Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
738/11.7YXLSB.L1-1
Relator: MARIA ADELAIDE DOMINGOS
Descritores: APLICAÇÃO DA LEI NO TEMPO
CONTRATO DE ARRENDAMENTO
CADUCIDADE
MORTE
COMUNICABILIDADE
INDEMNIZAÇÃO
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 09/23/2014
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Texto Parcial: N
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: PARCIALMENTE PROCEDENTE
Sumário: I. No que respeita à transmissão por morte do arrendatário, aos contratos de arrendamento para habitação celebrados anteriormente ou na vigência do Regime do Arrendamento Urbano (RAU) aplica-se o artigo 57.º do NRAU, por via da imposição do artigo 26.º, n.º 2 do mesmo diploma, ou seja, não se lhes aplica o disposto no artigo 1106.º do Código Civil, na redação dada pelo artigo 3.º da Lei n.º 6/2006, que regulou de modo diferente o artigo 85.º do RAU, que anteriormente regia esta matéria (e que, por sua vez, tinha tido por fonte imediata o artigo 1111.º do Código Civil, preceito que, aliás, remontava ao artigo 46.º da Lei n.º 2:030).

II. Este preceito, porém, só é aplicável às situações em que está em causa a “morte do primitivo arrendatário.”

III. O princípio da comunicabilidade conjugal do direito do arrendatário, de acordo com o regime de bens vigente a que se reporta o o artigo 1068.º do Código Civil,, consagra uma norma inovadora, apenas aplicável aos contratos celebrados na vigência da nova Lei.

IV. De harmonia com o disposto no artigo 1107.º do Código Civil, a “concentração” do direito no cônjuge sobrevivo só acontece nos casos de contitularidade, não tendo de advir forçosamente da comunicabilidade prevista no artigo 1068.º do Código Civil (basta que ambos sejam titulares do contrato de arrendamento, por exemplo).

V. A cessação do contrato de arrendamento por caducidade nos termos previstos no artigo 1051.º, alínea d) do Código civil, determina a restituição do prédio ao senhorio, mas tal só é exigível passados 6 meses sobre a verificação do facto que determina a caducidade (artigo 1053.º do Código Civil), ou seja, a partir de 27/02/2011.

VI. A partir do momento em que a restituição é exigível, como foi efetivamente exigida, através de carta de interpelação, é devida pelo arrendatário, por cada mês de atraso na restituição, indemnização equivalente ao dobro do montante da renda mensal, por força do artigo 1045.º, n.º 2, do Código Civil, que deve ser aplicável, ainda que analogicamente, quando o contrato tenha caducado por morte do arrendatário e permaneça no locado pessoa que não é arrendatária, no caso, a ré/apelada, por não lhe ter sido transmitido o arrendamento.

Decisão Texto Parcial:
Decisão Texto Integral: Acordam no Tribunal da Relação de Lisboa

I – RELATÓRIO

AC intentou ação declarativa de condenação, inicialmente com processo sumário, subsequentemente convertido em processo ordinário, contra ML, pedindo que seja condenada a entregar-lhe o imóvel de que é proprietário e a pagar-lhe a quantia de €8.000,00, bem como as quantias que à ordem de €1.000,00 se vencerem até à data da efetiva entrega do imóvel, acrescidas de juros vencidos e vincendos calculados à taxa legal, sendo aquela desde a data da citação, e os demais sobre cada uma das quantias devidas mensalmente pela ré ao autor e até integral pagamento.

Mais peticiona a condenação da ré a pagar uma sanção pecuniária compulsória de €200,00 por cada dia após o trânsito em julgado da sentença que a ré persistir em não entregar o imóvel.

Para fundamentar a sua pretensão, alegou, em síntese, ser dono do prédio que identifica e que por contrato celebrado em 31/08/1950, o anterior proprietário deu de arrendamento para habitação de JN, o terceiro andar esquerdo do referido prédio.

Falecido este último, sucedeu-lhe no direito ao arrendamento sua filha SF, e mercê do falecimento desta, o filho desta, E, o qual, por seu turno, faleceu em …/08/2010, no estado de casado com a ré.

O autor, por carta datada de 08/02/2011, comunicou à ré a caducidade do contrato de arrendamento, instando-a a restituir a casa até 26/02/2011, o que a ré não fez.

