julgamento e tivessemos procedido, justamente, à realização da audiência de discussão e julgamento nos presentes autos, não é possível - melhor compulsados os autos, na sequência da apresentação, pela defesa do arguido, AA, da contestação admitida e da análise da documentação junta à mesma - afirmar que a instância se deve ter por válida e regular.” (sublinhado nosso).
Salvo melhor leitura, é com base neste fundamento que a Mª Juíza vem a conhecer de nulidade (para quem defenda haver aqui uma nulidade) dependente de arguição, mas que ninguém arguiu.
Consigna-se ainda que a nulidade tem como prazo limite para a sua arguição “…o início da audiência nas formas de processo especiais” – cf. artigo 121º nº 1 al. c) do Código de Processo Penal.
Como última nota: o arguido esteve sempre representado por advogado no processo.
Em conclusão: a douta sentença da primeira instância deve ser revogada por violação dos artigos 120º, nº 1 al. d); 379º, nº 1 al. c) ambos do C.P.P. e em consequência, por violação do artigo 348º nº 1 al. a) do Código Penal, devendo os autos ser devolvidos ao Tribunal “a quo” para prosseguimento do julgamento, conhecimento dos factos e consequente decisão de mérito.»
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Notificado nos termos do disposto no nº 2 do art.º 417º do CPP, o arguido não apresentou resposta.
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Colhidos os vistos legais, foram os autos submetidos à conferência, nada obstando ao conhecimento do mérito do recurso interposto.
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FUNDAMENTAÇÃO
I - Questões a decidir em face do objeto do recurso
Tendo presente que é pelas conclusões que o recorrente extrai da motivação que apresenta que se delimita o objeto do recurso, devendo a análise a realizar pelo Tribunal ad quem circunscrever-se às questões aí suscitadas, sem prejuízo do dever de se pronunciar sobre aquelas que são de conhecimento oficioso (quanto a vícios da decisão recorrida, a que se refere o artigo 410º, n.º 2, do CPP (cfr. o Acórdão de fixação de jurisprudência n.º 7/95, publicado no DR I Série de 28.12.1995), os quais devem resultar diretamente do texto desta, por si só ou em conjugação com as regras da experiência comum; a nulidades não sanadas (n.º 3 do mesmo preceito legal) ou quanto a nulidades da sentença (artigo 379º, n.º 2, do CPP)), as questões que se colocam são as seguintes:
a. Qual a natureza e a consequência jurídica da omissão de audição do arguido antes da revogação da suspensão provisória do processo; e
b. Saber se a sentença recorrida é nula por ter apreciado questão cuja pronúncia não lhe competia.
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II – Apreciação das questões acima enunciadas
a) Com vista à apreciação das questões supra enunciadas, além do mais, convém ter presente que:
i) Pelo MP, em sede de inquérito, foi proferido o seguinte despacho com a refª 406415744 (transcrição):
«Resultam dos presentes autos indícios suficientes da prática pelo arguido, de um crime de desobediência, p. e p. pelo artigo 348.º, n.º 1, al. a) do Cód. Penal, por referência ao artigo 152.º, n.º 3 do Cód. da Estrada e pelo artigo 69.º, n.º 1, al. c) do Cód. Penal.
Com efeito,
1. No dia …/…/2021, pelas 00h10, o arguido conduzia o veículo automóvel ligeiro de passageiros, de matrícula ..-BR-.., na Av. José Gomes Ferreira, Lavradio.
2. Nessa ocasião, foi o arguido fiscalizado tendo sido conduzido à esquadra da PSP do Barreiro.
3. Já na esquadra, foi-lhe solicitado que efetuasse o teste de pesquisa de álcool por ar expirado, recusando-se o mesmo a efetuar o sopro de forma conveniente.
4. Perante essa recusa foi o arguido advertido por diversas vezes, que se não efetuasse o teste de alcoolemia incorria na prática de um crime de desobediência.
5. Não obstante, o arguido voltou a responder que não efetuava qualquer teste.
6. O arguido sabia que ao recusar submeter-se a tais provas, desrespeitava uma ordem legítima, regularmente comunicada e proveniente de autoridade com competência para a proferir e mesmo assim, quis recusar-se a fazê-lo, como efetivamente se recusou.
7. O arguido agiu livre, voluntária e conscientemente, bem sabendo que tal conduta era proibida e punida por lei. Atento o preceituado no artigo 283.º, n.º 1 do Cód. Proc. Penal, no caso de terem sido recolhidos indícios suficientes de se ter verificado crime e de quem foram os seus agentes, o Ministério Público deduz acusação.
No entanto, o dever de exercício da ação penal não deverá constituir um dever de acusar “a todo o custo”, o que poria em causa, inclusive, a própria ideia de justiça, existindo soluções que permitem igualmente acautelar as exigências de prevenção geral e a defesa de bens jurídicos, como seja, o instituto da suspensão provisória do processo.
Com tal instituto, pretende-se, pois, evitar a sujeição do arguido que tenha atuado com culpa diminuta, que não tenha antecedentes criminais e tenha praticado factos integráveis na pequena ou média criminalidade, a julgamento e a futura condenação, salvaguardando-se as exigências de prevenção geral e especial.
