Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
1288/13.2TVLSB.L1-6
Relator: ANTÓNIO MARTINS
Descritores: COMPRA E VENDA DE IMÓVEIS
DEFEITOS DE CONSTRUÇÃO
PRAZO DE CADUCIDADE
RESPONSABILIDADE DO DONO DA OBRA
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 09/25/2014
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Texto Parcial: N
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: PROCEDENTE
Sumário: 1. O prazo de caducidade previsto no n.º 4 do artigo 1225.º do CC para intentar a ação a pedir a eliminação dos defeitos e a indemnização é aplicável ao vendedor do imóvel que tenha promovido a construção, modificação ou reparação mediante contrato de empreitada celebrado com terceiro, tendo posteriormente procedido à respetiva venda.
2. O que justifica a aplicação do regime do contrato de empreitada à responsabilização pelos defeitos da construção é o facto de o vendedor ser também o seu construtor e, portanto, ter um conhecimento privilegiado das características da obra por si realizada.
3. As razões de interesse público subjacentes à alteração introduzida pelo DL 267/94, visando a proteção do adquirente, são invocáveis seja o vendedor construtor direto ou por intermédio de empreiteiro; o elemento decisivo e relevante é o do domínio do processo de construção, idêntico em ambos os casos. (AAC)
Decisão Texto Parcial:
Decisão Texto Integral: ACÓRDÃOS DO TRIBUNAL DA RELAÇÃO DE LISBOA

I- RELATÓRIO

1. A A instaurou contra a R., em 10.07.2013, a presente acção declarativa de condenação, com processo comum ordinário”[1], pedindo a condenação da R a efectuar todos os trabalhos necessários à eliminação dos defeitos cuja eliminação foi solicitada pela A., designadamente, os verificados (i) nos mosaicos; (ii) nas paredes interiores e tectos; e (iii) nas caixilharias em madeira. Subsidiariamente pede: a) a condenação da R. a reconstruir a obra; b) o reconhecimento do direito à redução do preço pago pela A. à R., no montante a liquidar oportunamente e consequente condenação da R. a devolver os respectivos montantes à A.; c) o reconhecimento à A. do direito à resolução do contrato de compra e venda. Mais pede a condenação da R. a pagar uma indemnização à A. no valor das rendas que resultariam do arrendamento dos espaços, que deixou de auferir, bem como das que auferiria até ao momento da integral e definitiva eliminação dos defeitos, a liquidar oportunamente.

Alega, em resumo, que adquiriu à R., em 31.01.2008, um prédio urbano, destinado a comércio e serviços, o qual lhe foi garantido pela R ter sido recuperado com observância das normas técnicas gerais e específicas de construção e com materiais de elevada qualidade. Porém, cerca de dois anos após tal aquisição, o prédio começou a apresentar defeitos, cuja existência a R reconheceu, tendo procedido a algumas intervenções com o intuito de os eliminar, mas sem resultado, passando posteriormente a recusar-se a prosseguir com as intervenções para eliminação dos defeitos. Por isso a A remeteu à R cartas em 17.07.2012, 12.09.2012 e 29.10.2012, nas quais expunha os defeitos que as intervenções da R nunca resolveram de forma conclusiva e duradoura, nomeadamente nas caixilharias em madeira, pavimento do terraço do 2º piso e fissuras e rachadelas em algumas paredes e tectos, solicitando a correcção das deficiências e substituição daquelas caixilharias, o que a R recusou.

Conclui, invocando além de outros os art.ºs 1221º a 1223º e 1225, todos do Código Civil[2], que tendo adquirido à R um prédio urbano, que a mesma havia modificado e reparado, é esta responsável pelos prejuízos que advenham de defeitos no imóvel, que surjam no prazo de cinco anos a contar da entrega do mesmo, tendo assim a A direito, além do mais, à eliminação dos defeitos e se estes não puderem ser eliminados, a exigir nova construção, assim como à redução do preço ou à resolução do contrato se não forem eliminados os defeitos ou construída de novo a obra.

Contestou a R pedindo a procedência da excepção de caducidade do direito exercido na acção e a consequente absolvição dos pedidos e, se assim se não entender, a improcedência da acção. 