Invoca ainda o autor que o andar tem um valor locativo no mínimo de €1.000,00 mensais, reclamando a título indemnizatório tal valor desde 27/08/2010.

Citada a ré, contestou, admitindo ser o autor o dono do prédio em apreço, mas referindo que inicialmente, em 01/03/1949, foi celebrado um contrato de arrendamento; que a filha do primitivo inquilino, Susana, deixou de viver no locado muito antes da morte de seu pai e que após o falecimento daquele, foi ajustado entre a anterior senhoria, por um lado, e a ré e seu falecido marido, por outro, o arrendamento do andar em causa.

Replicou o autor, negando a existência de tal contrato de arrendamento verbal, concluindo como na petição inicial.

Realizada a audiência de discussão e julgamento foi proferida sentença que decidiu do seguinte modo: “Não obstante se reconhecer que o Autor é dono do prédio urbano sito em Lisboa na Rua …  n°s …, tornejando para a Rua … n°s … inscrito na matriz urbana da freguesia dos … sob o art° … e descrito na … C.R.P. de Lisboa sob o n° … da freguesia de …, absolve-se a Ré dos pedidos pelo mesmo formulados.”

Inconformado, apelou o autor apresentando as alegações cujas conclusões abaixo se transcrevem.

Foram apresentadas contra-alegações pela apelada onde pugna pela confirmação do julgado.

Conclusões da apelação:

a) O Autor, ora Recorrente, fundamentou a ação de reivindicação que deu origem aos presentes autos no facto de em 26 de Agosto de 2010 ter caducado o contrato de arrendamento que tem por objeto o terceiro andar esquerdo do prédio sito na Rua …, n° …, em .., na medida em que o primitivo arrendatário — JN — faleceu em 1977 e, nessa data, o direito ao arrendamento do andar em causa foi transferido para o seu neto EF casado com a Ré, ora Recorrida, MF, tendo o referido EF falecido em … de Agosto de 2010, data da caducidade do contrato de arrendamento;

b) Contudo, na douta sentença recorrida, entendeu-se que a Ré é, hoje, a titular do arrendamento que se iniciou por contrato celebrado, em 31 de Agosto de 1950, entre o então proprietário e JN, fundamentando a sentença o seu entendimento no facto do dito arrendamento se ter transmitido, em 27 de Dezembro de 1977, por óbito do primitivo arrendatário, o predito JN, a favor do seu neto, EF e que o dito arrendamento se comunicou à Ré (casada com o dito e falecido EF desde 9 de Novembro de 1967) por força da entrada em vigor da alteração que o NRAU fez do artigo 1068.° do Código Civil, diploma que, no entendimento da douta sentença recorrida, tem carácter inovador e retroativo;

c) Sucede que o artigo 1068.° do Código Civil, com a redação que lhe foi dada pelo NRAU, não se aplica aos presentes autos, dado que essa alteração legislativa apenas pode visar os contratos de arrendamento celebrados após a entrada em vigor de tal alteração, i.e., aos contratos de arrendamento celebrados a partir de 28 de Junho de 2006, tendo esta questão já sido resolvida por este Tribunal da Relação de Lisboa em Acórdãos votados por unanimidade e absolutamente precisos e claros, nomeadamente o Acórdão de 29 de Maio de 2012, proferido no processo …, e o Acórdão de 18 de Outubro de 2012, proferido no processo …;

d) Do artigo 59.° n.° 1 do NRAU não resulta, nem pode resultar, a comunicação de um arrendamento que antes não se tinha comunicado e cujos factos que a determinariam já tinham todos ocorrido e já estavam todos esgotados há muito;

e) A Ré, ora Recorrida, não adquiriu a posição de arrendatária por força da entrada em vigor do NRAU, porque a comunicação no mesmo estabelecida apenas se aplica aos contratos de arrendamento celebrados após 28 de Junho de 2006, sendo que o contrato de arrendamento objeto dos presentes autos foi celebrado em 31 de Agosto de 1950 e transmitiu-se a EF em 27 de Dezembro de 1977, data em que vigorava o regime da incomunicabilidade;
f) Assim, inexistindo o fundamento para a transmissão do arrendamento (cfr. artigo 57.° n.° 1 NRAU), o arrendamento em causa nos presentes autos caducou em 27 de Agosto de 2010, data do falecimento de EF;