Estabelece, assim, o n.º 1 do artigo 281.º do Cód. Proc. Penal, que no caso de crime punível com pena de prisão não superior a 5 anos ou com sanção diferente, o Ministério Público, determina, com a concordância do juiz de instrução, a suspensão do processo mediante a imposição ao arguido de injunções e regras de conduta, caso se verifiquem os seguintes pressupostos:
a) Concordância do arguido e do assistente;
b) Ausência de antecedentes criminais por crime da mesma natureza;
c) Ausência de aplicação anterior de suspensão provisória de processo, também por crime da mesma natureza;
d) Não haver lugar a medida de segurança de internamento;
e) Ausência de um grau de culpa elevado; e
f) Ser de prever que o cumprimento das injunções e regras de conduta responda suficientemente às exigências de prevenção que no caso se façam sentir.
Desta forma, o instituto da suspensão provisória do processo, conforme esclarece o acórdão do Tribunal da Relação do Porto de 14 de Março de 2007, in www.dgsi.pt, pressupõe que durante o inquérito tenham sido recolhidos indícios suficientes da prática do crime e do seu agente, sendo que, “em nome do consenso e da oportunidade”, o Ministério Público, opta por não deduzir acusação.
Assim, “a suspensão provisória do processo é uma medida de “diversão com intervenção”, sendo expressão do princípio da oportunidade, entendido este como “uma liberdade de apreciação do MP relativamente ao se da decisão (…) de acusar apesar de estarem reunidos os pressupostos legais (gerais) (do dito dever)” – cita Pedro Caeiro, (referido no acórdão enunciado supra) em “Legalidade e oportunidade: a perseguição penal entre o mito da “justiça absoluta” e o fetiche da “gestão eficiente” do sistema”, in RMP n.º 84 Out./Dez. 2000.
Feita esta opção por parte do Ministério Público, incumbe ao Juiz de Instrução Criminal indagar se estão reunidos os pressupostos de aplicação do instituto de suspensão provisória do processo e, manifestar ou não a sua concordância com a decisão – cifra neste sentido o acórdão do Tribunal da Relação do Porto de 12 de Julho de 2006, in www.dgsi.pt.
Retomando o caso concreto, verifica-se, desde logo, ser possível a aplicação do instituto da suspensão provisória do processo em função da pena aplicável ao crime de desobediência qualificada, pelo que, cumprirá aferir do preenchimento dos restantes pressupostos previstos no artigo 281.º, n.º 1 do Cód. Proc. Penal.
O arguido a fls. 21, manifestou a sua concordância à possibilidade de lhe ser aplicada a suspensão provisória do processo, aceitando, igualmente, as injunções propostas.
Encontra-se inserido social e profissionalmente.
Não possui antecedentes criminais por crime da mesma natureza, nem existe qualquer indicação de que alguma vez lhe tenha sido aplicada suspensão provisória do processo – cifra CRC que antecede e pesquisa de suspensões provisórias do processo no SIMP in www.pgr.pt.
Não há, in casu, lugar à aplicação de medida de segurança de internamento, uma vez que o arguido é imputável e não sofre de anomalia psíquica.
Por outro lado, tendo em conta os factos apurados, as circunstâncias do caso concreto e a personalidade do arguido, entendemos que a sua culpa assume carácter mediano. Ao que acresce, o facto de ter voluntariamente descrito a forma como ocorreram os factos, mostrando-se totalmente colaborante com a boa descoberta da verdade.
Desta feita, será de concluir que a mera existência deste processo tenha tido já um efeito dissuasor da prática de outros crimes por parte do arguido, sendo certo que, o facto de ter concordado com as injunções ora propostas permite concluir pela interiorização do desvalor da conduta por si praticada.
Destarte, afigura-se-nos, que o cumprimento das injunções e regras de conduta responda suficientemente às exigências de prevenção que no caso sub judice se fazem sentir.
Pelo exposto, entendemos que se deverá proceder à suspensão provisória do presente processo por um período de 4 (quatro) meses, por tal medida se afigurar como adequada e suficiente, mediante a imposição ao arguido das seguintes injunções:
- prestar 60h de serviço de interesse público, em condições a definir pela DGRSP;
- não conduzir durante o período de 3 (três) meses, procedendo à entrega da sua carta de condução, nestes serviços do Ministério Público, no prazo de 10 dias a contar da notificação para tal.
*
Remeta os autos ao Mm.º Juiz de Instrução Criminal, nos termos e para os efeitos do disposto no artigo 281.º, n.º 1, do Cód. Proc. Penal.»
ii) Nessa sequência, por despacho exarado nos autos com a refª 406514633, o Mmº JIC concordou com a suspensão provisória do processo, por entender mostrar-se verificados os seus pressupostos legais, nos termos, pelo prazo e com as injunções propostas pelo MP.
iii) Entretanto, por despacho proferido nos autos com a refª 416922647, sem que o arguido fosse auscultado, pelo MP foi proferido o seguinte despacho (transcrição):
«Compulsados os presentes autos, constata-se findo o prazo de duração do Instituto da Suspensão Provisória do Processo aplicado ao arguido que o mesmo não terá cumprido com as injunções que lhe foram aplicadas. Assim e em conformidade, ao abrigo do disposto no artigo 282.º, n.º 4, al. a) do Cód. Proc. Penal, determino o prosseguimento dos autos.»
iv) Por esse motivo os autos foram remetidos para julgamento, tendo sido recebida a acusação em sede de despacho liminar (refª 421672359) e o arguido notificado para, querendo, contestar.
v) O arguido viria então a presentar a seguinte contestação (refª 35038779), cujo teor aqui se transcreve:
«1.º
O Arguido aceita a factualidade constante da Acusação.
