Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
244/21.1PQLSB.L1-9
Relator: MARIA CARLOS DUARTE DO VALE CALHEIROS
Descritores: TRÁFICO DE ESTUPEFACIENTES
SUSPENSÃO DA PENA DE PRISÃO
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 03/09/2023
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Texto Parcial: N
Meio Processual: RECURSO PENAL
Decisão: IMPROCEDENTE
Sumário: I- Impõe o legislador que o julgador opte pela suspensão da pena de prisão não superior a cinco anos se da consideração dos factos apurados for possível concluir que a simples censura do facto e a ameaça de prisão realizam, de forma adequada e suficiente, as finalidades da punição.
II -Não excluindo o legislador a aplicação do instituto de suspensão da execução da pena de prisão relativamente ao crime de tráfico de estupefacientes previsto e punido pelo artigo 21.º, n.º 1, do Decreto-Lei n.º 15/93, de 22 de Janeiro, não pode o julgador fazê-lo de forma automática sob pena de violação do princípio da legalidade consagrado no artigo 1º do C.P..
III -Apenas em função do circunstancialismo concreto é possível concluir que é inviável o recurso à suspensão da pena de prisão por esta não assegurar a satisfação das exigências de prevenção geral.
IV- Sendo o produto estupefaciente em causa maioritariamente canábis , substância de menor potencial tóxico e viciante , não tendo o arguido cometido o crime no âmbito de actividade organizada e com sofisticação de meios, a ausência de antecedentes criminais que se mostra relevante atenta a sua idade, as condições pessoais apuradas nos autos , a integração social e a sua estrutura familiar, o seu percurso laboral  e a disrupção deste por força da situação pandémica , apontam para o carácter anómalo da conduta criminosa no percurso de vida do arguido e permitem sustentar um juízo de prognose favorável relativamente à capacidade e à determinação do arguido manter um comportamento conforme ao direito e arredado da prática de crimes e por conseguinte concluir pelo efeito dissuasor da simples ameaça da prisão , considerada  até a circunstância de lhe ter sido aplicada medida de coacção privativa da liberdade, e simultaneamente satisfazer as expectativas da comunidade no cumprimento das normas legais.
Decisão Texto Parcial:
Decisão Texto Integral: Acordam em conferência   os Juízes da 9ª Secção Criminal do Tribunal da Relação de Lisboa:

I - RELATÓRIO
No âmbito dos autos de processo comum nº­­ 244/21.1PQLSB, com julgamento por tribunal colectivo ,  o arguido A foi condenado pela prática, em autoria material, de um crime de tráfico de estupefacientes, previsto e punido pelo artigo 21.º, n.º 1, do Decreto-Lei n.º 15/93, de 22 de Janeiro, na sua actual redacção, com referência às Tabelas I-C e II-A, anexas a esse diploma, na pena de 4 (quatro) anos e 9 (nove) meses de prisão,  tendo sido decidido suspender na sua execução a pena aplicada pelo mesmo período de tempo (quatro anos e nove meses), mediante regime de prova.
Não se conformando com esta decisão o Ministério Público veio interpor recurso, requerendo que seja revogada a decisão recorrida e substituída a mesma por outra que decrete o cumprimento da pena em clausura, apresentando as seguintes conclusões, que se passam a transcrever:
“1 - O arguido detinha para venda, tal como a decisão recorrida deu como provado:
- 29 (vinte e nove) embalagens de canabis (folhas e sumidades floridas ou frutificadas), com o peso líquido de 148,289 gramas, produto este que apresentava um grau de pureza de 8,7%, sendo o equivalente a 258 doses de consumo;
_ 21 (vinte e uma) embalagens de canabis (folhas e sumidades floridas ou frutificadas), com o peso líquido de 68,000 gramas, produto este que apresentava um grau de pureza de 10,2%, sendo o equivalente a 138 doses de consumo;
- 5 (cinco) embalagens de canabis (resina), com o peso líquido de 28,960 gramas, produto este que apresentava um grau de pureza de 17,5%, sendo o equivalente a 101 doses de consumo;
- 1 (uma) saqueta de MDMA, com o peso líquido de 0,987 gramas, produto este que apresentava um grau de pureza de 53,1%, sendo o equivalente a 5 doses de consumo;
- 3 (três) comprimidos de MDMA, com o peso líquido de 1,030 gramas, produto este que
apresentava um grau de pureza de 18,9%, sendo o equivalente a 1 dose de consumo;
- 1 (uma) saqueta de MDMA, com o peso líquido de 0,987 gramas, produto este que apresentava um grau de pureza de 53,1%, sendo o equivalente a 5 doses de consumo;
- 19 (dezanove) micro-selos de LSD;
- 1 (um) embrulho de MDMA, com o peso líquido de 0,315 gramas, produto este que apresentava um grau de pureza de 52,6%, sendo o equivalente a 1 dose de consumo.
- a quantia monetária de €3.538,50 (três mil quinhentos e trinta e oito euros e cinquenta cêntimos), resultante de resultantes de anteriores transacções daqueles produtos.
2 – A decisão de suspensão de execução da pena contou com o voto de vencida da Ex.ª
Srª Juíza Adjunta que com vénia subscrevemos.
3 – Tal como “, refere Jorge Figueiredo Dias, As Consequências do Crime, Reimpressão, 2005, p. 342 e ss.: “Pressuposto material de aplicação do instituto é que o tribunal, atendendo à personalidade do agente e às circunstâncias do facto, conclua por um prognóstico favorável relativamente ao comportamento do delinquente: que a simples censura do facto e a ameaça da pena (…) «bastarão para afastar o delinquente da criminalidade» (artigo 48.º - 1). Para a formulação de um tal juízo – ao qual não pode bastar nunca a consideração ou só da personalidade, ou só das circunstâncias do facto – o tribunal atenderá especialmente às condições de vida do agente e à sua conduta anterior e posterior ao facto.”
Sem embargo, refere o mesmo autor “Apesar da conclusão do tribunal por um prognóstico
favorável – à luz, consequentemente, de considerações exclusivas de prevenção especial de socialização – a suspensão da execução da prisão não deverá ser decretada se a ela se opuserem «as necessidades de reprovação e prevenção do crime» (artigo 48.º - 2, in fine). (…) Estão aqui em questão não quaisquer considerações de culpa, mas exclusivamente considerações de prevenção geral sob a forma de exigências mínimas e irrenunciáveis de defesa do ordenamento jurídico. Só por estas exigências se limita – mas por elas se limita sempre – o valor da socialização em liberdade que ilumina o instituto ora em análise.”
4 – É tal e qual isto que se passa no caso dos autos.
5 – “Com efeito, o arguido será condenado nestes autos, pela prática de um crime de tráfico de estupefacientes1, p. e p. pelo artigo 21.º, n.º 1, do Decreto-Lei n.º 15/93, de 22 de Janeiro, com referência às Tabelas I-C e II-A, anexas a esse diploma, na pena de quatro anos e nove meses de prisão.
6- No caso concreto do crime de tráfico de estupefacientes, tem sido entendimento da jurisprudência maioritária do Supremo Tribunal de Justiça que tal conduta deve ser punida com pena de prisão efectiva, atentas as elevadíssimas necessidades de prevenção: o combate ao tráfico de droga em que Portugal internacionalmente se comprometeu impõe que não seja suspensa a execução da pena nos casos de tráfico comum e de tráfico agravado de estupefacientes, em que não se verifiquem razões muito ponderosas, pois seria atentatória da necessidade estratégica nacional e internacional de combate a esse tipo de crime, faria desacreditar as expectativas comunitárias na validade da norma jurídica violada e não serviria os imperativos de prevenção geral. – Ac. do STJ de 15.11.2007 e, no mesmo sentido, entre outros, os acórdãos do Supremo Tribunal de Justiça de 25.02.2021, 30.11.2017, 09.04.2015, 17.01.2013; de 09.05.2012; de 13.01.2011; de 09.12.2010; de 10.02.2010 e 15.07.2009; de 13.11.2008; de 09.04.2008;
de 20.02.2008; de 23.01.2008; de 19.12.2007; de 15.11.2007; de 14.11.2007; de 03.10.2007; de 27.09.2007 todos disponíveis in www.dgsi.pt.
7 - Com efeito, estas exigências de prevenção geral mostram-se especialmente acentuadas nos casos de tráfico de estupefacientes, pela extrema gravidade dos factos a ele associados e pelos seus nefastos efeitos sociais.
Por isso se tende a dizer que, “Nos crimes de tráfico de estupefacientes as razões de prevenção geral só excepcionalmente se satisfazem com uma pena de substituição. Os efeitos nocivos para a saúde resultantes do tráfico, (…) despertam “um sentimento de reprovação social do crime”, para usar as palavras do Prof. Beleza dos Santos, que impedem a aplicação da suspensão da execução da pena, sob pena de “ser posta em causa a crença da comunidade na validade de uma norma e, por essa via, os sentimentos de confiança e de segurança dos cidadãos nas instituições jurídico-penais” (Figueiredo Dias,
op. cit, pág. 243). Por isso, razões de prevenção geral afastam a aplicabilidade deste instituto, por mais favorável que pudesse ser o juízo de prognose a formular acerca do arguido.” – Ac. do STJ de 08.10.2008, disponível para consulta em www.dgsi.pt.
8 - Revertendo ao caso concreto, vê-se que face ao crime pelo qual o arguido será condenado e aos contornos do mesmo, designadamente aqueles que fundamentaram a opção do tribunal pela integração da respectiva actuação no âmbito da previsão do artigo 21.º do DL 15/93, de 2201 [diversidade de estupefacientes detidos, entre os quais, MDMA e LSD, quantidades de estupefacientes detidas não demasiado elevadas, mas a conjugar com os €3.538,50, resultantes da venda de estupefacientes e que traduzem a verdadeira extensão da actividade do arguido] se verificam aquelas razões de prevenção geral positiva muito acentuadas a que acima aludimos, donde apenas ocorrendo razões muito ponderosas, seria de ponderar a aplicação de uma pena de substituição.