g) Está assente nos presentes autos (cfr. alínea g) dos factos provados) que por carta datada de 8 de Fevereiro de 2011, expedida sob registo, o Recorrente comunicou à Recorrida a caducidade do contrato de arrendamento, intimando-a a restituir o andar em causa até ao dia 26 de Fevereiro de 2011, sendo que a Ré, ora Recorrida, não procedeu, até ao presente, à entrega do andar de que o Autor é proprietário;

h) O Recorrente, em consequência do comportamento da Recorrida, está impedido de retirar do imóvel o seu devido proveito ou rendimento, estando a Recorrida obrigada a indemnizar o Recorrente pelos prejuízos causados, sendo o valor locativo da fração o adequado para os quantificar;

i) A Recorrida está a pagar mensalmente ao Recorrente, e conforme resulta dos documentos juntos com a contestação, a quantia de € 74,92, valor este que, como é público e notório, se encontra completamente desajustado dos valores praticados no mercado de arrendamento;

j) São, assim, manifestos os prejuízos que resultam para o Autor, ora Recorrente, da utilização ilegítima que a Ré, ora Recorrida, está a dar ao andar em causa nos presentes auto;

k) Ao contrário do que se entendeu na douta sentença recorrida, dos documentos juntos aos autos, designadamente a Caderneta Predial junta como documento n° 5 com a petição inicial, bem como tendo em consideração o depoimento das testemunhas arroladas pelo Autor, facilmente se conclui que o valor de renda mensal do andar cuja posse se reivindica não poderá ser inferior a € 600,00;

l) Face ao exposto conclui-se que a douta sentença recorrida, ao não prever o pagamento da competente indemnização ao Recorrente decorrente da utilização ilegítima que a Recorrida está a dar ao andar em causa nos presentes autos, enferma de manifesto erro de julgamento e, como tal, deverá ser revogada no sentido de serem fixados os prejuízos do Recorrente tendo em consideração o valor, em termos de mercado de arrendamento, do referido andar ou, em alternativa, deverá ser remetida a fixação desses prejuízos para a fase de execução de sentença (…).”

II- FUNDAMENTAÇÃO

A- Objeto do Recurso

Considerando as conclusões das alegações, as quais delimitam o objeto do recurso sem prejuízo das questões de conhecimento oficioso, a questão essencial a apreciar é se, por morte de EF, caducou o contrato de arrendamento em causa nos autos, ou se, ao invés, o mesmo se comunicou ao seu cônjuge, a ora ré/apelada.

B- De Facto

A 1.ª instância deu como provada a seguinte matéria de facto:

“1. FACTOS PROVADOS POR ACORDO, DOCUMENTO OU CONFISSÃO:

A) Mediante a apresentação 2 de 1.3.2004 foi inscrita a favor do Autor a aquisição do prédio urbano sito em Lisboa na Rua … n°s … , tornejando para a Rua VS n°s … inscrito na matriz urbana da freguesia dos … sob o art° … e descrito na … C.R.P. de … sob o nº … da freguesia de A… ( certidão de fls. 9 a 11 dos autos cujo teor se dá por integralmente reproduzido) ;

B) Por contrato de 1 de Fevereiro de 1949, consubstanciado no escrito de fls. 35 /36 dos autos e cujo teor se dá por reproduzido, o anterior dono do prédio referido em A) deu de arrendamento para habitação a JN o seu 3° andar esquerdo;

C) Por contrato de 31 de Agosto de 1950, consubstanciado no escrito de fls. 12 /13 dos autos e cujo teor se dá por reproduzido, o anterior dono do prédio referido em A) deu de arrendamento para habitação a JN o seu 3° andar esquerdo;

D) O referido JN faleceu em … de Dezembro de 1977 (certidão de fls. 83);

E) EF era neto de JN e faleceu em 27 de Agosto de 2010, no estado de casado com a Ré (documento de fls. 15)

F) A Ré ficou a habitar o imóvel após o falecimento de seu marido EF.

G) Por carta datada de 8 de Fevereiro de 2011, expedida sob registo, o Autor comunicou à Ré o seguinte: “tendo tomado conhecimento por terceiros do falecimento do Senhor EF no passado dia 26 de Agosto de 2010, tendo aguardado um contacto da parte de V.Exa. Estando largamente expirados todos os prazos previstos para o efeito, tenho de depreender que essa diligência não esteja nos planos de V.Exa.

