Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
23994/16.0T8LSB-E.L1-1
Relator: ISABEL FONSECA
Descritores: AÇÃO CONTRA RESPONSÁVEIS PELAS DÍVIDAS DO INSOLVENTE
LEGITIMIDADE DO ADMINISTRADOR DA INSOLVÊNCIA
LEGITIMIDADE DO CREDOR EM SUBSTITUIÇÃO DO ADMINISTRADOR
SOCIEDADE DOMINANTE RESPONSÁVEL POR OBRIGAÇÕES DA SOCIEDADE DOMINADA
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 03/19/2024
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Texto Parcial: N
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: PROCEDENTE
Sumário: 1. A norma vertida no art. 82.º, n.º 3, alínea c) do CIRE, atribuindo legitimidade exclusiva ao administrador da insolvência para propor e fazer seguir “[a]s ações contra os responsáveis legais pelas dívidas do insolvente” tem cariz estritamente processual e remete-nos para o art. 6.º do CIRE, nos termos do qual “[p]ara efeitos deste Código, são considerados responsáveis legais as pessoas que, nos termos da lei, respondam pessoal e ilimitadamente pela generalidade das dívidas do insolvente, ainda que a título subsidiário” (número 2). Daí que as ações a que se reporta a referida alínea c) são, em abstrato, aquelas que aproveitam à generalidade dos credores da insolvente, não visando o benefício de qualquer credor em particular.
2. A interpretação do referido preceito (alínea c) do número 3 do art. 82.º) que valorize exclusivamente o seu texto (interpretação literal), abstraindo-se das circunstâncias do caso, pode conduzir a soluções que, em nosso entender, o legislador não quis, subvertendo-se a ratio do regime legal: se, por um lado, é conferido ao credor a legitimidade (substantiva) para acionar a sociedade dominante (art. 501.º do CSC, ex vi do art. 491.º do mesmo diploma), por outro, retira-se a legitimidade (processual) para, por si só, diretamente, exercer esse direito de ação, isto é, coloca-se um condicionamento ao exercício do direito.
3. Justifica-se, pois, uma interpretação que tenha em conta o sistema em que o preceito se insere, em ordem a considerar que assiste ao credor a faculdade de instaurar a ação judicial contra o responsável legal pelas dívidas do insolvente, agindo, pois, em defesa dos seus interesses e exercendo o direito que, substantivamente, a lei lhe confere, nos casos em que se patenteia a inércia do administrador da insolvência em exercer os poderes que lhe são conferidos pelo referido artigo, quando não a sua oposição; agindo, então, em substituição do administrador, não deixa de defender apenas o seu direito – nem sequer está em condições, obviamente, de pugnar pelos direitos de outros credores –, aproveitando-lhe, pois, exclusivamente, o resultado da ação e não já a todos os credores, como aconteceria se fosse o administrador da insolvência a atuar.
Decisão Texto Parcial:
Decisão Texto Integral: Acordam as Juízas da 1ª secção cível do Tribunal da Relação de Lisboa
  
I.RELATÓRIO
Ação
“Acção para reconhecimento ulterior de crédito” [ [1] ], a correr por apenso ao processo em que foi declarada, por sentença de 18-10-2016, a insolvência (por apresentação) da sociedade P holding SGPS, SA.
Autor/apelante
PA.
Réus/apelados
Massa insolvente de P holding SGPS, S. A., representada pelo Administrador da Insolvência (AI);
Credores da Massa Insolvente;
Devedora Insolvente P Holding SGPS, S. A (Devedora/insolvente)
Pedido
Conclui como segue:
“Termos em que deve ser reconhecido o crédito do ora   Requerente sobre a Insolvente, no montante de € 358.149,00, acrescido de juros de mora desde a citação da ora Insolvente na supra referida acção, ocorrida não depois de 30-11-2009”.
Causa de pedir
Alega, em síntese, que,
A Insolvente detinha integralmente o BPP, S. A. (BPP) desde 2004; o BPP e a Insolvente integravam o mesmo grupo, obedecendo à mesma orientação estratégica e aparecendo assumidamente, em termos públicos, como entidades que atuavam sob essa mesma orientação (arts. 1.º e 2.º). 
“3.º Em 2005 e 2007, o Requerente foi aliciado pelo BPP a realizar investimentos em veículos de investimento, em concessões rodoviárias e no sector financeiro, respectivamente.
 4.º O BPP e a Insolvente assumiram determinados princípios e critérios perante o Requerente, que não cumpriram, tendo desrespeitado de forma grosseira os deveres que lhes incumbiam, designadamente os deveres de informação, diligência, lealdade e transparência.
 5.º Como consequência da actuação do BPP e da Insolvente, o Requerente perdeu a grande maioria do seu investimento.
 6.º Foi nesse contexto que o Requerente intentou, em 2009, acção declarativa contra a Insolvente – e outros responsáveis pelos danos que lhe foram causados –, que correu termos na Comarca de Lisboa, Juízo Central Cível, J2, sob o n.º 6164/09.0TVLSB.
 7.º Nessa acção, o Requerente pede que os RR. sejam condenados a indemnizá-lo pelo prejuízo patrimonial cifrado no montante de € 308.149,00, acrescido de juros a partir da citação, e ainda uma indemnização por danos morais, no valor de €50.000,00.
 8.º Tal acção foi julgada improcedente por decisão da 1.ª instância, confirmada na Relação, mas ainda pendente de prazo para interposição de recurso de revista, que vai ser interposto, atendendo a que o Acórdão da Relação contém um voto de vencido.  
 9.º A matéria de facto está definitivamente assente (correspondendo ao que foi apurado na 1.ª instância, apenas com a eliminação de um facto, anulado pela Relação), a qual ora se dá por reproduzida, integrando assim a factualidade ora invocada, a qual é do seguinte teor: (…)
10.º Em face de tal factualidade, a violação dos direitos do ora Requerente reporta-se às seguintes situações: 
• Primeira, a violação dos deveres de informação relativamente aos riscos especiais envolvidos nas operações a realizar, muito particularmente a natureza e o grau de alavancagem prevista ou praticada, o que devia ter acontecido – e não aconteceu – quer aquando da contratação inicial, quer no decurso da vigência da relação estabelecida – cfr. factos provados n.ºs 50, 51, 89, 90, 112 e 113;
• Segunda, a violação dos deveres de informação relativamente à composição da carteira durante o tempo de vigência do contrato, escamoteando ao A. a concentração do investimento em apenas 1 ou 2 títulos – cfr. factos provados n.ºs 52, 91, 112 e 113;
• Terceira, em sede de responsabilidade pré-contratual e contratual, a violação do compromisso assumido de efectuar uma política de investimento assente numa diversificação de activos, de forma a minimizar os riscos da gestão – cfr. factos provados n.ºs 34, 35, 36, 45, 68, 69, 70, 80, 81, 82, 113, 114 e 116;
• Quarta, a violação dos deveres gerais de diligência, lealdade e transparência, observando os ditames da boa fé e garantindo a protecção do cliente não profissional que era o A., os quais se subsumem às situações concretas referidas nos pontos anteriores”.
 (…)
Indicando o autor, quanto à responsabilidade da devedora/insolvente, o seguinte: “[q]uanto à Insolvente P HOLDING, SGPS, a base legal da sua responsabilidade encontra-se no regime do art. 501.º do CSC – segundo o qual a sociedade directora é responsável pelas obrigações da sociedade subordinada – a qual foi, in casu, o intermediário financeiro –, constituídas antes ou depois da celebração de um contrato de subordinação, até ao termo deste, podendo-lhe ser exigida depois de decorridos 30 dias sobre a constituição em mora da sociedade subordinada –, o qual se aplica a uma relação societária de domínio total, nos termos do art. 491.º do CSC, como era o caso da relação estabelecida entre a P HOLDING e o BPP – cfr. factos provados n.ªs 2, 3, 4, 5, 6, 7, 10, 14 e 152” (art. 15.º) [ [2] ].
