Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
17398/15.9T8LRS.L1-2
Relator: TERESA ALBUQUERQUE
Descritores: CAIXA DE PREVIDÊNCIA DOS ADVOGADOS E SOLICITADORES
EXECUÇÃO
TRIBUNAL COMPETENTE
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 03/09/2017
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Texto Parcial: N
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: IMPROCEDENTE
Sumário: I-As relações jurídicas estabelecidas entre a Caixa de Previdência dos Advogados e dos Solicitadores (CPAS) e os seus associados, são relações de natureza administrativa e cabem na competência geral mencionada na referida al o) do nº 1 do art 4º do ETAF.
II-A remissão para «os requisitos previstos no CPPT», constante do nº 5 do art 81º do Regulamento aprovado pelo DL 119/2015 de 29/06, não pode deixar de implicar a expressa previsão para a utilização do processo de execução fiscal a que alude o nº 2 do art 148º do CPPT, não se afigurando curial o entendimento da Autoridade Tributária e Aduaneira de que há falta de norma habilitante para propor execuções para cobrança das contribuições em dívida à CPAS.
(Sumário elaborado pela Relatora)
Decisão Texto Parcial:
Decisão Texto Integral: Acordam os Juizes, do Tribunal da Relação de Lisboa.


Relatório:


 I–A Caixa de Previdência dos Advogados e Solicitadores, interpôs execução para pagamento de quantia certa, contra E......, invocando que a executada, sendo advogada de profissão, se encontra obrigatoriamente inscrita na Caixa de Previdência dos Advogados e Solicitadores, doravante designada CPAS, nos termos do disposto no art.º 28º/1 do DL nº 119/2015 de 29/6, tendo de pagar mensalmente as contribuições a que se refere o art 79º e seguintes desse DL, com a redacção introduzida pela Portaria nº 884/94 de 1/10.  Sucede que a mesma não tem pago tais contribuições, devendo, neste momento, a quantia de 120.656,81 €, sendo 67.258,87 € de contribuições em dívida e 53.397,94 € a título de juros, conforme certidão de dívida emitida, em 11/12/2015, pela Direcção da CPAS, e que, interpelada para proceder a esse pagamento não o fez, constituindo a referida certidão título executivo, nos termos do disposto no art.º 703º/1 alínea d) do CPC e do artº 81º/5 do DL 119/2015.

Foi proferido despacho liminar com o seguinte teor:
«Pretende-se a cobrança coerciva de contribuições devidas à Caixa de Previdência dos Advogados e Solicitadores. Ora, e salvo melhor entendimento, tais contribuições não têm natureza civil mas sim fiscal ou tributária, constituindo uma das fontes de receitas daquela instituição com vista à prossecução dos seus fins, inserindo-se no financiamento do subsistema de segurança social específico para aqueles profissionais e, como tal, integrando a satisfação de um encargo público fundamental do Estado, ou seja, garantir o direito à segurança social dos respetivos profissionais (Cf., entre outros, os Ac. do STA de 09.10.2003, proc. 01072/03, e do TCAN de 26.11.2009, proc. 01009/07.9BEPRT, www.dgsi.pt). Falece, por isso, competência a esta secção de execução para apreciar a presente ação executiva, atento o disposto no artigo 129.º, n.º 1 da Lei n.º 62/2013, de 26 de agosto. A situação em presença configura, então, a exceção dilatória de incompetência absoluta do tribunal, em razão da matéria, a qual é de conhecimento oficioso, implicando o indeferimento liminar do requerimento executivo (Cf. artigos 96.º, alínea a), 97.º, n.º 1, 99.º, n.º 1, 576.º, nºs 1 e 2, 577.º, alínea a), 578.º e 726.º, nºs 1 e 2, alínea a), do CPC).
Pelo exposto, julga-se pela incompetência da secção de execução para apreciar a presente execução e, em consequência, indefere-se liminarmente o requerimento executivo, com custas a cargo do exequente, fixando-se em €120.656,81 (cento e vinte mil seiscentos e cinquenta e seis euros e oitenta e um cêntimos) o valor processual da causa. Notifique-se, comunique-se e encerrem-se todos os pedidos de intervenção judicial pendentes».

