Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
27836/16.8T8LSB.L1-2
Relator: LAURINDA GEMAS
Descritores: RESPONSABILIDADE MÉDICA
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 11/08/2018
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Texto Parcial: N
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: NEGADO PROVIMENTO
Sumário: I - Provando-se que a Autora escolheu ser submetida a uma intervenção cirúrgica por determinado médico-cirurgião, ora réu, sendo este quem requisitou, para o efeito, o bloco operatório de determinado Hospitalar privado, S.A. (ora demandado) e o apoio de funcionárias do mesmo, designadamente da médica anestesista (também ré), ficando a Autora aí internada durante o pós-operatório, a situação configura um caso de “contrato dividido”.
II - Resultando os danos invocados pela Autora do procedimento realizado pela ré anestesista, a qual não pode ser considerada uma mera auxiliar do réu cirurgião (art. 800.º do CC), fica afastada a responsabilidade contratual do Hospital e ilidida a presunção de culpa do réu (art. 799.º do CC).
III - A eventual responsabilidade da ré anestesista apenas pode ser enquadrada no âmbito da responsabilidade civil delitual, o que pressupõe a alegação e prova dos respetivos pressupostos, designadamente que a sua atuação configura um facto ilícito culposo.
Decisão Texto Parcial:
Decisão Texto Integral: Acordam, na 2.ª Secção Cível do Tribunal da Relação de Lisboa, os Juízes Desembargadores abaixo identificados

I - RELATÓRIO

ML... recorre da sentença que julgou improcedente a ação declarativa com processo comum por ela intentada contra C..., S.A. (1.ª Ré), J... (Réu) e MFP... (2.ª Ré), em que pediu a condenação destes no pagamento da quantia de 247.983,75 € a título de indemnização, fundada em responsabilidade civil médica, acrescida de juros de mora vencidos (sem indicar a partir de que data) e vincendos até integral pagamento.
A 1.ª Ré contestou, conforme consta de fls. 71 e seguintes, requerendo a intervenção acessória provocada de G..., S.A., pugnando pela improcedência da ação e pela condenação da Autora como litigante de má-fé.
Também apresentaram Contestação, o Réu e a 2.ª Ré, conforme consta de fls. 185 e seguintes, requerendo a intervenção principal provocada da A..., S.A., defendendo a improcedência da ação e pedindo também a condenação da Autora como litigante de má-fé.
Foi admitida a intervenção acessória de ambas as seguradoras.
A G..., S.A. veio apresentar a Contestação constante de fls. 256 e seguintes, invocando a existência de franquia e a inexistência de direito de regresso do Réu relativamente à chamada, acompanhando a contestação da sua segurada.
Também a interveniente A..., S.A. contestou, a fls. 282 e seguintes, invocando a existência de exclusão contratual no tocante à (eventual) responsabilidade civil emergente de perdas indiretas, lucros cessantes e paralisações, e subscrevendo sem reservas a contestação apresentada pelo Réu e pela 2.ª Ré.
Foi dispensada a realização de audiência prévia e proferido despacho saneador, bem como despacho de identificação do objeto do litígio e enunciação dos temas da prova (fls. 308 e 309).
Realizou-se audiência final, após o que foi proferida a sentença recorrida, contra a qual a Autora/Recorrente se insurge, concluindo a sua alegação de recurso com as seguintes Conclusões:
1. A Recorrente requer a reapreciação da prova gravada, em conjugação com os demais elementos probatórios existentes, impugnando ter o Tribunal a quo considerado que:
2.     “Da matéria de facto provada não resulta que houve algo de errado na actuação da R. MFP...”;
3. Não ter a “R. legitimidade substantiva”, e, em consequência, não se ter pronunciado sobre a responsabilidade contratual da R. C..., S.A.;
4. Não ter estado a Recorrente, durante a cirurgia, e o pós-operatório, em situação de perigo de vida;
5. Não terem existido sequelas directamente relacionadas com a laceração da traqueia com ruptura da Recorrente.
6. A R. MFP... desempenhou as funções de anestesista na operação a que foi submetida a Recorrente
7. Durante este procedimento cirúrgico, verificou-se uma extensa laceração com ruptura da traqueia (5 a 8 cm).
8. A laceração da traqueia com rutura foi provocada pelo tubo endotraqueal que foi colocado pela Recorrida MFP... durante o procedimento anestésico.
9. Esta laceração implicou vários procedimentos que não estavam previstos.
10. O primeiro foi aumentar aquela incisão que inicialmente tinha sido feita.
11. Foi feita um grande incisão para se proceder a uma toracotomia.
12. Foi suturada a traqueia com material retirado do pericárdio.
13. Foi feito o descolamento da pleura parietal e aplicada cola biológica para garantir a selagem.
14. Tendo em conta os conhecimentos da Recorrida, a sua experiência, a situação em concreto, deve concluir-se que a Recorrida actuou com imperícia e culpa negligente descurando o seu dever de cuidado.
15. A ruptura traqueal é uma complicação rara mas com risco de vida que ocorre após trauma contuso do pescoço e peito.
16. A ruptura traqueal após intubação traqueal é extremamente rara, com uma incidência de aproximadamente 0,005%.
17. A intubação traumática pode ocorrer em situações de emergência, que exigem rapidez no acesso das vias aéreas, na difícil exposição da glote ou quando realizada por profissionais inexperientes.
18. Ou seja, a laceração da traqueia pode ocorrer em situações de emergência médica e para tal pode contribuir a falta de experiência do médico.
19. O Acto cirúgico sub judice não pode ser considerado uma emergência.
20. Em cada 10.000 cirurgias há uma perfuração da traqueia.
21. Em condições normais, num bloco operatório, na cidade de Lisboa, com médicos de referência, com todas as condições, em que a doente está estável, em que só tem aquela patologia, em que não ocorre nenhuma situação anómala durante a cirurgia, a laceração da traqueia com ruptura não pode acontecer.
22. A Recorrente foi anestesiada e sedada de forma convencional, sem pressa e de forma completamente normal.
23. Objectivamente, ocorreu uma lesão da integridade física da Recorrente, não exigida pelo cumprimento do contrato: a ilicitude está verificada.
24. Não existem dúvidas em relação à ocorrência do dano.
25. Sublinhe-se que a laceração da traqueia com rutura foi provocada pelo tubo endotraqueal colocado pela Recorrida MFP... durante o procedimento anestésico.
26. Deste modo provado está o nexo de causalidade entre a actuação da Recorrida e o dano registado.
27. A Recorrida MFP... agiu com negligência.
28. A conduta da Recorrida MFP... deve ser censurada e reprovada.
29. Perante as circunstâncias concretas deste caso, a Recorrida MFP... devia e podia ter actuado de modo diferente.
30. A Recorrida MFP... não actuou com zelo e não utilizou toda a sua capacidade técnica e científica na intubação efectuada.
31. A Recorrida C..., S.A. tem legitimidade substantiva.
32. Na relação contratual entre a Recorrente e a Recorrida C..., S.A., esta é responsável pela conduta da R. MFP....
33. Estamos perante um caso de contrato total com escolha de médico (com contrato de médico adicional).
34. A Recorrente escolheu o Dr. J... como seu médico-cirurgião e, seguindo a sua orientação, decidiu submeter-se a uma cirurgia no C..., S.A..
35. Deste modo, a relação entre a Recorrente e a Recorrida C..., S.A. tem a natureza de contrato de prestação de serviços médicos globais.
36. A responsabilidade civil do hospital pela conduta dos médicos, enfermeiros e outros, regula-se pelo regime do art.º 800, n.º 1 do CC.
37. A Recorrida MFP... pertence ao quadro de pessoal da Recorrida C..., S.A..
38. Sendo a Recorrida MFP... trabalhadora da Recorrida C..., S.A., e tendo-se verificado em relação àquela os pressupostos da responsabilidade civil, verifica-se a responsabilidade do Hospital.
39. O Tribunal a quo considerou não ter estado a Recorrente em situação de perigo de vida durante a cirurgia.
40. O que é facto é que, fruto da ruptura da traqueia, a Recorrente se encontrou nessa situação.
41.O cirurgião Dr. J... declarou que “Nós conseguimos resolver uma situação grave e salvar a vida da doente.”
42. E mais à frente: “Depois fez uma inflamação do pericárdio, depois ficou com uma cicatriz maior, tudo isso é verdade. Ficou mais limitada de movimentos, com dores, mas salvámos a vida da doente.”
43. Ainda: “Uma situação que a não ter sido resolvida, provavelmente teria sido fatal.”
44. Igualmente, deu o Tribunal a quo como não provado não ter estado iminente a morte da Recorrente durante a sua permanência na Unidade de cuidados intensivos.
45. Uma Unidade de Cuidados Intensivos (UCI) é uma área onde se prestam cuidados a doentes com estado de saúde crítico ou que apresentem potencial risco, necessitando de uma vigilância contínua e intensiva.
46. Pela sua própria definição, uma estadia tão prolongada da Recorrente na UCI da Recorrida HCV, obviamente apenas pode ser devida, ao risco de vida em que a Recorrente se encontrava.
47. Face à prova produzida, outra não poderia ser a conclusão que não fosse dar como provado o perigo/risco de vida da Recorrente na sequência da rutura da traqueia, tanto durante a cirurgia, como durante a sua permanência na UCI.
48. As sequelas sofridas pela Recorrente podem ser divididas entre as que se verificaram a curto prazo – entendendo-se por curto prazo, as que se verificaram no pós-operatório, durante a sua permanência na Unidade de Cuidados Intensivos e até à data do relatório médico da autoria do Dr. JB... (5 de Outubro de 2015).
49. A multiplicidade de ocorrências, exames, medicação, incidentes, que ocorreram durante a permanência da Recorrente na UCI por prazo alargado, devem ser consideradas sequelas da rutura da traqueia.
50. Sem a laceração, o tempo de permanência na UCI seria muito mais curto e sem as sequelas que aí se registaram.
51. A única sequela dada por assente, respeita à cicatriz que a Recorrente apresenta no tórax.
52. Ora, da prova efectuada, outras sequelas deveriam ter sido dadas como assentes.
53. A Recorrente tem hoje sequelas na traqueia e no pericárdio.
54. Resultante da laceração da traqueia, foi aberto o pericárdio e feita a reconstrução da traqueia.
55. A traqueia apresenta hoje uma cicatriz, uma fibrose.
56. Todos os tratamentos invasivos a que Recorrente venha a ter de ser submetida, terão que ser ponderados devidamente tendo em conta essas sequelas que, em condições normais, não teria.
57. Exemplo destas sequelas é o facto de a Recorrente, após ter sido reintegrada no tratamento da doença do foro oncológico, se ter optado por um tratamento sequencial na perspectiva de diminuir a toxicidade inerente ao mais indicado em consequência de apresentar a referida cicatriz na traqueia.
58. Ou seja, optou-se, após a recuperação da cirurgia por um tratamento que possivelmente não foi o mais adequado precisamente porque o primeiro, que seria o mais indicado, era demasiado tóxico para as condições que a traqueia apresenta.
59. Considera a Recorrente ter o Tribunal a quo incorrido em manifesto erro na apreciação da prova produzida e no julgamento da matéria de facto, acabando por proferir uma injusta decisão de direito.
60. Violando, assim, os arts. 483.º, 496.º, 562.º, 564.º, 566.º, 798.º, 799.º e 800.º do Código Civil.
Nestes termos e sempre com o douto suprimento dos Venerandos Desembargadores, deve ser dado provimento ao presente recurso, e em consequência, ser a Sentença recorrida substituída por outra que condene os Réus a pagar à Recorrente os montantes peticionados, acrescido de juros de mora vencidos e vincendos.