Assim sendo, venho alertar e recordar que o arrendamento até aqui em vigor caducou e que o andar (...) deverá ser-me entregue até ao próximo dia 26 de Fevereiro de 2011 (...).

Uma vez expirado tal prazo, não terei outra alternativa do que responsabilizar V.Exa. e os demais herdeiros do senhor EF pelos prejuízos que sofrerei por força da não entrega, os quais correspondem ao valor locativo do imóvel que é de €1.000,00 por cada mês ou fracção de indisponibilidade. (...) “.

H) A Ré nasceu em 1941 (cfr. documento fls. 92);

I) A Ré casou com EF em … de Setembro de 1967, sem convenção antenupcial (cfr. documento de fls. 86 dos autos).

2. FACTOS SOBRE OS QUAIS INCIDIU A PROVA

2.a) PROVADOS

J) Após o falecimento de JN, a respectiva posição no contrato a que se alude em C) passou a ser ocupada por seu neto E já então casado com a ora Ré;

K) A Ré reside no imóvel há, pelo menos, 44 anos.

2.b) NÃO PROVADOS

- Que à data do óbito de JN, sua filha S vivesse no locado;

- Que após o falecimento de JN tenha sido celebrado um contrato de arrendamento (verbal) entre a mãe do Autor, JC, na qualidade de senhoria e a ora Ré e seu marido E na qualidade de inquilinos;

- Que o valor comercial actual do andar em causa, para efeitos de arrendamento, seja de 1000,00 € mês.”

III- DO CONHECIMENTO DO RECURSO

O tribunal a quo considerou aplicável ao caso dos autos o disposto no artigo 1068.º do Código Civil, na redação dada pela Lei n.º 6/2006, de 27/02.

Fundamentou esta conclusão, em suma, do seguinte modo:
“Dispõe o art° 1068° do C.C. introduzido pelo art° 3° da Lei n° 6/2006 de 27.2. (já há muito em vigor antes do decesso de EF) que: "O direito do arrendatário comunica-se ao seu cônjuge nos termos gerais e de acordo com o regime de bens vigente".

Trata-se de uma norma inovadora já que quer o art° 83° do RAU, quer o art° 1110° do Código Civil quer mesmo o 44° da Lei 2030 estabeleciam a incomunicabilidade da posição de arrendatário ao cônjuge  fosse qual fosse o regime matrimonial.

Será a mesma aplicável ao caso sub judice?

Sob a epígrafe " aplicação da lei no tempo " estabelece o n°1 do art° 59° da Lei n° 6/2006 de 27.2. o seguinte: "O NRAU aplica-se aos contratos celebrados após a sua entrada em vigor, bem como às relações contratuais que subsistam nessa data, sem prejuízo do previsto nas normas transitórias".

As normas transitórias não regularam esta matéria da (in) comunicabilidade do direito do arrendatário, como se colhe dos artigos 27° e seguintes dedicados aos contratos de arrendamento habitacionais celebrados antes da vigência do RAU, como é o caso.

Isto significa, portanto, que o art° 1068° do NRAU é aplicável à relação jurídica de arrendamento em apreço, i.e. ao contrato de arrendamento que à data da sua entrada em vigor (27.7.2006) ligava EF ao ora Autor.
Não há, portanto, em nosso entender, que fazer apelo ao disposto no art° 12° do C.C. e como tal equacionar se o art° 1068° se abstrai ou não dos factos que lhe deram origem.

Com efeito, o art° 12° do C.C. é uma norma de carácter geral de natureza interpretativa que reafirma no n°1 o princípio da não retroactividade da lei e que no n°2 o precisa.

Se o novo regime jurídico contém uma norma específica de aplicação de lei no tempo (o referido art° 59°) destinada, por essência, a coordenar a aplicação de regimes jurídicos que se sucedem no tempo, norma essa que afirma peremptoriamente a aplicabilidade do novo às relações contratuais que subsistam nessa data, é porque despreza o critério enunciado no n°2 do art° 12° do C.C. e como tal se abstrai dos factos que lhe deram origem.