II–Inconformada, apelou a exequente, tendo extraído das respectivas alegações as seguintes conclusões:
1.ª-A decisão de julgar o tribunal da Comarca de Lisboa Norte– Loures – Inst. Central – Secção de Execução – J3 – como materialmente incompetente para a decisão e tramitação deste
processo executivo foi tomada sem ouvir, previamente, a CPAS.
2.ª-Por isso, a sentença recorrida, tendo violado o princípio do contraditório previsto no art.º 3.º, n.º 3 do C.P.C., é nula.
3.ª-Mas, além disso, o tribunal judicial sempre seria o tribunal competente para julgar e tramitar o presente processo executivo.
4.ª-Pois a CPAS, não obstante prosseguir fins de interesse público, tem uma forte componente privatística. Com efeito,
5.ª-A CPAS «é uma instituição de previdência autónoma, com personalidade jurídica, regime próprio e gestão privativa…» (cf. Art.º 1.º, n.º 1 do regulamento aprovado pelo Dec. Lei n.º 119/2015, de 29/06) não fazendo parte do sistema público de segurança social (cf. Ilídio das Neves in “Direito da Segurança Social – Princípios Fundamentais Numa Análise Prospectiva”).
6.ª-A CPAS não está sujeita a um poder de superintendência do Governo, mas a um mero poder de tutela (cf. Art.º 97.º do regulamento aprovado pelo Dec. Lei n.º 119/2015, de 29/06), sendo essa tutela meramente inspectiva.
7.ª-A CPAS não faz parte da administração directa ou indirecta do Estado.
8.ª-Os seus membros directivos não são designados pelo Governo, mas eleitos «pelas assembleias dos advogados e dos associados da Câmara dos Solicitadores».
9.ª-Mas além disso a CPAS não é financiada com dinheiros públicos, sejam oriundos do Orçamento do Estado ou do Orçamento da Segurança Social.
10.ª-Pelo que a CPAS não deve ser qualificada como uma mera “entidade pública”.
11.ª-As contribuições para a CPAS não têm natureza tributária, mais se assemelhando a contribuições para um fundo de pensões.
12.ª-As contribuições para a CPAS assentam numa verdadeira relação sinalagmática entre o montante das contribuições pagas e a futura pensão de reforma a ser percebida pelo beneficiário.
13.ª-A este facto acresce que, nos termos do disposto no art.º 80.º, n.º 4 do regulamento aprovado pelo Dec. Lei n.º 119/2015, o montante das contribuições depende em exclusivo da opção e, portanto, da única vontade do beneficiário.
14.ª-Nos termos da sentença recorrida, parece que os tribunais administrativos e fiscais seriam os competentes para a tramitação e decisão de execução fundada em certidão de dívida reportada a contribuições para instituição de previdência.
15.ª-Todavia, o n.º 2 do art.º 148.º do CPPT impõe, para que se possa fazer uso do processo de execução fiscal, no caso de «dívidas a pessoas colectivas de direito público que devam ser pagas por força de acto administrativo», que a lei estipule expressamente os casos e os termos em que o pode fazer.
16.ª-No novo regulamento da CPAS, aprovado pelo Dec. Lei n.º 119/2015, de 29/06, não existe norma que, de forma expressa, determine que as dívidas à CPAS sejam cobradas através de processo de execução fiscal a correr nos serviços de finanças 17.ª O que foi confirmado, já depois da entrada em vigor do novo regulamento da CPAS, pela Autoridade Tributária e Aduaneira (AT) à Direcção da CPAS.
18.ª-E porque “não há direito sem acção”, não resta à CPAS outro caminho senão recorrer aos tribunais judiciais, como no presente caso, para cobrar as contribuições em dívida por parte dos seus beneficiários, isto sob pena de ficar sem tutela jurisdicional efectiva para o apontado propósito.
19.ª-O que corresponderia ao não cumprimento de preceito constitucional, constante do art.º 20.º, n.º 1 da CRP, que «a todos é assegurado o acesso ao direito e aos
tribunais para defesa dos seus direitos e interesses legalmente protegidos…»
20.ª-A sentença recorrida violou, assim, o art.º 3.º, n.º 3 do C.P.C.; o art.º 179.º, n.º 1 e 2 do NCPA e o art.º 148.º, n.º 2 do CPPT; além disso, violou, igualmente, o art.º 20.º, n.º 1 da Constituição da República Portuguesa.
Nestes termos e nos mais de direito e com o douto suprimento de V. Exas. deve a sentença recorrida ser: a) Julgada nula por violação do princípio do contraditório; b) Revogada e substituída por outra que julgue o tribunal judicial da Comarca de Lisboa Norte – Loures – Inst. Central – Secção de Execução, como competente em razão da matéria para tramitar e julgar a presente acção executiva.