A interveniente G..., S.A. apresentou alegação de resposta, em que se pronuncia no sentido de ser negado provimento ao recurso, concluindo nos seguintes termos:
1º - Sendo embora a G..., S.A. - Companhia de Seguros, SA interveniente acessória nos termos do preceituado no artigo 321º e ss. do CPC, a jurisprudência tem vindo a decidir no sentido de que o interveniente acessório tem legitimidade para recorrer da sentença final, na medida em que a sucumbência do demandado se repercute no direito de regresso que este declarou pretender exercer contra ele.
2º - Com efeito, com base no nº 2 do artigo 631º do CPC reconhece-se a legitimidade recursória do interveniente acessório quanto às sentenças que, pelo seu conteúdo, direta e efetivamente o afetem, por exemplo no que concerne aos pressupostos do direito de regresso.
3º - Ora, nas alegações apresentadas, a Autora insurge-se contra a decisão de absolvição da Ré MFP..., defendendo ainda que, sendo esta civilmente responsável pelo sucedido, responderá perante a Autora a Ré C..., S.A., em virtude da relação contratual mantida com a Ré MFP....
4º - A ser procedente esta pretensão da Autora, poderão em tese, ser demonstrados os pressupostos de que depende o direito de regresso da Ré C..., S.A. relativamente à Interveniente G..., S.A., fundamentados no contrato de seguro de responsabilidade civil entre ambas celebrado e junto aos autos.
5º - Termos em que tem a G..., S.A., nesse contexto, interesse em contra-alegar, na medida em que poderá vir a ser prejudicada pela decisão que venha a ser proferida, na hipótese que não se admite de procedência do recurso interposto.
6º - Feito este considerando, salvo o devido respeito, a motivação do recurso interposto carece, em absoluto de fundamento, não merecendo a sentença recorrida qualquer censura.
7º - No que respeita o recurso interposto sobre matéria de facto, considera a Recorrida que a alegação respeitante à actuação da Ré Dra. MFP... não deverá ser admitida, por violação do preceituado no artigo 640º, nº 1, al. a) do CPC.
8º - Com efeito, não indica a Recorrente, nas suas alegações, quais os concretos pontos de facto que no seu entender foram incorretamente julgados, limitando-se a mencionar meios probatórios para concluir por uma actuação negligente da Ré com nexo de causalidade com o dano registado.
9º - Termos em que deve o recurso ser rejeitado, nesta parte.
10º - Sem prescindir, sempre se dirá que, ao contrário da conclusão defendida pela Recorrente, o que resultou provado foi, outrossim, que nenhum comportamento violador da legis artis gerador da obrigação de indemnizar foi praticado pela Ré MFP....
11º - A Recorrente desenvolve o seu raciocínio por exclusão de partes, mas em lado nenhum identifica qual o comportamento assumido pela médica em causa, merecedor de censura.
12º - Salvo o devido respeito, para se poder concluir por um comportamento negligente, será necessário demonstrar qual o comportamento ou acto médico específico que, por acção ou omissão, não respeitou a legis artis. Neste sentido, vide designadamente, Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, de 15.12.2011 e Acórdão da Relação de Lisboa de 16.12.2015, ambos disponíveis em www.dgsi.gt.
13º - Pelo que necessariamente improcede o recurso interposto, no que respeita à pretendida responsabilização da Ré MFP....
14º - Em todo o caso, sobre esta questão, são de destacar as declarações de parte do Réu J..., depoimento gravado no dia 02.02.2018, de 09:55:30 a 11:18:27, minuto 3:43, minuto 4:15, minuto 42:00 e minuto 1:05:10, da Ré MFP..., depoimento gravado no dia 02.02.2018, de 11:18:28 a 12:01:49, minuto 2:20, minuto 29:44, minuto 33:20 e minuto 37:15 e da testemunha JM..., Médico na fundação Champalimaud e parcialmente interveniente na cirurgia realizada, depoimento gravado no dia 02.02.2018, de 14:24:07 a 15:03:09, minuto 06:00, minuto 10:05, minuto 18:59 e minuto 28:13.
15º - Estes elementos de prova são os que assumem maior relevância, não só pelo conhecimento directo que as pessoas em causa têm dos factos em discussão, como também pela enorme experiência profissional dos três médicos, patente em todos os depoimentos prestados e pelo modo como procuraram esclarecer o Tribunal de toda a situação.
16º - Dos aludidos depoimentos resulta à saciedade que não se logrou apurar a causa da laceração, sendo que tudo o que se demonstrou foi no sentido de que o procedimento anestésico utilizado foi o adequado, decorreu com normalidade, era necessário e tinha que ser efectuado com aquele equipamento e daquele modo, implicando riscos, naturalmente.
17º - Decorre também da prova mencionada, que a entubação foi fácil e sem ocorrências anómalas e que só no final da cirurgia se detectou a laceração.
18º - E decorre ainda dos mesmos depoimentos que, caso a laceração com a dimensão que se constatou tivesse ocorrido no acto de entubação, tal teria sido de imediato detectado, uma vez que não se conseguiria ventilar a doente para a realização da cirurgia.
19º - No que respeita ao depoimento da testemunha Dr. GC..., mencionado nas alegações da Recorrente, não podemos descurar que o mesmo não teve qualquer intervenção na cirurgia, nunca analisou exames, mas apenas relatórios e é especialista em medicina legal, não sendo anestesista ou cirurgião torácico.
20º - Conforme consta e bem da sentença recorrida, esta testemunha, tendo inicialmente afirmado que a laceração teve a ver com a entubação, corrigiu de imediato, dizendo que "teve a ver com o tubo".
21º - Finalmente no que respeita à prova documental referida pela Recorrente e à análise que esta testemunha, Dr. GC..., fez da percentagem de casos de laceração da traqueia, importa atentar nos depoimentos supra reproduzidos, uma vez que foi dito expressamente que os referidos estudos e aludidas percentagens respeitam a entubações de traqueia com utilização de tubo simples e não tubo duplo lumen, que foi o utilizado na cirurgia dos presentes autos.
22º - Pelo que estes elementos de prova não têm a virtualidade de conduzir a um resultado diverso do alcançado na primeira instância, ou seja, nada, absolutamente nada, se demonstrou que permitisse concluir por um comportamento negligente gerador de responsabilidade por parte da médica MFP....
23º - Afastada, nos termos expostos, a responsabilidade da Ré MFP..., naturalmente a consequência jurídica será a absolvição da Ré C..., S.A. e, por via da mesma, a ausência de eventual direito de regresso desta sobre a Interveniente G..., S.A. - Companhia de Seguros, SA.
24º - Improcedendo, também nesta parte, o recurso interposto.
25º - Finalmente, no que respeita às sequelas sempre se dirá que, não se contestando que, em virtude da laceração, a Recorrente tenha permanecido mais dias nos cuidados intensivos, tenha tido provavelmente mais dores no pós-operatório imediato e tenha ficado com uma cicatriz maior do que a que teria se não tivesse existido esta complicação, a verdade é que, a prova testemunhal produzida permite concluir que a suturação da traqueia foi concretizada com sucesso e sem sequelas para a doente.
26º - Com efeito, foi exactamente isso que resultou dos depoimentos do Dr. J..., depoimento gravado no dia 02.02.2018, de 09:55:30 a 11:18:27, minuto 7:07, minuto 11:24, minuto 15:30, minuto 21:40, minuto 24:23, minuto 1:10 e minuto 1:12:33, da Dra. MFP... , depoimento gravado no dia 02.02.2018, de 11:18:28 a 12:01:49, minuto 12:40 e minuto 22:30 e do Dr. JM..., depoimento gravado no dia 02.02.2018, de 14:24:07 a 15:03:09, minuto 17:10 minuto 34:20, que acompanharam a Autora.
27º - Mais uma vez refira-se que o depoimento do Dr. GC... que não analisou os exames e que apenas emitiu a sua opinião com base em relatórios que leu, não tem a virtualidade de abalar a credibilidade dos depoimentos supra expostos.
28º - Termos em que, quer no que respeita à não demonstração de um comportamento negligente por parte da Ré MFP..., quer no que respeita à necessária absolvição da Ré C..., quer finalmente, no que respeita à inexistência de sequelas decorrentes da laceração, a sentença proferida fez uma correcta avaliação da prova produzida com o adequado enquadramento jurídico.
29º - Devendo improceder na íntegra o recurso interposto.