No caso, salvo o devido respeito, tal não se apurou.
9 - O arguido foi detido em flagrante delito na posse dos produtos estupefacientes supra
referidos, donde, é certo, de parca valia probatória seriam quaisquer declarações confessórias do mesmo quanto a tal circunstância.
Não obstante, outras formas existiriam de o arguido demonstrar ao tribunal o seu arrependimento ou interiorização da gravidade do ilícito praticado - posto que tomou a decisão de prestar declarações - o que o mesmo manifestamente não fez, já que optou por prestar declarações inverosímeis e apenas destinadas a distanciar-se dos factos perpetrados.
10 - Por outro lado, atendendo à situação pessoal do arguido apurada nos autos que foi confirmada pelo próprio, não se antevê na mesma qualquer outro motivo para a prática dos factos, que não o mero lucro. “
11 - Com efeito, o Tribunal deu como provado que:
“16. Em termos afectivos, estabeleceu um relacionamento aos 27 anos de idade, com a actual companheira (B), constituindo agregado próprio, em zona próxima à sua família, vindo a ter dois filhos:
C e D, de 9 e 5 anos de idade, respectivamente.
17. Posteriormente, e não obstante as condições familiares e sociais estáveis no país de origem, optou por emigrar para Portugal – Lisboa, tendo o objectivo de conhecer o país e, eventualmente, estabelecer-se, para, mais tarde, trazer a família.
18. Chegou a Portugal em meados de 2018, tendo vivido nos anos subsequentes em diversos contextos geográficos, nomeadamente em Lisboa, Benfica, Odivelas, Paços de Arcos, Caxias, recorrendo inicialmente ao aluguer de quartos e, mais tarde, à partilha de casa com amigos ou conhecidos, mudanças decorrentes das dificuldades habitacionais e das suas necessidades laborais.
19 Trabalhou inicialmente como barbeiro para o salão “E”, no Centro Comercial Colombo, e posteriormente no “Oeiras Park”, onde chegou a desempenhar funções de gerente e a auferir, com as várias horas extras, cerca de € 2.900,00, mensais.
20. A pandemia viria a condicionar significativamente o seu trajecto laboral e rendimentos, acabando por perder o referido posto de trabalho em Outubro de 2020, passando a trabalhar como barbeiro em casa ou no domicilio de clientes, auferindo menos de € 1.000,00, por mês.
21. À data dos factos em apreço, residia numa casa de tipologia T3, na zona da Ajuda, com dois conterrâneos (F e G), partilhando com os mesmos a renda mensal (cerca de €230,00) e as demais despesas habitacionais.
22. Continuava a trabalhar como barbeiro, maioritariamente no (ou ao) domicílio, enquanto os coabitantes trabalhavam na construção civil e nas entregas de refeições via uber-eats, fazendo vidas independentes.
23. Ajudava ainda financeiramente a família no Brasil, em função das suas possibilidades económicas. “
12 - Esta situação, tal como enfatiza o mesmo voto de vencida da Mmª Juíza- Adjunta, não foi suficiente para o afastar da prática do crime.
Seguindo de perto o referido voto:
“Acresce que os factores de protecção de que o arguido beneficia – integração laboral e familiar - já existiam à data da prática dos factos, sem que tenham funcionado como factor dissuasor da respectiva actuação.
É certo que o arguido não tem antecedentes criminais registados, mas não é menos certo que se encontra em Portugal há relativamente pouco tempo, donde tal circunstância, até mesmo face à sua idade, não ser demasiado significativa.
Inexistem, pois, em nosso entender, não só factos concretos que permitam ancorar um juízo de prognose positiva relativamente à sua conduta futura, mas também razões muito ponderosas que imponham a suspensão da pena, sem que se atente contra a necessidade estratégica nacional e internacional de combate ao crime de tráfico de estupefacientes e contra a crença da comunidade na validade de uma norma e, por essa via, [a] os sentimentos de confiança e de segurança dos cidadãos nas instituições jurídico-penais.
Assim, entende-se que não seria de suspender a execução das penas de prisão aplicada. “
13 - A isto acresce o facto de a comunidade em geral não entender como é que uma pessoa sem qualquer ligação estável a Portugal que transporta consigo o dinheiro e a droga referidos, pode beneficiar da suspensão de execução da pena, se não há qualquer elemento
objectivo que permita formular um juízo de prognose favorável a que a mera ameaça de pena satisfará as finalidades da punição. É caso para dizer que o crime compensou.
14 – A decisão recorrida violou o disposto no art.º 50 do CP”.
Remetidos os autos a este tribunal de recurso o Excelentíssimo Procurador-Geral Adjunto emitiu parecer, pugnando pela procedência do recurso.
Colhidos os vistos legais e realizada a conferência cumpre decidir.

II – ACÓRDÃO RECORRIDO
É o seguinte o teor do acórdão recorrido, que se transcreve na parte relevante:

 Fundamentação de Facto
Matéria de Facto Provada.
Da instrução e discussão da causa e com relevância para a decisão final da mesma, resultaram provados os seguintes factos:
1. No dia 24 de Novembro de 2021, pelas 14h45, o arguido encontrava-se a circular pela Estrada da Circunvalação, nesta cidade de Lisboa, fazendo-o aos comandos do motociclo com a matrícula ..-N.-...
2. Nas referidas circunstâncias de tempo e lugar, o arguido foi interceptado e submetido a uma operação de fiscalização levada a cabo pela PSP, tendo-se constatado que trazia consigo, nos bolsos do casaco que envergava e debaixo do banco do referido motociclo:
- 29 (vinte e nove) embalagens de canabis (folhas e sumidades floridas ou frutificadas), com o peso líquido de 148,289 gramas, produto este que apresentava um grau de pureza de 8,7%, sendo o equivalente a 258 doses de consumo;
- 21 (vinte e uma) embalagens de canabis (folhas e sumidades floridas ou frutificadas), com o peso líquido de 68,000 gramas, produto este que apresentava um grau de pureza de 10,2%, sendo o equivalente a 138 doses de consumo;
- 5 (cinco) embalagens de canabis (resina), com o peso líquido de 28,960 gramas, produto este que apresentava um grau de pureza de 17,5%, sendo o equivalente a 101 doses de consumo;
- 1 (uma) saqueta de MDMA, com o peso líquido de 0,987 gramas, produto este que apresentava um grau de pureza de 53,1%, sendo o equivalente a 5 doses de consumo;
- 3 (três) comprimidos de MDMA, com o peso líquido de 1,030 gramas, produto este que apresentava um grau de pureza de 18,9%, sendo o equivalente a 1 dose de consumo;
- 1 (uma) saqueta de MDMA, com o peso líquido de 0,987 gramas, produto este que apresentava um grau de pureza de 53,1%, sendo o equivalente a 5 doses de consumo;
- 19 (dezanove) micro-selos de LSD;
- 1 (um) embrulho de MDMA, com o peso líquido de 0,315 gramas, produto este que apresentava um grau de pureza de 52,6%, sendo o equivalente a 1 dose de consumo.
3. Na ocasião, foram ainda encontrados na posse do arguido:
- a quantia monetária de € 3.538,50 (três mil quinhentos e trinta e oito euros e cinquenta cêntimos);
- um telemóvel de marca “Optus”, de cor preta; e
- um telemóvel de marca “Samsung S10 Plus”, de cor preta.
4. O arguido conhecia as características e a natureza estupefaciente dos produtos que detinha e transportava, os quais destinava, pelo menos em parte, a ceder/vender a terceiros, mediante uma determinada contrapartida monetária.
5. O arguido sabia ainda que a aquisição, detenção e comercialização daqueles produtos era proibida por lei.
6. A quantia monetária apreendida tinha sido obtida com os proventos resultantes de anteriores transacções daqueles produtos.
7. O arguido agiu sempre de forma livre, voluntária e conscientemente, bem sabendo que as suas descritas condutas eram proibidas e punidas por lei penal.
8. Ao arguido não são conhecidos quaisquer antecedentes criminais.
Provou-se ainda relativamente às condições de vida do arguido:
9. O processo de socialização do arguido decorreu em Marília, no Brasil, cidade de média dimensão do estado de São Paulo, integrado na familiar nuclear junto dos progenitores e dois irmãos mais novos, vivência descrita como gratificante.
10. Tratava-se de um agregado de classe social média, residente em vivenda situada em zona urbana, trabalhando o pai na área da construção civil e a mãe como empregada doméstica, conciliando o trabalho com o cuidado dos filhos, numa situação económica equilibrada.
11. Os progenitores separaram-se quando o arguido tinha 16 anos de idade, situação que veio a abalar a dinâmica familiar, motivando a saída da mãe de casa e um corte relacional desta com os filhos até à idade adulta, permanecendo o arguido e irmãos aos cuidados do pai, com o apoio da família alargada.
12. O arguido teve um trajecto escolar globalmente regular, com uma única retenção enquadrada no contexto da separação dos pais, vindo a concluir o equivalente ao ensino secundário aos 19 anos de idade.
13. Atravessou nessa altura uma fase de maior rebeldia e instabilidade emocional, iniciando consumos recreativos de haxixe, hábito que manteria a espaços no decurso da sua vida adulta, também em contexto recreativo e para controle do stress.
14. Iniciou a actividade laboral regular com cerca de 16 anos, através de um estágio como fiscal para a autarquia local e, mais tarde, como funcionário da mesma (entre os 17 e os 18 anos de idade).
15. Já na idade adulta, trabalhou como repositor em supermercado e, depois, como promotor/comercial, até cerca dos 24 anos, altura em que iniciou trabalho como barbeiro (numa barbearia local), vindo a evoluir nesta actividade, estabelecendo uma parceria com terceiro, dividindo à gestão/lucro do espaço comercial.
16. Em termos afectivos, estabeleceu um relacionamento aos 27 anos de idade, com a actual companheira (B), constituindo agregado próprio, em zona próxima à sua família, vindo a ter dois filhos: C e D, de 9 e 5 anos de idade, respectivamente.
