Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa | |||
Processo: |
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Relator: | LUÍS FILIPE PIRES DE SOUSA | ||
Descritores: | IMPUGNAÇÃO DA DECISÃO DE FACTO PRESUNÇÕES JUDICIAIS COMPRA E VENDA VEÍCULO AUTOMÓVEL RESPONSABILIDADE CIVIL DO PRODUTOR ÓNUS DA PROVA | ||
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Nº do Documento: | RL | ||
Data do Acordão: | 12/20/2022 | ||
Votação: | UNANIMIDADE | ||
Texto Integral: | S | ||
Texto Parcial: | N | ||
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Meio Processual: | APELAÇÃO | ||
Decisão: | IMPROCEDENTE | ||
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Sumário: | I. Nada obsta a que, em sede de recurso de apelação, a apelante estribe a pretensão de alteração da matéria de facto em presunções judiciais formuladas a partir de factos-base que, por sua vez, integrem o elenco dos factos tidos como provados pela primeira instância, salvo as limitações probatórias decorrentes dos Artigos 393º a 395º do Código Civil. II. Nos termos do Artigo 7º do Decreto-Lei nº 67/2003, de 8.4., no âmbito do exercício do direito de regresso, o vendedor apenas pode dirigir-se à pessoa de quem adquiriu o bem, não podendo responsabilizar diretamente o produtor. III. No âmbito da responsabilidade civil do produtor, compete ao lesado o ónus da prova do defeito do produto, do dano e do nexo de causalidade entre o defeito e o dano. IV. A Autora/apelante não pode alterar a causa de pedir no âmbito do recurso de apelação, invocando agora o incumprimento de um dever imposto pela garantia do fabricante, ao não efetuar um diagnóstico atempado e adequado na sequência do alerta luminoso que foi denunciado, duas vezes, pelo adquirente do veículo. V. No âmbito da prestação da garantia voluntária podem ser impostas condições, nomeadamente a realização atempada da manutenção nos intervalos de revisão especificados pela marca, bem como de que os materiais utilizados cumprir as especificações técnicas da marca. | ||
Decisão Texto Parcial: | ![]() | ||
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Decisão Texto Integral: | Acordam os Juízes na 7ª Secção do Tribunal da Relação de Lisboa: RELATÓRIO AA, Lda. instaurou ação declarativa de condenação sob a forma de processo comum contra RR, LDA. pedindo a condenação desta a pagar-lhe a quantia global de €44.297,74 acrescida de juros de mora, à taxa legal desde a data da citação até integral pagamento. Regular e pessoalmente citada, a Ré apresentou contestação, pugnando pela improcedência da acção. Após julgamento, foi proferida sentença que julgou a ação improcedente, absolvendo a Ré do pedido. * Não se conformando com a decisão, dela apelou a autora, formulando, no final das suas alegações, as seguintes CONCLUSÕES: «1 – Em sede de matéria de facto apurada em sede de julgamento foram dados como não provados factos que ora urge alterar e conceder como provados, a saber: “2. A avaria registada pelo veículo ficou a dever-se a defeito de fabrico.” 2 - À Autora era, de facto, impossível alegar, em concreto, qual o defeito de fabrico de que padecia o veículo! Contudo, entende a Recorrente que foram alegados e provados fatos suficientes para o tribunal a quo ter chegado à (inevitável) conclusão de que o veículo padecia de um vício de fabrico. 3 - O veículo padecia de um vicio no motor, o qual impedia o seu normal funcionamento e que veio a originar a avaria nos cilindros nº 2 e 7, tal como resulta claro dos seguintes factos provados: - 6. Em Maio de 2019, o Dr. PT – então possuidor do veículo - deslocou-se ao concessionário e oficina reparadora autorizada da Ré na cidade do Porto (e doravante aqui designada por “JJ”), devido à luz de motor do veículo que se encontrava acesa, assinalando uma qualquer avaria; - 9. Alguns dias passados, em viagem do Porto para Lisboa, a referida luz de motor voltou a acender. - 10. De imediato, o Dr. PT contactou a JJ através de chamada telefónica, tendo-lhe sido dito pelos profissionais que poderia prosseguir a viagem. - 11. Aquando da viagem de regresso para o Porto, a viatura começou a perder força e o seu funcionamento tornou-se irregular e deficiente. - 12. Por isso, o Dr. PT solicitou de imediato a respetiva assistência em viagem do seguro do veículo, tendo este sido deslocado através de pronto-socorro e entregue na JJ do Porto em 20/05/2019. - 13. A JJ comunica ao Dr. PT que existia uma avaria no motor do seu veículo e que, em concreto, os cilindros n.º 2 e n.º 7 estavam danificados. 4 - No presente caso, os factos-base dados como provados, nomeadamente os pontos 6), 9), 10), 11), 12) e 13), permitem o juízo inferencial da existência do defeito de fabrico, não sendo possível extrair (salvo devido respeito por opinião contrária) ilações em sentido diverso como fez a sentença recorrida. 5 – O veículo em questão é de uma marca de elevada reputação e que, pelo seu preço, no mercado automóvel é considerado de gama alta, circunstâncias que não podem deixar de criar elevadas expectativas de segurança e fiabilidade. 6 - A avaria de dois cilindros do motor numa viatura com as características do presente caso e em período de garantia, evidencia, (manifestamente) que desde o início esta viatura apresenta defeitos que determinam a limitação da sua circulação. 7 – Os problemas emergentes das dificuldades probatórias devem ser resolvidos com recurso às presunções judiciais, ou defendendo a atenuação no grau de convicção exigido pelo julgador, atentas as dificuldades e desigualdades entre as partes, sendo um dos exemplos a prova dos defeitos na responsabilidade do fabricante. 8 - No presente caso o tribunal a quo deveria ter chegado ao “factum probandum” (o defeito de fabrico que a viatura apresentaria) através de presunções judiciais, também ditas presunções simples ou hominis, que derivam das regras da vida e das máximas da experiência e estão na base da chamada prova indirecta, de primeira aparência ou indiciária. 