A Ré recorrida MFP... também apresentou alegação de resposta, em que defende a confirmação da sentença recorrida, sustentando, em síntese, serem infundados os pontos 14 a 30 (da suposta atuação negligente da recorrida da 2.ª Ré MFP...), 39 a 47 (do pretenso perigo de vida para a Recorrente), 48 a 58 (das alegadas sequelas relacionadas com a laceração da traqueia) e 31 a 38 (da suposta responsabilidade contratual da Ré HC...), das conclusões da alegação da recorrente.
Conclui que a Recorrente não alegou nem provou nenhum dos factos que alega, porquanto:
i) A laceração da traqueia é um risco inerente à entubação endotraqueal, a qual por sua vez é necessária à realização da cirurgia ao pulmão;
ii) O risco de não realizar a cirurgia e tratar o cancro do pulmão era superior ao risco associado ao próprio procedimento cirúrgico e anestésico;
iii)) A cirurgia foi bem sucedida e conseguiu tratar o cancro, e a laceração da traqueia foi uma complicação que ficou resolvida e sem sequelas para a Recorrente;
iv)A Recorrente actuou de acordo com a legis artis e não se provou que tenha actuado de forma negligente;
v) Não se provou que a Recorrente tenha estado em perigo de vida, mas apenas em "risco de vida controlado", relacionado com a toracotomia e não com a laceração da traqueia;
vi) Não se provou a existência de responsabilidade do Hospital C..., S.A..