17. Posteriormente, e não obstante as condições familiares e sociais estáveis no país de origem, optou por emigrar para Portugal – Lisboa, tendo o objectivo de conhecer o país e, eventualmente, estabelecer-se, para, mais tarde, trazer a família.
18. Chegou a Portugal em meados de 2018, tendo vivido nos anos subsequentes em diversos contextos geográficos, nomeadamente em Lisboa, Benfica, Odivelas, Paços de Arcos, Caxias, recorrendo inicialmente ao aluguer de quartos e, mais tarde, à partilha de casa com amigos ou conhecidos, mudanças decorrentes das dificuldades habitacionais e das suas necessidades laborais.
19 Trabalhou inicialmente como barbeiro para o salão “E”, no Centro Comercial Colombo, e posteriormente no “Oeiras Park”, onde chegou a desempenhar funções de gerente e a auferir, com as várias horas extras, cerca de € 2.900,00, mensais.
20. A pandemia viria a condicionar significativamente o seu trajecto laboral e rendimentos, acabando por perder o referido posto de trabalho em Outubro de 2020, passando a trabalhar como barbeiro em casa ou no domicilio de clientes, auferindo menos de € 1.000,00, por mês.
21. À data dos factos em apreço, residia numa casa de tipologia T3, na zona da Ajuda, com dois conterrâneos (F e G), partilhando com os mesmos a renda mensal (cerca de € 230,00) e as demais despesas habitacionais.
22. Continuava a trabalhar como barbeiro, maioritariamente no (ou ao) domicílio, enquanto os coabitantes trabalhavam na construção civil e nas entregas de refeições via uber-eats, fazendo vidas independentes.
23. Ajudava ainda financeiramente a família no Brasil, em função das suas possibilidades económicas.
24. Em termos institucionais, vem mantendo um comportamento normativo, sem registo de quaisquer problemas disciplinares ou conflitos, sendo considerado como um preso exemplar, assertivo e adequado.
25. Vem trabalhando regularmente como barbeiro, dando formação a outros reclusos neste âmbito.
26. Uma vez em liberdade, pretende regressar ao Brasil para junto da esposa, filhos e pais, bem como retomar a anterior função laboral, como barbeiro.
*
Factos não provados.
Com interesse para a decisão da causa, nada ficou por provar.
*
Motivação da decisão de facto.
A convicção do Tribunal formou-se com base na análise crítica da prova que infra se descreverá, tendo em conta as declarações do arguido, os documentos, a prova pericial e ainda as regras de experiência comum e da normalidade das coisas, sobretudo face à tipologia habitual dos casos como o dos autos.
A apreciação da prova, ao nível do julgamento de facto, faz-se segundo as regras da experiência e a livre convicção do juiz, nos termos do disposto no artigo 127.º, do Código de Processo Penal. No entanto, não se confunde esta, de modo algum, com apreciação arbitrária de prova, nem com a mera impressão gerada no espírito do julgador pelos diversos meios de prova. É dentro dos tais pressupostos valorativos da obediência a critérios da experiência comum e da lógica do homem médio, suposto pela ordem jurídica, que o julgador se deve colocar ao apreciar livremente a prova, reflectindo sobre os factos, utilizando a sua capacidade de raciocínio, a sua compreensão das coisas, o seu saber de experiência feito. E é a partir desses factores que se estabelece, realmente, uma tarefa (ainda que árdua) que se desempenha de acordo com o dever de prosseguir a verdade material.
Em conformidade com o disposto no n.º 2, do artigo 374.º, do Código de Processo Penal, é nosso dever, para além da enumeração dos factos provados e não provados e a indicação das provas que serviram para formar a nossa convicção, fazer uma exposição, tanto quanto possível completa, ainda que concisa, dos motivos de facto que fundamentaram a decisão sobre esta matéria, impondo-se ao tribunal, sob pena de incorrer em nulidade [cfr. alínea a), do artigo 379.º, do Código de Processo Penal], o dever de explicar porque decidiu de um modo e não de outro.
Os elementos que em razão das regras da experiência ou de critérios lógicos que constituem o substrato racional que conduzem à formação da convicção do tribunal em determinado sentido e não noutro, devem ser revelados aos destinatários da decisão que são, não apenas os sujeitos processuais, mas também a própria sociedade, o conjunto dos cidadãos.
O Tribunal tem de esclarecer porque é que valorou de determinada forma e não de outra os diversos meios de prova carreados para a audiência de julgamento.
Só assim se permite aos sujeitos processuais e à instância superior o exame do processo lógico ou racional que lhe subjaz, pela via de recurso, conforme impõe, inequivocamente, o artigo 410.º, do Código de Processo Penal.
Deve, assim, a decisão sobre a matéria de facto assegurar pelo conteúdo um respeito efectivo pelo princípio da legalidade, pela independência e imparcialidade dos juízes.
Foi à luz deste exacto sentido e alcance da lei, que se procedeu à apreciação das provas constantes dos autos e examinadas em audiência, afinal, as únicas que podem valer para a formação da convicção do Tribunal, nos precisos termos do n.º 1, do artigo 355.º, do Código de Processo Penal.
Concretizando.
O Tribunal formou a sua convicção nas declarações prestadas pelo arguido no decurso de audiência de julgamento, o qual, apesar de reconhecer prontamente o transporte dos referidos produtos estupefacientes, bem como a detenção da aludida quantia monetária e demais objectos, apresentou uma versão dos acontecimentos construída sobre uma “pseudo” tese que justificasse a comissão dos mesmos sob coacção/ameaça. Nesse contexto, começou por admitir que à data era consumidor de haxixe (ainda que de forma recreativa, consumia cerca de € 40,00, por semana), sendo que acabou por contrair uma dívida avultada junto de um indivíduo de nome “Isnaba”, que era simultaneamente seu cliente (no estabelecimento de barbearia onde trabalhava há cerca de dois anos) e fornecedor de tal produto. Apesar de estar convencido que essa dívida estaria, pelo menos em parte, a ser amortizada com os serviços de barbearia prestados, o certo é que o referido indivíduo começou a ameaçá-lo para proceder ao seu pagamento, pelo que, não dispondo de meios económicos para o fazer, e temendo pela sua integridade física e vida, não teve outro remédio senão aceitar a proposta que o “Isnaba” lhe fez para transportar e entregar os referidos produtos e dinheiro a um outro indivíduo, num outro ponto da cidade.
Ora, esta tese do arguido, referindo que apenas pretendia entregar os referidos produtos e dinheiro a um terceiro, justificando a sua conduta com as ameaças/coacção de que terá sido alvo, não reuniu traços de verosimilhança, tendo sido contraditada pelos restantes elementos probatórios juntos aos autos, analisados à luz das regras da normalidade e da experiência comum.
Assim, e em primeiro lugar, cotejando os autos de apreensão e de exame e avaliação (de fls. 11 a 17), bem como os fotogramas de fls. 21 a 22, é possível constatarmos que os produtos estupefacientes apreendidos se encontravam devidamente acondicionados (em sacos de plástico) e divididos em diversas doses, prontos para serem transaccionados, sendo certo que, o facto de também lhe ter sido apreendida a referida quantia monetária, dividida em diversas notas de diferentes valores faciais (€5,00; €10,00; €20,00; €50,00; e uma de €100,00), guardada nos bolsos da roupa que envergava (casaco e calças), são elementos que apontam indubitavelmente para essa mesma actividade de transacção daquelas substâncias, a troco de dinheiro, reforçando assim a convicção do Tribunal de que o arguido não se limitava apenas a fazer o transporte da referida mercadoria do ponto A para o ponto B, para entregá-la a outrem. Com efeito, não se mostra minimamente crível, desde logo segundo as regras da experiência comum, que aquele transporte – no quadro factual acima traçado – não tivesse sido feito com o fito de a vender/ceder os referidos produtos estupefacientes.
Por outro lado, mesmo a fazer fé na versão relatada pelo arguido em audiência de julgamento, também não se alcança como é que nunca participou as ditas ameaças às autoridades policiais, quando teve oportunidade de o fazer, sendo certo que, como o próprio reconheceu, já conhecia o referido “Isnaba” há mais de um ano, nunca tendo havido qualquer problema entre eles. De resto, instado pelo Tribunal para explicitar de que forma é que o aludido indivíduo poderia vir a concretizar tais ameaças, não o soube fazer, limitando-se a referir que se começou a “lembrar do que normalmente se passa no Brasil com os traficantes”.
Já quanto à prova do elemento subjectivo do tipo, tal resultou igualmente das declarações do arguido, nomeadamente do reconhecimento da consciência que tinha a respeito dos produtos (ilícitos) que decidiu transportar, sendo que, no que concerne à sua natureza e quantidades, o Tribunal atendeu ainda às conclusões do exame pericial (cfr. fls. 164), nada tendo resultado da prova produzida em audiência quanto a uma eventual divergência do juízo científico ali contido.
No mais, e quanto aos antecedentes criminais do arguido (inexistentes), teve-se em consideração o teor do CRC, de fls. 194, tendo ainda merecido relevância, quanto às suas condições pessoais, a análise crítica do respectivo relatório social (elaborado pela DGRSP; cfr. fls. 195 a 198), complementado com as declarações do próprio em juízo.
*
Fundamentação de Direito
Enquadramento jurídico – penal.
Vem o arguido acusado da prática, em autoria material, de um crime de crime de tráfico de estupefacientes, previsto e punido pelo artigo 21.º, n.º 1, do Decreto-Lei n.º 15/93, de 22 de Janeiro, com referência às Tabelas I-C e II-A, anexas a esse diploma.
Para que o arguido seja responsabilizado criminalmente é necessário que o acto a censurar seja simultaneamente típico, ilícito e culposo. Se a tipicidade se reconduz ao próprio tipo legal de crime, devendo a conduta do agente preencher os seus elementos constitutivos, objectivos e subjectivos, já a ilicitude consubstancia um juízo de desvalor da ordem jurídica sobre um comportamento, por este lesar ou pôr em perigo bens jurídicos de relevância criminal. Por fim, a culpa, ao exprimir um verdadeiro juízo de reprovabilidade sobre a vontade do agente no momento em que actua, pode revestir as formas de dolo ou de negligência.