9 - Com base na prova produzida constante dos autos e nos factos dados como provados, é lícito em sede de recurso reequacionar a avaliação probatória feita pela 1ª instância, nomeadamente no domínio das presunções judiciais, nos termos do n.º 4 do art.º 607º, aplicável por via do art.º 663º, n.º 2, ambos do Cód. Proc. Civil. 9 – Ao decidir conforme decidiu, o Tribunal a quo incorreu em erro notório na apreciação da prova, sendo que se indica que os concretos pontos de facto que se consideram incorrectamente julgados constam do número 2) dos factos não provados que deve ser considerado como provado. 10 – Sem conceder, da matéria dada como provada, verifica-se que a Recorrida incumpriu o dever imposto pela garantia do fabricante, nomeadamente, ao não efectuar um diagnóstico atempado e adequado na sequência do alerta luminoso que foi denunciado por duas vezes pelo adquirente do veículo. 11 - Ao darem indicações ao adquirente do veículo de que poderia continuar a circular com o mesmo, apesar dos alertas luminosos de avaria de motor, os funcionários da Ré actuaram (no mínimo) sem a diligencia que lhes era imposta! 12 - E conforme se retira da própria fundamentação da sentença recorrida “...sendo certo que o dano no motor já corresponde a uma consequência da avaria que não foi diagnosticada ou reparada adequadamente logo que surgiu”. 13 - Ao actuar da forma como ficou provada nos autos, duvidas não restam que a Ré incumpriu culposamente uma obrigação contratual, devendo ser responsabilizada pelos danos causados no motor do veículo, independentemente de se tratar de defeito de fabrico! 14 – O tribunal a quo desconsiderou (sem qualquer fundamentação) tal incumprimento contratual por parte da Recorrida. 15 - Conforme decisão proferida pelo Ac. Relação de Guimarães de 16/12/2021: No quadro especial de um contrato de garantia a oportuna apatia ou ilegítima recusa do garante acaba por falsear o objetivo do negócio e desequilibrar o jogo das prestações consignado, isto é, o programa contratual. (in www.dgsi.pt). 16 – A realização de um diagnóstico ao vício/avaria no motor (prontamente denunciado à Ré) configura uma obrigação resultante da garantia. Trata-se, no limite, de um dever acessório que emerge de tal garantia contratualmente fixada e que impõe à Ré que atue no quadro da prevenção, por forma a diagnosticar a origem de tal avaria e evitar consequências mais gravosas. 17 - A Recorrente logrou demonstrar os factos que integram o cumprimento ilícito da Ré (factos 7º, 8º, 9º, 10º, 11º, 12º e 13º), bem como os prejuízos dele decorrente (factos 16º, 17º, 18º, 20º, 21º, 22º, 23º, 24º, 25º, 26º). 18 - “A falta de diagnóstico do problema que o veículo apresentava quando se dirigiu pela primeira vez à oficina e falta de resolução desse problema” consubstancia um incumprimento de um dever imposto à Recorrida no âmbito da garantia contratual por si prestada, cujo incumprimento culposo originou a avaria nos cilindros nº 2 e 7 do motor (ou pelo menos não evitou que a mesma viesse a ocorrer). Termos em que, e nos melhores de direito, deve a douta sentença recorrida ser revogada e substituída por outra que julgue a acção procedente como é de JUSTIÇA.» * Contra-alegou a apelada, formulando as seguintes Conclusões: a) A sentença proferida pelo Ilustre Tribunal a quo não merece qualquer censura devendo ser mantida nos exatos termos em que foi proferida. b) A Apelante não deu cumprimento ao ónus de especificação dos concretos meios probatórios, constantes do processo ou de registo ou gravação nele realizada, que impunham decisão sobre os pontos da matéria de facto impugnados diversa da proferida, como se lhe impunha nos termos do plasmado no artigo 640.°, n.° 1, al. b) do CPC. c) Em face do incumprimento deste ónus de alegação a cargo da Apelante, impõe-se a rejeição de recurso no que à impugnação da matéria de facto diz respeito, nos termos do disposto no artigo 640.º, n.º 1 do CPC. d) O facto não provado n.º 2, com a redação: “A avaria registada pelo veículo ficou a dever-se a defeito de fabrico.”, não merece qualquer censura. e) Contrariamente ao pretendido pela Apelante, as presunções judiciais eventualmente aplicáveis conduziriam à conclusão da inexistência de defeito, caso contrário, o problema ter-se-ia manifestado antes e/ou com frequência, e não apenas após o veículo ter percorrido cerca de 63.000km ao longo de quase três anos sem que qualquer problema se tivesse verificado. f) Também a circunstância de a avaria ter ocorrido uma única vez desde a colocação em circulação do produto afasta a probabilidade de se tratar de um defeito de fabrico. g) Ademais, o facto de a luz de motor do veículo se ter acendido não indicia um qualquer defeito de funcionamento do mesmo, pelo contrário: o veículo funcionou como era devido e, perante a deteção de um possível problema no seu funcionamento, alertou o seu utilizador. h) A Apelada não deu quaisquer indicações ao utilizador do veículo, nem procedeu ao diagnóstico e reparação do veículo, dado que nem sequer tem oficinas reparadoras próprias - quem o fez foi a JJ, pessoa coletiva distinta da Apelada e que com a mesma não se confunde. A circunstância de a Apelada e a JJ serem entidades distintas, faz com que não se pudesse imputar à Apelada as consequências de uma eventual atuação da JJ, que nem sequer é parte nos presentes autos e, por força de tal atuação da JJ, concluir que a Apelada incumprira alegados deveres acessórios de diagnóstico, decorrentes da obrigação de garantia. i) De igual modo, também não existe matéria de facto provada que sustente o incumprimento de quaisquer pretensos deveres de diagnóstico por parte da JJ (cfr. Facto não provado n.