Citada a executada, nos termos e para o efeito do art 641º/7 do CPC, não apresentou contra alegações.

III–O circunstancialismo fáctico processual a ter em consideração emerge do relatório que antecede, havendo a acrescentar o conteúdo da comunicação datada de 9/11/2005, proveniente da Autoridade Tributária e Aduaneira e dirigida à Direcção da CPAS, tendo por assunto «Processo de execução fiscal para cobrança de créditos da CPAS», documento que a apelante juntou com as alegações, e cuja junção se mostra admissível nos termos da 2ª parte do disposto no art 651º CPC.
Diz-se nesse documento: «Em respeito ao assunto em epígrafe, cumpre informar que, por despacho da Directora-Geral de 08/10/2015, foi sancionado o entendimento que considera não existir actualmente norma legal que habilite a instauração de processo de execução fiscal pela AT para cobrança de contribuições em divida à CPAS. De facto, essa possibilidade não tem cabimento no Código de Procedimento e de Processo Tributário (CPPT), nem está expressamente consagrada em legislação avulsa especial. Neste âmbito, foi analisado o Regulamento da CPAS, aprovado pelo Decreto-lei n.º 119/2015, e 29 de Junho. Contudo, também aqui não está prevista a instauração do processo de execução, nem mesmo no nº1 do artigo 85.º. O teor desta norma limita-se a indicar os requisitos que devem revestir os títulos executivos a extrair pela CPAS na qualidade de credora, pelo que se considera não haver suporte na letra da lei que admita a instauração do processo de execução fiscal pela AT».

IV–Concatenando o teor da decisão recorrida com as conclusões das alegações, o que está em causa apreciar no presente recurso, coincidindo com o seu objecto, é, em primeiro lugar, saber se a sentença se mostra nula por violação do princípio do contraditório, e em segundo lugar, se, competente para a execução que tem por titulo executivo uma certidão de dívida emitida pela Direcção da Caixa de Previdência dos Advogados e Solicitadores (CPAS), datada de 11/12/2015, são os tribunais comuns, como o entende a apelante, ou antes os tribunais administrativos, como foi entendido na 1ª instância.

Pretende a apelante que a decisão recorrida seja julgada nula por violação do princípio do contraditório, em função do disposto no art 3º/3 CPC, que impõe ao juiz o dever de «observar e fazer cumprir, ao longo de todo o processo, o princípio do contraditório, não lhe sendo lícito (…) decidir questões de direito ou de facto, mesmo que de conhecimento oficioso, sem que as partes tenham tido a possibilidade de sobre elas se pronunciarem». Em abono do seu entendimento cita Lebre de Freitas (in “Introdução ao Processo Civil”, pág. 102 e sgts.) quando o mesmo refere que «no plano das questões de direito, o princípio do contraditório exige que, antes da sentença, às partes seja facultada a discussão efectiva de todos os fundamentos em que a decisão se baseie» e que «a proibição da chamada decisão-surpresa tem sobretudo interesse para as questões, de direito material ou de direito processual, de que o tribunal pode conhecer oficiosamente: se nenhuma das partes as tiver suscitado (…) o juiz (…) que nelas entenda dever basear a decisão, seja mediante o conhecimento do mérito da causa seja do plano meramente processual, deve previamente convidar ambas as partes a sobre elas tomarem posição, só estando dispensado de o fazer em casos de manifesta desnecessidade.»