Posto isto e ponderando que a Ré e o falecido EF contraíram casamento em 9.11.67, sem convenção antenupcial ( sendo o regime supletivo já então em vigor o da comunhão de adquiridos) e que a assunção da posição de locatário por parte do mesmo …E… ocorreu em 1977, aquando do óbito do JN, e quando já se encontrava casado com a Ré, isto significa que tal comunicabilidade é admitida por força do art° 1068° do C.C.

Tal comunicabilidade do direito do arrendatário EF à sua mulher ora Ré, significa que, com o falecimento daquele ocorrido em 2010, ocorreu a concentração do direito ao arrendamento nesta última, cônjuge sobrevivo. (cfr. art° 1107° do CC).

Discorda o apelante, defendendo que o referido artigo 1068.º do Código Civil, introduzido aquando da entrada em vigor do NRAU, apenas se aplica aos arrendamentos celebrados após a entrada em vigor de tal legislação, ou seja, aos contratos celebrados a partir de 28/06/2006, sendo que o contrato de arrendamento em discussão foi celebrado em 31/08/1950, tendo-se transmitido a EF, por morte do primitivo arrendatário, em 27/12/1977, data em que vigorava o regime da incomunicabilidade. Não existindo, por conseguinte, conforme decorre da aplicação do artigo 57.º do NRAU, fundamento para a não caducidade do contrato de arrendamento.

Vejamos, então, se ao caso em apreço se aplica o referido artigo 1068.º do Código Civil.

Partamos, pois, do pressuposto reconhecido na sentença e aceite pelas partes, conforme decorre das alegações e contra-alegações, que à data do falecimento de EF, em 27/08/2010, o mesmo era arrendatário do locado, por lhe ter sido transmitido o contrato de arrendamento por mortis causa do primitivo arrendatário, em 27/12/1997.

Também importa mencionar que o referido EF faleceu no estado de casado com a ora ré/apelada, com quem tinha contraído matrimónio, em …/09/1967, sem convenção nupcial, ou seja, sob o regime supletivo da comunhão de adquiridos.

Finalmente, que a ora ré/apelada reside no imóvel há, pelo menos, 44 anos.

Conforme dispõe o artigo 59.º da Lei n.º 6/2006 de 27/02, o Novo Regime do Arrendamento Urbano (NRAU), aplica-se aos contratos celebrados após a sua entrada em vigor, bem como às relações contratuais constituídas que subsistam nessa data, sem prejuízo do previsto nas normas transitórias.

As normas transitórias encontram-se descritas no artigo 26.º e seguintes do NRAU, interessando-nos reter, relativamente ao arrendamento para habitação, o que dispõem os artigos 26.º, n.º 1 e 2, 27.º, 1.ª parte, 28.º e 57.º do NRAU.

Assim, no que respeita à transmissão por morte do arrendatário, aos contratos de arrendamento para habitação celebrados anteriormente ou na vigência do Regime do Arrendamento Urbano (RAU) aplica-se o artigo 57.º do NRAU, por via da imposição do artigo 26.º, n.º 2 do mesmo diploma, ou seja, não se lhes aplica o disposto no artigo 1106.º do Código Civil, na redação dada pelo artigo 3.º da Lei n.º 6/2006, que regulou de modo diferente o artigo 85.º do RAU, que anteriormente regia esta matéria (e que, por sua vez, tinha tido por fonte imediata o artigo 1111.º do Código Civil, preceito que, aliás, remontava ao artigo 46.º da Lei n.º 2:030).

O artigo 57.º, n.º 1, alínea a) do NRAU dispõe, no que ora releva, e sob a epígrafe, “Transmissão por morte no arrendamento para habitação”:

“1- O arrendamento para habitação no arrendamento para habitação não caduca por morte do primitivo arrendatário quando lhe sobreviva:

a) Cônjuge com residência no locado.”

Este preceito, porém, não é aplicável ao caso dos autos, como bem se fez notar na sentença recorrida, porquanto a norma apenas se aplica às situações em que está em causa a “morte do primitivo arrendatário.”

Conforme refere Pinto Furtado[1], na anterior legislação [f]alava-se de primitivo arrendatário para exprimir que, em função das sobrevivências enumeradas nas alíneas [do artigo 85º do RAU], a não caducidade só operava, em princípio, em um grau, isto é, para o arrendatário (por directo arrendamento ou cessão a posição contratual) primeiro falecido.”