° 4) ou da Apelada, ou que conceda tal amplitude à garantia contratual prestada pela mesma, nem tampouco foi requerida a adição de tal facto, o que sempre impediria a sua apreciação e procedência de argumentos com base no mesmo. j) Esta nova teoria da Apelante de incumprimento de deveres acessórios da garantia - trata-se da invocação de matéria de direito não submetida à apreciação do Tribunal a quo - e surge perante a constatação da evidência da impossibilidade de a Apelada realizar a reparação ao abrigo da garantia contratual, dado que, aquando da ocorrência da avaria o veículo, este já não se encontrava abrangido pela garantia contratual (i) por falta de cumprimento do calendário de manutenção e (ii) por a avaria não preceder de um defeito. k) Em face da matéria de facto provada, em cenário algum se poderia equacionar a responsabilização da Apelada ao abrigo do disposto nos artigos 913.° e 914.° do Código Civil, dado que (i) não existe qualquer defeito no veículo (ii) os prazos para o exercício de direitos ao abrigo de tal regime já caducaram, conforme resulta do disposto no artigo 921.° do Código Civil; (iii) a Apelada não vendeu qualquer veículo à Apelante; (iv) tal regime não prevê o exercício de quaisquer direitos contra o produtor, no caso, a Apelada. Nestes termos e nos demais de Direito aplicáveis, deverá a impugnação da matéria de facto ser rejeitada em virtude do incumprimento dos ónus de alegação constantes do artigo 640.°, n.° 1, al. b) e c) do CPC que sobre a Apelante impendia. Caso assim não se entenda, deverá o presente recurso de apelação ser julgado totalmente improcedente, e em consequência ser a decisão do Tribunal a quo mantida nos exatos termos em que foi proferida, com todas as legais consequências. Ao julgardes assim, Venerandos Juízes Desembargadores, estareis uma vez mais a fazer JUSTIÇA!» QUESTÕES A DECIDIR Nos termos dos Artigos 635º, nº 4 e 639º, nº 1, do Código de Processo Civil, as conclusões delimitam a esfera de atuação do tribunal ad quem, exercendo um função semelhante à do pedido na petição inicial.[1] Esta limitação objetiva da atuação do Tribunal da Relação não ocorre em sede da qualificação jurídica dos factos ou relativamente a questões de conhecimento oficioso, desde que o processo contenha os elementos suficientes a tal conhecimento (cf. Artigo 5º, nº 3, do Código de Processo Civil). Também não pode este Tribunal conhecer de questões novas que não tenham sido anteriormente apreciadas porquanto, por natureza, os recursos destinam-se apenas a reapreciar decisões proferidas, ressalvando-se as questões de conhecimento oficioso, v.g., abuso de direito.[2] Nestes termos, as questões a decidir são as seguintes: i.Impugnação da decisão da matéria de facto; ii.Incumprimento da garantia prestada pela apelada. Corridos que se mostram os vistos, cumpre decidir. FUNDAMENTAÇÃO DE FACTO A sentença sob recurso considerou como provada a seguinte factualidade: 1. A Autora tem como atividade a “comercialização de veículos automóveis. Comércio e aluguer de barcos de recreio. Aluguer de viaturas. Gestão de frotas automóveis, manutenção e reparação de veículos automóveis e motociclos suas partes e peças ...” 2. Em 27 de Março de 2019 a Autora adquiriu por compra a viatura de matrícula (...). 3. A referida viatura (...), é da Marca Land Rover, modelo Range Rover Sport, a gasolina, possui o número de quadro (...) e com primeira matricula de 2016.07.01. 4. Em 29.03.2019, no exercício da sua atividade comercial, a Autora celebrou um contrato de compra e venda pelo qual vendeu à sua Cliente (...) Textil Unipessoal Lda – representada pelo Sr. Dr. PT - a dita viatura. 5. Pelo negócio supra, o Cliente pagou à Autora a quantia de €120.000,00 nos termos acordados. 6. Em Maio de 2019, o Dr. PT – então possuidor do veículo - deslocou-se ao concessionário e oficina reparadora autorizada da Ré na cidade do Porto (e doravante aqui designada por “JJ”), devido à luz de motor do veículo que se encontrava acesa, assinalando uma qualquer avaria. 7. Após a realização do teste de diagnóstico, o Dr. PT foi então informado pela JJ que o problema do veículo seria “acumulação de gases no catalisador do veículo”. 8. Em ato continuo, o erro foi apagado pela JJ e a viatura foi entregue ao Dr. PT com ordem para prosseguir a normal utilização do veículo. 9. Alguns dias passados, em viagem do Porto para Lisboa, a referida luz de motor voltou a acender. 10. De imediato, o Dr. PT contactou a JJ através de chamada telefónica, tendo-lhe sido dito pelos profissionais que poderia prosseguir a viagem. 11. Aquando da viagem de regresso para o Porto, a viatura começou a perder força e o seu funcionamento tornou-se irregular e deficiente. 12. Por isso, o Dr. PT solicitou de imediato a respetiva assistência em viagem do seguro do veículo, tendo este sido deslocado através de pronto-socorro e entregue na JJ do Porto em 20/05/2019. 13. A JJ comunica ao Dr. PT que existia uma avaria no motor do seu veículo e que, em concreto, os cilindros n.º 2 e n.º 7 estavam danificados. 14. A JJ informa ainda o Dr. PT de que o veículo automóvel não se encontrava abrangido pela garantia. 15. Interpelada pelo mandatário da Autora para regularização dos defeitos no veículo, através de preenchimento do formulário online disponibilizado no site da Ré, esta respondeu por e-mail de 16-07-2020 declinando a sua responsabilidade invocando que não fora cumprida a calendarização das revisões/manutenção da viatura conforme estipulado pela marca 16. Em consequência da avaria o veículo ficou completamente impedido de circular e foi a aqui Ré que, ao abrigo da garantia de 12 meses, assumiu a responsabilidade pelo pagamento da reparação. 17. A Cliente (...) exigiu que a Autora assumisse o pagamento deste montante à JJ. 18. Deste modo, o valor a pagar foi diretamente faturado pela JJ à aqui Autora que, através de cheque de 10.01.2020, pagou o valor de €28.467,11. 19. A Ré presta uma garantia automóvel de fabricante. 20. O Cliente da Autora ficou privado do uso do veículo durante vários meses (mais de 4 meses) tendo-o só usado durante um único mês! 21. Em 7.06.2019, a Cliente (...) comunicou à Autora que não pretendia ficar com aquela viatura (...). 22. Durante o período de imobilização do veículo (...), a Autora suportou o custo inerente ao aluguer de uma viatura de substituição (Mercedes, ..-..-..) que foi colocada à disposição da Cliente (...). 