Estriba a excepção começando por alegar que os normativos a aplicar na presente acção não são os que regulam a empreitada mas os relativos à venda de coisas defeituosas (art.ºs 913º a 917º), pois não foi a R, vendedora do imóvel, quem procedeu às obras de remodelação, reabilitação e ampliação. Assim, tendo em 11.01.2011 – e apenas nessa data – a A denunciado defeitos e/ou falta de qualidade às caixilharias de madeira, o que a R não reconheceu, assim como não aceitou a sua reparação, a A deveria ter intentado a acção no prazo de seis meses pelo que, não o tendo feito, caducou o seu direito. Tendo igualmente a A reportado à R., no email de 11.01.2011, duas situações respeitantes a “fissuras e rachadelas”, estas ficaram resolvidas em Junho de 2012, após demora da A em aceitar a solução de resolução proposta pela R. Nenhumas outras rachadelas ou fissuras, fosse em paredes ou em tectos, lhe foram denunciadas pela A, pelo que caducou o direito da A quanto às agora invocadas na p.i.

Quanto aos alegados defeitos nos mosaicos do pavimento do pátio do 2º piso a R. admite que, na sequência de um e-mail da A de 14.09.2009, procedeu a reparações no terraço ou pátio em causa, criando novas juntas de dilatação e substituindo os mosaicos levantados e partidos, o que fez em programadas e espaçadas intervenções, por serem as adequadas, a última das quais ocorreu em Novembro de 2012, resolvendo assim de forma que parece definitiva aquele problema. Aliás quanto aos dez mosaicos (+/- 1 m2) que na vistoria de 31.07.2013 dão sinais de estarem a levantar ligeiramente e poderem vir a partir, a causa para tal a R desconhece-a, mas considera isto insignificante num espaço que tem 3 600 mosaicos (400 m2).         

Na réplica a A pede a improcedência da excepção alegando que o momento da denúncia quanto às caixilharias não pode fixar-se em 11.01.2011 pois as partes mantiveram conversações/negociações sobre esse tema muito tempo depois, com vista a resolver a situação extrajudicialmente, além de que o e-mail daquela data só faz referência às caixilharias dos 4º e 5º pisos, pelo que os defeitos das caixilharias dos demais pisos não estariam abrangidos pela caducidade invocada. Reafirma, outrossim, ter denunciado as fissuras e rachadelas nas paredes e tectos na carta de 17.07.2012.

Naquela peça processual tece ainda considerações sobre o regime legal aplicável, rejeitando a interpretação da R de aplicação ao prazo de caducidade do art.º 917º, pugnando pela aplicabilidade do nº 4 do art.º 1225º.         

2. No processamento ulterior dos autos e no âmbito da audiência prévia a que se procedeu foi proferida sentença julgando procedente a excepção de caducidade e absolvendo a R do pedido.

3. É desta decisão que, inconformada, a A. vem apelar, pretendendo a revogação da decisão recorrida, julgando-se improcedente a excepção de caducidade e promovendo-se os ulteriores termos processuais aplicáveis.

Termina as alegações com as seguintes conclusões:

I. Foi incorrectamente considerada procedente a excepção peremptória da caducidade invocada pela Recorrida, na medida em que o regime do artigo 1225.º do CC é aplicável nos casos em que o vendedor não tenha construído por si próprio o imóvel mas tenha promovido a respectiva construção, modificação ou reparação mediante contrato de empreitada celebrado com terceiro, para posteriormente proceder à respectiva venda.

II. O que, aliás, é a única forma de não retirar o efeito útil ao artigo em causa e, consequentemente, respeitar o espírito do legislador, na medida em que, caso assim não fosse, ter-se-ia aqui descoberto o “El dorado” do sector imobiliário.

III. Pois, para obstar à aplicação dos prazos que o legislador considerou necessários ao justo exercício dos direitos do comprador de um imóvel destinado por sua natureza a longa duração, bastaria dividir tarefas entre pessoas distintas, por forma a que uma delas desenvolva os trabalhos de construção, modificação ou reparação e a outra aliene o imóvel a terceiro. Resultando de tal “negócio” uma restrição imediata aos direitos do respectivo comprador.

IV. É exactamente este o caso dos autos, sendo esta operação que a Recorrida fez e da qual pretende extrair os respectivos efeitos.

V. O n.º 4 do artigo 1225.º do CC não faz depender a sua aplicabilidade do facto de ser efectuada directamente pelo vendedor a construção, modificação ou reparação do imóvel, ou seja, não obriga a que o vendedor seja simultaneamente empreiteiro. A única condição da qual a sua aplicabilidade se encontra dependente é a de que o vendedor do imóvel tenha promovido a respectiva construção, modificação ou reparação.