Concluindo, em sede de “danos patrimoniais” e não patrimoniais”, como segue:
“Em sede de danos patrimoniais, importa ter em conta os factos provados n.ºs 40, 41, 53, 54, 72, 75, 92, 93, 113, 134, 142, 143, 144, 145, 146, 147 e 148, donde se extrai que o prejuízo patrimonial do ora Requerente se acabou por cifrar no montante de € 308.149,00 – a que acrescem juros a partir da citação, nos termos reclamados –, sendo €126.247,00 proveniente da perda na KD, e €181.902,00 proveniente da perda na P F – cfr. factos provados n.ºº 147 e 148” (art. 16.º da petição inicial);
“Em sede de danos não patrimoniais, relevam os factos provados n.ºs 20, 21, 22, 23, 24, 25, 28, 29, 30, 31, 32, 33, 54, 55, 93, 94, 149, 150 e 151, donde se retira que, atendendo particularmente à gravidade do comportamento dos RR. naquela acção, à sua deslealdade em relação ao ora Requerente e ao sofrimento, amargura e revolta que tais factos lhe causaram, é justificado atribuir uma indemnização no valor de € 50.000,00” (art. 17.º da petição inicial).
E que:
“A Insolvente é responsável solidária em relação ao pedido indemnizatório formulado na acção supra indicada, o qual igualmente se vem reclamar em sede desta acção” (art. 18.º), pelo que “deve ser reconhecido o crédito do ora Requerente sobre a Insolvente, nos valores supra especificados nos arts. 16.º e 17.º, uma vez que esta é responsável pelas obrigações do intermediário financeiro, que era uma sua sociedade subordinada, com domínio total” (art. 26.º).
Oposição
A “Comissão Liquidatária do BPP S.A. – em liquidação (“BPP”) intitulando-se “[c]redor devidamente identificado nos autos” [ [3] ], apresentou contestação invocando, em síntese e para além do mais, que:
“Finalmente, atento o fundamento em que o Autor baseia a presente ação, é ainda patente que a este não assiste legitimidade para a mesma”. “Com efeito, não pretendendo o Autor senão efetivar o mecanismo de responsabilização previsto no artigo 501.º do Código das Sociedades Comerciais (…), aplicável ex vi do artigo 491.º do mesmo Código, é manifesto que a presente ação se insere na previsão do artigo 82.º, nº2, alínea c), do CIRE, cabendo, por isso, à Comissão Liquidatária do BPP, igualmente insolvente, a legitimidade exclusiva para a sua propositura” (arts. 18.º e 19.º da contestação).
Conclui que o autor não goza de legitimidade processual, com a consequente absolvição dos réus da instância.
Mais invoca, admitindo a existência de “uma relação societária de domínio total” (art. 26.º da contestação), que não se verificam os pressupostos constitutivos do dever de indemnizar (arts. 37.º a 44.º) e que o opoente, enquanto intermediário financeiro, não violou quaisquer dos deveres que impendiam sobre si (arts. 45.º a 87.º), ocorrendo ainda a “ausência de nexo de causalidade” (arts. 88.º a 117.º) porquanto “a razão pela qual o AUTOR sofreu tais danos foi a crise económica e financeira que surgiu em 2028” (art. 117.º). Conclui que o tribunal não pode reconhecer a existência do crédito de que o autor se arroga titular.   
A Massa insolvente de P holding SGPS, S.A., representada pelo AI, deduziu oposição invocando, em síntese, que “nem antes, nem depois de ter sido declarada insolvente, a R. praticou qualquer acto passível de a fazer incorrer na obrigação de indemnizar ou de restituir” (art. 8.º), nem o autor lhe aponta qualquer conduta dolosa ou negligente, pelo que o autor não pode “transferir para o aqui R., a responsabilidade indemnizatória pelos actos “ilícitos” alegadamente praticados pelos infractores que identifica, na exacta medida em que isso lhe é vedado pelo nº 3 do art. 30.º da CRP” (art. 16.º), concluindo que “a ré é parte ilegítima e nada tem a reconhecer ou a indemnizar ao A” (art. 21.º)
Resposta
Na sequência do despacho de 09-03-2023 e expressamente notificado para o efeito, veio o autor responder como segue:
“1. Relativamente à ilegitimidade ativa do A., porque a responsabilização da Insolvente caberia exclusivamente à Comissão Liquidatária do BPP, nos termos do art. 82.º do CIRE, entendemos não proceder a argumentação expendida, porque tal preceito legal tem obviamente a ver com as ações em que tenha interesse o Insolvente; 
 2. Porém, os prejuízos invocados na ação do presente apenso são do A., e não do Insolvente, pelo que é o A. que detém a legitimidade para reclamar judicialmente aquilo a que se julga com direito;
 3. Relativamente à ilegitimidade passiva da Massa Insolvente da P Holding SGPS, porque nenhuma atuação ilícita teria sido imputada à P Holding, também não procede tal argumentação;
 4. Como consta do art. 9.º da p. i., que reproduz, como factualidade invocada, a factualidade já assente nos autos que ainda correm termos sob o n.º 6164/09.0TVLSB, a responsabilidade da Massa Insolvente da P Holding, como sucessora da P Holding, decorre, a um tempo, da relação de domínio total da P Holding SA, em relação ao BPP, SA, a outro tempo, da circunstância de, no caso em apreço, a P Holding ter assumido a estratégia e a orientação que o BPP assumiu, sendo certo que os principais administradores eram comuns às duas instituições – cfr. n.ºs 2 a 11 do facto 9 da p. i.;
 5. Mais: as estratégias de investimento levadas a cabo pelos veículos de investimento em causa nesta ação (P Financeiras e K) foram assumidas pela P Holding, pelo menos nos anos 2005 a 2007, como sendo da própria P Holding, o que expressamente se invoca e gera a sua responsabilidade direta para os efeitos desta ação;
 6. Ainda neste âmbito, importa recordar que os factos fundamentais em causa da presente ação de verificação ulterior de créditos decorreram, quanto ao BPP, antes da intervenção do Banco de Portugal na gestão do BPP, e muito antes da declaração de insolvência da P Holding; 
 7. Pelos RR. é também sustentado que a responsabilidade da sociedade dominante só pode ser exigida após a constituição em mora da sociedade dominada, o que não se verificaria no caso em apreço; porém, esse é problema que não se coloca, pelo menos desde 01 de dezembro de 2008, data em que o Banco de Portugal, considerando que o BPP se encontrava numa situação de grave desequilíbrio financeiro, decidiu intervir na sua gestão, ficando assim claro que não tinha condições para responder pelas suas obrigações;
 8. Pelo exposto, não procedem as exceções invocadas”. 
Decisão recorrida
Em 17-05-2023 o tribunal, dispensando a realização de audiência prévia, proferiu decisão com o seguinte segmento dispositivo:
Em face do exposto, julgo a excepção de ilegitimidade activa invocada pela ré e, consequentemente, absolvo os réus da instância.
Custas pelo autor, nos termos do artigo 527.º CPC.
Registe e notifique”.
Recurso
Não se conformando, o autor apelou formulando as seguintes conclusões:
“A) Ressalvado o devido respeito, a sentença labora em dois equívocos:
i) Por um lado, a presente ação não se funda apenas no regime do art. 501.º do CSC, mas igualmente na violação direta pela Recorrida dos deveres de informação, diligência, lealdade e transparência a que estava adstrita; 
ii) Por outro lado, mesmo que a responsabilidade da Recorrida decorresse apenas do regime previsto no art. 501.º do CSC, é manifestamente errónea a interpretação normativa adotada pela sentença recorrida relativamente ao art. 82.º, n.º 3 do CIRE, a qual, se adotada, até seria inconstitucional. 
B) O primeiro equívoco resulta de o tribunal ter ignorado que a causa de pedir da presente ação não decorre apenas da relação de domínio total da Recorrida em relação ao BPP, mas também da circunstância de a Recorrida ter desrespeitado, ela própria, os deveres de informação, diligência, lealdade e transparência a que estava vinculada, como expressamente se invocou nos arts. 4.º e 5.º da p. i..
É igualmente isso que decorre dos factos n.ºs 2 a 11 do art. 9.º da p. i..
C) Ou seja, é certo que a presente ação também se funda no regime do art. 501.º do CSC – responsabilidade da sociedade diretora em relação às obrigações da sociedade subordinada –, mas é igualmente verdade que foram invocados factos dos quais se extrai a responsabilidade direta da ora Recorrida em relação aos prejuízos causados ao A..
D) Foi o que expressamente se esclareceu aquando do articulado de resposta às exceções (admitindo-se que, na p. i., a formulação adotada pudesse ter gerado algum equívoco), como consta dos seus n.ºs 4 e 5.
E) De qualquer forma, admita-se, por cautela, que apenas está em causa a responsabilidade da Recorrida, nos termos do art. 501.º do CSC, ou seja, a sua responsabilidade, enquanto sociedade diretora, pelas obrigações da sociedade subordinada (o BPP). 