Por conseguinte, a conclusão a retirar é que não assiste à ré o direito à transmissão do arrendamento por o seu falecido marido não deter na relação jurídica arrendatícia a posição de primitivo arrendatário, já que o arrendamento lhe foi transmitido por morte do anterior arrendatário, seu avô.

Esta conclusão, em boa verdade, não é colocada em crise no recurso.

O pomo da discordância dos recorrentes situa-se no segmento da sentença que considerou aplicável ao contrato em causa o disposto no artigo 1068.º do Código Civil, que estabeleceu, após a alteração da redação introduzida pela Lei n.º 6/2006, princípio inverso ao até vigente, ao seja, o princípio da comunicabilidade do arrendamento ao cônjuge sobrevivo, ao dispor: “O direito do arrendatário comunica-se ao seu cônjuge, nos termos gerais e de acordo com regime de bens vigente.”

Anteriormente o artigo 83.º do RAU (e antes dele o artigo 1110.º, n.º 1, do Código Civil, que provinha da prescrição do artigo 44.º da lei n.º 2:030) prescrevia do seguinte modo: “Seja qual for o regime matrimonial, a posição do arrendatário não se comunica ao cônjuge e caduca por morte, sem prejuízo do disposto nos artigos seguintes” (estes preceitos regulavam essencialmente a transmissão por divórcio, a transmissão por morte e exceções à última situação, a renúncia e a comunicação ao senhorio).

Assim, e por força do regime anterior, descartando as situações referenciadas na ressalva do preceito, o arrendamento não se comunicava ao cônjuge fosse qual fosse o regime de bens.

Ora, estabelecendo o NRAU uma regra inversa, ainda que remetendo para os termos gerais e para o regime de bens vigente, podem-se elencar as várias situações que o preceito perspetiva.

Assim, e citando[2], na interpretação do preceito, importa distinguir:

“- no regime da separação de bens, o direito do arrendatário não se comunica ao seu cônjuge, pois não há património comum do casal (cfr. art.º 1735.º do CC);

- no regime da comunhão de adquiridos, o direito do arrendatário comunica-se ao seu cônjuge, ingressando no património comum, se o contrato for celebrado na constância do casamento (cfr. art.ºs 1724.º, al. b), 1725.º e 1730.º do CC);

- no regime da comunhão geral, o direito do arrendatário comunica-se ao seu cônjuge, integrando o património comum do casal, mesmo que o contrato de arrendamento seja anterior ao casamento (cfr. art.º 1732.º do CC.”

No caso em apreço, se fosse aplicável o artigo 1068.º do Código Civil na redação introduzida em 2006 pelo NRAU, por a transmissão do contrato de arrendamento para o falecido cônjuge da ora apelada ter ocorrido em momento posterior ao casamento de ambos, celebrado sob o regime supletivo da comunhão de adquiridos, o direito ao arrendamento comunicar-se-ia ao cônjuge sobrevivo.

Situação inversa ao que sucederia ao abrigo da legislação anterior dada a regra da incomunicabilidade, já que por força da conjugação do artigo 83.º do RAU (e antes dele do artigo 1110.º do CC) e artigos 1724.º, n.º 1, alínea c), e 1724, alínea b), do Código Civil, no regime da comunhão de adquiridos não fazem parte da comunhão os bens adquiridos pelos cônjuges na constância do matrimónio, que não sejam excetuados por lei e no caso tal sucedia, conforme prescrevia o citado artigo 83.º do RAU e artigo 1110.º do CC.

Sendo assim, a aplicação imediata do regime da comunicabilidade do direito do arrendatário consagrado no artigo 1068.º do NRAU, interpretado nos termos preconizados pela sentença, implica aplicação retroativa do preceito às relações de arrendamento anteriores à entrada em vigor deste diploma, às quais tal princípio não era aplicável, acabando, por essa via, por considerar como bem comum do casal um bem próprio de um dos cônjuges, de certa forma à revelia da ratio legis do preceito que não se alheia, mesmo para as situações constituídas ao abrigo do NRAU, do regime de bens vigente no casamento.