VI. Condição que se encontra preenchida nos presentes autos, pois a Recorrida reconheceu que promoveu a ampliação e recuperação do imóvel com o intuito de posteriormente o vender – actividade que faz parte do seu objecto social; e tanto assim foi que prometeu vender o prédio à Recorrente antes mesmo de se encontrar emitida a respectiva licença de utilização (cfr. artigos 7.º, 8.º e 29.º da Contestação).

VII. A aplicabilidade deste regime a situações semelhantes a dos presentes autos resulta, também, de inúmeros acórdãos dos mais diversos tribunais superiores, os quais têm entendido que:

VIII. O conceito de vendedor de imóvel, nos termos e para os efeitos do nº 4 do artigo 1225º do Código Civil, abrange tanto aquele que construiu por si próprio o imóvel como aquele que o mandou construir, designadamente mediante contrato de empreitada celebrado com terceiro, para proceder à venda, sendo que o promotor imobiliário, que constrói tendo em vista a venda lucrativa, ainda quando constrói mediante celebração de um contrato de empreitada, encontra-se abrangido pelo artigo 1225.º do CC.

IX. O conceito de vendedor/construtor não deve ser interpretado num contexto puramente literal, relevando, não tanto o desenvolvimento material da actividade de construção, mas sim o domínio profissional da construção do imóvel.

X. Deve ser equiparado ao construtor do imóvel o promotor da sua construção, ainda que por intermédio de empreiteiro, sendo aplicáveis os prazos de caducidade do artigo 1225.º e não do artigo 917.º, ambos do CC.

XI. O n.º 4 do artigo 1225.º do CC abarca os casos de construção por parte de promotor não só nos casos em que ele toma decisões relativas à edificação, contratando os vários empreiteiros a seu gosto para as diversas partes e fases da obra, dando ordens relativas ao andamento da mesma, mantendo-se por assim dizer com o controlo sobre a obra vista no seu conjunto, visão que cada um dos empreiteiros ou “construtores” contratados não possuem; mas ainda quando o vendedor promoveu a construção de um imóvel com a finalidade de o vender e obter lucro dessa venda, já que nestes casos tem de se considerar que assume a qualidade de construtor.

XII. A Recorrida gizou por si mesma todo o projecto de ampliação e recuperação do Prédio, tendo tomado todas as decisões quanto aos métodos e materiais a utilizar, sendo apenas ela, e só ela, a detentora do efectivo controlo e visão global dos trabalhos em causa (cfr. artigos 21.º a 23.º da Contestação).

XIII. A excepção da caducidade invocada pela Recorrida não devia ter sido considerada procedente por o prazo de caducidade aplicável à factualidade vertida nos autos ser de um ano, nos termos do artigo 1225.º do CC, e não seis meses.

XIV. Mesmo que assim não se entenda, nunca se poderá sustentar que seria aplicável à presente situação o prazo de caducidade constante do artigo 917.º do CC.

XV. Pois, o prazo de caducidade constante do artigo 917.º do CC destina-se aos casos de acção de anulação por simples erro, pelo que a acção destinada à exigência de reparação de defeitos da coisa só está limitada no tempo pelo prazo geral do artigo 309.º do Código Civil.

XVI. Entendimento que está de acordo com decisões do Supremo Tribunal de Justiça, o qual sustentou que o prazo de caducidade previsto no artigo 917.º do CC é aplicável apenas às acções de anulação da compra e venda por simples erro e não às acções de condenação do vendedor a eliminar os defeitos e de indemnização. No âmbito destas duas últimas acções o direito à eliminação dos defeitos e à indemnização está sujeita a prescrição nos termos gerais do artigo 309.º do CC.

XVII. Não sendo o preceito em causa passível de interpretação extensiva, pois, em primeiro lugar, quando se trata de interpretar a lei deve atender-se ao estabelecido no n.º 2 do artigo 9.º do CC, sendo evidente que a interpretação defendida pela Recorrida e sufragada pela Sentença recorrida não tem a menor correspondência com a letra da lei.

XVIII. Em segundo lugar, porque não se pode defender a aplicação extensiva de uma norma sem que se verifique identidade ou maioria de razão quanto ao caso concreto, o que aqui não se verifica, visto que a razão de ser do curto prazo de caducidade estabelecido no artigo 917.º do CC decorre precisamente de o mesmo se referir à anulação do negócio, ou seja, à destruição deste. O que tem efeito retroactivo e afecta a segurança do comércio jurídico.