Como é evidente destas considerações, a nulidade em apreço nada tem a ver com as nulidades a que se reporta o art 615º CPC - que se situam «no incumprimento por parte do juiz dos deveres consignados no nº 2 do art 659º/1 e 2, do art 660º/1 do art 661º, isto é do incumprimento de específicos deveres de conhecimento e pronúncia e violação das regras de construção lógica da decisão»[1]-antes se baseia na irregularidade processual, susceptível de influir no exame ou na decisão da causa, resultante de ter sido omitido acto que a lei prescreve, nos termos do art 195º/1  CPC. Não está pois em causa a nulidade vício de conteúdo, mas a nulidade que respeita à própria existência do acto ou às suas formalidades, dita nulidade de actos processuais.

Impunha-se, de facto, que antes de ter sido proferida a decisão que se mostra aqui recorrida, o Exmo Juiz a quo tivesse facultado à exequente a respectiva pronúncia a respeito da questão da competência material do tribunal, que oficiosamente se lhe suscitava, não podendo argumentar-se estar dispensado de o fazer por se tratar de caso de manifesta desnecessidade, por o não ser.

Sucede que não tendo a apelante reclamado dessa nulidade no tribunal recorrido e no prazo de 10 dias sobre a notificação da decisão recorrida, deve a mesma ter-se por sanada.

Sanação que se justifica, de pleno, na concreta situação, na medida em que a exequente, aqui apelante, nas alegações do presente recurso, exerceu, necessariamente que em toda a amplitude, o respectivo contraditório, deixando de fazer qualquer sentido a anulação do acto processual em causa.

Há, pois, que saber se efectivamente o tribunal comum será o competente para a execução em apreço, como o sustenta a apelante.

Como é sabido, a competência dos tribunais comuns (art 211º/1 CRP [2], art 66º CPC e 18º LOFTJ) é residual.

Por isso, não pode deixar de começar por se verificar se a relação litigiosa que está em apreço será, afinal, da competência dos tribunais administrativos, o que se deverá fazer em função dos arts 1º/1 e 4º do ETAF, decorrente da L 13/2002 de 19/2 [3].

Dispõe o art 212º/3 da CRP, que «compete aos tribunais administrativos e fiscais o julgamento das acções e recursos contenciosos que tenham por objecto dirimir os litígios emergentes das relações jurídicas administrativas e fiscais».
Em consonância, refere o nº 1 do ETAF que os tribunais administrativos «são os orgãos de soberania com competência para administrar a justiça em nome do povo nos litígios emergentes de relações jurídicas administrativas e fiscais».

A respeito desta última norma tem vindo a ser referido que, se no âmbito do antigo ETAF, a pedra de toque para a atribuição de competência em razão da matéria aos tribunais administrativos ou aos tribunais judiciais se encontrava nos conceitos de gestão pública e gestão privada, hoje, na intenção do legislador, para se fugir a essa dicotomia e às zonas cinzentas da mesma, dever-se-á passar a utilizar o conceito de relação jurídica administrativa, tido como conceito/quadro muito mais amplo [4].

Porém, a competência dos tribunais administrativos não pode obter-se apenas à luz da, ainda que mais ampla, noção de relação jurídica administrativa, porque, na verdade, o art 4º do ETAF enuncia como competentes os tribunais administrativos para  situações que não cabem no critério da existência de um litigio sobre uma relação jurídica administrativa (ou fiscal).