Em conformidade com a previsão contida no referido preceito incriminador, “Quem, sem para tal se encontrar autorizado, cultivar, produzir, fabricar, extrair, preparar, oferecer, puser à venda, vender, distribuir, comprar, ceder ou por qualquer título receber, proporcionar a outrem, transportar, importar, exportar, fizer transitar ou ilicitamente detiver, fora dos casos previstos no artigo 40.º, plantas, substâncias ou preparações compreendidas nas tabelas I a III, é punido com pena de prisão de 4 a 12 anos.”
Neste preceito legal estamos perante a descrição do tipo matricial que se constitui como um crime de perigo abstracto, uma vez que a lei, nas condutas que descreve, basta-se com a aptidão que revelam para constituir um perigo para determinados bens e valores (a vida, a saúde, a tranquilidade, a coesão inter-individual das unidades de organização fundamental da sociedade), considerando integrado o tipo de crime logo que se revele qualquer uma das condutas descritas, independentemente das consequências que possa determinar ou efectivamente determine: a lei faz recuar a protecção para momentos anteriores, ou seja, para o momento em que o perigo se manifesta (cfr. neste sentido, acórdãos do Tribunal Constitucional, de 06.11.91, BMJ, 411.º-56, e de 07.06.94, BMJ, 438.º-99; e do STJ, de 24.11.99, proc. 937/99).
Estamos assim perante um crime de perigo comum, visto que a norma protege uma multiplicidade de bens jurídicos e um crime comum, por contraposição aos específicos, por não se   o agente reúna determinada característica ou qualidade (ainda que esta, em determinadas circunstâncias, seja agravante mas ainda assim não determinante da classificação do crime como específico, v.g. artigo 24.º).
O legislador utilizou a técnica de descrição de condutas alternativas, de tal maneira que para a subsistência do delito é indiferente que se realize uma ou outra, permanecendo um só delito ainda que se realizem as diversas acções descritas, dada a especial estrutura deste crime. Com efeito, o crime de tráfico, como crime exaurido, consuma-se imediatamente no momento da ocorrência de um qualquer dos vários momentos ou das condutas implicados na ampla descrição típica do artigo 21.°, do Decreto-Lei n.º 15/93, de 15 de Janeiro, sendo, por isso, indiferente a ocorrência e a adjunção, posterior ou subsequente, de um ou outro dos vários momentos de tipicidade; qualquer deles determina, por si, a consumação do crime.
Portanto, o crime de tráfico de estupefacientes é um crime exaurido, pois a incriminação da conduta do agente esgota-se nos primeiros actos de execução, independentemente de os mesmos corresponderem a uma execução completa, e em que a repetição dos actos, com produção de sucessivos resultados, é imputada a uma única realização. O resultado típico obtém-se logo pela realização inicial da conduta ilícita, de modo que a condenação de alguém pela prática de crimes de tráfico de estupefacientes, referida a um determinado período, corresponde a uma apreciação global da sua actividade delitual durante esse período, ainda que alguns actos parcelares praticados não tenham sido considerados. O crime considera-se, assim, esgotado apenas quanto aos factos ocorridos dentro do período a que a condenação pela sua prática se refere.
Por outro lado, o crime em causa não exige nos seus elementos essenciais e típicos que no caso da detenção de droga esta se destine à venda, bastando a ilícita detenção da mesma ou a mera distribuição, compra, cedência ou o proporcioná-la a outrem, ainda que a título gratuito. Isto é, desde que a droga se não destine na totalidade ao exclusivo consumo, estará perfectibilizado o crime de tráfico (cfr., por todos, acórdãos do STJ de 25.05.94, BMJ, 437.º-220, de 13-3-91, BMJ, 405.º-201, de 11-7-90, BMJ, 399.º-219).
Também por isso é irrelevante que a droga pertença ou não ao arguido –a simples detenção precária (desde que não destinada na totalidade ao consumo próprio) é punível, porque não excluída pelo artigo 40.º, da citada lei, desde que o agente tenha consciência de traficar e querer traficar (no sentido exposto) –ou o fim que o agente busque com as actividades que o integram (vg. a existência ou não de lucro ou de outras vantagens), sendo que para o preenchimento do tipo será também irrelevante saber a quem foi a droga vendida, as suas quantidades exactas ou o preço, nem quantas vezes se fez a venda (cfr. acórdão do STJ, de 31.05.95, BMJ, 447.º-178 segts., com abundante citação de jurisprudência no mesmo sentido).
No caso em apreço, resultou provado que o arguido, nas referidas circunstâncias de tempo e lugar, trazia consigo, para além do mais: 29 (vinte e nove) embalagens de canabis (folhas e sumidades floridas ou frutificadas), com o peso líquido de 148,289 gramas, produto este que apresentava um grau de pureza de 8,7%, sendo o equivalente a 258 doses de consumo; 21 (vinte e uma) embalagens de canabis (folhas e sumidades floridas ou frutificadas), com o peso líquido de 68,000 gramas, produto este que apresentava um grau de pureza de 10,2%, sendo o equivalente a 138 doses de consumo; 5 (cinco) embalagens de canabis (resina), com o peso líquido de 28,960 gramas, produto este que apresentava um grau de pureza de 17,5%, sendo o equivalente a 101 doses de consumo; 1 (uma) saqueta de MDMA, com o peso líquido de 0,987 gramas, produto este que apresentava um grau de pureza de 53,1%, sendo o equivalente a 5 doses de consumo; 3 (três) comprimidos de MDMA, com o peso líquido de 1,030 gramas, produto este que apresentava um grau de pureza de 18,9%, sendo o equivalente a 1 dose de consumo; 1(uma) saqueta de MDMA, com o peso líquido de 0,987 gramas, produto este que apresentava um grau de pureza de 53,1%, sendo o equivalente a 5 doses de consumo; 19 (dezanove) micro-selos de LSD; e 1 (um) embrulho de MDMA, com o peso líquido de 0,315 gramas, produto este que apresentava um grau de pureza de 52,6%, sendo o equivalente a 1 dose de consumo – substâncias essas contempladas nas Tabelas I-C e II-A, anexas do Decreto-Lei n.º 15/93, de 22 de Janeiro.
Ademais, apurou-se que os referidos produtos se destinavam, pelo menos em parte, a ser cedidos/vendidos a terceiros, mediante contrapartida monetária, sendo que o arguido sabia essas suas condutas eram proibidas e punidas por lei penal.
Temos, portanto, preenchidos os elementos objectivos e subjectivos do crime matricial do artigo 21.º, n.º 1, do Decreto-Lei n.º 15/93, de 22 de Janeiro, com referência às aludidas Tabelas, salientando-se, como já se referiu, que este ilícito não exige nos seus elementos essenciais e típicos que no caso da detenção de droga esta se destine à venda, bastando a ilícita detenção da mesma ou a mera cedência ou o proporcioná-la a outrem, desde que a substância não se destine na totalidade ao exclusivo consumo.
Refira-se ainda que, no quadro global da actuação do arguido, as circunstâncias apuradas não são de molde a atribuir a tal actividade um menor relevo ao nível da ilicitude do facto, comparativamente com a actividade padrão de tráfico, a justificar uma menor perigosidade da sua conduta. No contexto apurado de tal actividade, não se conclui que a mesma deva ser situada no limite aceitável de enquadramento no tipo legal privilegiado previsto no artigo 25.º, do citado diploma.
Com efeito, pese embora o tráfico ter essencialmente como objecto drogas comummente classificadas como “leves”, com um poder aditivo consabidamente inferior às denominadas “drogas duras” (como a cocaína e a heroína), não podemos olvidar a diversidade de produtos estupefacientes apreendidos (canábis, MDMA e LSD), nem a forma e o meio como se processavam tais actos. Neste último aspecto, releva o facto do arguido transportar as substâncias no aludido veículo, já acondicionadas e embaladas (correspondendo às doses de consumo acima referidas), destinando-as, sem dúvida, à venda por um maior número de consumidores, e não apenas por um círculo restrito de pessoas, com uma margem de lucro superior. Aliás, a quantia monetária apreendida (€ 3.538,50), resultante da venda de tais produtos, serve precisamente para reforçar essa mesma convicção.
Parece-nos, pois, inequívoco, que todo este circunstancialismo não é de molde a diminuir de forma acentuada a ilicitude do facto, pelo que que o arguido deverá ser condenado pela prática do ilícito constante do artigo 21.º, do Decreto-Lei n.º 15/93.
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Determinação da medida da pena.
Chegados à conclusão de que o arguido praticou, em autoria material, um crime de tráfico de estupefacientes, urge empreender as tarefas atinentes à determinação da escolha e medida concreta da pena, cabendo ao referido ilícito uma moldura penal abstracta de 4 a 12 anos de prisão (artigo 21.º, n.º 1, do Decreto-Lei nº 15/93, de 22 de Janeiro).
De acordo com disposto no artigo 40.º, n.ºs. 1 e 2, do Código Penal, a aplicação da pena visa a protecção de bens jurídicos e a reintegração do agente na sociedade, a qual, em caso algum, pode ultrapassar a medida da culpa. Com este preceito, o ordenamento penal reflecte de forma clara o princípio da culpa, segundo o qual não há pena sem culpa e a culpa decide da medida da pena, como seu limite máximo.
Desta forma, a pena há-de ser determinada (dentro dos limites mínimo e máximo fixados na lei) mediante critérios legais, quais sejam, em primeiro lugar, o da culpa do agente, que fixa o limite máximo inultrapassável da pena, intervindo, depois (ao mesmo nível) as exigências de prevenção, especial e geral – a chamada margem de liberdade. (acórdão do STJ, de 24.05.95, CJSTJ, T.II, p.210, e acórdão da RC, de 17.01.96, CJ, T. I, p.40). O limite mínimo da pena há-de ser dado pela medida da necessidade de tutela dos bens jurídicos face ao caso concreto, sendo a prevenção especial de socialização que a vai determinar, em último termo (cfr. acórdão do STJ, de 24.05.95, CJSTJ, T.II, p.210).