23. Por este contrato de aluguer celebrado com a empresa SCCSTAR – Aluguer de Viaturas, Unipessoal Lda, a Autora pagou a quantia de €10.827,63. 24. A Autora aceitou indemnizar a sua Cliente (...) face todos os inconvenientes que lhe foram causados devido à avaria do veículo (...) e sua indisponibilidade durante 4 meses, 25. Para tal, as partes acordaram no pagamento da quantia de €5.000,00 a título de indemnização a ser pago pela Autora à Cliente. 26. Até a data, a Autora já procedeu ao pagamento de €2.727,50. 27. A Ré representa, em Portugal, a marca do veículo em causa nos presentes autos e dedica-se à “importação, distribuição e exportação de veículos automóveis, ligeiros e pesados, motores, máquinas e tractores agrícolas e industriais, peças e acessórios.”, 28. A Ré oferece aos utilizadores dos seus veículos uma garantia contratual, sendo a mesma conferida a cada um dos veículos comercializados pela marca, por 3 anos com “(...) início no dia de entrega do veículo ao primeiro cliente no stand de vendas ou ao seu representante” 29. Tal informação consta da página 17 do capítulo das garantias constante do manual do utilizador e encontra-se plasmada na página oficial de internet da marca 30. Do teor da página 16 do capítulo das garantias, constante do manual do utilizador do veículo, a garantia oferecida pela Ré “consiste num vasto conjunto de benefícios, concebido para oferecer um elevado padrão de assistência e apoio pós-venda.”, 31. Conforme página 17 a garantia abrange quatro áreas essenciais para veículos como o do caso dos presentes autos, a saber (i) garantia do veículo, (ii) garantia da superfície de pintura, (iii) garantia da proteção anticorrosão e (iv) garantia do sistema de controlo de emissões 32. Da página 18, no que refere à garantia do veículo resulta o seguinte: “Se qualquer peça do veículo necessitar de reparação ou substituição em resultado de um defeito de fabrico, a peça será reparada ou substituída por qualquer reparador autorizado.” 33. Da página 20 do capítulo das garantias, constante do manual do utilizador do veículo, onde constam as informações referentes à garantia do veículo, resulta que deverão ser “(...) realizadas todas as manutenções necessárias, segundo os requisitos da revisão da Land Rover, e que os materiais utilizados cumprem com as especificações técnicas da Land Rover”, 34. Acrescentando-se a expressa advertência de que “a não realização atempada da manutenção e a não observância dos intervalos de revisão especificados pela Land Rover podem invalidar a cobertura da garantia”. 35. Para o modelo do veículo dos presentes autos, a primeira revisão deveria ter sido realizada aos 26.000 km ou 12 meses, consoante o momento que ocorresse primeiro 36. No registo interno da Ré (Online Service History), serviço da Land Rover que permite registar as manutenções realizadas num determinado veículo na plataforma online da marca, acessível por qualquer interessado, não consta nenhuma das revisões devidas nos termos do calendarizado. 37. As condições da garantia alertam expressamente da necessidade de registo de todas as manutenções do veículo “Certifique-se de que todos os documentos relacionados com os trabalhos de manutenção/revisão realizados são guardados com o veículo e que a confirmação de trabalhos de manutenção é sempre registada no histórico de revisões online (OSH) ou nas páginas do registo de revisões para os mercados onde o (OSH) não está disponível.” Factos não provados: 1. Foi prestada pelo fabricante do veículo uma garantia com a duração de cinco anos; 2. A avaria registada pelo veículo ficou a dever-se a defeito de fabrico. 3. A viatura tinha - e tem - a sua manutenção em dia e sempre realizada com as peças originais da marca Land Rover. 4. Os técnicos da JJ tinham perfeito conhecimento da situação e, mesmo assim, afirmaram que o veículo não tinha qualquer problema. 5. Aliás, afirmaram ainda para fazer a viagem de regresso de Lisboa até ao Porto e que, aqui chegado, apagariam novamente a luz de aviso. 6. O veículo em causa foi trocado por um outro à escolha da Cliente ver doc 10. 7. Após a revisão inicial efectuada em 21 de Junho de 2016, aos 11 Kms, não foi realizada mais nenhuma revisão ao veículo; 8. O veículo registou uma avaria resultante do total incumprimento do seu calendário de revisões e da omissão de cumprimento das obrigações de manutenção regulares do mesmo por parte do seu utilizador. FUNDAMENTAÇÃO DE DIREITO Impugnação da decisão da matéria de facto. A apelante pretende que o facto não provado sob 2 (“A avaria registada pelo veículo ficou a dever-se a defeito de fabrico”) seja revertido para facto provado, estribando essa pretensão em presunção judicial construída a partir dos factos provados sob 6, 9 a 13, os quais permitirão a formulação de juízo inferencial da existência do defeito de fabrico. Por sua vez, a apelada argumenta que a impugnação da matéria de facto ser rejeitada em virtude do incumprimento dos ónus de alegação constantes do artigo 640.º, n.º 1, al. b) e c), do Código de Processo Civil, que sobre a apelante impendia. O Tribunal a quo justificou a resposta de não provado nestes termos: «Sobre a avaria concretamente dita, a prova apresentada não indica a sua concreta origem, sendo certo que a mesma pode ter causas diversas, não sendo descritos, para além do sinal dado pelo veículo, quaisquer factos sobre os efeitos gerados no veículo que possam ajudar a determinar o tipo de avaria existente e sua causa, sendo certo que o dano no motor já corresponde a uma consequência da avaria que não foi diagnosticada ou reparada adequadamente logo que surgiu. De qualquer forma, na ausência dos factos referidos, não se pode concluir que o veículo tinha um defeito de fabrico, tanto mais que circulou por cerca de 63.000 km, ao longo de quase três anos.» Apreciando. Não se alcança o sentido da objeção suscitada pela apelada quanto ao invocado incumprimento do ónus da al. c), do nº1, do Artigo 640º porquanto a pretensão da apelante é clara no