Aliás, a não convergência total de conteúdo entre alguns dos preceitos do art 4º e o princípio do seu art 1º/1, coloca a questão da respectiva articulação, a qual deve ser obtida deste modo: «Tal como sucede com as múltiplas disposições derrogatórias que, sobre a matéria, existem em legislação avulsa, também as normas do art 4º, sempre que afastem o regime do art 1º/1, devem ser vistas como normas especiais em relação àquele preceito, dirigidas a derroga-lo, prevalecendo sobre ele, para o efeito de ampliar ou restringir o âmbito da jurisdição. Significa isto que, de um modo geral, pertence ao âmbito da jurisdição administrativa e fiscal a apreciação de todos os litígios que versem sobre matéria jurídica administrativa e fiscal e cuja apreciação não seja expressamente atribuída, por norma especial, à competência dos tribunais judiciais, assim como aqueles que, embora não versem sobre matéria jurídica administrativa ou fiscal, são expressamente atribuídos à competência desta jurisdição sendo que encontramos no art 4º do ETAF algumas disposições especiais com este alcance», e que, «ao introduzir (…) no art 4º preceitos com um alcance mais amplo ou mais restrito do que aquele que resultaria do art 1º/1, o legislador não pode ter deixado de pretender ampliar ou restringir o âmbito da jurisdição» [5].

Do que decorre que, quando se pretenda saber, num determinado caso concreto, se o litigio nele em causa deve ser submetido à apreciação dos tribunais administrativos ou fiscais, ou aos tribunais judiciais, não se deve recorrer em primeira linha ao critério constitucional da relação jurídica administrativa ou fiscal, «antes cumprindo indagar se, sobre a especifica matéria em causa, existe disposição legal que, independentemente daquele critério, dê resposta expressa à questão da jurisdição competente. Essa disposição legal tanto pode constar de legislação avulsa aplicável ao caso, como do próprio art 4º do ETAF».

No entanto, quando não se encontre legislação avulsa aplicável ao caso e tão pouco se enquadre a situação em apreço em qualquer das específicas previsões desse art 4º, sempre se acabará, em função da genérica disposição da al o) do nº 1 desse preceito[6], por ter que se avaliar se se estará na presença de «uma relação jurídica administrativa e fiscal que não diga respeito às matérias previstas nas alíneas anteriores».

É então que emerge como relevante a natureza pública ou privada da(s) pessoa(s) colectiva(s) sujeito da concreta relação jurídica.

Entende a aqui apelante que a CPAS, não obstante prosseguir fins de interesse público, tem uma forte (e dominante) componente privatística, invocando para assim concluir que, sendo «uma instituição de previdência autónoma, com personalidade jurídica, regime próprio e gestão privativa» (cfr art 1º/1 do Regulamento aprovado pelo DL 119/2015 de 29/06) não faz parte do sistema público de segurança social. Não está sujeita a um poder de superintendência do Governo, mas a um mero poder de tutela (cfr art 97º do referido Regulamento), sendo essa tutela meramente inspectiva e à posteriori, por parte dos responsáveis governativos das áreas da justiça e da segurança social (cfr art 96º/2 do mesmo Regulamento). Não faz parte da administração directa ou indirecta do Estado, não sendo os seus membros directivos designados pelo Governo, mas eleitos «pelas assembleias dos advogados e dos associados da Câmara dos Solicitadores» (cfr art 6º/1 do referido Regulamento). Não é financiada com dinheiros públicos, sejam oriundos do Orçamento do Estado ou do Orçamento da Segurança Social (cfr art 84º do referido Regulamento).

De todas estas características conclui que a CPAS não deve ser qualificada como uma mera entidade pública, mas como uma entidade (sui generis) de natureza mista.