F) Mesmo que assim fosse, é erróneo o entendimento normativo adotado pelo despacho recorrido em relação ao art. 82.º, n.º 3, c) do CIRE, devidamente conjugado com o art. 6.º, n.º 2 do mesmo código. 
G) Segundo tal entendimento normativo, nas circunstâncias do caso, só o Administrador da Insolvência do BPP é que teria legitimidade para propor uma ação contra os responsáveis legais das dívidas do BPP (in casu, a ora Insolvente), mesmo que o interessado direto nessa ação não seja o BPP, mas um credor do próprio e da ora Insolvente.
H) Convenhamos que tal interpretação normativa não faz qualquer espécie de sentido, porque colocaria nas mãos do Administrador de Insolvência do BPP a propositura de uma ação, relativa a factos da responsabilidade do BPP, seus administradores e sociedade diretora, em que é Interessado e beneficiário direto um terceiro (o ora A.).
 I) Em suma, sem necessidade de outras considerações, parece-nos claro que o art. 82.º, n.º 3 do CIRE não se aplica às ações em que sejam interessadas diretas outras pessoas que não o Insolvente, sob pena de deixar nas mãos da Administração do Insolvente a avaliação do interesse patrimonial direto de tais pessoas (designadamente, credores do Insolvente). 
J) Pelo exposto, entendemos que tal norma legal se aplica àquelas ações em que tão somente o Insolvente seja titular de um interesse merecedor de tutela jurídica.
K) O entendimento normativo dado ao art. 82.º, n.º 3, c) do CIRE, devidamente conjugado com o art. 6.º, n.º 2 do CIRE, no sentido de que só o Administrador de Insolvência tem legitimidade para propor ações contra os responsáveis das dívidas do Insolvente em que também tenham interesse direto credores do Insolvente, é inconstitucional, por violação do direito a uma tutela jurisdicional efetiva, tal como previsto no art. 20.º da CRP. 
L) É que, se assim fosse, ficaria nas mãos do Administrador de Insolvência do Insolvente a proteção dos direitos dos credores do Insolvente, o que padece de qualquer lógica e/ou sentido de justiça. 
M) Mais: esse entendimento normativo consubstanciaria uma verdadeira denegação de justiça. 
N) Uma nota final, tendo em conta a simplicidade da questão jurídica em pauta e a conduta das partes envolvidas, requer-se ainda que, independentemente da decisão quanto ao desfecho do recurso, seja determinada a dispensa do pagamento do remanescente da taxa de justiça, ao abrigo do art. 6.º, n.º 7 do RCP”.
A Comissão Liquidatária do BPP, SA apresentou contra-alegações, formulando as seguintes conclusões:
“I. A causa de pedir refletida nos articulados apresentados pelo Recorrente traduz-se única e exclusivamente na efetivação do regime de responsabilidade civil previsto no artigo 501.º do CSC, aplicável ex vi do artigo 491.º do mesmo Código,
 II. Sendo inadmissível que venha agora o Recorrente tentar ludibriar o Tribunal alegando que a sua causa de pedir, a final, era mais complexa, ou foi em parte “ignorada” ou geradora de equívoco (cfr. artigos 8.º, 9.º, 10.º e 11.º, todos das alegações).
III. Decidiu bem o Tribunal a quo ao considerar que a pretensão do Recorrente se reconduz à responsabilização prevista no artigo 501.º do CSC, concluindo que a presente ação se enquadra na previsão da alínea c) do n.º 3 do artigo 82.º do CIRE, conjugado com o artigo 6.º, n.º 2, do CIRE, pelo que apenas o administrador de insolvência do BPP – in casu, a Comissão Liquidatária – teria legitimidade para propor a mesma, encontrando-se excluída a legitimidade do Recorrente para o efeito.
IV. O disposto no artigo 82.º, n.º 3 do CIRE, e, em particular, a sua alínea c) do CIRE, nada mais é do que um correlato do estatuto do administrador da insolvência, coerente com o papel deste órgão no processo de insolvência, e tem plena justificação constitucional, por se encontrar intrinsecamente relacionado com a garantia do princípio da par conditium creditorum, com ele se pretendendo evitar a pendência, em simultâneo de duas ações contra a sociedade diretora da mesma sociedade, com base no mesmo facto danoso e para reparação do mesmo dano.
Nestes termos, e nos demais de Direito que V. Exas. doutamente suprirão, deverá ser negado provimento ao recurso de Apelação interposto, confirmando-se na íntegra a decisão recorrida que julgou procedente a exceção de ilegitimidade processual ativa invocada pelo Recorrido, e, em consequência, absolveu os Réus da instância”.
Cumpre apreciar.
II. FUNDAMENTOS DE FACTO
Relevam as vicissitudes de natureza processual supra relatadas.
III- FUNDAMENTOS DE DIREITO
1. Sendo o objeto do recurso definido pelas conclusões das alegações, impõe-se conhecer das questões colocadas pela apelante e as que forem de conhecimento oficioso, sem prejuízo daquelas cuja decisão fique prejudicada pela solução dada a outras – arts. 635.º e 639.º do CPC – salientando-se, no entanto, que o tribunal não está obrigado a apreciar todos os argumentos apresentados pelas partes para sustentar os seus pontos de vista, sendo o julgador livre na interpretação e aplicação do direito – art.º 5.º, n.º 3 do mesmo diploma.
No caso, ponderando as conclusões de recurso, impõe-se apreciar:
- Da legitimidade (processual) do autor para a instauração da presente ação, ponderando o disposto no art. 82.º, nº3, alínea c) do CIRE, diploma a que aludiremos quando não se fizer menção de origem.
- Se a interpretação feita na sentença tendo por objeto o citado preceito afronta o princípio do “acesso ao direito e tutela jurisdicional efectiva” consagrado no art. 20.º da Constituição da República Portuguesa (CRP).
Saliente-se que, como resulta do que se expôs, a defesa apresentada pela Massa insolvente da P holding SGPS, S.A.  não passou pela arguição da aludida exceção dilatória, invocando a ré que não assiste ao autor o direito que este se arroga titular perante a ré, ou seja, questionando a legitimidade substantiva do autor.
2. A primeira instância, depois de delimitar concetualmente a figura da legitimidade enquanto pressuposto subjetivo da instância, atentos os critérios enunciados no art. 30.º do CPC, em moldes que não suscitam qualquer controvérsia, deu resposta negativa à (primeira) questão acima formulada, concluindo pela absolvição dos réus da instância.
Considerando que para apreciação dessa exceção dilatória importa desde logo aferir da relação jurídica controvertida tal como é configurada pelo autor e resulta da estrutura da ação, atendendo à pretensão material formulada e à causa de pedir invocada, temos que o tribunal de primeira instância configurou nestes termos a demanda dos réus:
“No caso, o autor intenta a presente acção contra a aqui insolvente, P Holding, SGPS, sustentando a sua responsabilidade no regime do artigo 501.º do CSC – segundo o qual a sociedade directora é responsável pelas obrigações da sociedade subordinada, o qual se aplica a uma relação societária de domínio total, nos termos do artigo 491.º do CSC, como era o caso da relação estabelecida entre a P Holding e o BPP.
A responsabilidade de terceiros prevista nesta norma é uma responsabilidade directa e ilimitada (a sociedade dominante responde pessoal e imediatamente perante os credores da sociedade dominada), de natureza legal (decorrente de uma norma prevista na lei societária e não da desconsideração da personalidade jurídica da sociedade-filha) e objetiva (respondendo a sociedade dominante pelas dívidas da sociedade dependente independentemente da culpa que tenha no não cumprimento) (cfr. Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa, de 19.06.08, p. 260/2007-6 e Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra, de 15.01.2013, p. 2110/09.0T2AVR.C, in www.dgsi.pt).
Verifica-se, assim, que o autor invoca a responsabilidade legal de um terceiro por uma dívida do BPP, que se encontra insolvente, responsabilidade esta que, face à sua natureza, se enquadra no conceito de responsável legal delimitado pelo artigo 6º, n.º2 do CIRE.
Conclui-se, desta forma, que a presente acção se enquadra na previsão da alínea c) do n.º3 do artigo 82º do CIRE, pelo que apenas o administrador de insolvência teria legitimidade para a mesma, encontrando-se excluída a legitimidade do autor para o efeito”.
O primeiro ponto de discórdia do apelante prende-se, exatamente, com a assinalada configuração da causa de pedir.