2.º
E oferece o merecimento dos autos, em tudo o que vier a ser apurado em seu benefício.
3.º
Sente a necessidade de esclarecer que, por motivos profissionais, o Arguido necessitou de se ausentar para fora do território nacional, pelo facto de ir trabalhar para ....
4.º
Por e-mails que por si foram enviados para o tribunal, nos dias 08/03/2022, 09/05/2022 e 09/06/2022, o mesmo informou que, por motivos de índole profissional, teria que se ausentar do país (docs. n.ºs 1 e 2).
Ainda assim,
5.º
A convocatória que lhe foi remetida pela DGRSP, por carta datada de 08/06/2022, convocou o Arguido para estar presente no dia 20/06/2022 (doc. n.º 3), para efeitos de frequência de sensibilização “taxa zero”, sem prejuízo de terem conhecimento que o Arguido se encontrava ausente do país, na referida data.
6.º
Pelo que o Arguido pretende esclarecer que, em sede de suspensão provisória do processo, apenas não compareceu junto da DGRSP, para efeitos de frequência da sessão de sensibilização “taxa zero”, pelo facto de, à data do recebimento da respectiva convocatória, se encontrar ausente do território nacional, em concreto, em ..., onde se encontrava a exercer actividade profissional.
7.º
Não tendo faltado à sessão de sensibilização, por qualquer outro motivo, que não o supra referido.
8.º
O Arguido continua a exercer actividade profissional em ..., sem prejuízo de vir a Portugal com regularidade.
9.º
No demais, oferece o merecimento dos autos.
Prova testemunhal:
(…)»
vi) Realizou-se, entretanto, a audiência de julgamento, vindo a ser proferida a sentença ora recorrida.
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b) Da natureza e da consequência jurídica da omissão da audição do arguido antes da revogação da suspensão provisória do processo:
Antes de abordarmos a questão supra enunciada convém deixar aqui duas notas:
1ª - No corpo da sentença recorrida, no trecho citado, em conjugação com o exposto em II-a), encontram-se vertidos os factos essenciais à decisão da questão em apreço, conforme dimana dos autos, pelo que aqui nos escusamos de repetir; e
2ª - Ao contrário do vertido quer na motivação recursória quer na resposta, a sentença recorrida não absolveu o arguido da acusação pela prática do imputado crime de desobediência. É que, diversamente, por via do conhecimento de uma suposta nulidade relativa, caso a sentença recorrida transitasse em julgado, faria regressar os autos à fase de inquérito, a momento prévio à revogação da suspensão provisória do processo.
Vejamos.
A decisão de revogação da suspensão provisória do processo e de dedução de acusação traduz-se num ato da exclusiva competência do MP, nos termos dos artigos 282º, nº 4, al. a), e 283º, nº 1, ambos do CPP.
É ponto assente que o arguido não teve a oportunidade de se pronunciar antes da decisão tomada pelo MP de revogação da suspensão provisória do processo.
Nessa conformidade, na sentença recorrida entendeu-se que tal configura uma nulidade, por força do disposto nos artigos 120º, nº 2, al. d), e 61º, nº 1, al. b), ambos do CPP.
Portanto, uma nulidade relativa, isto é, dependente de arguição.
Quid iuris?
Dispõe o art.º 120º, nºs 1, 2 e 3, do CPP, sob a epígrafe «Nulidades dependentes de arguição», na parte que para aqui releva, o seguinte:
«1. Qualquer nulidade diversa das referidas no artigo anterior deve ser arguida pelos interessados e fica sujeita à disciplina prevista neste artigo e no artigo seguinte.
2. Constituem nulidades dependentes de arguição, além das que forem cominadas noutras disposições legais:
(…)
d) A insuficiência do inquérito ou da instrução, por não terem sido praticados atos legalmente obrigatórios, e a omissão posterior de diligências que pudessem reputar-se essenciais para a descoberta da verdade;
(…).
3. As nulidades referidas nos números anteriores devem ser arguidas:
a) Tratando-se de nulidade de ato a que o interessado assista, antes que o ato esteja terminado;
(…)
c) Tratando-se de nulidade respeitante ao inquérito ou à instrução, até ao encerramento do debate instrutório ou, não havendo lugar à instrução, até cinco dias após a notificação do despacho que tiver encerrado o inquérito;
d) Logo no início da audiência nas formas de processo especiais.»