E faz acrescer a essa caracterização, a circunstância de as contribuições para a CPAS não se afigurarem como tendo natureza tributária, mais se assemelhando a contribuições para um fundo de pensões, sobretudo porque, nos termos do art 80º/4 do mencionado regulamento, o montante das contribuições depende em exclusivo da opção  do beneficiário.

No entanto, e como é posto em evidência no Ac R P 20/6/2016 [7], a CPAS tem traços de entidade pública, desde logo por ter sido criada pelo Estado - pelo Decreto-Lei nº 36.550, de 22/10/1947 - como constituindo uma instituição de previdência, sendo que a  L 4/2007, de 16/1/ (Bases Gerais do Sistema de Segurança Social), a manteve em actividade, referindo no seu art 106º que, «mantêm-se autónomas as instituições de previdência criadas anteriormente à entrada em vigor do Decreto-Lei n.º 549/77, de 31 de Dezembro, com os seus regimes jurídicos e formas de gestão privativas, ficando subsidiariamente sujeitas às disposições da presente lei e à legislação dela decorrente, com as necessárias adaptações». È indiscutível, e isso mesmo resulta expresso do art 1º do Regulamento da Caixa de Previdência dos CPAS publicado em anexo ao DL 119/2015, que a CPAS visa «fins de previdência e de protecção social», e embora autónoma, se rege, nos termos do nº 2 dessa norma, «pelo presente Regulamento e, subsidiariamente, pelas bases gerais do sistema de segurança social e pela legislação dela decorrente, com as necessárias adaptações». Não deixa de estar sujeita à tutela dos membros do Governo responsáveis pelas áreas da justiça e da segurança social – artigo 97º do respectivo Regulamento – e goza das isenções e regalias previstas na lei para as instituições de segurança social e de previdência social e de previdência estabelecidas na alínea c) do nº 1 do art 9º do Código do Imposto sobre o Rendimento das Pessoas Colectivas – artigo 98º do seu Regulamento.

Mas, se, efectivamente, da totalidade do regime legal a que estão sujeitas, não poderão deixar de se qualificar, como o pretende a apelante, como uma entidade (sui generis) de natureza mista entre o público e privado, a verdade é que as respectivas características públicas têm sido suficientes para conduzirem a uma firmada tendência jurisprudencial nos Tribunais Administrativos no sentido de os mesmos serem os competentes para dirimirem os conflitos entre a CPAS e os seus associados [8], não se vendo motivo material para se inverter esse enraizado entendimento.

É certo que a aqui apelante terá “esbarrado” com a indisponibilidade da Autoridade Tributária e Aduaneira (AT) para propor os processos executivos para cobrança das contribuições em dívida à CPAS, por  entender verificar-se  falta de norma habilitante para o efeito, como resulta da comunicação da AT acima referida, entendendo a mesma que «essa possibilidade não tem cabimento no Código de Procedimento e de Processo Tributário (CPPT), nem está expressamente consagrada em legislação avulsa especial, designadamente no Regulamento da CPAS, aprovado pelo Decreto-lei n.º 119/2015, e 29 de Junho».

O radicalismo desse entendimento não parece, no entanto, ter em consideração que a remissão para «os requisitos previstos no CPPT», que resulta do nº 5 do art 81º do referido Regulamento - «disposição especial» que, nos termos da al d) do art 703º CPC, visa permitir que a certidão de dívida de contribuições emitida pela direcção da CPAS valha como título executivo - não pode deixar de implicar a expressa previsão para a utilização do processo de execução fiscal a que alude o nº 2 do art 148º do CPPT, ao dispor que «poderão ser igualmente cobradas mediante processo de execução fiscal, nos casos e termos expressamente previstos na lei: a) outras dívidas ao Estado e a outras pessoas colectivas de direito público que devam ser pagas por força de acto administrativo».

Deste modo, haver-se-á de concluir, como se concluiu no Ac RP 20/6/2016: «As relações jurídicas estabelecidas entre a CPAS e os seus associados são relações de natureza administrativa e cabem na competência geral mencionada na referida al o) do nº 1 do art 4º do ETAF».