XIX. Tal não sucede na acção de eliminação dos defeitos da coisa, em que o que se pede é o cumprimento do contrato e não a sua destruição. A reparação, ao contrário da anulação, não tem efeito retroactivo, nem afecta o negócio, servindo, isso sim, para o cumprir.

XX. Disto, resulta claro, que as consequências de uma acção de anulação não têm qualquer semelhança com as consequências de uma acção em que seja pedida a reparação e indemnização por danos decorrentes dos defeitos verificados.

XXI. Na verdade, nesta hipótese, a da acção de reparação e indemnização, a segurança do comércio jurídico não está em causa. Falecendo, assim, a razão de ser do curto prazo de caducidade previsto no artigo 917.º do CC.

XXII. Posição sufragada pelo Supremo Tribunal de Justiça, ao referir que essa interpretação extensiva, além de ofender a máxima odiosa restringenda choca com diversas razões que nos dizem da razoabilidade da distinção entre a acção prevista no art. 917º e a que vise a simples reparação de edifícios.

XXIII. Face o exposto, pode concluir-se que não se verifica a necessária identidade ou maioria de razão que justifica a interpretação extensiva.

XXIV. Note-se, ainda, que uma vez que o artigo 914.º do CC, que prevê a reparação da coisa, não surgiu no ordenamento jurídico português após o artigo 917.º, mas em simultâneo com este, o legislador, caso considerasse que o prazo de 6 meses de caducidade de acção ai previsto lhe deveria ser aplicado, teria feito referência expressa a essa intenção, não se podendo vislumbrar qualquer motivo para tal omissão.

XXV. Sendo certo que, de acordo com o n.º 3 do referido artigo 9.º do CC, “Na fixação do sentido e alcance da lei, o intérprete presumirá que o legislador consagrou as soluções mais acertadas e soube exprimir o seu pensamento em termos adequados.”.

XXVI. O prazo de caducidade previsto no artigo 917.º do CC não pode ser aplicável nos presentes autos na medida em que não estamos perante uma acção de anulação. Pelo que, caso não se aplique o prazo previsto no n.º 2 do artigo 1225.º, o único prazo que se poderá aplicar é o previsto no artigo 309.º do CC, o qual, claramente, não se encontra ultrapassado.

4. A R apresentou contra-alegações, nas quais conclui no sentido da improcedência do recurso e manutenção da decisão recorrida. 

5. Corridos os vistos legais, cumpre agora apreciar e decidir.


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II- FUNDAMENTAÇÃO

1. De facto

A factualidade relevante, para a decisão do presente recurso, é a constante do relatório supra, documentalmente comprovada.          


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2. De direito

Sabe-se que é pelas conclusões das alegações que se delimita o âmbito da impugnação, como decorre do estatuído nos art.ºs 635º nº 4 e 639º nº 1, ambos do Código de Processo Civil[3].

Decorre daquelas conclusões que as questões que as mesmas nos convocam a resolver podem equacionar-se da seguinte forma:

1ª: Foi incorrectamente considerada procedente a excepção peremptória da caducidade, na medida em que o regime do artigo 1225.º é aplicável nos casos em que o vendedor não tenha construído por si próprio o imóvel mas tenha promovido a respectiva construção, modificação ou reparação mediante contrato de empreitada celebrado com terceiro, para posteriormente proceder à respectiva venda?

2ª: Mesmo que assim se não entenda não seria aplicável o prazo de caducidade do art.º 917º, previsto apenas para a acção de anulação por simples erro, pelo que esta acção, destinada a exigir a eliminação de defeitos, só estaria limitada pelo prazo geral previsto no art.º 309º? 

Vejamos.


*

            2.1. Excepção peremptória da caducidade

          A decisão recorrida julgou procedente a excepção de caducidade, ao abrigo do art. 917º, por considerar que a A devia ter intentado a acção no prazo de seis meses - previsto naquele normativo – após a denúncia operada pela comunicação de 12.07.2012.

           A A insurge-se contra esta decisão por considerar que tinha o prazo de um ano para intentar a acção, ao abrigo do art.º 1225º nº 4, tendo-a assim interposto em prazo.