Vejamos
O autor alega que as duas sociedades insolventes, BPP SA, representado pela respetiva Comissão Liquidatária e a P Holding SGPS SA, representada pelo respetivo administrador da insolvência (devedora/insolvente) se posicionam e relacionam numa estrutura de grupo, sendo esta a sociedade dominante e aquela a sociedade dominada, convocando o disposto no art. 501.º do Código das Sociedades Comerciais (CSC).
Como refere Ana Perestrelo de Oliveira, “a lei reconhece o grupo como uma unidade e reconhece-o como tal muito particularmente para efeitos de responsabilidade. O artigo 501.º do CSC já foi múltiplas vezes visto, mesmo em termos jurisprudenciais, como expressão dessa “unidade de responsabilidade”: a sociedade totalmente dominante responde (ex vi do artigo 491.º do CSC) por todas as dívidas da sociedade-filha, incluindo anteriores à relação de grupo, e qualquer que seja a sua causa ou fonte, em bloco. Essa responsabilidade justifica-se porque a sociedade- mãe tem poder de instrução sobre a sociedade-filha que pode ser utilizado num sentido desvantajoso para ela, desde que haja contrapartida para a sociedade-mãe ou para outra sociedade do grupo (artigo 503.º). Daí a responsabilidade prevista no artigo 501.º. O que esta norma significa é que o grupo é tratado pela lei como uma unidade de responsabilidade” [ [4] ].
Ora, em face dos articulados do autor, temos por inequívoco que a única fonte de responsabilidade da ora devedora/insolvente se funda nessa especial relação de grupo que o autor invoca, a isso se reconduzindo a causa de pedir.
Assim, o autor/apelante começa por indicar a factualidade alusiva à relação de grupo (cfr. os arts. 1.º, 2.º, 9.º, nºs 2 a 5 e 10), alude, depois, fundamentalmente, à relação contratual estabelecida com o BPP SA, materializada nos investimentos efetuados e destino desses investimentos (cfr. o art. 9.º, números 16 a 28, 32 a 65, 68 a 75, 91, 95 a 100 e 106 a 115) e prejuízos que sofreu, patrimoniais e não patrimoniais (cfr. o art. 9.º, números 146 a 151).
Concluindo, quanto ao BPP SA, que “[e]m face de tal factualidade, a violação dos direitos do ora Requerente reporta-se às seguintes situações: 
• Primeira, a violação dos deveres de informação relativamente aos riscos especiais envolvidos nas operações a realizar, muito particularmente a natureza e o grau de alavancagem prevista ou praticada, o que devia ter acontecido – e não aconteceu – quer aquando da contratação inicial, quer no decurso da vigência da relação estabelecida – cfr. factos provados n.ºs 50, 51, 89, 90, 112 e 113;
• Segunda, a violação dos deveres de informação relativamente à composição da carteira durante o tempo de vigência do contrato, escamoteando ao A. a concentração do investimento em apenas 1 ou 2 títulos – cfr. factos provados n.ºs 52, 91, 112 e 113;
• Terceira, em sede de responsabilidade pré-contratual e contratual, a violação do compromisso assumido de efectuar uma política de investimento assente numa diversificação de activos, de forma a minimizar os riscos da gestão – cfr. factos provados n.ºs 34, 35, 36, 45, 68, 69, 70, 80, 81, 82, 113, 114 e 116;
• Quarta, a violação dos deveres gerais de diligência, lealdade e transparência, observando os ditames da boa fé e garantindo a protecção do cliente não profissional que era o A., os quais se subsumem às situações concretas referidas nos pontos anteriores” (art. 10.º) (sublinhado nosso).
E concluiu, quanto à ora devedora, indicando como segue:
“Quanto à Insolvente P HOLDING, SGPS, a base legal da sua responsabilidade encontra-se no regime do art. 501.º do CSC – segundo o qual a sociedade directora é responsável pelas obrigações da sociedade subordinada – a qual foi, in casu, o intermediário financeiro –, constituídas antes ou depois da celebração de um contrato de subordinação, até ao termo deste, podendo-lhe ser exigida depois de decorridos 30 dias sobre a constituição em mora da sociedade subordinada –, o qual se aplica a uma relação societária de domínio total, nos termos do art. 491.º do CSC, como era o caso da relação estabelecida entre a P HOLDING e o BPP – cfr. factos provados n.ºs 2, 3, 4, 5, 6, 7, 10, 14 e 152” (art. 15.º da petição inicial).
Em suma, a afirmação vertida nas conclusões de recurso, no sentido de que “a presente ação não se funda apenas no regime do art. 501.º do CSC, mas igualmente na violação direta pela Requerida dos deveres de informação, lealdade e transparência a que estava adstrita”, tendo o tribunal de primeira instância laborado em “equívoco” – cfr. as conclusões 7ª a 10.º – não é conforme à realidade que a petição inicial evidencia, sendo que a resposta à contestação também não aduz qualquer elemento factual relevante em abono daquela tese.
É elucidativo, aliás, que o autor/apelante inicie a petição inicial indicando que “[e]m 2005 e 2007, o Requerente foi aliciado pelo BPP a realizar investimentos em veículos de investimento, em concessões rodoviárias e no sector financeiro, respectivamente” (art. 3.º) (sublinhado nosso), passando imediatamente para a afirmação de que:
“O BPP e a Insolvente assumiram determinados princípios e critérios perante o Requerente, que não cumpriram, tendo desrespeitado de forma grosseira os deveres que lhes incumbiam, designadamente os deveres de informação, diligência, lealdade e transparência” (art. 4.º);
- “Como consequência da actuação do BPP e da Insolvente, o Requerente perdeu a grande maioria do seu investimento” (sublinhados nossos) (art. 5.º).
 Alegando de forma notoriamente conclusiva, sem cuidar de, posteriormente, alicerçar essa conclusão em qualquer facto relativamente à ora devedora, salvo, exatamente, no âmbito da invocada relação de domínio.
Em suma, ao contrário do que o apelante indica em sede de recurso, é exclusivamente em função da consideração da unidade do grupo formado entre as duas sociedades, segundo o autor, que a questão suscitada no processo, alusiva à legitimidade ativa, deve ser ponderada, concluindo-se que, tendo sido declarada a insolvência das duas sociedades e inexistindo qualquer massa insolvente comum ou liquidação conjunta o autor, concorrendo à massa insolvente do BPP SA, quer igualmente concorrer à massa insolvente da P Holding, SGPS, ora devedora, por via da presente ação de verificação ulterior de créditos.
Assentamos, pois, que a delimitação da causa de pedir feita pela primeira instância se mostra correta, ao contrário do que o apelante propugna em sede de recurso.
3. No Título IV (Efeitos da declaração de insolvência), Capítulo I (Efeitos sobre o devedor e outras pessoas), o legislador dispõe, no art. 82.º, sob a epígrafe “[e]feitos sobre os administradores e outras pessoas” como segue:
“1 - Os órgãos sociais do devedor mantêm-se em funcionamento após a declaração de insolvência, não sendo os seus titulares remunerados, salvo no caso previsto no artigo 227.º
2 - Os titulares dos órgãos sociais podem renunciar aos cargos logo que procedam ao depósito de contas anuais com referência à data da decisão de liquidação em processo de insolvência.
3 - Durante a pendência do processo de insolvência, o administrador da insolvência tem exclusiva legitimidade para propor e fazer seguir:
a) As acções de responsabilidade que legalmente couberem, em favor do próprio devedor, contra os fundadores, administradores de direito e de facto, membros do órgão de fiscalização do devedor e sócios, associados ou membros, independentemente do acordo do devedor ou dos seus órgãos sociais, sócios, associados ou membros;
b) As acções destinadas à indemnização dos prejuízos causados à generalidade dos credores da insolvência pela diminuição do património integrante da massa insolvente, tanto anteriormente como posteriormente à declaração de insolvência;
c) As acções contra os responsáveis legais pelas dívidas do insolvente.
4 - Compete unicamente ao administrador da insolvência a exigência aos sócios, associados ou membros do devedor, logo que a tenha por conveniente, das entradas de capital diferidas e das prestações acessórias em dívida, independentemente dos prazos de vencimento que hajam sido estipulados, intentando para o efeito as acções que se revelem necessárias.
5 - Toda a ação dirigida contra o administrador da insolvência com a finalidade prevista na alínea b) do n.º 3 apenas pode ser intentada por administrador que lhe suceda.
6 - As ações referidas nos n.ºs 3 a 5 correm por apenso ao processo de insolvência”.