Improcede, pois, a apelação.

V–Pelo exposto, acorda este tribunal em julgar o recurso improcedente e confirmar a decisão recorrida. 
Custas pela apelante.


Lisboa, 9 de Março de 2017 

                                    
Maria Teresa Albuquerque                                      
Jorge Vilaça                                              
Vaz Gomes                                              


[1]Quirino Soares, «Sentença Cível- Estrutura, Objecto, Vícios e Enquadramento Legal», Separata da Revista do CEJ, 1º Semestre 2006, nº 4 , p 88, artigo que se reporta ainda ao anterior CPC
[2]Nos termos do art 211º/1 CRP, «são da competência dos tribunais judiciais  as causas que não sejam atribuídas a outra jurisdição».
[3]O ETAF de 1984 cessou a sua vigência em 31/12/2003, por ter sido revogado pelo art 8º al c) da L 13/2002 de 19/2 que aprovou o novo ETAF que  entrou em vigor em 1/1/2004 (cfr art 1º da L 13/2002 e art 4º/2 da L 107/2003 de 31/12).
[4]Cfr Ac STJ  8/5/2007 (Sebastião Póvoas) in www.dgsi.pt
[5]Mário Aroso de Almeida, «Manual de Direito Administrativo», 2010, p 156/157
[6]Dispõe-se nessa alínea que «compete aos tribunais da jurisdição administrativa e fiscal a apreciação de litígios que tenham por objecto questões relativas a «Relações jurídicas administrativas e fiscais que não digam respeito às matérias previstas nas alíneas anteriores».
[7]Acessível em www.dgsi.pt, Relator, Alberto Ruço
[8]No Ac R P que se tem vindo a seguir citam-se para ilustrar a referida tendência jurisprudencial o Ac STA de 8/10/1996, o Ac do Tribunal de Conflitos (Supremo Tribunal Administrativo) de 2/10/2008 («É da competência dos tribunais administrativos conhecer de um litígio entre um Advogado e a Caixa de Previdência dos CPAS com vista a obrigar esta a prestar-lhe assistência enquanto auferir rendimentos que não excedam o valor de dois salários mínimos nacionais»); o Ac STA de 22/9/2015 («Deve admitir-se a revista de acórdão do TCA Norte relativamente à questão de saber se a regularização das dívidas à Caixa de Previdência de CPAS ao abrigo do DL n.º 167/2012, de 1/8, permite a obtenção da pensão de aposentação pelos interessados que aderiram a um plano de regularização»); o Ac STA de 9/1/2014.
A esses arestos pode ainda somar-se o recente Ac STA de 16/3/2016 («Compete ao Tribunal Administrativo conhecer de acção administrativa especial em que se pede a anulação da deliberação da CPAS que indeferiu o requerimento para pagamento das contribuições  relativas ao período de estágio de uma beneficiaria falecida…»). Ac TCAN 26/11/2009 («O acto de fixação da base remuneratória sobre a qual irá incidir a contribuição de advogado para a CPAS, um subsistema especifico para aqueles profissionais, insere-se no financiamento desse subsistema, integrando a satisfação de um encargo publico fundamental do Estado , garantir o direito à segurança social desses profissionais, tem natureza tributária, competindo a sua apreciação ao tribunal Tributário da 1ª instância (arts 212º/3 da CRP, 1º, 4º, 44º/1 e 49º/1 als a) subals i) e iv) todos do actual ETAF»); com o mesmo conteúdo, o Ac STA 9/10/2003; e ainda, o também muito recente Ac RP 23/1/2006 (Fernandes Isidoro), «É da competência dos Tribunais Administrativos e não dos Tribunais de Trabalho, o conhecimento dos litígios entre Instituições de Segurança e Previdência Social (CPAS) e os respectivos beneficiários, que tenham por objecto o pedido de
prestação de assistência aos seus beneficiários».