Por seu turno, resulta do que dispõe o art.º 61º, nº 1, al. b), do CPP, que o arguido goza, em especial, em qualquer fase do processo e salvas as exceções previstas na lei, do direito de «Ser ouvido pelo tribunal ou pelo juiz de instrução sempre que eles devam tomar qualquer decisão que pessoalmente o afete.»
Assim, na perspetiva do entendimento vertido na sentença recorrida, a omissão de audição do arguido, antes de revogada a suspensão provisória do processo, configura uma nulidade por não ter sito praticado um ato obrigatório.
Em ordem a enquadrar a questão em apreço, convocamos agora o art.º 282º, nºs 3 e 4, do CPP, o qual dispõe do seguinte modo:
«(…)
3. Se o arguido cumprir as injunções e regras de conduta, o Ministério Público arquiva o processo, não podendo ser reaberto.
4. O processo prossegue e as prestações feitas não podem ser repetidas:
a) Se o arguido não cumprir as injunções e regras de conduta; ou
b) Se, durante o prazo da suspensão do processo, o arguido cometer crime da mesma natureza pelo qual venha a ser condenado.
(…).»
A revogação da suspensão provisória do processo não é automática, pois ela depende de uma valoração da culpa do arguido no incumprimento das injunções e regras de conduta, cujo critério deverá ser semelhante ao estatuído no art.º 56º, nº 1, do Código Penal, isto é, um incumprimento com culpa grosseira ou reiterada por banda do arguido (neste sentido, Paulo Pinto de Albuquerque, Comentário do Código de Processo Penal, à luz da Constituição da república e da Convenção Europeia dos Direitos do Homem, 2ª ed. Atualizada, Universidade Católica Editora, 2008, pág. 741).
Todavia, no ritualismo processual atinente à suspensão provisória do processo não está expressamente prevista a prévia audição do arguido antes do MP tomar a decisão de revogar a suspensão provisória do processo e de determinar o prosseguimento dos autos.
Ademais, conforme defende o MP, o direito do arguido de previamente ser ouvido dirige-se ao juiz de instrução ou ao juiz de julgamento quando um ou outro, consoante os casos, tenha de tomar alguma decisão que pessoalmente afete aquele sujeito processual, tal como expressamente emerge do disposto no art.º 61º, nº 1, al. b), do CPP.
Isto é, não é norma que se dirija ao MP e a razão pela qual tal assim é reside no facto de, na fase de inquérito, ter primazia o princípio do inquisitório, ressalvadas as exceções previstas na lei, em detrimento do princípio do contraditório, princípio este que tem a sua máxima amplitude na fase de julgamento.
Ora, dispõe o art.º 118º, nº 1, do CPP, que «A violação ou a inobservância das disposições da lei do processo só determina a nulidade do ato quando esta for expressamente cominada na lei».
Para além disso, nos termos do nº 2 do mesmo preceito legal, «Nos casos em que a lei não cominar a nulidade, o ato ilegal é irregular».
Por conseguinte, vigorando nesta sede o princípio da legalidade (ou da taxatividade/tipicidade), está vedada a aplicação analógica de outras normas para qualificar o ato inválido como nulo.
Isto significa que por força do disposto no art.º 118º, nº 2, do CPP, a omissão de prévia possibilidade de o arguido tomar posição quanto ao alegado incumprimento das injunções a que estava adstrito e que justificaram a revogação da suspensão provisória do processo e subsequente prosseguimento dos autos consubstanciar-se-ia, quando muito, numa mera irregularidade, caso se entenda que a sua prévia audição era obrigatória, apesar de tal não estar expressamente previsto no CPP.
Conforme já vimos, a decisão de revogar a suspensão provisória do processo não é automática, mas nem por isso ter-se-á de observar um ritualismo processual semelhante ao prescrito no art.º 495º, nº 2, do CPP, delineado para as hipóteses legais previstas nos artigos 55º e 56º do Código Penal.
Tenha-se presente que «a revogação de qualquer pena substitutiva (máxime não detentiva importa constrição de direitos fundamentais do condenado apenas compatível com o exaustivo apuramento dos factos que preenchem o conceito jurídico de incumprimento das condições impostas, sem qualquer tipo de ónus da prova impendente sobre o condenado» (André Lamas Leite, “A Suspensão da Execução da Pena Privativa da Liberdade Sob Pretexto da Revisão de 2007 do Código Penal”, in Estudos em Homenagem ao Prof. Doutor Figueiredo Dias, págs. 620 e 621).
E, conforme se assinala no ac. do TRG de 27.06.2016, publicado na CJ, Tomo III/2016, págs. 265 e ss., «Aquele processo formal, solene, garantístico, totalmente jurisdicionalizado, respeitante à fase de execução de uma pena decretada por sentença transitada em julgado, que em caso de incumprimento de deveres, regras de conduta ou do regime de prova pode demorar meses e às vezes anos, não é nem pode ser transposto para uma fase preliminar do processo».
Nesse aresto expende-se ainda o entendimento de que «no que concerne ao incumprimento das injunções e regras de conduta da suspensão provisória do processo, afigura-se-nos que o Ministério Público antes de prosseguir com o processo, deduzindo acusação, por forma a valorar aquele incumprimento, se o entender conveniente poderá dar uma oportunidade ao arguido de apresentar a sua versão, salvaguardando, assim, na expressão de João Conde Correia (“Concordância judicial à suspensão provisória do processo: equívocos que persistem”, cit., pág. 52) “uma possibilidade mínima de contraditório”».