         Analisada a fundamentação da decisão recorrida, não cremos que nela se tenha feito a melhor aplicação do direito aos factos em causa nos autos, como a seguir se procurará fundamentar.

          Desde logo é de salientar que a decisão recorrida não atentou, devidamente, no facto de em rigor a R não ter deduzido a excepção de caducidade quanto aos alegados defeitos da coisa vendida no tocante aos mosaicos do pavimento do pátio do 2º piso. Com efeito, como resulta da contestação (cfr. fls 90 e segs; art.ºs 72º e segs) e já supra se deu conta no relatório, a R., quanto a tais defeitos, não deduziu aquela excepção e impugnou apenas a versão da A., admitindo até que fez quatro intervenções para resolver esse problema, a última das quais em Novembro de 2012 e reconhecendo mesmo que na vistoria efectuada em 31.07.2013 há alguns mosaicos (concretamente 10) que estão a levantar. Facto que no entanto desvaloriza por considerar serem poucos mosaicos no conjunto global do pavimento em causa, o que, torne-se desde já claro, é irrelevante para efeitos da caducidade do direito de acção. 

Porém, a decisão recorrida, certamente induzida pelo facto de no final da contestação se pedir a procedência da excepção de caducidade, julga-a procedente e daí absolve a R da totalidade do pedido.

Conclui-se assim que, pelo menos em relação a parte do pedido (o respeitante à eliminação dos defeitos relacionados com os mosaicos e eventualmente a indemnização conexa com este), até por não ter sido deduzida, não existia fundamento para se julgar procedente a excepção de caducidade do direito de acção, como se decidiu no tribunal a quo, pelo que a decisão recorrida não se pode manter.

Acresce que, quanto ao cerne da questão em causa nos autos, igualmente não se fez na decisão recorrida, a nosso ver, a melhor aplicação e interpretação do direito.

Aquele cerne da questão situa-se em saber se o nº 4 do art.º 1225º e, consequentemente, o prazo de um ano para intentar a acção a pedir a eliminação dos defeitos e a indemnização, é aplicável apenas ao vendedor/construtor[4] que tenha por si próprio, procedido à construção, modificação ou reparação do imóvel ou é também aplicável ao vendedor do imóvel que tenha promovido tal construção, modificação ou reparação mediante contrato de empreitada celebrado com terceiro, tendo posteriormente procedido à respectiva venda.

Esclareça-se, previamente, que o caso dos autos situa-se, inquestionavelmente, neste domínio pois embora o imóvel em causa nos autos tenha sido adquirido pela R já construído, foi esta quem decidiu levar a cabo as obras de remodelação, reabilitação e ampliação do edifício, tendo para o efeito encomendado os necessários projectos de arquitectura e, não obstante tais obras terem sido levadas a cabo por uma empreiteira, contratada para o efeito pela R., esta procedeu à recepção das obras de ampliação e reabilitação efectuadas e, inclusive, o alvará de utilização foi emitido em seu nome, assim como os alvarás de licença de obras de construção, licença de construção e licença de alteração (cfr. art.ºs 21º a 25º da contestação e docs juntos com esta peça processual, máxime fls. 182/183).

Nem se invoque, como a R pretexta, que o imóvel “se destinava a ser por ela explorado” (cfr. art.º 25º da contestação), pois o relevante, para aferir da responsabilidade do construtor/vendedor não é a intenção subjectiva que possa ter presidido ao propósito inicial de construção/modificação/reabilitação mas a realidade objectiva, ou seja, se o imóvel foi vendido após a sua construção ou modificação/reabilitação. Acompanhamos Cura Mariano quando refere que “não é exigível que à construção, modificação ou reparação do imóvel tenha presidido, desde o início, a intenção de o comercializar, uma vez que o que justifica a aplicação do regime do contrato de empreitada à responsabilização pelos defeitos da construção é o facto de o vendedor ser também o seu construtor e, portanto, ter um conhecimento privilegiado das características da obra por si realizada, o que se verifica, independentemente das finalidades que presidiram à edificação”.[5]

Aliás, in casu, a confirmação desta realidade e a irrelevância daquela intenção é o facto de o imóvel ter sido objecto de contrato promessa de compra e venda à R., por banda da A., ainda antes de esta ter obtido a licença de utilização do mesmo (cfr. doc. de fls. 183/193).