sentido de o facto não provado sob 2 ser revertido em facto provado. No que tange ao ónus preconizado na al. b), do nº1, do Artigo 640º, do mesmo decorre que o impugnante da matéria de facto deve precisar os concretos meios probatórios, constantes do processo ou da gravação nele realizada, que imponham decisão diversa sobre o ponto da matéria de facto impugnada. Na grande maioria das situações, o cumprimento de tal ónus implica a identificação de documentos e/ou excertos de depoimentos prestados, os quais – no entender do apelante – dão respaldo à pretendida alteração da matéria de facto. Todavia, nada obsta a que, em sede de recurso de apelação, o apelante estribe a pretensão de alteração da matéria de facto com base em presunções judiciais formuladas a partir de factos-base que, por sua vez, integrem o elenco dos factos tidos como provados pela primeira instância, salvo as limitações probatórias decorrentes dos Artigos 393º a 395º do Código Civil. Conforme se refere em Luís Filipe Sousa, Prova por Presunção no Direito Civil, 3ª ed., p. 189: «(…) o Tribunal da Relação pode socorrer-se de presunções judiciais para desenvolver a matéria de facto provada na primeira instância, declarando provado um novo facto (presunção de segunda geração) com base nos factos provados na primeira instância (que operam aqui como factos-indiciários), desde que o novo facto seja congruente e não colidente com os demais factos já provados (“extraindo dos factos apurados as presunções impostas pela lei ou por regras de experiência” – parte final do nº4 do Artigo 607º).» Esta solução decorre, inequivocamente, da conjugação dos Artigos 663º, nº 2, e 607º, nº4 (“extraindo dos factos apurados as presunções impostas pela lei ou por regras de experiência”), do Código de Processo Civil. Foi esse o procedimento adotado pela apelante, nada impedindo que assente a sua pretensão recursória nos termos processuais em que o faz. Questão diversa é a da procedência da pretensão. A apelante pretende que o facto presumido/factum probandum (“A avaria registada pelo veículo ficou a dever-se a defeito de fabrico”), decorra de outros factos-indiciários (presunção polibásica), a saber: 6. Em Maio de 2019, o Dr. PT – então possuidor do veículo - deslocou-se ao concessionário e oficina reparadora autorizada da Ré na cidade do Porto (e doravante aqui designada por “JJ”), devido à luz de motor do veículo que se encontrava acesa, assinalando uma qualquer avaria; 9. Alguns dias passados, em viagem do Porto para Lisboa, a referida luz de motor voltou a acender. 10. De imediato, o Dr. PT contactou a JJ através de chamada telefónica, tendo-lhe sido dito pelos profissionais que poderia prosseguir a viagem. 11. Aquando da viagem de regresso para o Porto, a viatura começou a perder força e o seu funcionamento tornou-se irregular e deficiente. 12. Por isso, o Dr. PT solicitou de imediato a respetiva assistência em viagem do seguro do veículo, tendo este sido deslocado através de pronto-socorro e entregue na JJ do Porto em 20/05/2019. 13. A JJ comunica ao Dr. PT que existia uma avaria no motor do seu veículo e que, em concreto, os cilindros n.º 2 e n.º 7 estavam danificados. Para que se possa considerar provado um facto por presunção judicial, é necessário que entre o facto-indiciário e o facto presumido ocorra um nexo lógico atendível e revelante. Quanto à densificação de tal nexo lógico, conforme se refere em Luís Filipe Sousa, Prova por Presunção no Direito Civil, 3ª ed., pp. 57-58 e 64: «Resulta do que fica dito que, nos casos reconduzíveis ao id quod plerumque accidit, a inferência entre o facto-base e o facto presumido baseia-se numa regra geral, sendo a relação entre os dois factos de tal ordem que a enunciação do facto-base torna impossível a falsidade da enunciação do segundo facto (presumido) mas não implica necessariamente a verdade deste. Dito de outra forma, na prova indiciária a relação entre os dois factos é tal que ao primeiro se segue, normalmente, o segundo mas o inverso não é verdade, ou seja, a prova do segundo faculta uma simples probabilidade do primeiro.[3] A relação que existe é de implicação condicional, no âmbito da qual o indício assume a posição de um consequente do qual se pode verificar a possibilidade de remontar a um antecedente. Atenta a natureza eminentemente lógica da relação de implicação condicional entre o antecedente e o consequente, não tem particular relevância a relação temporal entre o antecedente e o consequente (cf. a classificação dos indícios sob 4.).[4] A inferência presuntiva baseada no id quod plerumque accidit, mais do que comportar uma relação de necessidade absoluta entre os dois factos, limita-se a afirmar que tal relação ocorre na maior parte dos casos conhecidos, ou seja, é uma relação que se pode considerar normal ou frequente.[5] A máxima de experiência pertinente no caso fornece uma justificação suficiente para se concluir que existe um nexo lógico entre a ocorrência do facto conhecido (factum probans) e o facto desconhecido (factum probandum). Colocado perante a prova do factum probans, o juiz – com recurso aos critérios interpretativos do mesmo propiciados pela regra da experiência pertinente e atentas as circunstâncias do caso – aquilata se o mesmo proporciona um suporte racional suficiente de molde a que possa afirmar-se a existência do factum probandum para os fins daquele processo. O grau de probabilidade que pode ser atribuído ao factum probandum é sempre relativo ao material cognoscitivo disponível. Este grau de probabilidade que pode ser atribuído a uma certa asserção afere-se não tanto na sua apreciação de per si mas mais pelo seu cotejo com outras proposições contrárias e/ou incompatíveis relativas ao mesmo factum probandum. A força probante do indício reside na razão direta da frequência do factum probandum face àquele e na razão inversa da multiplicidade e da frequência dos factos contrários ao indício.