Centrando-nos, para o que ora interessa, na regulação estabelecida no número 3, a norma tem cariz estritamente processual, colocando-se em paralelo com outras disposições que consagram regras especiais de legitimidade processual (quer ativa quer passiva) [ [5] ] concordando-se, pois, com Carvalho Fernandes e João Labareda quando referem que “estão apenas aqui contempladas questões de ordem adjectiva e não substantiva. Entendemos assim significar que a lei apenas se ocupa de matéria de ordem processual, uma vez verificadas certas situações de responsabilidade que têm por fonte outros preceitos. Em suma, trata-se de fixar a legitimidade do administrador da insolvência para, na pendência do respetivo processo, propor e fazer seguir determinadas ações”, devendo dar-se aplicação a este comando “sempre que alguma norma legal estabelecer a responsabilidade de terceiros por dívidas do insolvente” [ [6] ].
Alcança-se a ratio da norma, que obviamente se harmoniza com outras estabelecidas no CIRE e relacionadas com a transferência dos poderes de administração e disposição do devedor insolvente para o AI (art. 81.º), as funções do AI e seu exercício (art. 55.º) e a sua responsabilidade (art. 59.º), num contexto em que a finalidade do processo de insolvência, com a estrutura de uma execução universal é, em primeira linha, assegurar a satisfação dos interesses dos credores (art. 1.º, nº1), sendo que durante a pendência do processo de insolvência, os “credores da insolvência apenas poderão exercer os seus direitos em conformidade com os preceitos” do CIRE (art. 90.º).
A regra tem um duplo alcance porquanto a legitimidade ativa exclusiva assim conferida ao AI pela alínea c) do número 3 do art. 82.º para instaurar as ações implica que do lado passivo estejam, apenas, “os responsáveis legais pelas dívidas do insolvente”, o que nos remete, como se assinalou na decisão recorrida, para o art. 6.º (“[n]oções de administradores e de responsáveis legais”), nos termos do qual “[p]ara efeitos deste Código, são considerados responsáveis legais as pessoas que, nos termos da lei, respondam pessoal e ilimitadamente pela generalidade das dívidas do insolvente, ainda que a título subsidiário” (número 2). Daí que as ações a que se reporta a referida alínea c) são, em abstrato, aquelas que aproveitam à generalidade dos credores da insolvente, não visando o benefício de qualquer credor em particular.  
Para a resolução da questão colocada, o tribunal de primeira instância convocou o acórdão do TRP de 04-04-2022 [ [7] ] acórdão em que, com referência ao número 3 do citado preceito (art. 82.º), se refere:
“O transcrito inciso normativo contempla, pois, aquelas ações que são (e devam ser) intentadas em benefício direto da generalidade dos credores ou em prol do devedor e, por via disso, suscetíveis de aproveitar, reflexa ou indiretamente, à generalidade desses mesmos credores enquanto titulares de interesses individuais, mas homogéneos.
Daí a solução legal da concentração da legitimidade no administrador da insolvência[8], com o que se pretende evitar que a propositura de ações de responsabilidade pelos mais diversos credores – potencialmente muito numerosos – se reflita no processo de insolvência e introduza um fator de complexificação e atraso na satisfação dos credores da entidade insolvente, constituindo, outrossim, mais uma explicitação no domínio do processo insolvencial do princípio par conditio creditorum (consagrado, em termos gerais, no nº 1 do art. 604º do Cód. Civil) com o que se visa impedir que algum credor possa obter, fora desse processo, uma satisfação mais rápida ou mais completa, em prejuízo dos restantes credores[9].
Por conseguinte, os objetivos que justificam a atribuição dessa legitimidade exclusiva são essencialmente dois: (i) um objetivo de concentração processual, na medida em que se evita a proliferação de ações e assegura-se economia processual, correndo a ação por apenso ao processo de insolvência; (ii) igualdade entre os credores, visando-se garantir que todos eles são satisfeitos na mesma medida através do património dos responsáveis.
O propósito do legislador foi, assim, claro no sentido de “transferir” para o administrador da insolvência os poderes para propor todas as ações contra terceiros que possam influenciar, de forma direta ou reflexa, o valor da massa insolvente, incluindo, portanto, a ação em que se pretenda acionar a responsabilidade de sociedade dominante ao abrigo do citado art. 501º, a qual assume inequivocamente a qualidade de “responsável legal” para os efeitos do disposto no nº 2 do art. 6º do CIRE[10].
Essa transferência de competências é coerente com o papel deste órgão no processo de insolvência, o qual assume o controlo da massa insolvente e está incumbido de proceder à sua administração e liquidação para repartir o respetivo produto final pelos credores de acordo com o mencionado princípio da igualdade dos credores. Daí que, sob esse enfoque, não faria sentido permitir que, no decurso do processo de insolvência da devedora, algum dos credores pudesse ser pago antes dos demais ou mesmo em condições mais vantajosas, sem justificação objetiva, mormente por recurso ao património de uma “responsável legal” pelas dívidas daquela.
Consequentemente, enquanto estiver pendente o processo de insolvência da sociedade devedora, encontra-se a autora privada de legitimidade ativa para propor ou fazer seguir ação balizada pelos apontados elementos objetivos da instância, na justa medida em que, filiando juridicamente a sua concreta pretensão de tutela jurisdicional no art. 501º do Cód. das Sociedades Comerciais, a presente ação reconduz-se inequivocamente à fattispecie da al. c) do nº 3 do art. 82º do CIRE” [ [8] ] [ [9] ].
Por muito impressiva que seja a fundamentação expressa no referido acórdão do TRP de 04-04-2022, afigura-se-nos que essa interpretação (literal) não pode ser feita abstraindo-nos das circunstâncias do caso, sob pena de nos conduzir a soluções que, em nosso entender, o legislador não quis, subvertendo-se a ratio do regime legal: se, por um lado, é conferido ao credor a legitimidade (substantiva) para acionar a sociedade dominante (art. 501.º do CSC, ex vi do art. 491.º do mesmo diploma), por outro, retira-se a legitimidade (processual) para, por si só, diretamente, exercer esse direito de ação, isto é, coloca-se um condicionamento ao exercício do direito que temos por muito discutível, quando entendido com a amplitude sufragada no referido aresto [[10] ] [ [11] ]; particularmente se considerarmos que não se discute que aquele que se arroga a qualidade de credor da sociedade dominante porquanto solidariamente responsável pelas dívidas da sociedade dominada (art. 501.º do CSC) está (processualmente) legitimado para requerer a declaração de insolvência da sociedade dominante nos termos do art. 20.º [ [12] ].
Justifica-se, pois, uma interpretação que tenha em conta o sistema em que o preceito se insere, em ordem a considerar que assiste ao credor a faculdade de instaurar a ação judicial contra o responsável legal pelas dívidas do insolvente, agindo, pois, em defesa dos seus interesses e exercendo o direito que, substantivamente, a lei lhe confere, nos casos em que se patenteia a inércia do administrador da insolvência em exercer os poderes que lhe são conferidos pelo referido artigo, quando não a sua oposição, como também pode acontecer; agindo, então, em substituição do administrador, não deixa de defender apenas o seu direito – nem sequer está em condições, obviamente, de pugnar pelos direitos de outros credores –, aproveitando-lhe, pois, exclusivamente, o resultado da ação e não já a todos os credores, como aconteceria se fosse o administrador da insolvência a atuar.