Isto é, seja de que forma for, não se tratam de situações equivalentes, que demandem idênticas exigências de contraditório.
Haverá então que ser concedida ao visado alguma espécie de contraditório?
Do ponto de vista das exigências constitucionais e do ponto de vista de normas constantes de convenções internacionais que obrigam o Estado Português (cfr., em particular, o art.º 8º da CRP e o art.º 6º CEDH), o processo deverá ser equitativo, mas a expressão do contraditório não tem sempre a mesma amplitude em todas as fases do processo penal, tendo a sua amplitude máxima nas fases jurisdicionais do processo, em particular, na fase de julgamento.
Dispõe o art.º 18º, nº 1, da CRP, que «Os preceitos constitucionais respeitantes aos direitos, liberdades e garantias são diretamente aplicáveis e vinculam as entidades públicas e privadas.»
Isto é, por princípio os direitos, liberdades e garantias conferem posições jurídicas subjetivas que os seus titulares podem invocar perante as autoridades públicas e fazer valer em juízo independentemente de lei ordinária concretizadora, na ausência, inadequação ou insuficiência da lei e mesmo contra o próprio texto da lei.
Seja como for, «A ideia de aplicabilidade direta assume-se estruturalmente como um princípio e, portanto, como uma vocação das normas constitucionais sobre direitos, liberdades e garantias, mas que não pode dispensar uma análise casuística, cujo resultado é muitas vezes diferenciado em função da tipologia das normas constitucionais, da densidade e da determinabilidade do seu conteúdo e das funções jusfundamentais que desempenham.» (Jorge Miranda e Jorge Pereira da Silva in Constituição Portuguesa Anotada, Vol. I, 2ª Edição revista, Universidade Católica Editora, 2017, págs 235 e 236).
Por outro lado, dispõe o nº 1 do art.º 20º da CRP que «A todos é assegurado o acesso ao Direito e aos tribunais para defesa dos seus direitos e interesses legalmente protegidos, não podendo a justiça ser denegada por insuficiência de meios económicos.»
A constitucionalização dos direitos fundamentais não se esgota no plano material, pois, através da concreta conformação do regime processual, podem ser realizados ou afetados de vários modos, razão pela qual a lei fundamental, em sede de princípios gerais no âmbito dos direitos fundamentais, consagra o direito de acesso ao direito e à tutela Jurisdicional efetiva, sendo certo que a plenitude do acesso à jurisdição aplica-se naturalmente também aos casos em que os particulares pretendem defender jurisdicionalmente os seus direitos ou interesses legalmente protegidos perante os poderes públicos.
Note-se que este princípio basilar conforma-se com diferentes formas organizacionais de acesso ao direito e à tutela jurisdicional, desde que o titular do direito possa aceder a uma tutela jurisdicional efetiva do mesmo, isto é, em síntese, no sentido de levar ao conhecimento de determinado órgão jurisdicional uma determinada pretensão, como seja um tribunal judicial ou ordem de jurisdição de outra natureza.
Por outro lado, cabe ao legislador ordinário a competência para delimitar os pressupostos ou requisitos processuais de que depende a efetivação da garantia de acesso aos tribunais, mas quando determinada norma da lei ordinária ou certa interpretação de uma norma contenda diretamente com este direito fundamental, coartando o acesso ao direito na aceção que já vimos, ter-se-á de considerar a mesma materialmente inconstitucional.
Já no que ao processo penal diz respeito, a Constituição, no art.º 32º, proclama os princípios basilares das garantias neste domínio sob a epígrafe «Garantias de processo criminal».
Na parte que ora interessa estatui então o seguinte:
«1. O processo criminal assegura todas as garantias de defesa, incluindo o recurso.
(…).
5. O processo criminal tem estrutura acusatória, estando a audiência de julgamento e os atos instrutórios que a lei determinar subordinados ao princípio do contraditório.
(…)».
Ora, o nº 1 do preceito em causa não constitui uma mera norma programática a desenvolver pela lei ordinária, pois será em face das circunstâncias concretas de cada caso que se hão de estabelecer os concretos conteúdos dos direitos de defesa, no quadro dos princípios estabelecidos pela lei e pela Constituição, à luz de um processo equitativo (due process of law, na terminologia da jurisprudência norte-americana), sendo o arguido um sujeito processual a quem devem ser asseguradas todas as possibilidades de contrariar a acusação, a independência e a imparcialidade do juiz ou tribunal e a lealdade do procedimento. Tal não se reporta apenas à decisão final, mas a todas as decisões que ao longo do processo implicam restrições de direitos ou possam condicionar a solução definitiva do caso.
É assim na lei ordinária e em particular nas normas procedimentais penais – o direito processual penal é direito constitucional aplicado – que haverão de se densificar os princípios fundamentais informadores e expressos, designadamente, no art.º 32º da CRP.