[6] Quanto maior for a conexão lógica que o juiz encontre entre o factum probans e o factum probandum maior será a força probante daquele. A certeza ínsita à formulação da convicção judicial significa, neste circunspecto, que o juiz assumiu uma hipótese como a mais atendível por ser a que apresenta maior probabilidade possível naquela concreta situação probatória[7] , excluindo – do mesmo passo – outras alternativas verosímeis. (…) O nexo lógico não é um facto mas um juízo de probabilidade qualificada que assenta e deriva de uma máxima de experiência, tida por aplicável no caso, segundo a qual perante a ocorrência de um facto gera-se uma probabilidade qualificada de que se tenha produzido outro. Assim, a parte que recorre a uma presunção judicial não tem que provar o nexo lógico mas tem que lograr convencer o juiz da existência e aplicabilidade ao caso de uma máxima de experiência. O que é objeto de prova é a máxima de experiência e não o nexo lógico.» Revertendo ao caso em apreço, há que notar que a primeira matrícula do veículo data de 1.7.2016 (facto 3), tendo sido adquirida no estado de usada pela apelante em 27.3.2019, ou seja, mediaram 999 dias entre a primeira matrícula do veículo e a data da sua aquisição pela autora. Subsequentemente, em 29.3.2019, a autora vendeu o veículo a uma sociedade comercial. Durante este longo hiato temporal, desconhece-se a utilização efetiva que foi dada ao veículo em causa, se cuidada e com observância das recomendações técnicas de manutenção ou se, pelo contrário, o mesmo foi objeto de uma utilização descuidada ou negligente. Deste modo, o longo hiato temporal em causa não abona – muito pelo contrário – a configuração de uma regra de experiência segundo a qual, face aos factos provados sob 6, 9 a 13, haja que considerar que exista uma probabilidade qualificada de a avaria se dever a um defeito de fabrico e não a fatores que tenham a ver com o uso que foi dado ao veículo durante 999 dias. Uma estreita proximidade temporal entre a deteção da avaria e o fabrico da viatura poderia sedimentar a formulação de tal nexo lógico enquanto uma maior dilação temporal, como é o caso, infirma a formulação desse nexo lógico. Com efeito, havendo um defeito de fabrico de tal índole que cause danos nos cilindros, o mesmo tenderia a revelar-se de forma mais prematura, não demorando mais de mil dias a revelar-se. Acresce que a avaria nos cilindros tem como uma das causas mais conhecidas a falta de lubrificação do motor, sendo esta – sim – uma situação de ocorrência frequente. Ou seja, é formulável uma regra de experiência técnica no sentido de que a falta de lubrificação do motor pode causar danos no motor, designadamente nos cilindros, como foi o caso. A título exemplificativo: § «Quando se fala num motor gripado há no mínimo duas peças, uma móvel e outra fixa (as mais habituais são o pistão e a camisa que cobre o cilindro ou os casquilhos e a cambota), que se fundiram impedindo o funcionamento de toda a engrenagem. Todo este processo advém de uma falha de um elemento muito simples: o óleo. Se a lubrificação faltar ou se o óleo já não tiver a viscosidade necessária para manter as peças lubrificadas, a fricção das peças vai gerar calor extremo que resulta no motor gripado» (https://www.standvirtual.com/blog/mecanica-automovel-conheca-5-piores-avarias/?doing_wp_cron=1669658665.6858179569244384765625 ) § « (…) a falta de lubrificação força o atrito dos pistões com os cilindros, entre outras partes metálicas. Com as altas temperaturas, essas peças podem acabar ocasionando no motor fundido. Dessa forma, faça trocas periódicas para evitar que o óleo envelheça e forme borras no motor ao longo do tempo» ( https://www.portalautoshopping.com.br/blog/motor-fundido/ ). Em suma, inexiste regra de experiência técnica que estribe a pretendida formulação de um nexo lógico entre os factos provados sob 6, 9 a 13 e o facto não provado sob 2 e, sobretudo, o longo tempo decorrido entre o fabrico do veículo e a deteção da avaria infirma completamente a formulação de tal nexo lógico. Improcede, assim, a impugnação da decisão de facto. Incumprimento da garantia prestada pela apelada. A Autora/apelante adquiriu o veículo em causa (estado de usado) no exercício da sua atividade de comercialização de veículos e procedeu à sua subsequente venda a uma sociedade (factos 1 a 4). Face à avaria detetada no veículo, a Autora decidiu assumir perante a sua compradora as despesas com a reparação do veículo (18), com o custo de um veículo de substituição (23), com os inconvenientes causados ao comprador com a avaria (25 e 26). Com a propositura desta ação, a Autora/apelante pretende exercer um direito de regresso sobre a Ré, na qualidade de produtor do veículo que, além do mais, prestou uma garantia contratual de três anos. Dispõe o Artigo 7º do Decreto-lei nº 67/2003, de 8.4., que: Artigo 7.º Direito de regresso 1 - O vendedor que tenha satisfeito ao consumidor um dos direitos previsto no artigo 4.º bem como a pessoa contra quem foi exercido o direito de regresso gozam de direito de regresso contra o profissional a quem adquiriram a coisa, por todos os prejuízos causados pelo exercício daqueles direitos. 2 - O disposto no n.º 2 do artigo 3.º aproveita também ao titular do direito de regresso, contando-se o respetivo prazo a partir da entrega ao consumidor. 