A decisão recorrida fez uma interpretação literal do nº 4 do art.º 1225º e considerou que como a R., vendedora do imóvel, não tinha procedido directamente à sua modificação e reabilitação, não estava sujeita à responsabilidade prevista naquele preceito para o construtor/vendedor. Como se a R fosse uma mera vendedora do imóvel e fosse estranha ou alheia à sua reconstrução/reabilitação. Quando a realidade é claramente outra, como adiante se justificará.

Não se desconhece que esta questão do âmbito e extensão da previsão do nº 4 do art.º 1225º “tem vindo a suscitar opiniões divergentes na nossa jurisprudência”, como nos dá conta Cura Mariano, o qual considera que “não se justifica que quem contrate com um empreiteiro a construção de um imóvel, vendendo-o posteriormente a terceiros, seja considerado um construtor/vendedor, para os efeitos do disposto no art.º 1225º nº 4, do C.C., devendo antes responder, nos termos previstos para a venda de coisa defeituosa (art.º 913º e seg. do C.C.), pelos defeitos existentes no imóvel, uma vez que o adquirente pode responsabilizar o empreiteiro contratado pelo vendedor, nos termos admitidos no art.º 1225º nº 1, in fine, do C.C….”[6].

Não acompanhamos esta doutrina nem a jurisprudência que restringe a aplicabilidade do nº 4 do art.º 1225º aos casos do vendedor que foi construtor directo.

Desde logo porque não parece ter sido esse o propósito do legislador ao ter acrescentado ao art.º 1225º os nºs 3 e 4, na sequência do DL 267/94 de 25.10. As razões de interesse público, subjacente ao “bem estar social” que se procuraram consagrar com a alteração em causa, visando a protecção do adquirente no “direito de exigir o reconhecimento da qualidade do bem que compra, assim como, em situações adversas, a responsabilização dos vários agentes intervenientes no sector em causa”, como se salienta no preâmbulo do referido DL 267/94, são invocáveis em qualquer das circunstâncias: seja o vendedor construtor directo, seja o vendedor construtor por intermédio de outrem, o empreiteiro.

Tal interpretação, parece ignorar ou desconsiderar que através do mesmo DL 267/94 foi acrescentado ao art.º 916º um nº 3, consagrando, “caso a coisa vendida seja um imóvel”, prazos de denúncia, após conhecimento do defeito e após entrega da coisa, iguais aos previstos no art.º 1225º. Se o propósito do legislador fosse distinguir o vendedor/construtor directo do vendedor/construtor por intermédio de outrem, não deixaria de o fazer. Como se refere no Ac. do STJ de 19.04.2012[7], a referida interpretação “significa continuar a entender que, mesmo após a entrada em vigor do Decreto-Lei nº 267/94, de 25 de Outubro, o prazo de seis meses, previsto na letra do artigo 917º para a propositura da acção de anulação com fundamento em erro, vale também (por interpretação extensiva) para a propositura da acção de condenação do vendedor na eliminação dos defeitos do imóvel vendido, para a qual se continua a não prever expressamente qualquer prazo” e que o legislador daquele diploma “quis manter prazos diferentes para a acção de condenação na eliminação dos defeitos do imóvel: seis meses na compra e venda, um ano na empreitada (nºs 3 e 4 do artigo 1225º do Código Civil)”.

Não cremos, pois, fosse esse o propósito do legislador e, como resulta do que atrás se procurou evidenciar, a interpretação sistemática não acolhe tal perspectiva.

Por outro lado, o legislador não poderia ignorar que uma solução daquela natureza tornaria pouco eficaz a responsabilidade do construtor/directo porquanto, para obviar à mesma, bastaria a este socorrer-se de empreiteiro na construção. Ora, deve presumir-se que o legislador consagrou as soluções mais acertadas (cfr. art.º 9º nº 3), o que não seria o caso, nessas circunstâncias.     

O relevante pois não será se o vendedor é o construtor directo ou é construtor por intermédio de outrem. O decisivo e relevante, como bem se faz notar no Ac. do STJ de 05.03.2013[8], invocado nas alegações da apelante, “não é ter materialmente desenvolvido a actividade de construção – …–, mas sim saber se o réu “teve o domínio da construção, se [a] desenvolveu no âmbito profissional”, para depois se concluir que “o conceito de construtor que é utilizado no nº 4 do artigo 1225º do Código Civil é um conceito lato, que tanto abrange o construtor directo como aquele que, profissionalmente, constrói directamente ou mediante contratos com terceiros para vender a adquirentes/consumidores, entendidos no sentido do nº 1 do artigo 2º da lei nº 24/96, de 31 de Julho (Lei de defesa dos consumidores)”[9].