Adere-se, assim, à posição que é defendida por Carvalho Fernandes e João Labareda, em face do art. 82.º, número 2, na redação vigente à data, anterior à introduzida pela Lei 16/2012 de 20-04 – mas que tem inteira correspondência com a atual redação do número 3 do preceito – [ [13] ] quando, a propósito do regime particular do processo de insolvência e centrando a atenção na referida alínea c), referem:
“O primeiro objectivo alcançado com a regra do art. 82.º, nº2, al. c), é a atribuição de legitimidade processual para agir a quem normalmente não a teria, visto não ser titular nem representante do titular do direito a exercer. /Como efeito, como se viu, a responsabilidade, nestas situações, reconduz-se à sujeição do vinculado ao cumprimento das obrigações do devedor (principal) insolvente, contraídas perante terceiros. Consequentemente, o direito à satisfação da obrigação incumprida pertence ao titular do crédito correspondente sobre o devedor e projecta-se sobre o responsável legal. /O direito ao cumprimento é, pois, em palavras mais simples e directas, pertença dos credores. /O administrador da insolvência não é representante dos credores. Por isso, e por não ser o titular dos créditos, não poderia agir contra os responsáveis legais se não fosse a normas em análise./Ora, precisamente, o que a al. c) em questão faz é atribuir legitimidade ao administrador para actuar./Vai, porém, mais longe e, visto o teor literal do corpo do nº2, confere-lhe esse poder em exclusivo, enquanto durar o processo./Esta solução de exclusividade merece reparo./A sua ratio normativa parece assentar na seguinte ordem de considerações./Uma vez que a responsabilidade legal beneficia a generalidade dos credores e respeita à globalidade das dívidas – ou, pelo menos, de um núcleo muito significativo delas –, a reserva da legitimidade processual ao administrador salvaguarda a igualdade de tratamento. A um tempo, permite o benefício comum e obvia ao efeito prior in tempore, potior in iure. /Esta justificação não devia conduzir, porém, necessariamente à solução consagrada no preceito. A nosso ver, o regime é excessivo. Em verdade, bastaria, para alcançar o objectivo, atribuir também legitimidade ao administrador, mantendo, simultaneamente, a dos titulares dos direitos, ainda que se pudesse limitar a actuação destes, quando o administrador tivesse já tomado a iniciativa de instauração da acção./Em suma, seria afinal suficiente que o legislador consagrasse, nesta matéria, solução equivalente à estatuída em sede de impugnação pauliana de actos do insolvente prejudiciais à massa insolvente, quando o administrador da insolvência os haja declarado resolvidos (n.º 1 do art 127.º do CIRE)”.
Aludindo, depois, à natureza exclusivamente processual da norma aludida, nos moldes a que já se fez referência e no sentido de que tal norma não impacta “sobre a substância da situação jurídica a que respeita, nem sobre os seus requisitos ou efeitos, para além do que estritamente se refere à legitimidade processual para a acção contra os responsáveis legais”, continuam os autores:
“(…) A questão a resolver é a de saber se, tenha ou não o administrador invocado motivos de suporte à sua atitude, os credores ficam amarrados à decisão dele, face ao teor do corpo do art. 82.º.
Embora o assunto, é claro, não possa considerar-se pacífico, propendemos seriamente a responder negativamente, pelo conjunto de razões que seguidamente se expõem. (…) Não se antevê, contudo, nem razoavelmente pode anuir-se em que esse objetivo, compreensível e até salutar, redunde, afinal de contas, em prejuízo de quem se pretendia acautelar, por simples omissão do administrador. /Uma tal solução seria incompatível com a ratio legis e poderia, aliás, frustrar, em definitivo, a satisfação dos interesses dos credores, quanto mais não fosse por favorecer procedimentos do responsável vocacionados para a dissipação do seu património, em ordem a acautelar investidas dos credores posteriores ao termo do processo de insolvência. (…) /Vale dizer, o que se conhece do sistema jurídico aponta no sentido oposto àquele que resultaria quando se concluísse a impossibilidade de os credores actuarem se o administrador não o fizer./ Realmente a lei não concede com uma mão o que exclui ou limita com a outra. E, se é possível dizê-lo, atentos os princípios gerais, muito menos o faz atribuindo no plano substantivo o que retira por via processual! (…)/Isto dito, temos por apropriada a solução que, para o que aqui interessa, se enuncia nos seguintes termos: quando o administrador da insolvência não fizer uso da atribuição que lhe é conferida pelo art. 82.º, nº2, al) c) do CIRE, pode qualquer credor da insolvente, com direito a obter o pagamento do seu crédito à custa do sócio único, por virtude da responsabilidade legal que o onera, exercer a respectiva acção em substituição do administrador faltoso./ Uma vez, porém, que a intervenção do credor só é possível porque falhou, com carácter relevantemente tido por definitivo, a iniciativa processual do administrador da insolvência, o credor tem de demonstrar, como pressuposto da sua legitimidade, que se esgotaram os meios ao seu dispor para a fazer actuar no quadro normal da lei”.                
E, por fim, “quanto ao destino do resultado da ação assim proposta, se lhe for dado provimento”, os autores propõem que “o resultado da acção de responsabilidade por dívidas da sociedade, movida pelo credor, por inércia do administrador da insolvência, aproveita, directa e exclusivamente, ao autor” e não aos demais credores, porquanto “uma vez que o credor exerce então somente o seu próprio direito, não pode, sequer, razoavelmente, ver-se despojado do resultado em benefício dos demais credores”, credores que, “poderão agir por si ou concertadamente, defendendo, correspondentemente, o seu próprio direito. Não o fazendo alguns deles, age, certamente, no âmbito da sua livre disponibilidade. Mas, para além disso – e também por isso – cada credor que actue só o pode fazer dentro das forças do seu próprio direito, pois, na falta de norma especial da lei que lho confira, não dispõe de título habilitante ao exercício dos direitos que cabem aos outros credores” [ [14] ] [ [15] ].
E nem se diga, como parece considerar a apelada nas contra-alegações, a propósito da suscitação, pelo autor/apelante, da inconstitucionalidade da interpretação normativa feita pela primeira instância que a “atuação do administrador da insolvência é suscetível de gerar responsabilidade civil” (art. 53.º das contra-alegações), que a “atividade do administrador da insolvência é objeto de fiscalização pelo Tribunal” (art. 55.º) e que o administrador da insolvência pode “ser diretamente responsabilizado se não agir de forma criteriosa e diligente” (art. 56.º).
É certo que, nos termos do art. 58.º, a atuação do administrador da insolvência é fiscalizada pelo juiz, que pode proceder à sua destituição com fundamento em justa causa (art. 56.º) e também é certo que o autor/apelante, perante a inércia do administrador da insolvência, pode fazer valer os seus direitos instaurando ação tendente a efetivar a responsabilidade civil do administrador pelos prejuízos que a sua atuação (ou a ausência dela) possa ter causado, nos termos do art. 59.º [ [16] ], mas não temos por seguro que tais mecanismos se possam considerar como alternativa adequada e suficiente para a tutela do (legítimo) interesse do credor que, arrogando-se titular de um direito subjetivo que a lei lhe reconhece, com base no art. 501.º do CSC, se vê impedido, a adotar o entendimento sufragado na decisão recorrida, de instaurar a respetiva ação judicial diretamente contra quem considera ser responsável pela satisfação do seu direito de crédito.
Razão pela qual se conclui em sentido divergente daquela decisão, sendo que, no caso, resulta à evidência da contestação apresentada pela comissão liquidatária do BPP SA que este órgão de administração nunca intentaria, ao abrigo do art. 82.º, nº3, alínea c), qualquer ação contra a ora devedora insolvente, enquanto sociedade dominante e nos moldes equacionados pelo autor porquanto, basicamente, sustenta inexistir fundamento para responsabilizar qualquer das sociedades – cfr., nomeadamente, os arts. 30.º a 32.º da contestação. Ou seja, está sobejamente demonstrado que, na situação em apreço, ao autor não restaria qualquer outro meio processual senão, diretamente, a instauração da presente ação, pois o órgão de administração da invocada sociedade dominada – o BPP SA – seguramente não o faria.
Em suma, entende-se que, no circunstancialismo que o processo evidencia, o autor tem legitimidade (processual) para a instauração da ação.
3. Assim sendo, fica prejudicada a apreciação da questão de (in)constitucionalidade suscitada pelo apelante.
4. O apelante peticionou, em “nota final”, que seja determinada a dispensa do pagamento do remanescente da taxa de justiça, ao abrigo do art. 6.º, n.º 7 do Regulamento das Custas Processuais (RCP).
Dispõe o art. 6º, nº7 do RCP que “[n]as causas de valor superior a (euro) 275 000, o remanescente da taxa de justiça é considerado na conta a final, salvo se a especificidade da situação o justificar e o juiz de forma fundamentada, atendendo designadamente à complexidade da causa e à conduta processual das partes, dispensar o pagamento”. Como se referiu no acórdão do STJ de 12-12-2013 [ [17] ] “[a] norma constante do nº7 do art. 6º do RCP deve ser interpretada em termos de ao juiz ser lícito dispensar o pagamento, quer da totalidade, quer de uma fracção ou percentagem do remanescente da taxa de justiça devida a final, pelo facto de o valor da causa exceder o patamar de €275.000, consoante o resultado da ponderação das especificidades da situação concreta (utilidade económica da causa, complexidade do processado e comportamento das partes), iluminada pelos princípios da proporcionalidade e da igualdade”.