3 - O demandado pode afastar o direito de regresso provando que o defeito não existia quando entregou a coisa ou, se o defeito for posterior à entrega, que não foi causado por si. (…) Nos termos desta disposição, «O vendedor apenas pode dirigir-se à pessoa de quem adquiriu o bem, não podendo responsabilizar diretamente o produtor. / Já no caso de ter adquirido o bem de um não profissional (compra e venda de bem usado), o vendedor não pode exercer o direito de regresso.» (Jorge Morais de Carvalho, Os Contratos de Consumo, Reflexão Sobre a Autonomia Privada no Direito do Consumo, Almedina, p. 610). Esta solução também é defendida por Paulo Mota Pinto, “O direito de regresso do vendedor final de bens de consumo”, in Estudos Dedicados ao Prof. Doutor Mário Júlio de Almeida Costa, UCE, p. 1197: « (…) a vantagem de maior clareza é igualmente conseguida através de um direito de regresso de cada elemento da “cadeia contratual” contra a respetiva contraparte, o qual permitindo às partes regular, em certos termos, eventuais responsabilidades futuras (prevendo compensações adequadas), também não prejudica o comprador/consumidor, pois os seus direitos são logo satisfeitos pelo vendedor final. Assim, apesar de poder importar uma maior lentidão e risco na imputação, através do exercício dos diversos direitos de regresso, do prejuízo ao causador do defeito, julgamos que esta última solução – correspondente também ao regime que acabou por ser adotado os projetos de transposição alemão e austríaco – é ainda preferível (pelo menos, se não existir logo prova clara de quem causou a falta de conformidade). O direito de regresso será, pois, reconhecido, não apenas ao vendedor final, mas a cada vendedor da “cadeia contratual” perante a sua contraparte, até se chegar ao causador da falta de conformidade. Isto, porém, apenas para o direito de regresso do vendedor final, e já não para o exercício dos direitos do consumidor/comprador diretamente contra o produtor.» A responsabilidade direta do produtor só existe perante o consumidor, nos termos do Artigo 6º, nº1, do Decreto-lei nº 67/2003: «1 - Sem prejuízo dos direitos que lhe assistem perante o vendedor, o consumidor que tenha adquirido coisa defeituosa pode optar por exigir do produtor a sua reparação ou substituição, salvo se tal se manifestar impossível ou desproporcionado tendo em conta o valor que o bem teria se não existisse falta de conformidade, a importância desta e a possibilidade de a solução alternativa ser concretizada sem grave inconveniente para o consumidor.» Assim, em primeiro lugar, há que concluir que não assiste à autora/apelante direito de regresso, ao abrigo da citada disposição, contra a Ré/apelada, mas apenas direito de regresso contra quem comprou o veículo, entidade que não está identificada nos factos provados (cf. facto 2). Em segundo lugar, não estando provada a existência de um defeito de fabrico do veículo, está inviabilizada a invocação do regime da responsabilidade civil do produtor como fundamento para demandar a Ré. Com efeito, nos termos do Artigo 4º, nº1, do Decreto-lei nº 383/89, de 6.11., «Um produto é defeituoso quando não oferece a segurança com que legitimamente se pode contar, tendo em atenção todas as circunstâncias, designadamente a sua apresentação, a utilização que dele razoavelmente possa ser feita e o momento da sua entrada em circulação.» Conforme refere Graça Trigo, Responsabilidade Civil, Temas Especiais, UCE, p. 107, este regime visa o produto defeituoso como um produto perigoso. «Está em causa a segurança, não em absoluto, mas aquela que o consumidor pode esperar em função de diversos fatores, entre o quais três que o legislador indica: a apresentação do produto, a utilização razoável do mesmo e o momento em que foi colocado em circulação. Quer dizer que a falta de segurança integra uma vertente objetiva (a aptidão do bem para causar danos) e integra uma vertente subjetiva (as expectativas legítimas do consumidor.» Há que distinguir entre um produto defeituoso por ser perigoso (este regime), por um lado, e defeito para os efeitos do Artigo 913º do Código Civil, por outro. «Os danos sofridos pelo próprio produto defeituoso não estão incluídos na obrigação de indemnizar a cargo do produtor. Seguem antes as regras próprias da compra e venda de coisas defeituosas. A responsabilização do produtor tem sobretudo em vista a reparação dos danos resultantes da utilização do produto defeituoso que justamente se devam imputar às suas imperfeições» (José Alberto González, Direito da Responsabilidade Civil, Quid Iuris, pp. 459-460). Compete ao lesado o ónus da prova do defeito do produto, do dano e do nexo de causalidade entre o defeito e o dano (cf. Graça Trigo, Responsabilidade Civil, Temas Especiais, UCE, p. 110; Acórdãos do Supremo Tribunal de Justiça de 8.11.2001, 2838/01, www.colectaneadejurisprudencia.com, e de 9.9.2010, Serra Baptista, 63/10). No caso em apreço, soçobra essa prova do defeito do produto e do nexo de causalidade entre o defeito e o dano, razão suficiente e necessária da improcedência da ação contra a ré, ao abrigo da responsabilidade civil do produtor. Finalmente, resta ponderar o regime da garantia contratual de três anos prestada pela Ré, enquanto representante em Portugal da marca do veículo em causa. Dispõe o Artigo 1ºB, al. g), do Decreto-lei nº 67/2003, que: ««Garantia voluntária», qualquer compromisso ou declaração, de carácter gratuito ou oneroso, assumido por um vendedor, por um produtor ou por qualquer intermediário perante o consumidor, de reembolsar o preço pago, substituir, reparar ou ocupar-se de qualquer modo de um bem de consumo, no caso de este não corresponder às condições enumeradas na declaração de garantia ou na respetiva publicidade». Por sua vez, quanto à forma de tal garantia, rege o Artigo 9º do Decreto-lei nº 67/2003, de 8.4, nestes termos: Artigo 9.º Garantias voluntárias 1 - (Revogado pelo Decreto-Lei n.º 84/2008, de 21 de Maio.) 2 - A declaração de garantia deve ser entregue ao consumidor por escrito ou em qualquer outro suporte duradouro a que aquele tenha acesso. 3 - A garantia, que deve ser redigida de forma clara e concisa na língua portuguesa, contém obrigatoriamente as seguintes menções: a) Declaração de que o consumidor goza dos direitos previstos no presente decreto-lei, e na demais legislação aplicável, e de que tais direitos não são afetados pela garantia; b) A informação sobre o carácter gratuito ou oneroso da garantia e, neste último caso, a indicação dos encargos a suportar pelo consumidor; c) Os benefícios atribuídos ao consumidor por meio do exercício da garantia, bem como as condições para a atribuição destes benefícios, incluindo a enumeração de todos os encargos, nomeadamente aqueles relativos às despesas de transporte, de mão-de-obra e de material, e ainda os prazos e a forma de exercício da mesma; d) Duração e âmbito espacial da garantia; e) Firma ou nome e endereço postal, ou, se for o caso, eletrónico, do autor da garantia que pode ser utilizado para o exercício desta. 