Tais critérios devem ser aplicados num acto uno, em que interagem de forma dialéctica.
No juízo de culpa parte-se de uma concepção de culpa, referida ao facto, em que a personalidade do agente só releva para a culpa na medida em que se exprime no ilícito típico e o fundamenta (acórdão da RC, de 17.01.96, CJ, T. I, p.40).
Tal entendimento não afasta a possibilidade de o julgador se socorrer, também, de factores estranhos ao facto (strictu sensu), os quais são indubitavelmente necessários à correcta determinação da medida da pena, designadamente os atinentes à personalidade do agente e todos os demais que constam do n.º 2, do artigo 71.º, do Código Penal. Porém, o juízo de culpa é sempre um juízo de desvalor sobre o agente em razão do seu comportamento num certo momento, qual seja o do cometimento do ilícito típico.
No caso em apreço, constata-se que é média a culpa do arguido, bem como a ilicitude dos factos, porquanto, se, por um lado, o tráfico não tinha por objecto as chamadas “drogas duras”, importa salientar, por outro, a diversidade de produtos estupefacientes apreendidos (canábis, MDMA e LSD), num contexto indiciador da sua disseminação por um nível considerável de consumidores, com uma margem de lucro relevante, considerando também a quantia monetária apreendida.
No que diz respeito à prevenção geral positiva, a mesma tem de ser entendida não como prevenção negativa, de intimidação do delinquente e de outros potenciais criminosos, mas como prevenção positiva, de integração e de reforço da consciência jurídica comunitária e do seu sentimento de segurança face à violação da norma ocorrida (acórdão do STJ, de 11.01.96, CJSTJ, T.I, p.176).
Na situação concreta tais exigências são prementes, porquanto, é consabido que as drogas ilícitas continuam a ser um pesadelo nas nossas sociedades, permanecendo intensa a sua capacidade aditiva e destruidora (sobretudo no seio familiar).
No entanto, neste domínio, há que ter em conta que as exigências de prevenção geral estão, de algum modo, ínsitas na gravidade que o legislador imprimiu ao tipo que criou (vejam-se, a este propósito Anabela Rodrigues, A Determinação da Medida da Pena Privativa de Liberdade, 594 e segts., Figueiredo Dias, ob. cit., 236 - referindo-se este autor, precisamente e além de outros, aos casos de tráfico de estupefacientes - e Sousa e Brito, Estudos em Homenagem ao Professor Eduardo Correia, III, 585).
Dentro dos limites consentidos pela prevenção geral positiva ou de integração, podem e devem actuar pontos de vista de prevenção especial de socialização, sendo eles que vão determinar, em último termo, a medida da pena. Esta deve, em toda a extensão possível, evitar a quebra da inserção social do agente e servir a sua reintegração na comunidade, só deste modo e por esta via se alcançando uma eficácia de protecção dos bens jurídicos (acórdão do STJ, de 24.05.95, CJSTJ, T.II, p.214).
No caso em apreciação, o arguido não tem quaisquer antecedentes criminais, nem condenações sofridas em momento posterior à prática dos factos em apreço, sendo que estes se reconduzem ao aludido transporte – não se apurou uma actividade levada a cabo com regularidade, durante vários meses, nem sequer uma organização com alguma sofisticação. Ademais, a atenuar as exigências de prevenção especial, importa considerar as condições de vida do arguido, marcadas pela existência de hábitos de trabalho e de estabilidade familiar, embora não possamos olvidar que o mesmo não assumiu integralmente e sem reservas os factos de que vinha acusado, apresentando uma versão para justificar a sua conduta sem adesão à realidade, o que é revelador de que não interiorizou plenamente as consequências negativas decorrentes do tráfico de droga.
Tudo ponderado, tem-se por proporcionado, adequado e suficiente condenar o arguido na pena de 4 (quatro) anos e 9 (nove) meses de prisão.
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possibilidade de aplicação de uma pena de substituição, nomeadamente a suspensão da execução da pena de prisão, dispõe o artigo 50.º, n.º 1, do Código Penal, que “O tribunal suspende a execução da pena de prisão aplicada em medida não superior a cinco anos se, atendendo à personalidade do agentes, às condições da sua vida, à sua conduta anterior e posterior ao crime e às consequências deste, concluir que a simples censura do facto e a ameaça de prisão realizam, de forma adequada e suficiente as finalidades da punição.”
Tal como se refere no acórdão do STJ, de 01.03.07 (in ww.dgsi.pt), “A suspensão da execução da pena é uma medida não institucional que, não determinando a perda da liberdade física, importa sempre uma intromissão mais ou menos profunda na condução da vida dos delinquentes, pelo que não pode ser vista como forma de clemência legislativa, pois constituem autênticas medidas de tratamento bem definido, com uma variedade de regimes aptos a dar adequada resposta a problemas específicos.”
A suspensão da execução da pena de prisão assenta num prognóstico favorável relativamente ao comportamento do agente, efectivado no momento da decisão. Parte-se, em resumo, de um juízo de prognose social favorável ao arguido, pela fundada expectativa de que ele, considerado merecedor de confiança, há-de sentir a condenação como uma advertência e não voltará a delinquir, através de uma vida futura ordenada e conforme à lei.
O citado artigo 50.º, do Código Penal, representa um poder – dever, estando o juiz obrigado a suspender a execução da pena de prisão, sempre que os respectivos pressupostos se verifiquem (acórdão do STJ, de 04.07.96, in CJSTJ, tomo II, p.225; no mesmo sentido Figueiredo Dias, “Velhas e novas questões sobre a pena de suspensão da execução da pena”, Rev. de Leg. e Jur. ano 124.º, pág. 68).
Como se salientou no acórdão do STJ, de 08.05.97 (in www.dgsi.pt), “factor essencial à filosofia do instituto da suspensão da execução da pena é a capacidade da medida para apontar ao próprio arguido o rumo certo no domínio da valoração do seu comportamento de acordo com as exigências do direito penal, impondo-se-lhe como factor pedagógico de contestação e auto-responsabilização pelo comportamento posterior; para a sua concessão é necessária a capacidade do arguido de sentir essa ameaça, a exercer sobre si o efeito contentor, em caso de situação parecida, e a capacidade de vencer a vontade de delinquir”. Para aplicação desta pena de substituição é, pois, necessário que se possa concluir que o arguido, presumivelmente, não voltará a cometer novo crime.
Ora, no caso em apreço encontra-se preenchido, desde logo, o pressuposto formal de aplicação da suspensão da execução da prisão (“o tribunal suspende a execução da pena de prisão aplicada em medida não superior a 5 anos...” – artigo 50.º n.º 1, 1.ª parte, do Código Penal).
Entende-se, por outro lado, que o pressuposto material de aplicação do instituto – o juízo de prognose favorável relativamente ao comportamento do arguido, atendendo-se às circunstâncias do facto (artigo 50.º n.º 1, 2.ª parte, do Código Penal) – também se verifica.
Efectivamente, não se apurando uma actividade levada a cabo com regularidade, nem a existência de uma organização com alguma sofisticação, e tendo em conta a sua idade (31 anos) e a circunstância de não haver elementos que permitam afirmar que a sua personalidade se revele propensa à prática de ilícitos deste ou de outro tipo (a ausência de antecedentes criminais ou de condenações posteriores é disso exemplo), associadas às suas condições de vida (integração laboral, social e familiar), são factores que nos autorizam a formular tal juízo favorável.
Aliado a tudo isso, espera-se que o período de prisão preventiva já sofrido e a condenação ora imposta funcione como um despertar de uma maior consciência da necessidade de controlo e orientação do sentido de vida do arguido, esperando-se, ainda, que aquele interiorize o profundo desvalor das suas acções e passe a adoptar, em definitivo, comportamentos enquadrados pelo respeito dos valores protegidos pelas normas penais. E reportando-se o aludido juízo de prognose ao momento da decisão, não hesita o Tribunal em afirmar, em jeito conclusivo, “que a simples censura do facto e a ameaça da prisão realizam de forma adequada e suficiente as finalidades da punição”, determinando-se a suspensão da execução da pena de prisão ora aplicada pelo período de 4 anos e 9 meses (artigo 50.º n.ºs. 1, in fine e 5).
Entende-se, por outro lado, que a suspensão da execução da pena de prisão, pelo período assinalado, a contar do trânsito em julgado da decisão (artigo 50.º, n.º 5, do Código Penal), deve ser acompanhada, atenta a matéria de facto dada como provada, de um regime de prova com vista a melhor se conseguir a reintegração do arguido, o que se determina ao abrigo dos artigos 53.º e 54.º, ambos do Código Penal.
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Destino dos objectos apreendidos.
Nos termos do artigo 35.º, n.º 1, do Decreto-Lei n.º 15/93, de 22 de Janeiro, “São declarados perdidos a favor do Estado os objectos que tiverem servido ou estivessem destinados a servir para a prática de uma infracção prevista no presente diploma ou que por esta tiverem sido produzidos”. Estatui ainda o n.º 2, de tal preceito legal, que “As plantas, substâncias e preparações incluídas nas tabelas I a IV são sempre declaradas perdidas a favor do Estado”.
Desta forma, declaram-se perdidas a favor do Estado as drogas apreendidas nos autos, ordenando-se a sua oportuna destruição nos termos legalmente prescritos para o efeito, sendo que, relativamente à quantia monetária, uma vez que se mostrou a sua ligação ao empreendimento criminoso, nomeadamente por estarem destinados a servir para a prática do tráfico, declaram-se a mesma igualmente perdida a favor do Estado.
Já quanto aos telemóveis e ao motociclo, não tendo sido feita qualquer prova sobre tal ligação (não tendo sequer sido alegada na acusação), deverão os mesmos ser restituídos ao seu proprietário (o arguido).