Colhidos os vistos legais cumpre decidir.

***
II - FUNDAMENTAÇÃO

Como é consabido, as conclusões da alegação do recorrente delimitam o objeto do recurso, ressalvadas as questões que sejam do conhecimento oficioso do tribunal (artigos 635.º, n.º 4, e 639.º, n.º 1, do CPC).
Assim, e tendo em conta as conclusões da alegação de recurso da Autora/Recorrente, identificamos as seguintes questões a decidir:
1.ª Se deve ser alterada (e de que forma) a decisão da matéria de facto;
2.ª Se estão verificados os pressupostos da responsabilidade civil médica.

1.ª questão - Impugnação da decisão da matéria de facto

Factos considerados provados na sentença recorrida

1 - A 16 de fevereiro de 2015, a A. foi submetida a uma intervenção cirúrgica no C..., S.A..
2 - A referida intervenção foi realizada pelo R. J..., na qualidade de cirurgião, pela Dra. C..., como ajudante, e pela R. MFP..., como anestesista.
3 - A intervenção cirúrgica, na sequência de doença do foro oncológico (neoplasia do pulmão), consistiu numa lobectomia inferior direita e resseção de nódulo do lobo superior direito.
4 - Do relato operatório elaborado pelo R. J... consta o seguinte:
“Incisão de 5 cm na pele para proceder a resseção pulmonar das massas pulmonares por Porta Única vídeo-assistida.
Entrada no tórax pelo 5° espaço intercostal.
Colocação de soft tissue retractor.
Resseção da massa do lobo inferior direito com sutura mecânica que resultou positiva para neoplasia no exame ex-temporâneo; resseção da massa do lobo superior negativa para neoplasia no exame ex-temporâneo.
Procedemos à lobectomia inferior direita pela mesma abordagem vídeo-assistida.
Vemos durante o procedimento que a doente tem discreto pneumomediastino na região para-traqueal e da veia ázigos.
Concluímos a resseção anatómica do lobo inferior e procedemos à linfadenectomia das regiões 9 e 7.
Verificamos que o pneumomediastino na região para-traqueal aumentou, pelo que decidimos abrir a pleura mediastínica.
Pedimos para movilizar o tubo endotraqueal e verificamos uma laceração da traqueia de 5-8 cm com tubo endotraqueal a sair fora do lumen da traqueia.
Nesta altura pedimos substituir o tubo de duplo lumen por um tubo simples n° 7. Dada a gravidade da situação foi contactado o Prof. JM..., quem se disponibilizou para ajudar nesta fase complicada da cirurgia.
Aumentamos a toracotomia até à região dorsal para ter melhor acesso à traqueia. Abrimos o pericárdio e fizemos uma resseção parcial do mesmo para poder usar material biológico para apoiar as suturas na traqueia.
Encerramos a traqueia com pontos de Ethibond 3/0 apoiados em "pledgets" de pericárdio autólogo.
Descolamento da pleura parietal pediculada e colocação da mesma por cima da sutura da traqueia e o brônquio. Aplicação de cola biológica para garantir a aerostase da sutura”.
5 - A laceração da traqueia com rutura foi provocada pelo tubo endotraqueal que foi colocado pela R. MFP... durante o procedimento anestésico.
6 - O pneumomediastino - a presença de ar no mediastino - verificado durante o procedimento cirúrgico ocorreu devido à rutura da traqueia.
7 - Em virtude de ter sido aberto o pericárdio e utilizado tecido deste para apoiar as suturas na traqueia, a A. sofreu, no pós-operatório, síndrome pós-pericardiectomia.
8 - Caso a laceração da traqueia com rutura não se tivesse verificado, não teria sido necessário aumentar a toracotomia até à região dorsal, reconstruir a traqueia e realizar pericardiectomia.
9 - A A. deu entrada na Unidade de Cuidados Intensivos a 16 de fevereiro de 2015 e aí permaneceu em coma induzido até ao dia 4 de março de 2015.
10 - O coma induzido destinou-se a facilitar a cicatrização da traqueia.
11 - A A. foi extubada no dia 2 de março de 2005, tendo tido alta para a enfermaria no dia 4 de março de 2015.
12 - A A. teve alta hospitalar a 10 de março.
13 - Já em ambulatório, a A. desenvolveu quadro febril que obrigou ao internamento de 12 de março a 2 de abril de 2015.
14 - No internamento, foi verificada a presença de derrame pleural direito decorrente da lobectomia realizada e de pequeno derrame pericárdico decorrente da pericardiectomia realizada.
15 - Em consequência de ter sido aumentada a toracotomia até à região dorsal, a A. apresenta uma cicatriz nacarada na região torácica.
16 - Se não tivesse ocorrido a laceração da traqueia, a A. teria ficado internado 4 a 5 dias em vez do número de dias que resulta dos pontos 9, 12 e 13 e teria um período de recuperação menor.
17 - Em consequência de ter sido aumentada a toracotomia até à região dorsal e do síndrome pós-pericardiectomia, a A. sofreu mais dores.
18 - A cicatriz referida no ponto 15 determina um dano estético permanente de grau 4 numa escala de 7 graus de gravidade crescente.
19 - Durante o ano de 2014, a A. auferiu o rendimento anual de 42.830,32 €.
20 - A A. passou por um período de desorientação e angústia após ter acordado do coma.
21 - A A. sente-se triste, sem vontade de conviver com os familiares e amigos, tendo o incidente da laceração da traqueia pesado em cima do diagnóstico da doença oncológica.
22 - A A. escolheu o R. J... para a realização da cirurgia.
23 - O R. J... sugeriu à A. o C..., S.A..
24 - O R. J... não pertence ao quadro clínico da R. C..., S.A..
25 - O R. J... requereu à R. C..., S.A. bloco operatório para a realização da cirurgia.
26 - O R. J... requereu à R. C..., S.A. o apoio de anestesista para a intervenção cirúrgica.
27 - A R. MFP... faz parte do quadro clínico da R. C..., S.A..
28 - A laceração da traqueia com rutura é um risco da entubação endotraqueal que é necessária para a realização da cirurgia a que a A. foi sujeita.