À presente ação foi atribuído o valor correspondente ao crédito reclamado (358 149,00€), tendo o apelante pago de taxa de justiça inicial, aquando da apresentação da petição inicial (408,00€) e aquando da instauração do recurso (816,00€), sendo que os requeridos contestantes nada pagaram aquando da apresentação da oposição, nem pela apresentação de contra-alegações (Comissão liquidatária do BPP SA) porquanto tais entidades gozam do benefício do apoio judiciário; ou seja, o custo da ação, para o requerente/apelante, importou em 1 224,00€.
As questões a decidir não são simples, sendo que a que foi resolvida nem sequer se mostra amplamente debatida na jurisprudência permitindo, pois, que esta Relação aprecie tendo como suporte essa jurisprudência, com a inerente simplificação da decisão.
Quanto à conduta processual das partes, pautou-se pela lisura de procedimentos, como é devido e exigível.
No contexto apontado não vislumbramos razões que permitam considerar verificado, nesta fase, o condicionalismo aludido, sendo certo que o apelante não aduziu qualquer motivo específico para fundamentar a sua pretensão, limitando-se a reproduzir o texto legal.
Não se justifica, pois, a pretendida dispensa.
Quanto à responsabilidade pelo pagamento das custas devidas, a mesma deve recair sobre a Comissão liquidatária do BPP SA e a massa insolvente da devedora, sem prejuízo do benefício aludido, nos termos do art. 527.º, nº1 do CPC.
*
Pelo exposto, julgando procedente a apelação, revoga-se a decisão recorrida e decide-se que o autor tem legitimidade processual para instaurar a presente ação.
Custas pelos apelados Comissão liquidatária do BPP SA e pela massa insolvente da devedora.
Notifique.

Lisboa, 19-03-2024
Isabel Fonseca
Paula Cardoso
Manuela Espadaneira Lopes

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[1] A ação deu entrada em 02-05-2017.
[2] A ação referida foi intentada contra P Holding SGPS, S A, JR, SV e contra a D e Associados, SROC, S. A..
Nessa ação foi proferida sentença, objeto de recurso pata a Relação, que manteve a decisão por acórdão de 06-04-2017; interposto recurso de revista, o STJ proferiu acórdão, em 08-11-2018, com o seguinte segmento dispositivo: “Nestes termos, e presente o disposto na parte final do n.º 3 do art. 682.º do CPC, decide-se anular o acórdão recorrido, determinando-se a remessa dos autos à Relação, a fim de que, mediante os procedimentos tidos por convenientes, seja eliminada a apontada contradição factual, inviabilizadora da solução jurídica do pleito”, sendo que a contradição se reportava, segundo esse aresto, à matéria dada como assente com os números 101 e 113, alusivos, respetivamente, aos números 136 e 120 da Base Instrutória – cfr. o documento junto pelo autor em 12-03-2019.
Consta do referido acórdão do TRL que se mostram provados os seguintes factos:
“1. O BPP existe, enquanto banco devidamente licenciado pelo Banco de Portugal, desde 1996.  (alínea A) da Matéria de Facto Assente)
 2. O BPP, S. A. é detido integralmente por P Holding SGPS, S. A. (aqui 1.ª Ré), o que acontece desde 2004, quando foi reorganizada a estrutura societária do grupo, passando os investidores do banco a ser titulares de posições de capital na holding, que é a 1.ª R. (P Holding SGPS, S. A.).
(alínea B) da Matéria de Facto Assente)
 3. A 1.ª Ré (P Holding SGPS, S. A.) é holding do grupo que integra o BPP S. A..
(artigo 18.º da Base Instrutória)
 4. O BPP S. A. e a 1.ª Ré (P Holding SGPS, S. A.) integram o mesmo grupo, obedecendo à mesma orientação estratégica e aparecendo assumidamente, em termos públicos, como entidades que actuam sob essa mesma orientação. (artigo 5.º da Base Instrutória)
 5. Os relatórios de gestão do BPP, S. A. e da 1.ª Ré (P SGPS, S. A.) assumiam essa identificação com a mesma orientação estratégica, continham elementos comuns e associavam a imagem de ambas as entidades como fazendo parte de um mesmo conjunto. (artigo 6.º da Base Instrutória)
 6. JR (aqui 2.º Réu) foi presidente do Conselho de Administração do BPP, S. A. e da 1.ª Ré (P Holding SGPS, S. A.), sendo-o no BPP, S. A. até 2008 (quando ocorreu a intervenção na sua gestão pelo Banco de Portugal). (alínea H) da Matéria de Facto Assente)
 7. O 2.º Réu (JR), SV (aqui 3.º Réu) e FL foram administradores executivos dos BPP, S. A. e da 1.ª Ré (P Holding SGPS, S. A.) pelo menos desde 2005 até à data da intervenção que viria a ser realizada no mesmo pelo Banco de Portugal. (alínea C) da Matéria de Facto Assente) (…).
10. Desde a fundação do BPP, S. A. e da 1.ª Ré (P Holding SGPS, S. A.), e até à intervenção do Banco de Portugal naquele primeiro, o 2.º Réu (JR) foi o principal responsável pelas opções estratégicas de gestão dessas instituições. (artigo 1.º da Base Instrutória) (…)
14. No dia 01 de Dezembro de 2008, o Banco de Portugal – considerando que o BPP se encontrava numa situação de grave desequilíbrio financeiro – decidiu intervir na sua gestão, designando administradores; e dispensando o Banco, durante três meses, do cumprimento pontual das suas obrigações, situação que foi sendo objecto de sucessivas prorrogações até 01 de Dezembro de 2009. (alínea F) da Matéria de Facto Assente)
15. AA, o 3.º Réu (SV) e FL mantiveram-se como administradores do BPP, S. A.. (alínea G) da Matéria de Facto Assente) (…)
152. O património social do BPP S.A. é insuficiente para satisfazer os seus credores, uma vez que o seu passivo excede o seu activo. (artigo 105.º da Base Instrutória)”.
A Comissão liquidatária do BPP SA indicou na sua contestação que, tanto quanto é do seu conhecimento, já foi peticionada a extinção da instância por inutilidade superveniente da lide atenta a declaração de insolvência da P Holding (art. 15.º).     
[3] Como resulta da sentença de verificação e graduação de créditos proferida em 05-12-2022 e já transitada em julgado, foi julgado verificado e graduado um crédito da opoente. Sendo o apelado BPP SA, representado pela respetiva Comissão Liquidatária, credor da P Holding SGPS SA, é indiscutível a sua legitimidade para contestar a presente ação, que também foi dirigida, como se impunha, contra os credores da devedora/insolvente P Holding SGPS SA.
[4]Insolvência nas sociedades em relação de grupo: de novo pela consolidação substantiva das massas patrimoniais" in I Congresso de Direito da Insolvência, 2013, Coimbra, Almedina, p. 301.   
[5] No âmbito do processo civil, a título meramente exemplificativo, cfr. os arts. 31.º e 34.º.
[6] CIRE Anotado, 2015, Lisboa, Quid Juris, pp. 418- 419.
[7] Processo: 5038/20.9T8MTS.P1 (Relator: Miguel Baldaia de Morais), acessível in www.dgsi.pt, como todos os demais a que aqui se aludir, salientando-se que, com referência a esta questão e no âmbito da indicada alínea c), não se conhece qualquer outro aresto publicado.
Com interesse, mas a propósito da alínea b) do número 3 do art. 82.º cfr. o acórdão do TRL de 17-03-2022, processo: 18962/16.4T8LSB-A. L1-6 (Relator: Maria de Deus Correia).
[8] Estava em causa, nesse processo, ação intentada num juízo cível, ação pela qual a sociedade autora demandava outra sociedade, enquanto sociedade dominante e alegadamente responsável pelo pagamento de dívidas da sociedade dominada, tendo esta sido, entretanto, declarada insolvente, invocando a autora que no âmbito da insolvência da sociedade dominada seria “extremamente reduzida a possibilidade de no âmbito da insolvência vir a ser ressarcida pelo valor de tal crédito”, devendo a importância peticionada “ser liquidada pela ré por se encontrar numa relação de domínio com a insolvente”. Ora, o TRP concluiu que:
“I - A sociedade dominante, porque responsável pessoal e ilimitadamente pela generalidade das obrigações da sociedade dominada, é considerada “responsável legal” para os efeitos do disposto no nº 2 do artigo 6º do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas.
II - Por conseguinte, por mor do estabelecido na alínea c) do nº 3 do artigo 82º desse mesmo diploma legal, durante o processo de insolvência da sociedade dominada, o administrador da insolvência tem exclusiva legitimidade para propor e fazer seguir as ações judiciais contra a sociedade dominante na qualidade de responsável legal pelas dívidas daquela”.