Com efeito, no âmbito dos crimes de tráfico de estupefacientes, a declaração de perdimento de objectos a favor do Estado só deve acontecer quando do factualismo provado resulta que entre a utilização do objecto e a prática do crime existe uma relação de causalidade adequada, de tal forma que, sem essa utilização, a infracção em concreto não teria sido praticada ou não o teria sido na forma e com a significação penal relevante verificada; e, de todo o modo, que a perda do instrumento do crime equacione, à luz do princípio da proporcionalidade, a gravidade da actividade levada a cabo e a serventia que ao objecto foi dada na sua execução, de forma a não se ultrapassar a “justa medida” (acórdão do Tribunal da Relação do Porto, de 25.05.11, disponível em www.dgsi.pt).
Também no mesmo sentido decidiu o acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, de 29.01.07 [Proc. n.º 3193/06 - 3.ª Secção (Cons. Armindo Monteiro)]: “(…) Se dos autos não resulta provado que o veículo IC tenha servido, sido meio ou instrumento necessário da realização do crime de detenção de droga por que o seu dono foi condenado, intercedendo entre ele e a sua utilização uma indispensável relação de adesão – até porque o haxixe que lhe foi apreendido na sua residência (108,559 g) pode ser transportado sem recurso à viatura, não se evidenciando como possa aquela mera detenção, único crime imputado ao arguido, envolver a utilização, nos termos referidos, do veículo – não pode o mesmo ser declarado perdido a favor do Estado (art.º 35.º do DL 15/93, de 22-01).” E ainda o acórdão do mesmo Tribunal, de 27.09.06 [Proc. n.º 2802/06 - 3.ª Secção (Cons. Henriques Gaspar)]: “(…) A perda de bens a favor do Estado, a que aludem os art.ºs 35.º, n.º 1, e 36.º, n.º 2, ambos do DL 15/93, de 22-01, é um instrumento de natureza substantiva; abrange os instrumentos e os produtos do crime, incluindo os objectos que serviram para a prática do crime. Não constitui uma medida cautelar de processo, já que as finalidades cautelares são realizadas com a apreensão, mas é também, de certo modo, uma medida preventiva. Os fundamentos para a declaração de perda previstos em uma e outra disposição são essencialmente diversos. A perda dos «objectos que tiverem servido» «para a prática de uma infracção» relacionada com estupefacientes tem como fundamento a existência ou a preexistência de uma ligação funcional e instrumental entre o objecto e a infracção, de sorte que a prática da infracção tenha sido especificamente conformada pela utilização do objecto; este há-de ter sido elemento integrante da concepção material externa e da execução do facto, de modo que a execução não teria sido possível, ou teria sido essencialmente diferente, na modalidade executiva que esteja em causa, sem a utilização ou a intervenção do objecto. Nesta perspectiva, a decisão de perda de objectos deve ter como pressuposto a individualidade executiva e a relevância instrumental, determinante ou essencialmente conformadora do objecto no processo de execução e de cometimento do crime. Não estado provado o uso determinante do veículo em qualquer acto executivo concretamente descrito, em que a utilização do veículo se revelasse instrumentalmente necessária ou essencialmente modeladora do modo de cometimento da infracção, não é possível concluir que aquele objecto (o veículo) «tivesse servido para a prática da infracção» (tráfico de estupefacientes).”
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Responsabilidade tributária.
Sendo o arguido condenado pela prática do crime de que vinha acusado, é o mesmo responsável pelo pagamento das custas devidas em juízo (cfr. artigos 513.º e 514.º, ambos do Código de Processo Penal, e n.º 9, do artigo 8.º, do Regulamento das Custas Processuais).
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Decisão
Pelo exposto, acorda-se em julgar a acusação pública totalmente procedente, por integralmente provada, decidindo-se, em consequência:
I. Condenar o arguido A pela prática, em autoria material, de um crime de tráfico de estupefacientes, previsto e punido pelo artigo 21.º, n.º 1, do Decreto-Lei n.º 15/93, de 22 de Janeiro, na sua actual redacção, com referência às Tabelas I-C e II-A, anexas a esse diploma, na pena de 4 (quatro) anos e 9 (nove) meses de prisão.
II. Suspender na sua execução a pena ora aplicada ao arguido A, pelo mesmo período de tempo (quatro anos e nove meses), mediante regime de prova.
III. Condenar ainda o arguido no pagamento das custas do processo, com taxa de justiça que se fixa em 3 (três) Uc.´s, nos termos do disposto no artigo 8.º, n.º 9, do RCP, em conjugação com a Tabela III, anexa a este diploma.
IV. Declarar perdidas a favor do Estado as substâncias estupefacientes apreendidas, bem como a quantia monetária de €3.538,50, mais se determinando, quanto às primeiras, a sua destruição, de harmonia com o disposto no artigo 62.º, n.º 6, do mesmo diploma legal (solicitando o envio oportuno de cópia do respectivo auto).
V. Ordenar a restituição ao arguido dos demais objectos apreendidos, nomeadamente dos telemóveis “Optus” e “Samsung S10 Plus”, e do motociclo com a matrícula 13-NA-55.
Notifique e deposite.
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Após trânsito:
- Comunique, nos termos do artigo 64.º, n.º 2, do Decreto-Lei n.º 15/93, de 22 de Janeiro;
- Remeta boletins à DSIC e comunique à DGRSP, com vista à elaboração de um plano reinserção social ao arguido nos moldes acima referidos; e
- Caso se mantenha a condenação em pena de prisão igual ou superior a três anos, que se proceda à recolha de amostra de ADN do arguido e à respetiva inserção do perfil na correspondente base de dados, nos termos do artigo 8.º, da Lei 5/2008, com observância do disposto no artigo 9.º, do citado diploma.
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Estatuto processual do arguido até ao trânsito em julgado da presente decisão.
Em face da decisão que antecede, que decidiu suspender a execução da pena (única) de prisão aplicada ao arguido, é indubitável terem deixado de subsistir as circunstâncias que justificaram a aplicação da medida de coacção de prisão preventiva, porquanto, a mesma, para além de só dever ser aplicada quando as restantes medidas “…se revelarem inadequadas ou insuficientes (…)”, deve ser sempre proporcional “…às sanções que previsivelmente venham a ser aplicáveis” – cfr. artigo 193.º, n.ºs. 1 e 2, do Código de Processo Penal.
Assim, e ao abrigo do disposto no artigo 212.º, n.º 1, al. b), do Código de Processo Penal, por terem deixado de subsistir as circunstâncias que justificaram a sua aplicação, decide-se revogar a medida de coacção de prisão preventiva aplicada ao arguido A [mantendo-se o mesmo sujeito ao TIR, que deverá prestar novamente, até à extinção da pena, por força do disposto na alínea e), do n.º 1, do artigo 214.º, do citado diploma], mais se determinando que o mesmo seja imediatamente restituído à liberdade.
DN.
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***
*
Lisboa, 14 de Junho de 2022
(este acórdão foi elaborado pelo primeiro signatário e integralmente revisto pelo próprio)
Francisco Coimbra
Ema Vasconcelos, com voto de vencido em anexo
Noé Bettencourt
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VOTO DE VENCIDO
Votei vencida quanto à suspensão da execução da execução da pena de prisão aplicada ao arguido pelos seguintes motivos:
A redacção do nº 1 do art.º 50º do Código Penal, operada pela Lei nº 59/2007, de 4 de Setembro, permite que o Tribunal suspenda a execução da pena de prisão aplicada em medida não superior a cinco anos, se, atendendo à personalidade do agente, às condições da sua vida, à sua conduta anterior e posterior ao crime e às circunstâncias deste, concluir que a simples censura do facto e a ameaça da prisão realizam de forma adequada e suficiente as finalidades da punição.
A este propósito, refere Jorge Figueiredo Dias, As Consequências do Crime, Reimpressão, 2005, p. 342 e ss.: “Pressuposto material de aplicação do instituto é que o tribunal, atendendo à personalidade do agente e às circunstâncias do facto, conclua por um prognóstico favorável relativamente ao comportamento do delinquente: que a simples censura do facto e a ameaça da pena (…) «bastarão para afastar o delinquente da criminalidade» (artigo 48.º - 1). Para a formulação de um tal juízo – ao qual não pode bastar nunca a consideração ou só da personalidade, ou só das circunstâncias do facto – o tribunal atenderá especialmente às condições de vida do agente e à sua conduta anterior e posterior ao facto.”
Sem embargo, refere o mesmo autor “Apesar da conclusão do tribunal por um prognóstico favorável – à luz, consequentemente, de considerações exclusivas de prevenção especial de socialização – a suspensão da execução da prisão não deverá ser decretada se a ela se opuserem «as necessidades de reprovação e prevenção do crime» (artigo 48.º - 2, in fine). (…) Estão aqui em questão não quaisquer considerações de culpa, mas exclusivamente considerações de prevenção geral sob a forma de exigências mínimas e irrenunciáveis de defesa do ordenamento jurídico. Só por estas exigências se limita – mas por elas se limita sempre – o valor da socialização em liberdade que ilumina o instituto ora em análise.”
Ora, salvo o devido respeito por opinião diversa, é precisamente o que sucede no caso concreto.
Com efeito, o arguido será condenado nestes autos, pela prática de um crime de tráfico de estupefacientes1, p. e p. pelo artigo 21.º, n.º 1, do Decreto-Lei n.º 15/93,
1 O arguido detinha para venda:
- 29 (vinte e nove) embalagens de canabis (folhas e sumidades floridas ou frutificadas), com o peso líquido de 148,289 gramas, produto este que apresentava um grau de pureza de 8,7%, sendo o equivalente a 258 doses de consumo;
- 21 (vinte e uma) embalagens de canabis (folhas e sumidades floridas ou frutificadas), com o peso líquido de 68,000 gramas, produto este que apresentava um grau de pureza de 10,2%, sendo o equivalente a 138 doses de consumo;
- 5 (cinco) embalagens de canabis (resina), com o peso líquido de 28,960 gramas, produto este que apresentava um grau de pureza de 17,5%, sendo o equivalente a 101 doses de consumo;
- 1 (uma) saqueta de MDMA, com o peso líquido de 0,987 gramas, produto este que apresentava um grau de pureza de 53,1%, sendo o equivalente a 5 doses de consumo;
- 3 (três) comprimidos de MDMA, com o peso líquido de 1,030 gramas, produto este que apresentava um grau de pureza de 18,9%, sendo o equivalente a 1 dose de consumo;
- 1 (uma) saqueta de MDMA, com o peso líquido de 0,987 gramas, produto este que apresentava um grau de pureza de 53,1%, sendo o equivalente a 5 doses de consumo;
- 19 (dezanove) micro-selos de LSD;
- 1 (um) embrulho de MDMA, com o peso líquido de 0,315 gramas, produto este que apresentava um grau de pureza de 52,6%, sendo o equivalente a 1 dose de consumo.