Aplicando esta interpretação lata do conceito de construtor ao caso em análise e, considerando o que atrás já se salientou, em suma, que a R procedeu à reconstrução/reabilitação do imóvel de modo profissional, com intuito lucrativo, após o que procedeu à sua venda à A - não sendo pois uma mera vendedora do imóvel nem estranha ou alheia à sua reconstrução/reabilitação, muito pelo contrário, ela teve o domínio de todos os aspectos inerentes à reconstrução/reabilitação, estando por isso mais habilitada a ter uma visão global da obra (e dos seus eventuais defeitos) do que os vários empreiteiros -, temos como certo que o mesmo se aplica à acção em causa, pelo que não pode deixar de se concluir que a A intentou a acção tempestivamente, no prazo de um ano após a denúncia.

Mas ainda que se considere que não é de adoptar esta interpretação ampla do conceito de construtor, nos termos da qual construtor é quem constrói profissionalmente, ou seja, para vender e obter lucro, sendo irrelevante se o faz directamente ou por intermédio de terceiros, ainda assim é de justificar a aplicabilidade do art.º 1225º nº 4 ao caso em análise.

Cremos, com efeito, que as razões justificativas da alteração introduzida no art.º 1225º, ao prever no nº 4 a responsabilidade do vendedor/construtor directo, são igualmente aplicáveis no caso de responsabilidade do vendedor por intermédio de outrem.

Nem se argumente com a circunstância de, no caso de haver empreiteiro, o comprador pode demandar este e assacar-lhe a responsabilidade dos defeitos da obra. Tal argumento foi assertivamente rebatido no Ac. do TRPorto de 11.04.2013[10], com fundamentação que se subscreve inteiramente. Como aí se escreveu: “E não se diga que o terceiro adquirente poderá sempre demandar directamente o empreiteiro (cujos direitos lhe foram cedidos pelo dono da obra e vendedor do imóvel), porque a entidade que construiu o imóvel pode ser desconhecida do comprador com quem aquele não estabeleceu qualquer relação contratual. A figura do vendedor/ construtor (mesmo que por intermédio de outrem) é a entidade que se apresenta ao comprador como a parte outorgante no contrato, sendo ele o responsável directo pelos defeitos da construção do imóvel cuja construção promoveu”.

A esta fundamentação acrescentaríamos nós que bem pode ocorrer que o comprador não tenha qualquer possibilidade efectiva e prática de obter a sua pretensão perante o empreiteiro, nomeadamente em situações de insolvência deste (o que é relevante neste sector da construção civil, sabido como é do conhecimento comum que foi um dos mais afectados pela crise económico financeira pós 2007-2008, com reflexos na solvabilidade das empresas).

Por todas estas razões não pode deixar de se concluir que não tem fundamento jurídico, desde logo, mas também ético, que o comprador tenha um prazo mais curto para intentar a acção contra o vendedor do imóvel, com quem celebrou o contrato, e tenha um prazo mais longo contra o empreiteiro, que é um terceiro em relação a ele.      

Assim, mesmo admitindo que possamos estar perante uma lacuna de fixação do prazo de caducidade na demanda do construtor por intermédio de outrem – natural porquanto em 1994 a actividade de construção civil de imóveis, nomeadamente para habitação, era largamente dominada pelo vendedor/construtor directo, que terá sido por isso a previsão do legislador – há apenas que integrá-la por analogia, aplicando a tal situação a norma aplicável aos casos análogos, ou seja, a referida norma do art.º 1225º nº 4.