Assim, genericamente, nesta sede, diremos que estar-se-á perante uma inconstitucionalidade material sempre que alguma norma processual ou procedimento aplicativo dela implicar um encurtamento inadmissível, um prejuízo insuportável e injustificável das possibilidades de defesa do arguido (neste sentido, entre muitos outros, cfr. o Ac. do TC nº 61/88).
O direito de defesa do arguido concretiza-se também na possibilidade de adoção de uma determinada estratégia processual e ainda em pelo menos um grau de recurso em termos amplos, abrangendo questões de direito e de facto, o que não significa que a garantia constitucional dê cobertura à possibilidade de recorrer de toda e qualquer decisão ao longo do processo, desde que não atinja o conteúdo essencial do direito de defesa e a limitação seja justificada por outros valores relevantes no processo penal.
Por seu turno, a estrutura acusatória do processo significa essencialmente o reconhecimento do arguido como sujeito processual a quem é garantida a efetiva liberdade de atuação para exercer a sua defesa face à acusação que fixa o objeto do processo e que é deduzida por entidade independente do tribunal que decide a causa. Num processo de estrutura acusatória, como é o nosso, existe uma paridade no posicionamento jurídico da acusação e da defesa em todos os atos jurisdicionais, isto é, uma igualdade de meios de intervenção processual (igualdade de armas) pelo menos nas fases jurisdicionais.
Em tal modelo, a acusação fixa o objeto do processo, de sorte que o arguido, naquele processo, não pode ser condenado por factos que o extravasam, ressalvada a exceção permitida pelo art.º 359º do CPP.
Também a separação entre as funções de acusação e julgamento são garantia de independência e imparcialidade do julgador, inerente aliás ao direito fundamental do direito de acesso aos tribunais consagrado no art.º 20º, nº 1, da CRP, conforme já vimos.
Tal modelo contrapõe-se à estrutura inquisitória do processo, em que o tribunal é o dominus absoluto do mesmo, intervindo oficiosamente, sem necessidade de acusação por entidade diversa do julgador, em que o arguido fica inteiramente submetido aos poderes do juiz, o qual, orientado pelo fim último da descoberta da verdade e da defesa da sociedade, investiga em segredo, sem contraditório e oficiosamente, podendo prescindir de qualquer atuação voluntária do visado.
De todo o modo, a estrutura acusatória do processo não é incompatível com momentos ou fases inspiradas na estrutura inquisitória, desde que justificadas pela procura da verdade e sempre submetidas ao dever de lealdade para com o arguido, o que limita os meios de prova admissíveis.
Com referência ao caso dos autos, ao contrário do expendido na motivação recursória, não cremos que o conhecimento na fase de julgamento de invalidade verificada no inquérito, ainda que respeitando a ato da exclusiva competência do MP, possa violar a estrutura acusatória do processo. Tal só ocorreria se o JIC fosse chamado a apreciar uma invalidade (nulidade ou irregularidade) fora do âmbito da instrução. Isto é, uma invalidade ocorrida no inquérito, desde que tempestivamente invocada, tem de ser judicialmente sindicável, ainda que em fases mais adiantadas do processo, seja na instrução seja no julgamento (ou seja, em fases jurisdicionais).
O princípio do contraditório, por seu turno, traduz-se na estruturação da audiência de julgamento e dos atos instrutórios que a lei determinar (estes não se confundem com os atos da fase processual da instrução) em termos de um debate ou discussão entre a acusação e a defesa, as quais são chamadas a deduzir as suas razões de facto e de direito, a oferecer provas, a controlar as provas contra si oferecidas e a discretear sobre o valor e resultado probatórios de umas e outras.
Em termos genéricos, pode afirmar-se que a observância deste princípio deverá ter lugar sempre que seja importante para a descoberta da verdade e para a concretização dos direitos de defesa.
Pese embora este princípio, conforme já acima referido, tenha a sua máxima concretização nas fases jurisdicionais do processo, máxime, na fase de julgamento, não será descabido conceder alguma espécie de contraditório ao arguido antes da revogação da suspensão provisória do processo, em procedimento aligeirado e que não demande grandes delongas, pois a possibilidade de prosseguimento do processo seria fator relevantemente condicionante da estratégia de defesa a observar pelo visado em fase ou fases mais adiantadas do processo.
Todavia, se não é descabida a possibilidade de se observar algum contraditório, sobretudo se as razões do incumprimento das injunções e regras de conduta não forem perentórias e claras, a sua inobservância naquele momento prévio à tomada de decisão por banda do MP (em ato da sua exclusiva competência) também se conforma com um processo equitativo, perspetivando o processo penal, desde o seu início até ao fim, em termos globais, pois o arguido não ficaria numa situação de indefesa, esta sempre proibida, ou mesmo de defesa difícil.
Ou seja, não se pode concluir que a inobservância do contraditório, naquele momento processual, constitua um encurtamento inadmissível, um prejuízo insuportável e injustificável das possibilidades de defesa do arguido.