- a quantia monetária de €3.538,50 (três mil quinhentos e trinta e oito euros e cinquenta cêntimos), resultante de resultantes de anteriores transacções daqueles produtos [negrito nosso].
de 22 de Janeiro, com referência às Tabelas I-C e II-A, anexas a esse diploma, na pena de quatro anos e nove meses de prisão.
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No caso concreto do crime de tráfico de estupefacientes, tem sido entendimento da jurisprudência maioritária do Supremo Tribunal de Justiça que tal conduta deve ser punida com pena de prisão efectiva, atentas as elevadíssimas necessidades de prevenção: o combate ao tráfico de droga em que Portugal internacionalmente se comprometeu impõe que não seja suspensa a execução da pena nos casos de tráfico comum e de tráfico agravado de estupefacientes, em que não se verifiquem razões muito ponderosas, pois seria atentatória da necessidade estratégica nacional e internacional de combate a esse tipo de crime, faria desacreditar as expectativas comunitárias na validade da norma jurídica violada e não serviria os imperativos de prevenção geral. – Ac. do STJ de 15.11.2007 e, no mesmo sentido, entre outros, os acórdãos do Supremo Tribunal de Justiça de 25.02.2021, 30.11.2017, 09.04.2015, 17.01.2013; de 09.05.2012; de 13.01.2011; de 09.12.2010; de 10.02.2010; de 15.07.2009; de 13.11.2008; de 09.04.2008; de 20.02.2008; de 23.01.2008; de 19.12.2007; de 15.11.2007; de 14.11.2007; de 03.10.2007; de 27.09.2007 todos disponíveis in www.dgsi.pt.
Com efeito, estas exigências de prevenção geral mostram-se especialmente acentuadas nos casos de tráfico de estupefacientes, pela extrema gravidade dos factos a ele associados e pelos seus nefastos efeitos sociais.
Por isso se tende a dizer que, “Nos crimes de tráfico de estupefacientes as razões de prevenção geral só excepcionalmente se satisfazem com uma pena de substituição. Os efeitos nocivos para a saúde resultantes do tráfico, (…) despertam “um sentimento de reprovação social do crime”, para usar as palavras do Prof. Beleza dos Santos, que impedem a aplicação da suspensão da execução da pena, sob pena de “ser posta em causa a crença da comunidade na validade de uma norma e, por essa via, os sentimentos de confiança e de segurança dos cidadãos nas instituições jurídico-penais” (Figueiredo Dias, op. cit, pág. 243). Por isso, razões de prevenção geral afastam a aplicabilidade deste instituto, por mais favorável que pudesse ser o juízo de prognose a formular acerca do arguido.” – Ac. do STJ de 08.10.2008, disponível para consulta em www.dgsi.pt.
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Revertendo ao caso concreto, vê-se que face ao crime pelo qual o arguido será condenado e aos contornos do mesmo, designadamente aqueles que fundamentaram a opção do tribunal pela integração da respectiva actuação no âmbito da previsão do artigo 21.º do DL 15/93, de 2201 [diversidade de estupefacientes detidos, entre os quais, MDMA e LSD, quantidades de estupefacientes detidas não demasiado elevadas, mas a conjugar com os € 3.538, 50, resultantes da venda de estupefacientes e que traduzem a verdadeira extensão da actividade do arguido] se verificam aquelas razões de prevenção geral positiva muito acentuadas a que acima aludimos, donde apenas ocorrendo razões muito ponderosas, seria de ponderar a aplicação de uma pena de substituição.
No caso, salvo o devido respeito, tal não se apurou.
O arguido foi detido em flagrante delito na posse dos produtos estupefacientes supra referidos, donde, é certo, de parca valia probatória seriam quaisquer declarações confessórias do mesmo quanto a tal circunstância.
Não obstante, outras formas existiriam de o arguido demonstrar ao tribunal o seu arrependimento ou interiorização da gravidade do ilícito praticado - posto que tomou a decisão de prestar declarações - o que o mesmo manifestamente não fez, já que optou por prestar declarações inverosímeis e apenas destinadas a distanciar-se dos factos perpetrados.
Por outro lado, atendendo à situação pessoal do arguido apurada nos autos2 e que foi confirmada pelo próprio, não se antevê na mesma qualquer outro motivo para a prática dos factos, que não o mero lucro.
2 Em termos afectivos, estabeleceu um relacionamento aos 27 anos de idade, com a actual companheira (B), constituindo agregado próprio, em zona próxima à sua família, vindo a ter dois filhos: C e D, de 9 e 5 anos de idade, respectivamente.
17. Posteriormente, e não obstante as condições familiares e sociais estáveis no país de origem, optou por emigrar para Portugal – Lisboa, tendo o objectivo de conhecer o país e, eventualmente, estabelecer-se, para, mais tarde, trazer a família.
18. Chegou a Portugal em meados de 2018, tendo vivido nos anos subsequentes em diversos contextos geográficos, nomeadamente em Lisboa, Benfica, Odivelas, Paços de Arcos, Caxias, recorrendo inicialmente ao aluguer de quartos e, mais tarde, à partilha de casa com amigos ou conhecidos, mudanças decorrentes das dificuldades habitacionais e das suas necessidades laborais.
19 Trabalhou inicialmente como barbeiro para o salão “E”, no Centro Comercial Colombo, e posteriormente no “Oeiras Park”, onde chegou a desempenhar funções de gerente e a auferir, com as várias horas extras, cerca de €2.900,00, mensais.
20. A pandemia viria a condicionar significativamente o seu trajecto laboral e rendimentos, acabando por perder o referido posto de trabalho em Outubro de 2020, passando a trabalhar como barbeiro em casa ou no domicilio de clientes, auferindo menos de € 1.000,00, por mês.
21. À data dos factos em apreço, residia numa casa de tipologia T3, na zona da Ajuda, com dois conterrâneos (F e G), partilhando com os mesmos a renda mensal (cerca de €230,00) e as demais despesas habitacionais.
22. Continuava a trabalhar como barbeiro, maioritariamente no (ou ao) domicilio, enquanto os coabitantes trabalhavam na construção civil e nas entregas de refeições via uber-eats, fazendo vidas independentes.
23. Ajudava ainda financeiramente a família no Brasil, em função das suas possibilidades económicas.
Acresce que os factores de protecção de que o arguido beneficia – integração laboral e familiar - já existiam à data da prática dos factos, sem que tenham funcionado como factor dissuasor da respectiva actuação.
É certo que o arguido não tem antecedentes criminais registados, mas não é menos certo que se encontra em Portugal há relativamente pouco tempo, donde tal circunstância, até mesmo face à sua idade, não ser demasiado significativa.
Inexistem, pois, em nosso entender, não só factos concretos que permitam ancorar um juízo de prognose positiva relativamente à sua conduta futura, mas também razões muito ponderosas que imponham a suspensão da pena, sem que se atente contra a necessidade estratégica nacional e internacional de combate ao crime de tráfico de estupefacientes e contra a crença da comunidade na validade de uma norma e, por essa via, [a] os sentimentos de confiança e de segurança dos cidadãos nas instituições jurídico-penais.
Assim, entende-se que não seria de suspender a execução das penas de prisão aplicada.
A Juíza de Direito
Ema Vasconcelos “

III – OBJECTO DO RECURSO
O âmbito do recurso delimita-se pelas conclusões formuladas pelo Recorrente na motivação do recurso em apreciação, estando vedado a este Tribunal conhecer de questões aí não contempladas, sem prejuízo daquelas cujo conhecimento oficioso se impõe (artigos 410º, nº 2, 412º, nº1 e 417º do C.P.P.)
Deste modo, e considerando as conclusões do recurso, cumpre apreciar se existe fundamento para revogar a suspensão da execução da pena de prisão aplicada ao arguido determinada pelo tribunal a quo.
           
IV – FUNDAMENTAÇÃO
 Defende  o Ministério Público a inaplicabilidade ao arguido da suspensão da execução da pena de prisão em que o mesmo foi condenado sustentando  que as exigências de prevenção geral se mostram particularmente elevadas nos crimes de tráfico de estupefacientes , e que que só apenas ocorrendo razões muitos ponderosas seria de equacionar a aplicação da suspensão da pena de prisão , o que não sucedeu no caso em análise  , entendendo que não foram apurados factos concretos que permitam fundar um juízo de prognose positiva relativamente à conduta futura do arguido.
Para tanto alega que a situação familiar e as condições pessoais do arguido apuradas não foram suficientes para o afastar da prática do crime e retira relevância à ausência de antecedentes criminais do mesmo dada a sua idade e o facto deste só se encontrar em Portugal desde 2018.
Termina concluindo que  “acresce o facto de a comunidade em geral não entender como é que uma pessoa sem qualquer ligação estável a Portugal que transporta consigo o dinheiro e a droga referidos, pode beneficiar da suspensão de execução da pena, se não há qualquer elemento objectivo que permita formular um juízo de prognose favorável a que a mera ameaça de pena satisfará as finalidades da punição. É caso para dizer que o crime compensou. “
 Dispõe o artigo 50.º, n.º 1, do Código Penal, que o tribunal suspende a execução da pena de prisão aplicada em medida não superior a cinco anos se, atendendo à personalidade do agente , às condições da sua vida, à sua conduta anterior e posterior ao crime e às consequências deste, concluir que a simples censura do facto e a ameaça de prisão realizam, de forma adequada e suficiente as finalidades da punição.