Factos considerados não provados na sentença recorrida:
1 - Durante a cirurgia, a A. esteve em situação de perigo de vida.
2 - Durante a permanência da A. na Unidade de Cuidados Intensivos, a sua morte esteve eminente.
3 - O tratamento de quimioterapia a que a A. foi submetida apenas se pôde iniciar a 1 de março de 2016 por ser primeiro necessário que a reconstrução da traqueia se consolidasse e o síndrome pós-pericardiectomia ficasse curado.
4 - O estado da doença oncológica da A. agravou-se por o tratamento de quimioterapia não ter começado antes.
5 - A A. teve mediastinite.
6 - A A. ficou com sequelas do síndrome pós-pericardiectomia/ pericardite.
7 - A situação clínica da A. estabilizou-se a 25 de fevereiro de 2016.
8 - A A. ficou com um défice funcional permanente de integridade física de 51 pontos atentas as sequelas da mediastinite e da pericardite.
9 - A A. ficou impossibilitada de realizar a maioria das atividades desportivas e de lazer que realizava em consequência das sequelas da mediastinite e da pericardite.
10 - A A. necessita de tratamentos médicos regulares para evitar o agravamento das sequelas da mediastinite e da pericardite.
11 - Como consequência das sequelas da mediastinite e da pericardite, a A. necessita da ajuda de terceira pessoa para a realização da maioria das atividades da vida diária relacionadas com a lide e a limpeza doméstica.
12 - A A. sabe que os danos que invoca são os decorrentes da evolução normal da doença oncológica de que padece.
13 - A A. sabe que esta ação terá reflexos negativos na imagem e reputação dos RR. J... e MFP....

A primeira questão que se coloca é a de saber se deve ser alterada a decisão sobre a matéria de facto (provada e não provada).
A Recorrida G..., S.A. pugnou pela rejeição do recurso no que respeita à impugnação da decisão sobre matéria de facto, por considerar que a Recorrente não indicou, nas suas alegações, quais os concretos pontos de facto que no seu entender foram incorretamente julgados, limitando-se a mencionar meios probatórios para concluir por uma atuação negligente da Ré.
Importa ter presente o que dispõe o artigo 640.º do CPC sobre o ónus a cargo do recorrente que impugne a decisão relativa à matéria de facto:
“1 - Quando seja impugnada a decisão sobre a matéria de facto, deve o recorrente obrigatoriamente especificar, sob pena de rejeição:
a) Os concretos pontos de facto que considera incorretamente julgados;
b) Os concretos meios probatórios, constantes do processo ou de registo ou gravação nele realizada, que impunham decisão sobre os pontos da matéria de facto impugnados diversa da recorrida;
c) A decisão que, no seu entender, deve ser proferida sobre as questões de facto impugnadas.
2 - No caso previsto na alínea b) do número anterior, observa-se o seguinte:
a) Quando os meios probatórios invocados como fundamento do erro na apreciação das provas tenham sido gravados, incumbe ao recorrente, sob pena de imediata rejeição do recurso na respetiva parte, indicar com exatidão as passagens da gravação em que se funda o seu recurso, sem prejuízo de poder proceder à transcrição dos excertos que considere relevantes;
b) Independentemente dos poderes de investigação oficiosa do tribunal, incumbe ao recorrido designar os meios de prova que infirmem as conclusões do recorrente e, se os depoimentos tiverem sido gravados, indicar com exatidão as passagens da gravação em que se funda e proceder, querendo, à transcrição dos excertos que considere importantes.
3 - O disposto nos n.ºs 1 e 2 é aplicável ao caso de o recorrido pretender alargar o âmbito do recurso, nos termos do n.º 2 do artigo 636.º.”
É conhecida a divergência jurisprudencial a respeito da aplicação deste normativo e da sua conjugação com o disposto no n.º 1 do art. 639.º, atinente ao ónus de alegar e formular conclusões. Sobre a matéria, veja-se, a título exemplificativo, o acórdão do STJ de 06-12-2016 - Revista n.º 2373/11.0TBFAR.E1.S1 - 1.ª Secção, sumário citado na compilação de acórdão do STJ, Ónus de Impugnação da Matéria de Facto, Jurisprudência do STJ, disponível em www.stj.pt, bem como o acórdão do STJ de 01-10-2015, no processo n.º 824/11.3TTLRS.L1.S1, disponível em www.dgsi.pt, cujo sumário, pelo seu interesse para o caso, se passa a citar:
“I - No recurso de apelação em que seja impugnada a decisão da matéria de facto é exigido ao recorrente que concretize os pontos de facto que considera incorrectamente julgados, especifique os concretos meios probatórios que imponham uma decisão diversa, relativamente a esses factos, e enuncie a decisão alternativa que propõe.
II - Servindo as conclusões para delimitar o objecto do recurso, devem nelas ser identificados com precisão os pontos de facto que são objecto de impugnação; quanto aos demais requisitos, basta que constem de forma explícita na motivação do recurso.
III - Não existe fundamento legal para rejeitar o recurso de apelação, na parte da impugnação da decisão da matéria de facto, numa situação em que, tendo sido identificados nas conclusões os pontos de facto impugnados, assim como as respostas alternativas propostas pelo recorrente, não foram, contudo, enunciados os fundamentos da impugnação nem indicados os meios probatórios que sustentam uma decisão diferente da que foi proferida pela 1.ª instância, requisitos estes que foram devidamente expostos na motivação.
IV - Com efeito, o ónus a cargo do recorrente consagrado no art. 640º, do Novo CPC, não exige que as especificações referidas no seu nº 1, constem todas das conclusões do recurso, mostrando-se cumprido desde que nas conclusões sejam identificados com precisão os pontos de facto que são objecto de impugnação.”
Portanto, conforme resulta claro da conjugação do disposto nos artigos 639.º e 640.º do CPC, o ónus a cargo do recorrente exige que, pelo menos, sejam indicados nas conclusões da alegação do recurso, com precisão, os concretos pontos de facto da sentença que são objeto de impugnação, sem o que não é possível ao tribunal de recurso sindicar eventuais erros no julgamento da matéria de facto.
Ora, é certo que as conclusões da alegação de recurso em apreço pecam por falta de clareza e sistematização, na medida em que não se encontram devidamente autonomizados os fundamentos atinentes à impugnação da decisão sobre a matéria de facto dos fundamentos de direito.
Pensamos, no entanto, que é possível, com algum esforço interpretativo, identificar, nessa amálgama, os concretos pontos de facto que a Autora considera incorretamente julgados e a decisão que, no seu entender, deveria ser proferida a esse respeito. Atentámos em especial nas conclusões 1. a 5., que parecem constituir uma síntese das questões abordadas nas seguintes conclusões, sendo que, não obstante o teor da conclusão 1., a verdade é que as conclusões 2. e 3. não dizem respeito a matéria de facto, mas tão só à fundamentação de Direito da sentença, já que foi nessa sede que se concluiu precisamente “Não tem, pois, a R. legitimidade substantiva” (cf. fls. 471) e que “Da matéria de facto provada não resulta que algo houve de errado na atuação da R. MFP...” (cf. fls. 472-v.).
Porém, as conclusões 6. a 13., 25., 34. e 37. são, no essencial, a reprodução de matéria de facto considerada provada na sentença; as conclusões 14., 23., 24., 26., 27., 28., 29., 30 contêm considerações meramente conclusivas; as conclusões 15. a 21. não se reportam a factos substantivamente relevantes e o que aí se refere não foi sequer oportunamente alegado pela Autora na petição inicial, nem esta alega agora que tenham resultado da instrução da causa; a conclusão 22. não se refere a qualquer facto substantivamente relevante alegado pela Autora (quando muito seria relevante o contrário, se tivesse sido alegado pelos Réus que a intubação foi efetuada num contexto de emergência médica); as conclusões 31., 32., 33., 35., 36., 38. e 48. a 50. contêm considerações genéricas ou de Direito.
De salientar que na decisão da matéria de facto, o Tribunal apenas pode considerar os factos essenciais que integram a causa de pedir (ou as exceções), bem como os factos instrumentais, complementares ou concretizadores que resultem da instrução da causa, e os factos notórios e de que tem conhecimento por via do exercício das suas funções (art. 5.º do CPC), estando-lhe vedado, por força do princípio da limitação dos atos consagrado no art. 130.º do CPC, conhecer de matéria que, ponderadas as várias soluções plausíveis da questão de direito, se mostra irrelevante para a decisão de mérito. Trata-se de manifestações do princípio dispositivo e do princípio da economia processual que se impõem ao juiz da 1.ª instância aquando da seleção da matéria de facto provada/não provada na sentença, mas também na 2.ª instância, no que concerne à apreciação da impugnação da decisão sobre a matéria de facto (neste sentido, veja-se o acórdão do STJ de 17-05-2017, no processo n.º 4111/13.4TBBRG.G1.S1, disponível em www.dgs.pt).