Como referem os autores já citados[3], em anotação ao artigo 1068.º do Código Civil, este preceito suscita problemas de aplicação da lei no tempo, porquanto e “embora o art.º 1068.º do CC, disponha directamente sobre o conteúdo da relação jurídica arrendatícia, não o faz “abstraindo dos factos que lhes deram origem”, conforme previsto no artigo 12.º, n.º 2, do CC, mas, antes pelo contrário, tendo em consideração tais factos. Por isso, atento o disposto no art.º 59.º da Lei n.º 6/2006 e no art.º 12.º do CC (…) o art.º 1068.º do CC aplica [-se], a partir da data de entrada em vigor do NRAU (28-06-2006), a todos os novos contratos de arrendamento, aplicando-se ainda aos do pretérito que tenham sido celebrados por arrendatário que venha entretanto a contrair casamento no regime da comunhão geral de bens.”

Na verdade, se a comunicabilidade se dá por efeito da celebração do contrato de arrendamento (ou no caso em apreço, da sua transmissão por morte do primitivo arrendatário) e do casamento, e “se ambos ocorreram no domínio da lei que estabelecia imperativamente a incomunicabilidade, o direito ao arrendamento não se comunicou ao cônjuge e não se poderá comunicar, mais tarde, já que a comunicabilidade se dá “nos termos gerais”, ou seja, por força dos factos previstos nas disposições legais aplicáveis e vigentes à data dos mesmos.”[4]

Ainda que no domínio das relações jurídicas de arrendamento, em princípio, se justifique a aplicação imediata da nova lei às relações já constituídas, por estar em causa a estruturação básica do sistema jurídico e da ordem social, e por não visarem propriamente o “estatuto contratual” das partes, mas antes o respetivo “estatuto legal”, atingindo-as, desse modo, não tanto como partes contratantes, mas enquanto sujeitos de direito entre si ligados por um particular e específico vínculo contratual, donde se pode inferir a aplicação da 2.ª parte do n.° 2 do artigo 12.° do Código Civil, e por conseguinte a regulação da situação jurídica abstraindo-se o legislador dos factos que lhe deram origem[5], tal conclusão deve ser arredada quando o próprio legislador regula as relações jurídicas em causa dando especial ênfase aos factos que lhe deram origem.

Ora no que concerne à comunicabilidade do direito ao arrendamento foi o próprio legislador que ao prescrever o novo regime fez depender a comunicabilidade do direito do arrendatário da verificação de determinados factos constitutivos desse direito: contrato de arrendamento, casamento sob determinado regime de bens.

Não se verificando esses factos à data da integração do direito na comunhão conjugal, não há razões jurídicas que façam prevalecer o ingresso desse bem na comunhão conjugal em momento posterior.

Por conseguinte, e em face do exposto, a conclusão a retirar é que ao caso dos autos é inaplicável o artigo 1068.º do Código Civil. O princípio da comunicabilidade conjugal do direito do arrendatário, de acordo com o regime de bens vigente a que se reporta o preceito, consagra uma norma inovadora, apenas aplicável aos contratos celebrados na vigência da nova Lei, o que aqui não é o caso, já que o arrendamento dos autos lhe é anterior.[6]

Como também não lhe é aplicável o disposto no artigo 1107.º do Código Civil, invocada na sentença recorrida, porquanto a “concentração” do direito no cônjuge sobrevivo só acontece nos casos de contitularidade, não tendo de advir forçosamente da comunicabilidade prevista no artigo 1068.º do Código Civil (basta que ambos sejam titulares do contrato de arrendamento, por exemplo).

Por todo exposto, a sentença recorrida não pode ser confirmada, já que por morte do arrendatário EF ocorreu a caducidade do contrato de arrendamento em causa nos autos (artigo 1051.º, alínea d), do Código Civil.

A caducidade do contrato determina a obrigação de restituir a coisa locada (artigo 1038.º, alínea i) do Código Civil), donde procede o primeiro pedido formulado nesta ação.

Conforme decorre dos factos provados, o autor solicitou à ré a entrega do imóvel até ao dia 26/02/2011 (alínea g) dos factos provados), o que não veio a suceder.

Entende o autor/apelante que deve ser indemnizado, a partir do mês seguinte ao decesso do arrendatário, por montante equivalente ao valor locativo do imóvel que, no seu entender, é de €1.000,00 por cada mês ou fração de indisponibilidade, acrescidos de juros de mora à taxa legal.