4 - Salvo declaração em contrário, os direitos resultantes da garantia transmitem-se para o adquirente da coisa. 5 - A violação do disposto nos n.ºs 2 e 3 do presente artigo não afeta a validade da garantia, podendo o consumidor continuar a invocá-la e a exigir a sua aplicação. Quanto às condições que podem ser impostas no âmbito de uma garantia voluntária, colhemos a lição de Jorge Morais de Carvalho, Os Contratos de Consumo, Reflexão Sobre a Autonomia Privada no Direito do Consumo, Almedina, p. 615: «Note-se que, quando às condições para atribuição das vantagens da garantia voluntária, o emitente pode impor as que entender, no respeito pelo princípio da boa fé, cabendo ao consumidor cumprir essas condições para delas beneficiar. Assim, por exemplo, se um vendedor exigir o carimbo da fatura no prazo de quinze dias após a celebração do contrato para a efetivação da garantia voluntária, esta exigência é valida, tal como o será a exigência de que o consumidor guarde e apresente a embalagem do bem. É importante perceber que estamos a referir-nos à garantia voluntária e não à garantia legal. Em relação à garantia legal de dois anos, aquelas condições seriam inadmissíveis, tendo-se por não escritas.» No caso em apreço, a garantia voluntária estava condicionada à realização atempada da manutenção nos intervalos de revisão especificados pela Land Rover (34), devendo os materiais utilizados cumprir as especificações técnicas da marca (33), sendo que para o modelo em causa a primeira revisão deveria ter sido realizada aos 26.000 km ou aos 12 meses, consoante o momento que ocorresse primeiro (35). Todavia, essas condições da garantia voluntária não foram cumpridas porquanto, no registo interno da Ré, não consta nenhuma das revisões devidas nos termos do calendarizado (36). Nesta medida, assiste à Ré o direito de recusar – consoante o fez – o acionamento da garantia voluntária. Nas conclusões 10 a 16, a autora/apelante sustenta a tese de que a ré/apelada incumpriu um dever imposto pela garantia do fabricante, ao não efetuar um diagnóstico atempado e adequado na sequência do alerta luminoso que foi denunciado, duas vezes, pelo adquirente do veículo. Esta pretensão improcede. Em primeiro lugar, esta tese é nova, não tendo sido sustentada pela autora na petição como integrando a causa de pedir. Não pode a autora alterar a causa de pedir no âmbito do recurso de apelação (cf. Artigo 265º, nº1, do Código de Processo Civil; cf. Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 15.9.2022, Cura Mariano, 188/20). Mesmo que assim não fosse, a tese não procede. Com efeito, a JJ constitui entidade jurídica distinta da Ré, sendo apenas um concessionário e oficina reparadora autorizada da Ré na cidade do Porto. Não está demonstrado que lhe estejam cometidas funções de representação da ré, não sendo os funcionários da JJ funcionários da ré. Acresce que o primeiro contacto demonstrado com a ré é o provado sob 15, tratando-se de interpelação do mandatário da Autora para regularização dos defeitos do veículo. Só a partir desse momento, seria configurável um dever de diagnóstico e não antes, em maio de 2019, como pretende a apelante. Termos em que, sendo desnecessárias outras considerações, deverá ser julgada improcedente a apelação. A fundamentação autónoma da condenação em custas só se tornará necessária se existir controvérsia no processo a esse propósito (cf. art.º 154º, nº1, do Código de Processo Civil; Acórdãos do Tribunal Constitucional nºs. 303/2010, de 14.7.2010, Vítor Gomes, e 708/2013, de 15.10.2013, Maria João Antunes). DECISÃO Pelo exposto, acorda-se em julgar improcedente a apelação, confirmando-se a sentença recorrida. Custas pela apelante na vertente de custas de parte (Artigos 527º, nºs 1 e 2, 607º, nº6 e 663º, nº2, do Código de Processo Civil). Lisboa, 20.12.2022 Luís Filipe Sousa José Capacete Carlos Oliveira _______________________________________________________ [1] Abrantes Geraldes, Recursos no Novo Código de Processo Civil, 5ª ed., 2018, p. 115. [2] Abrantes Geraldes, Op. Cit., p. 119. Neste sentido, cf. os Acórdãos do Supremo Tribunal de Justiça de 9.4.2015, Silva Miguel, 353/13, de 10.12.2015, Melo Lima, 677/12, de 7.7.2016, Gonçalves Rocha, 156/12, de 17.11.2016, Ana Luísa Geraldes, 861/13, de 22.2.2017, Ribeiro Cardoso, 1519/15, de 25.10.2018, Hélder Almeida, 3788/14, de 18.3.2021, Oliveira Abreu, 214/18. O tribunal de recurso não pode conhecer de questões novas sob pena de violação do contraditório e do direito de defesa da parte contrária (Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 17.12.2014, Fonseca Ramos, 971/12). [3] Andrea Pellegrino, Il Doppio Volto Dell’Indizio nel Processo Penale, Giappichelli Editore, 2010, p. 283. [4] Carlo Zaza, Il Ragionevole Dubbio nella Logica della Prova Penale, Giuffrè, Milano, 2008, pp. 90-91. [5] michele taruffo, “Certezza e probabilità nelle presunzioni”, in Foro Italiano, 1974, V, p. 89. [6] Afirma lopez moreno citado em gioconda fianco pitt, Prova Indiciária e Convencimento Judicial no Processo Civil, Universidade Federal do Rio Grande do Sul, Porto Alegre, 2008, pp. 103-104, que “todo indício produz tanto maior convicção quanto maior número exclui de explicações diferentes do facto. No concurso das probabilidades a favor, somam-se as homogéneas, isto é conducentes ao mesmo resultado, enquanto que as contrárias, por heterogéneas e conducentes a fatos diferentes, se não podem somar. Daí que cada novo indício que concorre aumente em extremo o grau de certeza, podendo ser tal o número que conduz, quando não à evidência, pelo menos a uma convicção tal que permite obrar sem receio de engano.” [7] Cf. michele taruffo, “Certezza e probabilità nelle presunzioni”, in Foro Italiano, 1974, V, p. 98 e Notas (58) e (59). |