Assim, identificámos as seguintes questões de facto:
1. Se deveria ter sido considerado provado que “Durante a cirurgia, a Autora esteve em situação de perigo de vida” (cf. ponto 1 da matéria de facto não provada na sentença) - conclusões 1. e 4., 39. a 43. e 47.;
2. Se deveria ter sido considerado provado que “Durante a permanência da Autora na Unidade de Cuidados Intensivos, a sua morte esteve iminente” (cf. ponto 2 da matéria de facto não provada na sentença) - conclusões 1. a 4. e 44. a 47.;
3. Se deveria ter sido considerado provado que “A Autora ficou com outras sequelas para além da cicatriz no tórax, diretamente relacionadas com a laceração da traqueia com rutura, designadamente sequelas na traqueia - que apresenta hoje um cicatriz, uma fibrose - e no pericárdio” - conclusões 1. e 5., e 51. a 58.

Quanto ao mais, seja por não resultar das conclusões da alegação de recurso a especificação de outros concretos pontos de facto que a Autora/Recorrente considere incorretamente julgados, seja pela sua inutilidade, rejeita-se a impugnação da decisão sobre a matéria de facto.

Passamos a analisar as duas primeiras questões de facto (se existiu perigo de vida durante a cirurgia e o pós-operatório) em conjunto, até porque a Recorrente, na alegação de recurso, indica conjuntamente os meios probatórios que, no seu entender, impõem decisão diversa a este respeito.
Na decisão recorrida, motiva-se da seguinte forma: O ponto 1 da matéria de facto não provada encontra a sua explicação nos depoimentos dos RR. J... e MFP..., dos quais resulta que houve risco de vida controlado e não perigo de vida.
O ponto 2 da matéria de facto não provada ficou a dever-se ao depoimento da testemunha JB..., testemunha que referiu que o episódio de insuficiência respiratória se deveu a sedimentação de secreções no tubo e que em mãos experientes não importa risco de vida.
A Recorrente, na alegação de recurso, refere a este propósito o seguinte (notas com sublinhado nossas):
“Salvo o devido respeito, não entende a Recorrente a diferença entre risco de vida e perigo de vida ou a relevância da sua diferenciação.
Consultados os dicionários de Língua Portuguesa, encontramos as seguintes definições:
Risco: situação que ameaça a existência de uma pessoa ou coisa; perigo.
Perigo: possibilidade de um acontecimento futuro e incerto. Probabilidade ou possibilidade de perigo: estar em risco.
São expressões que, empregues na vida corrente, se podem consideram sinónimas.
Empregues quando uma pessoa está numa situação em que a sua morte tem uma forte possibilidade de vir a acontecer.
E o que é facto é que, fruto da ruptura da traqueia, a Recorrente se encontrou nessa situação:

Depoimento de parte do Dr. J....
J... [JG]
Data: 02/02/2018
Tempo audio: 40:43 m
JG: Nós conseguimos resolver uma situação grave e salvar a vida da doente. Isto não sei até que ponto foi entendido pelos familiares da doente e pela doente para eu estar aqui sentado como acusado porque realmente eu e o Prof. JM... está como testemunha, mas aquilo que nós conseguimos resolver é uma situação grave e afortunadamente pouco frequente mas é extremamente difícil de resolver e foi resolvida com sucesso. Depois fez uma inflamação do pericárdio, depois ficou com uma cicatriz maior, tudo isso é verdade. Ficou mais limitada de movimentos, com dores, mas salvámos a vida da doente.
A instâncias do advogado da Recorrente [JDR]
Tempo audio: 01:04:00
JDR: Sr. Dr., houve ou não perigo de vida?
JG: Uma cirurgia destas tem sempre perigo de vida alto. Uma complicação destas, uma complicação da traqueia, tem um risco de vida ainda mais alto, ainda maior. Uma situação que a não ter sido resolvida, provavelmente teria sido fatal.
 JDR: O Sr. Dr. lembra-se do que disse aos familiares quando foi ter com eles a seguir à cirurgia? Não terá dito, preparem-se para o pior? [Nota: há na transcrição uma imprecisão, pois as duas questões não foram colocadas de seguida]
JG: Provavelmente sim.