Neste sentido se pronuncia expressamente Romano Martinez quando, depois de invocar a relação entre os contratos de empreitada e compra e venda e de considerar que aos contratos de compra e venda em que o vendedor é um promotor imobiliário a mais recente jurisprudência espanhola, italiana e alemã, assim como a doutrina tem considerado ser de aplicar as regras da empreitada, conclui que “(…) mesmo quando a obra é vendida depois de terminada, a solução mais justa consiste em aplicar as regras da empreitada. (…) Assim será de admitir a existência de uma lacuna no contrato de compra e venda, pois não está prevista solução para o caso de venda de edifícios e outros imóveis destinados a longa duração, construídos ou reparados pelo vendedor, e a aplicação das regras gerais leva a resultados injustos. Perante a lacuna da lei, deverá ter-se em conta o disposto no contrato de empreitada (art. 1225.º), em razão da similitude existente entre as duas situações. Justifica-se o recurso à analogia, porque, no caso omisso, procedem as razões que estão na base da regulamentação estabelecida no artigo 1225.º (art. 10.º, n.º 2).”[11]

Conclui-se assim que, seja por via duma interpretação lata do conceito de construtor, seja pela via da integração analógica, o prazo de caducidade do direito de acção, para solicitar quer a indemnização quer a eliminação dos defeitos de imóvel vendido por promotor da sua reconstrução/reabilitação, por intermédio de empreiteiro, é de um ano, nos termos dos nºs 2 e 3 do art.º 1225º ex vi nº 4 deste preceito.

À luz deste enquadramento normativo e respectiva teleologia, não pode subsistir o entendimento sustentado pelo tribunal "a quo", procedendo as razões que enformam a reacção da recorrente, pelo que se impõe julgar procedente a apelação, revogar o despacho recorrido e determinar o prosseguimento dos autos, nomeadamente para os efeitos previstos nas als c) a g) do nº 1 do art.º 591º do CPC.     


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2.2. Prazo geral previsto no art.º 309º para a acção destinada a exigir a eliminação de defeitos

A segunda questão suscitada pelas conclusões das alegações da apelante, atrás enunciada, mostra-se prejudicada pela solução dada à primeira, o que é natural, dado que a mesma já era formulada a título subsidiário.

Nesta medida não há que conhecer desta questão, nos termos do art.º 608º nº 2, aplicável ex vi art.º 663º nº 2, ambos do CPC, pois tal configuraria a prática de acto inútil, o que não é licito (cfr. art.º 130º do CPC).           


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III- DECISÃO

Pelos fundamentos expostos, acordam os juízes que integram a 6ª Secção Cível deste Tribunal em revogar o despacho recorrido, julgando improcedente a excepção de caducidade arguida e, na procedência da apelação, determinar o prosseguimento dos autos, nomeadamente para os efeitos previstos nas als c) a g) do nº 1 do art.º 591º do CPC.     

Custas a cargo da apelada.


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                                   Lisboa, 25 de setembro de 2014

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(António Martins)

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(Maria Teresa Soares)

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(Maria de Deus Correia)


[1] Proc. nº 1288/13.2TVLSB da 3ª Vara Cível de Lisboa  
[2] Diploma legal a que pertencerão os preceitos a seguir citados sem qualquer outra indicação.
[3] Aprovado pelo art.º 1º da Lei nº 41/2013 de 26.06, aplicável aos presentes autos por força do disposto no art.º 5º nº 1 da citada lei, adiante designado abreviadamente de CPC.
[4] Englobando neste conceito não só o construtor/vendedor mas também o construtor que procede à modificação ou restruturação do imóvel, considerando o teor do nº 4 do art.º 1225º, aditado pelo DL 267/94 de 25.10, que estatui: “O disposto nos números anteriores é aplicável ao vendedor de imóvel que o tenha construído, modificado ou reparado”. 
[5] João Cura Mariano, Responsabilidade Contratual do Empreiteiro pelos Defeitos da Obra, Almedina, 5ª edição, 2013, pág. 184.
[6] Idem, págs. 180-182.
[7] Proferido no processo 9870/05.5TBBRG.G1.S1 (Relatora: Maria dos Prazeres Beleza), acessível em www.dgsi.pt
[8] Proferido no processo nº 3298/05.4TVLSB.L1.S1 (Relatora: Maria dos Prazeres Beleza), acessível em www.dgsi.pt
[9] Neste mesmo sentido cfr. o Ac. do STJ de 19.04.2012 (citado no nota de rodapé nº 7) e, ainda, Ac. do STJ de 14.01.2014, proferido no processo nº 378/07.5TBLNH.L1.S1 (Relator:  Moreira Alves), acessível em www.dgsi.pt, igualmente citada pela recorrente nas alegações.
[10] Proferido no processo nº 6914/10.2TBMTS.P1 (Relatora: Maria Amália Santos), acessível em www.dgsi.pt

[11] Pedro Romano Martinez, Cumprimento Defeituoso em Especial na Compra e Venda e na Empreitada, p.153 a 156.