Com efeito, o arguido, contra uma tal decisão do MP, poderia requerer a abertura de instrução, nos termos do art.º 286º, nº 1, do CPP, fase processual de modelo mais garantístico, pondo em crise a acusação deduzida com fundamento no não incumprimento das injunções e regras de conduta que determinaram a revogação da suspensão provisória do processo, tendo assim a possibilidade de obter despacho de não pronúncia (no sentido de que tal pode ser fundamento de requerimento de abertura de instrução, pode ver-se o ac. do TRL, de 18.05.2010, citado no mencionado ac. do TRG de 27.06.2016. No sentido de que pode constituir o único fundamento de RAI a aplicação da suspensão provisória do processo, pode ver-se, entre outros, ac. do TRC de 28.03.2012, proc. nº 53/10.3GAPMS.C1; e o ac. do TRE de 06.11.2018, proc. nº 139/17.3T9VVC.E1, ambos publicados no sítio www.dgsi.pt).
Isto é, não obstante a inobservância do prévio contraditório antes da tomada de decisão de prosseguimento dos autos pelo MP, com a dedução da acusação, a mesma seria sempre sindicável em sede de instrução, tratando-se, como se trata neste caso, da forma comum do processo.
Para além do já referido acerca do princípio da taxatividade das nulidades, em que o caso dos autos não se enquadra na previsão legal das normas invocadas pelo tribunal a quo, para o caso de se entender estarmos perante uma irregularidade (neste caso pela omissão do contraditório), esta é uma forma menos grave de invalidade, desde logo porquanto aquela decisão do MP (revogação da suspensão provisória do processo e prosseguimento dos autos) não decide definitivamente o caso e, além do mais, o arguido tinha a possibilidade de reagir contra ela, arguindo tal invalidade perante o próprio MP, no prazo de 3 dias após a notificação do despacho que determinou o prosseguimento dos autos, conforme disposto no art.º 123º, nº 1, do CPP, segundo o qual, «Qualquer irregularidade do processo só determina a invalidade do ato a que se refere e dos termos subsequentes que possa afetar quando tiver sido arguida pelos interessados no próprio ato ou, se a este não tiverem assistido, nos três dias seguintes a contar daquele em que tiverem sido notificados para qualquer termo do processo ou intervindo em algum ato nele praticado».
Note-se que as irregularidades, tratando-se de invalidades menos graves, não estão submetidas a qualquer numerus clausus, vigorando nesta sede o princípio da sua atipicidade, desde que tenham relevância material, isto é, na medida em que possam afetar a validade do ato e, eventualmente, os seus termos subsequentes, no pressuposto de que tenham sido tempestivamente invocadas por quem de direito, conforme emerge do disposto no art.º 123º, nº 1, do CPP.
Nessa conformidade, o MP poderia, caso tal tivesse sido tempestivamente invocado pelo arguido, reparar o ato inválido e, caso o não fizesse, tal irregularidade poderia ser sindicada jurisdicionalmente na instrução ou, não tendo sido esta requerida ou sendo legalmente inadmissível, na fase de julgamento (nessa hipótese a mesma não estaria sanada).
Isto é, o arguido, ante tal, não ficaria numa posição de indefesa.
É certo que o arguido, por estratégia processual, pode querer relegar argumentos de defesa para fase mais adiantada do processo.
Todavia, nenhum direito pode ser considerado de per si, nem pode ser exercido de forma irrestrita, pois confronta-se sempre com outros direitos, interesses e valores, também eles constitucionalmente consagrados, sendo certo que a sua concordância prática nenhuma questão de constitucionalidade convoca se os respetivos núcleos fundamentais puderem ser preservados.
A possibilidade de invocação ad aeternum da irregularidade vinda de referir – caso se entenda existir -, não se tratando de uma nulidade absoluta (insanável), esbarraria com o interesse constitucionalmente consagrado da celeridade processual e com o interesse punitivo do Estado.
Sucede que o arguido em momento algum dos autos invocou a aludida invalidade procedimental (nulidade segundo o tribunal a quo, ou, quanto a nós, quando muito, irregularidade), nem, aliás, na contestação apresentada na fase de julgamento, pese embora ali tenha aludido a alguns dos factos atinentes ao “esclarecimento” do motivo pelo qual em sede de suspensão provisória do processo não compareceu perante a D.G.R.S.P. para frequência da sessão de sensibilização “taxa zero”, uma das injunções a cujo cumprimento estava obrigado.
Tal não pode deixar de significar que a eventual irregularidade emergente da falta de audição do arguido se mostra sanada, conforme decorre do disposto no art.º 123º, nº 1, do CPP, o que por sua vez significa que os atos praticados pelo MP, seja de que forma for, produziram ipso iure os seus legais efeitos, que assim se adquiram nos autos por via da sua consolidação em definitivo como se a prévia omissão de audição do arguido não tivesse ocorrido.
Em suma, não nos cabendo sindicar estratégias de defesa, sempre se dirá que o arguido só se pode queixar de si próprio pela sua inércia na invocação atempada daquele alegado vício procedimental.