Depoimento da testemunha CL... [CCL] a instâncias do Advogado da Recorrente [JDR]
Data: 02/02/2018
Tempo audio: 05:16 m
[JDR] ... a sua mulher entra no bloco operatório e passado algum tempo o Dr. J... Galego veio falar consigo e com a família ... O que é que o Dr. J... lhe disse nessa altura?
[CCL]: Bom, ele não explicava muito, dizia basicamente que tinha ocorrido um rasgo da traqueia durante a operação, que a traqueia já tinha sido suturada, que estavam à espera da equipe de pneumologistas e para a gente esperar o pior e que o responsável era ele. E disse isso repetidas vezes .... E repetia mais ou menos sempre o mesmo discurso.

Igualmente, deu o Tribunal a quo como não provado não ter estado iminente a morte da Recorrente durante a sua permanência na Unidade de cuidados intensivos:
Depoimento da testemunha Dr. JB... [JB], responsável pela Unidade de Cuidados intensivos do C..., S.A., a instâncias do Advogado da Recorrente [JDR]
Data: 02/02/2018 [Nota: a data está errada, pois o depoimento foi prestado no dia 16-02-2018]
Tempo audio: 41:38 m
[JDR]: ... um doente no pós-operatório com este incidente com este tempo de UCI não corre risco de vida?
[JB]: corre.
Tempo Audio: 44:50
[JB]: ... isto é um processo complexo, não é um pós-operatório normal, 48 horas a correr mal ou mais do que isso é mau.... Em termos de imagem (imagiologia) não é conclusivo, e faz febre, e tem dores, etc. faz-se uma reunião, porque já estávamos um pouco perdidos nesta situação...
Tempo Audio: 49:50
[JB]: ... a ligação é ir buscar o pericárdio para cozer a traqueia, a síndrome de pericardiectomia [na verdade, refere síndrome pós-pericardiectomia] é muito desagradável enquanto se é tratado, aliás são utilizadas drogas que não são isentas de efeitos secundários, nomeadamente a cortisona, atenção!
O Dr. JB... pronunciou-se igualmente sobre a insuficiência respiratória ocorrida na UCI e referida na sentença em crise, a instâncias da Advogada da R: C..., S.A..
Tempo Audio: 49:50 [Nota: tempo áudio incorretamente indicado, sendo aos 07:50]
[JB]: Os doentes quando estão ventilados são aspirados com alguma regularidade, neste caso isso não podia ser feito, porque se nós introduzíssemos a sonda para além do tubo iríamos mexer na zona de cicatrização da traqueia, não sabíamos se íamos, portanto a indicação que tínhamos e o que mandava a prudência é que isso não fosse feito, e não foi feito durante uma quantidade de dias, o que acontece é que sedimentou secreções dentro do tubo e o tubo entupiu, exatamente porque se quebrou um protocolo nos doentes ventilados. Nesta doente isso não podia ser feito, corríamos o risco de lacerar o resto da traqueia.

É do conhecimento comum que uma Unidade de Cuidados Intensivos (UCI) é uma área onde se prestam cuidados a doentes com estado de saúde crítico ou que apresentem potencial risco, necessitando de uma vigilância contínua e intensiva.
Pela sua própria definição, uma estadia tão prolongada da Recorrente na UCI da Recorrida HCV, obviamente apenas pode ser devida, ao risco de vida em que a Recorrente se encontrava.
Mesmo a situação citada na sentença em crise, sendo comum em situações normais, tomou uma dimensão muito maior atenta a situação clínica da Recorrente (cfr. a transcrição do depoimentos do Dr. JB... supra).
Também aqui, andou mal o Tribunal a quo ao dar como não provada os pontos 1 e 2 da matéria de facto não provada.
Face aos depoimentos transcritos, outra não poderia ser a conclusão que não fosse dar como provado o perigo/risco de vida da Recorrente na sequência da rutura da traqueia, tanto durante a cirurgia, como durante a sua permanência na UCI.”

A 2.ª Ré refere, na sua alegação de resposta, existirem imprecisões na transcrição das declarações do Réu J..., salientando que à pergunta sobre se houve ou não perigo de vida, este respondeu “Uma cirurgia destas tem sempre risco de vida alto”.
Ouvida a gravação (através do Citius Media Studio), verifica-se que efetivamente a transcrição não é rigorosa, existindo várias imprecisões (aliás, já assinalámos supra algumas). O depoimento do Réu, pela forma segura e sincera como foi prestado, merece-nos inteira credibilidade. Ora, o Réu, depois de se lamentar pelo facto de algumas pessoas pensarem ter ocorrido um erro cirúrgico, disse “quando nós realmente conseguimos resolver uma complicação grave”; não disse que “conseguimos resolver uma situação grave”.
Além disso, a instâncias do mandatário da Autora, não disse que “uma cirurgia destas tem sempre um perigo de vida alto”. Na verdade, depois de explicar que se a reparação da traqueia não tivesse sido efetuada corretamente poderia ter existido uma infeção (designadamente mediastinite que, essa sim, colocaria em perigo a vida do doente), disse, referindo-se à cirurgia ao pulmão em caso de doença oncológica “Uma cirurgia destas tem sempre um risco de vida alto”. E mais adiante disse que qualquer cirurgia, até estética, tem risco de vida.
Explicou ainda o que podem ser as sequelas duma reparação à traqueia (lacerada) mal sucedida, que poderia inclusivamente levar a paciente a ficar com um problema fixo para respirar ou até a ficar ventilada para toda a vida.
Consideramos, face ao teor do relatório operatório elaborado pelo próprio Réu (ponto 4 da matéria de facto provada, em especial quando aí se refere “Dada a gravidade da situação foi contactado o prof. JM..., quem se disponibilizou para ajudar nesta fase complicada da cirurgia”) e às declarações deste Réu, que, efetivamente, durante a cirurgia, a Autora esteve em situação de risco de vida. O Tribunal recorrido, bem como a 2.ª Ré reconheceram que existiu um risco de vida, ainda que “controlado”. Parece-nos mesmo constituir um facto notório (art. 412.º, n.º 1, do CPC) a existência de risco de vida durante uma intervenção cirúrgica como aquela a que a Autora foi sujeita, considerando que padecia de doença oncológica (cancro do pulmão) e a intervenção implicava uma anestesia geral efetuada por anestesista e os procedimentos realizados por cirurgião para retirar a massa tumoral.
Mas, embora possa parecer quase um jogo de palavras, a verdade é que são coisas diferentes dizer que a Autora esteve em perigo de vida ou dizer que a cirurgia envolvia risco de vida. O que a Autora pretende ver provado, no contexto dos demais factos provados, tem um alcance diferente, querendo significar que, a dado momento da intervenção, a vida da Autora esteve em perigo de se perder, como se algo tivesse corrido muito mal e os médicos tivessem perdido o controlo da situação, o que não resulta dos citados depoimentos e relatórios, antes, pelo contrário.
Veja-se que a Autora alegou, no art. 9.º da petição inicial, que durante a cirurgia se verificou ter sido provocada a laceração da traqueia originando uma situação “muito complexa” e de extrema gravidade, com perigo de vida, que obrigou a que a Autora tivesse de ser transferida, no pós-operatório, para a Unidade de Cuidados Intensivos. Na verdade, tal quadro não é rigoroso, antes resultando do conjunto da prova produzida nos autos, em especial dos depoimentos do Réu e da testemunha JB..., que a Autora, durante a intervenção cirúrgica, não chegou a correr perigo de vida e que sempre teria de ser transferida para a UCI.
Assim, neste particular, e não obstante reconhecendo, até por se tratar de facto notório, que uma tal cirurgia implica risco de vida, a decisão da matéria de facto não deverá ser alterada.