A cessação do contrato de arrendamento por caducidade nos termos previstos no artigo 1051.º, alínea d) do Código civil, determina a restituição do prédio ao senhorio, mas tal só é exigível passados 6 meses sobre a verificação do facto que determina a caducidade (artigo 1053.º do Código Civil), ou seja, a partir de 27/02/2011.

Não tendo sido restituído o imóvel, são devidas ao autor/apelante as rendas pelo valor correspondentes ao estipulado durante a vigência do contrato (artigo 1045.º, n.º 1, do Código Civil).

A partir do momento em que a restituição é exigível (27/02/2011), como foi efetivamente exigida, através da carta de interpelação mencionada na alínea G) dos factos provados (cfr. artigo 9.º a 12.º do NRAU), é devida pelo arrendatário, por cada mês de atraso na restituição, indemnização equivalente ao dobro do montante da renda mensal, por força do artigo 1045.º, n.º 2, do Código Civil, que deve ser aplicável, ainda que analogicamente, quando o contrato tenha caducado por morte do arrendatário e permaneça no locado pessoa que não é arrendatária, no caso, a ré/apelada, por não lhe ter sido transmitido o arrendamento.[7]

Consequentemente, procede apenas em parte o segundo pedido formulado pelo autor, ficando prejudicada a questão do não apuramento do valor locativo do imóvel e do seu apuramento em sede liquidação de sentença.

Dado o recíproco decaimento, as custas nas instâncias ficam a cargo do apelante e apelada, fixando-se o decaimento, respetivamente, em ¼ e ¾, sendo a taxa de justiça do recurso fixada pela tabela referida no n.º 2 do artigo 6.º do RCP.

IV- DECISÃO

Nos termos e pelas razões expostas, acordam em julgar parcialmente procedente a apelação e, consequentemente, revogam a sentença na parte recorrida recorrida, condenando a ré a restituir ao autor, livre de pessoas e bens o 3.º andar esquerdo do prédio sito na Rua …, n.º …, em Lisboa, com efeitos a partir de 27/02/2001, condenando-se a ré a pagar ao autor, a título de indemnização, o valor equivalente ao da renda estipulada, durante os seis meses posteriores ao decesso do arrendatário EF, e a partir de 28/0272010, esse valor em dobro, até efetiva restituição do imóvel ao autor, quantias essas acrescidas de juros de mora vencidos e vincendos, à taxa legal, devidos desde a citação.

 Custas nos termos sobreditos.

Lisboa, 23 de setembro de 2014

 (Maria Adelaide Domingos - Relatora)

(Eurico José Marques dos Reis - 1.º Adjunto)

   (Ana Grácio - 2.ª Adjunta)


[1] PINTO FURTADO, “Manual de Arrendamento Urbano”, Vol. II, 4.ª ed., Almedina, p. 604.
[2] LAURINDA GEMAS/ALBERTINA PEDROSO/JOÃO CALDEIRA JORGE, “Arrendamento Urbano Novo Regime Anotado e Legislação Complementar”, 2.ª ed., Quid Juris, p. 233.
[3] LAURINDA GEMAS…, ob. cit, p. 233 (2).
[4] Idem.
[5] Neste sentido, cfr. Ac. STJ, de 23.05.2002, p. 02B1308, em www.dgsi.pt; Ac. STJ, de 22.04.2204, CJ/STJ, Ano XII, IV, p. 45-50; Ac. RL, de 17.04.2008, p. 2301/2008-8, em www.dgsi.pt.
[6] Neste sentido, vejam-se Ac. RL, de 29/0572012, p. 1321/11.2YXLSB.L1-1 e de 18/10/2012, p. 4994/08.0TBAMD-A.L1-2. Cfr., ainda, acórdão da RC de 09/04/2013, processo 1346/11.8TBCVL-A.C1, todos disponíveis em www.dgsi.pt.
[7] Neste sentido, cfr. LAURINDA GEMAS…, ob. cit., p. 198 (3). Cfr, no mesmo sentido, exemplificativamente, Ac. STJ, de 05.06.2007, p. 07A1186 e Ac. STJ, de 08.03.2003, p. 03A1905, em www.dgsi.pt.