A situação é, pois, inteiramente similar à destes autos, com a única particularidade que, aqui, quer a sociedade dita dominante (P holding SGPS, S.A.),  quer a sociedade dita dominada ( BPP SA) foram (ambas) declaradas insolventes.
[9] No mesmo sentido, ainda que sem grande desenvolvimento, parece apontar Ana Perestrelo de Oliveira, “A insolvência nos grupos de sociedades: notas sobre a consolidação patrimonial e a subordinação de créditos intragrupo”, na Revista de Direito das Sociedades, 2009, Ano I, nº4, Coimbra: Almedina, pp. 995-1028, em particular pp. 1017-1018. Refere a autora, a propósito da “insolvência da sociedade -filha sem insolvência da sociedade-mãe: a limitação do acesso directo dos credores”:
“Não surgem dificuldades de relevo nesta hipótese, cabendo apenas recordar que, nos termos do artigo 82.º/2, c), do CIRE, durante a pendência do processo de insolvência, o administrador da insolvência tem exclusiva legitimidade para propor e fazer seguir as acções contra os responsáveis legais pelas dívidas do insolvente, as quais correm por apenso, nos termos do n.º5”.         
[10] A jurisprudência do TC tem distinguido, no campo dos direitos fundamentais, as normas restritivas de direitos e as normas meramente condicionadoras. No acórdão nº 445/2021, de 23-06-2021, processo n.º 749/2020 (Relator: José António Teles Pereira), acessível no site respetivo, tirado a propósito do problema da constitucionalidade dos prazos de caducidade para o exercício do direito de ação de investigação da paternidade, lê-se:
“Nessa linha de abordagem, o citado Acórdão n.º 99/1988, invocando uma classificação estabelecida na doutrina, começou por distinguir, no seio das normas legais respeitantes a direitos fundamentais, as «normas restritivas» de direitos e as normas «condicionadoras» do respetivo exercício, sustentando que, enquanto as primeiras «encurtam ou estreitam o (…) conteúdo e alcance [do direito fundamental], as segundas «não visam aquele objetivo da redução das faculdades ou potencialidades integradoras do direito em causa», limitando-se, antes, a «definir pressupostos ou condições do seu exercício», muitas vezes essenciais à própria efetivação do direito, como era o caso do direito ao reconhecimento jurídico da paternidade biológica”.
[11] Na doutrina, cfr. José Carlos Vieira de Andrade, Os Direitos Fundamentais na Constituição Portuguesa de 1976, 2012, Coimbra Almedina, pp. 207-208; o autor alude que há preceitos constitucionais “que conferem ao legislador poderes (deveres) de concretização ou de conformação do conteúdo dos direitos, outros impõem uma regulação ou uma proteção do seu exercício, ao passo que outros ainda autorizam uma legislação geral restritiva para determinadas finalidades ou limitações estatutárias específicas. Contudo, independentemente da referência expressa à intervenção do legislador, há preceitos que implicam, por interpretação, uma regulação legal necessária para o exercício de direitos, designadamente normas de organização e procedimento, enquanto outros devem ser entendidos como proibições de intromissão legislativa, ao que acresce a conflitualidade sistemática (e sistémica) entre direitos e entre direitos e valores comunitários, que pode impor ou fundar a intervenção legislativa na resolução de uma multiplicidade de questões de fronteira./ Daí que se torne indispensável, a partir das formulações e das implicações constitucionais, distinguir a intenção e o alcance da legislação ordinária reguladora da matéria de direitos fundamentais: embora o artigo 18.º apenas refira expressamente a categoria das leis restritivas, as leis podem ainda ser (ou pretender ser) ordenadoras, condicionadoras, interpretativas, (delimitadoras ou concretizadoras), constitutivas (ou conformadoras), protetoras, promotoras e ampliativas dos direitos fundamentais”.        
[12] Em casos de pedido de declaração de insolvência feito no âmbito das relações de grupo, cfr. os acórdãos do TRL de 11-04-2023, processo: 233/20.3T8VFX-B. L1-1 (Relator: Nuno Teixeira) e de 09-02-2021, processo: 233/20.3T8VFX.L1-1 (Relator: Fátima Reis Silva).
[13] O artigo tinha a seguinte redação:
“Efeitos sobre os administradores e outras pessoas
1 - Os órgãos sociais do devedor mantêm-se em funcionamento após a declaração de insolvência, mas os seus titulares não serão remunerados, salvo no caso previsto no artigo 227.º, podendo renunciar aos cargos com efeitos imediatos.
2 - Durante a pendência do processo de insolvência, o administrador da insolvência tem exclusiva legitimidade para propor e fazer seguir:
a) As acções de responsabilidade que legalmente couberem, em favor do próprio devedor, contra os fundadores, administradores de direito e de facto, membros do órgão de fiscalização do devedor e sócios, associados ou membros, independentemente do acordo do devedor ou dos seus órgãos sociais, sócios, associados ou membros;
b) As acções destinadas à indemnização dos prejuízos causados à generalidade dos credores da insolvência pela diminuição do património integrante da massa insolvente, tanto anteriormente como posteriormente à declaração de insolvência;
c) As acções contra os responsáveis legais pelas dívidas do insolvente.
3 - Compete unicamente ao administrador da insolvência a exigência aos sócios, associados ou membros do devedor, logo que a tenha por conveniente, das entradas de capital diferidas e das prestações acessórias em dívida, independentemente dos prazos de vencimento que hajam sido estipulados, intentando para o efeito as acções que se revelem necessárias.
4 - Toda a acção dirigida contra o administrador da insolvência com a finalidade prevista na alínea b) do n.º 2 apenas pode ser intentada por administrador que lhe suceda.
5 - As acções referidas nos nºs 2 a 4 correm por apenso ao processo de insolvência”.
[14]A situação dos acionistas perante dívidas da sociedade anónima no direito Português", Direito das Sociedades em Revista, 2012, Ano 2, vol. IV, Coimbra: Almedina, pp. 11-74, em particular pp. 63-74.     
[15] No mesmo sentido, Pedro Pais de Vasconcelos, "Responsabilidade civil do administrador de insolvência", in II Congresso de Direito da Insolvência, 2014, Coimbra: Almedina, pp. 189-206, particularmente p. 2026. Refere o autor, aludindo ao art. 82.º que “deve entender-se que cada credor pode interpelar (extrajudicialmente) o administrador da insolvência para que proponha a ação e, caso este recuse ou mantenha a inércia, pode propô-la subrogatoriamente. A atitude do credor justifica-se, por um lado, por recear que o administrador da insolvência deixe passar o prazo de prescrição da responsabilidade ou que não construa convenientemente a petição inicial. Este último receio pode ser muito frequente ou mesmo recorrente. O credor pode não ver as questões do mesmo modo que o administrador da insolvência e pode entender que existem mais ou mais fortes fundamentos para a pretensão a formular na ação. O administrador da insolvência que não propuser esta ação de responsabilidade civil, ou porque entendeu que não o devia fazer, ou porque não lhe ocorreu ou se desleixou, pode ser, por sua vez responsabilizado pelo credor para ressarcimento dos danos que assim lhe tiver causado. Mesmo o credor que tenha recorrido à proposição subrogatória da ação, pode pedir contra o administrador da insolvência a indemnização dos custos que com isso tenha sofrido”.
[16] Cfr., quanto aos deveres do administrador da insolvência, o art. 12.º do EAJ, dispondo o seu número 8 que:
“Os administradores judiciais devem contratar seguro de responsabilidade civil obrigatório que cubra o risco inerente ao exercício das suas funções, sendo o montante do risco coberto definido em portaria do membro do Governo responsável pela área da justiça, e devem remeter, de imediato, preferencialmente por meios eletrónicos, à entidade responsável pelo acompanhamento, fiscalização e disciplina da sua atividade cópias dos contratos celebrados, bem como comprovativos da sua renovação, sempre que tal se justifique”.
A Portaria n.º 137/2020, de 4 de junho, no seu art. 2.º, veio estabelecer que o seguro obrigatório de responsabilidade civil profissional dos administradores judiciais instituído pelo n.º 8 do artigo 12.º do Estatuto dos Administradores Judiciais cobre, pelo menos, um risco mínimo de (euro) 500 000.
[17] Processo nº 1319/12.3TVLSB-B. L1.S1 (Relator: Lopes do Rego).