Impõe assim o legislador que o julgador opte pela suspensão da pena de prisão não superior a cinco anos se da consideração dos factos apurados for possível concluir que a simples censura do facto e a ameaça de prisão realizam, de forma adequada e suficiente, as finalidades da punição.
Conforme escreveu Paulo Pinto de Albuquerque, “o pressuposto material da suspensão da execução da pena é da adequação da mera censura do facto e da ameaça da prisão às necessidades preventivas do caso, sejam elas de prevenção geral, sejam de prevenção especial “. (Comentário do Código Penal , 4ª ed. actualizada , pág. 332 )
Deste modo o julgador tem por um lado de considerar as exigências de prevenção geral reclamadas pelo circunstancialismo do caso concreto , tendo em conta os bens jurídicos que a norma infringida  visa tutelar e as expectativas da comunidade na manutenção da ordem pública e de uma actuação conforme às normas jurídicas em vigor , e por outro de considerar as exigências de prevenção especial  ,  que se reconduzem à recuperação do arguido para uma vida em sociedade , e fazendo apelo à personalidade do agentes, às condições da sua vida, à sua conduta anterior e posterior ao crime e às consequências deste , apreciar se a mera censura do facto e a ameaça da prisão é idónea a realizá-las , e se por conseguinte deve ser suspensa a execução da pena de prisão aplicada.
Com efeito , “ a suspensão da execução da pena de prisão deverá ter na sua base uma prognose social favorável ao arguido , i.e. a esperança de que o arguido sentirá a sua condenação como uma advertência e que não cometerá no futuro nenhum crime “ , e “ para que possa decidir-se pela sua aplicação é necessário que a mesma não coloque irremediavelmente em causa a tutela da confiança e das expectativas da comunidade na validade da norma jurídica violada “. (Acórdão da Relação de Évora de 22.11.2022, rel. Fátima Bernardes , disponível em www.dgsi.pt )
 Conforme decidido pelo  Acórdão da Relação de Évora de 8.11.2022  o que está aqui em causa é  “ a formulação de um juízo de prognose favorável relativamente ao comportamento futuro do arguido, no sentido de, quanto a ele, a simples censura do facto e ameaça da prisão se mostrarem adequadas a dissuadi-lo da prática de futuros crimes, ou seja, parte-se da fundada expectativa de que o arguido, considerado merecedor de confiança, há-de sentir a condenação como uma advertência e não voltará a delinquir” , e “ não se mostra necessário que o Tribunal tenha de adquirir a certeza sobre o desenrolar futuro do comportamento do arguido, bastando a esperança fundada de que a socialização em sociedade possa ser alcançada “ , sem olvidar que “ factores essenciais são a capacidade da pena concreta apontar ao arguido o rumo certo no domínio dos valores prevalecentes na sociedade , impondo-lhe num sentido pedagógico e auto responsabilizante o seu comportamento futuro , e a capacidade dele para sentir e compreender a ameaça da prisão , de molde a que ela exerça sobre si efeito contentor “.( rel. Moreira das Neves , disponível em www.dgsi.pt)
Vejamos o que a este título escreveu o tribunal a quo para fundamentar a respectiva decisão:
“ O citado artigo 50.º, do Código Penal, representa um poder – dever, estando o juiz obrigado a suspender a execução da pena de prisão, sempre que os respectivos pressupostos se verifiquem (acórdão do STJ, de 04.07.96, in CJSTJ, tomo II, p.225; no mesmo sentido Figueiredo Dias, “Velhas e novas questões sobre a pena de suspensão da execução da pena”, Rev. de Leg. e Jur. ano 124.º, pág. 68).
Como se salientou no acórdão do STJ, de 08.05.97 (in www.dgsi.pt), “factor essencial à filosofia do instituto da suspensão da execução da pena é a capacidade da medida para apontar ao próprio arguido o rumo certo no domínio da valoração do seu comportamento de acordo com as exigências do direito penal, impondo-se-lhe como factor pedagógico de contestação e auto-responsabilização pelo comportamento posterior; para a sua concessão é necessária a capacidade do arguido de sentir essa ameaça, a exercer sobre si o efeito contentor, em caso de situação parecida, e a capacidade de vencer a vontade de delinquir”. Para aplicação desta pena de substituição é, pois, necessário que se possa concluir que o arguido, presumivelmente, não voltará a cometer novo crime.
Ora, no caso em apreço encontra-se preenchido, desde logo, o pressuposto formal de aplicação da suspensão da execução da prisão (“o tribunal suspende a execução da pena de prisão aplicada em medida não superior a 5 anos...” – artigo 50.º n.º 1, 1.ª parte, do Código Penal).
Entende-se, por outro lado, que o pressuposto material de aplicação do instituto – o juízo de prognose favorável relativamente ao comportamento do arguido, atendendo-se às circunstâncias do facto (artigo 50.º n.º 1, 2.ª parte, do Código Penal) – também se verifica.
Efectivamente, não se apurando uma actividade levada a cabo com regularidade, nem a existência de uma organização com alguma sofisticação, e tendo em conta a sua idade (31 anos) e a circunstância de não haver elementos que permitam afirmar que a sua personalidade se revele propensa à prática de ilícitos deste ou de outro tipo (a ausência de antecedentes criminais ou de condenações posteriores é disso exemplo), associadas às suas condições de vida (integração laboral, social e familiar), são factores que nos autorizam a formular tal juízo favorável.
Aliado a tudo isso, espera-se que o período de prisão preventiva já sofrido e a condenação ora imposta funcione como um despertar de uma maior consciência da necessidade de controlo e orientação do sentido de vida do arguido, esperando-se, ainda, que aquele interiorize o profundo desvalor das suas acções e passe a adoptar, em definitivo, comportamentos enquadrados pelo respeito dos valores protegidos pelas normas penais. E reportando-se o aludido juízo de prognose ao momento da decisão, não hesita o Tribunal em afirmar, em jeito conclusivo, “que a simples censura do facto e a ameaça da prisão realizam de forma adequada e suficiente as finalidades da punição”, determinando-se a suspensão da execução da pena de prisão ora aplicada pelo período de 4 anos e 9 meses (artigo 50.º n.ºs. 1, in fine e 5).
Entende-se, por outro lado, que a suspensão da execução da pena de prisão, pelo período assinalado, a contar do trânsito em julgado da decisão (artigo 50.º, n.º 5, do Código Penal), deve ser acompanhada, atenta a matéria de facto dada como provada, de um regime de prova com vista a melhor se conseguir a reintegração do arguido, o que se determina ao abrigo dos artigos 53.º e 54.º, ambos do Código Penal. “   
Não merece censura o decidido pelo tribunal a quo, estribado em sólida, consistente e equilibrada fundamentação, que o Recorrente não logrou colocar em crise.
Desde logo refira-se que não excluindo o legislador a aplicação do instituto de suspensão da execução da pena de prisão relativamente ao crime de tráfico de estupefacientes previsto e punido pelo artigo 21.º, n.º 1, do Decreto-Lei n.º 15/93, de 22 de Janeiro, não pode o julgador fazê-lo de forma automática sob pena de violação do princípio da legalidade consagrado no artigo 1º do C.P..
Conforme se decidiu no Acórdão da Relação de Évora de 8.11.2022 , “ a lei não arreda os casos de tráfico de substâncias estupefacientes desta pena de substituição , não se podendo , designadamente por razões de ordem moral ou fundadas em preconceito , excluir-se a sua aplicação “ , “ sem que isso signifique que não haja caos em que as circunstâncias objectivas ou subjectivas revelem necessidades mínimas de reprovação e prevenção do crime que sejam incompatíveis com tal resposta punitiva “. (rel. Moreira Alves, disponível em www.dgsi.pt )
Como tal não basta a natureza do crime praticado pelo arguido - tráfico de estupefacientes, previsto e punido pelo artigo 21.º, n.º 1, do Decreto-Lei n.º 15/93, de 22 de Janeiro – para afastar de imediato a possibilidade de suspensão da pena de prisão.
Efectivamente apenas em função do circunstancialismo concreto é possível concluir que é inviável o recurso à suspensão da pena de prisão por esta não assegurar a satisfação das exigências de prevenção geral.
De particular relevância para a formulação deste juízo é a consideração dos factores preconizados pelo artigo 50º do C.P. , reconduzindo-se aos factos apurados nos autos.
Neste âmbito sendo o produto estupefaciente em causa maioritariamente canábis , substância de menor potencial tóxico e viciante , não tendo o  arguido cometido o crime  no âmbito de actividade organizada  e com sofisticação de meios , a ausência de antecedentes criminais que se mostra relevante atenta a sua idade, as condições pessoais apuradas nos autos , a integração social e a sua estrutura familiar, o seu percurso laboral  e a disrupção deste por força da situação pandémica , apontam para o carácter anómalo da conduta criminosa no percurso de vida do arguido e permitem sustentar um juízo de prognose favorável relativamente à capacidade e à determinação do arguido manter um comportamento conforme ao direito e arredado da prática de crimes e por conseguinte concluir pelo efeito dissuasor da simples ameaça da prisão , considerada  até a circunstância de lhe ter sido aplicada medida de coacção privativa da liberdade, e simultaneamente satisfazer as expectativas da comunidade no cumprimento das normas legais.
Por último, a argumentação do Recorrente de que “a comunidade em geral não entende como é que uma pessoa sem qualquer ligação estável a Portugal que transporta consigo o dinheiro e a droga referidos, pode beneficiar da suspensão de execução da pena” não merce acolhimento por ofensiva do princípio da igualdade consagrado nos artigos 13º e 15º da C.R.P..
Improcede assim o recurso.
V – DECISÃO
Nos termos e com os fundamentos expostos, acordam os juízes da 9ª Secção Criminal do Tribunal da Relação de Lisboa em negar provimento ao recurso interposto e, em consequência, confirmam a decisão recorrida,
Sem custas.

L., d.s. 09-03-2023
Maria Carlos Duarte do Vale Calheiros
Maria Manuela Barroco Esteves Machado
Paula Cristina C. Bizarro