Ademais, mesmo que a omissão vinda de referir pudesse ser qualificada como nulidade – e nisso estamos em desacordo com a jurisprudência indicada na sentença recorrida1 -, sendo nessa hipótese uma nulidade relativa, também há muito que se tinha esgotado o prazo da sua arguição aquando da apresentação da contestação pelo arguido, por força do disposto no art.º 120º, nº 3, al. c), do CPP (tratando-se de nulidade respeitante ao inquérito, não tendo havido instrução, o arguido tinha de a invocar até 5 dias após o despacho que tiver encerrado o inquérito).
Aliás, salienta-se – nunca é demais repeti-lo - que nem mesmo na contestação o arguido invoca expressamente qualquer nulidade ou irregularidade.
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c) Da nulidade da sentença recorrida por excesso de pronúncia:
O MP invoca que a sentença é nula por ter conhecido de nulidade que não poderia conhecer oficiosamente.
Tem claramente razão.
Dispõe o art.º 410º, nº 3, do CPP, que «O recurso pode ainda ter como fundamento, mesmo que a lei restrinja a cognição do tribunal de recurso a matéria de direito, a inobservância de requisito cominado sob pena de nulidade que não deva considerar-se sanada.»
Por seu turno, resulta do que dispõe o art.º 379º, nº 1, al c), 2ª parte, do CPP, que a sentença é nula quando o tribunal conheça de questões de que não podia tomar conhecimento, sendo certo que as nulidades da sentença devem ser arguidas e conhecidas em recurso, nos termos do nº 2 do art.º 379º do referido diploma legal, razão pela qual a sua invocação pelo MP é tempestiva.
Nessa conformidade, em face do que ficou expresso em II-b), não podendo o tribunal a quo conhecer oficiosamente de uma invalidade – nulidade ou irregularidade, para o caso pouco importa – que se encontrava sanada (para o caso de se entender que era obrigatória a observância do contraditório), está a sentença ferida de nulidade, sendo certo que a mesma não foi suprida pelo tribunal a quo nos termos do art.º 414º, nº 4, ex vi do art.º 379º, nº 2, 2ª parte, ambos do CPP.
Consequentemente, tendo presente o disposto no art.º 122º, nºs 1 e 2, do CPP, deverá o tribunal a quo proferir nova sentença que conheça de mérito acerca objeto do processo, tal como definido pela acusação, julgando provada ou não provada inerente factualidade e aplicando a esta o direito.
Por fim, cabe enfatizar que neste momento seria prematuro dar acolhimento ao peticionado na peça recursória apresentada pelo MP, no sentido de que a sentença proferida deve ser revogada e «substituída por decisão que condene o arguido pela prática de crime de desobediência, p. e p. pelo artigo 348.º, n.º 1, alínea a) do Código Penal».
A seu tempo o tribunal a quo irá proferir nova sentença e que, em face da prova produzida, em tese, poderá ser de condenação ou de absolvição.
Procede assim e nestes precisos termos o recurso interposto pelo MP.
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III – Das custas
Dispõe o art.º 513º do CPP o seguinte:
«1. Só há lugar ao pagamento da taxa de justiça quando ocorra condenação em 1ª instância e decaimento total em qualquer recurso.
2. O arguido é condenado em uma só taxa de justiça, ainda que responda por vários crimes, desde que sejam julgados em um só processo.
3. A condenação em taxa de justiça é sempre individual e o respetivo quantitativo é fixado pelo juiz, a final, nos termos previstos no Regulamento das Custas Processuais.
4. (…)».
Assim, tendo o arguido decaído totalmente no presente recurso (ao qual respondeu, pugnando pela manutenção da sentença recorrida), deverá ser condenado no pagamento de taxa de justiça nos termos do art.º 8º, nº 9, do RCP e Tabela III a ele anexa.
Nessa conformidade, uma vez que as questões suscitadas não são especialmente complexas, variando a taxa de justiça entre 3 e 6 UC, entendemos adequado fixá-la em 3,00 UC.
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DISPOSITIVO
Face ao exposto, acordam os juízes desembargadores desta 9ª Secção do Tribunal da Relação de Lisboa em julgar procedente o recurso interposto pelo Ministério Público, pelo que, revogando a sentença proferida, determinam que o tribunal a quo profira nova sentença que conheça do objeto do processo, conforme definido pela acusação deduzida, seguindo-se os demais legais termos até final.
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Custas pelo arguido AA, com 3,00 (três) UC de taxa de justiça (cfr. o art.º 513º, nºs 1 e 3, do CPP, e o art.º 8º, nº 9, do RCP, em conjugação com a tabela III anexa).
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Registe e notifique (art.º 425º, nºs 3 e 6, do CPP).
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Lisboa, 07 de março de 2024.
(Texto processado por computador, composto e revisto pelo 1º signatário)
Os Juízes Desembargadores,
José Castro (relator)
Micaela Pires Rodrigues (1ª adjunta)
Jorge Manuel da Silva Rosas de Castro (2º adjunto)
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1. Ac. do TRP de 09.12.2015, proc. nº 280/12.9TAVNG-A.P1; e ac. do TRG de 11.01.2021, proc. nº 110/19.0PFBRG.G1, ambos com texto integral em www.dgsi.pt. No mesmo sentido se pronunciou ainda o ac. do TRC de 12.05.2001, proc. nº 48/19.1GBGRD.C1, publicado também no mesmo sítio.