Também quanto ao ponto 2. da matéria de facto não provada (perigo de vida no pós-operatório), desde já adiantamos não ter razão a Autora/Recorrente. Com efeito, não é possível considerar que a estadia da Autora na Unidade de Cuidados Intensivos de 16-02-2015 a 04-03-2015, pela sua duração, “obviamente apenas pode ser devida, ao risco de vida em que a Recorrente se encontrava” (conforme alega). Na verdade, está também provado (factos que a Recorrente não impugnou) que a Autora permaneceu aí em coma induzido e que isso se destinou a facilitar a cicatrização da traqueia. Por outro lado, resulta do relatório médico elaborado pelo Réu (em 10-03-2015), que a própria Autora juntou aos autos, logo com a petição inicial, que “A doente teve um pós-operatório sem sinais de infeções graves, nomeadamente mediastinite, e sem sinais de haver fugar aéreas, isto é fístulas da sutura da traqueia”.
É verdade que no outro relatório médico junto com a petição inicial (de 05-10-2015), elaborado pelo Dr. JB..., é referido que a Autora, “no dia 25 de fevereiro de 2015, durante o processo de desmame de sedação e ventilação mecânica a doente sofreu episódio de insuficiência respiratória com necessidade de ventilação manual, por obstrução do tubo orotraqueal, pelo que reiniciou Atracurium e Propofol”. A Autora invocou a ocorrência desse episódio para afirmar que “a sua morte esteve eminente” (cf. art. 12.º da petição inicial). Mas esse mesmo médico explicou, no seu depoimento, que nos mereceu inteira credibilidade, o porquê dessa situação, daí não resultando, nem do relatório que elaborou, que a morte da Autora tenha, nessa ocasião, estado iminente. Referiu apenas que um doente corre risco de vida durante a permanência na UCI mas isso não significa que a morte tenha estado iminente. Aliás, o Dr. José Vau explicou a preocupação que a Autora inspirou devido à febre (e o receio que isso pudesse significar uma mediastinite, que não se confirmou, na opinião deste médico), daí a terapêutica antibiótica profilática que disse ter sido efetuada. O Dr. José Vau referiu um único episódio de insuficiência respiratória (nem sequer de falência respiratória, que tenha sido revertida), cuja ocorrência justificou, explicando que embora tal episódio tenha causado “stress”, não implicou risco de vida para a Autora e se resolveu com alguma tranquilidade, fazendo ventilação manual e aspirando.
Portanto, improcedem as conclusões da alegação, mantendo-se a decisão da matéria de facto não provada, quanto aos pontos 1. e 2.

Terceira questão de facto (sequelas da rutura da traqueia)
Importa decidir se deverá acrescentar-se ao elenco dos factos provados que “A Autora ficou com outras sequelas para além da cicatriz no tórax, diretamente relacionadas com a laceração da traqueia com rutura”.
Já acima dissemos que as conclusões 48. a 50. são considerações genéricas e de Direito. Mas voltamos a este ponto para que dúvidas não restem. Com efeito, a Recorrente refere, de forma algo confusa e conclusiva, que as sequelas sofridas “podem ser divididas entre as que se verificaram a curto prazo – entendendo-se por curto prazo, as que se verificaram no pós-operatório, durante a sua permanência na Unidade de Cuidados Intensivos e até à data do relatório médico da autoria do Dr. JB... (5 de Outubro de 2015). A multiplicidade de ocorrências, exames, medicação, incidentes, que ocorreram durante a permanência da Recorrente na UCI por prazo alargado, devem ser consideradas sequelas da rutura da traqueia. Sem a laceração, o tempo de permanência na UCI seria muito mais curto e sem as sequelas que aí se registaram”.
Não podemos acompanhar o conceito de sequelas ora proposto. A sequela é, por definição, uma alteração anatômica ou funcional permanente, sendo causada por uma doença ou um acidente. As sequelas terão um impacto maior ou menor, consoante a sua natureza ou gravidade, na vida do lesado, no plano profissional, familiar ou social.
No presente processo, a Autora, na petição inicial, identificou as sequelas de que alegadamente ficou a padecer baseando-se no parecer médico junto aos autos (doc. 1), referindo “sequelas de mediastinite e pericardite”, bem como “cicatriz nacarada que a A. apresenta na região torácica”, após o que identificou “no âmbito dos danos permanentes”, os seguintes: i. Défice funcional permanente da integridade físico-psíquica fixado em 51 pontos; ii. Com repercussão permanente na atividade profissional – sequelas incompatíveis com o exercício da atividade habitual; Dano estético permanente, fixável no grau 4, atenta a cicatriz que a A. apresenta; iv. Repercussão permanente nas atividades desportivas e de lazer, fixável no grau 5, v. Dependência permanente de ajuda, designadamente com tratamentos médicos regulares e ajuda de terceira pessoa durante 4 horas diárias até ao final da sua vida.
São estas as sequelas que foram alegadas na petição inicial. Daí que na sentença recorrida, de harmonia com o princípio dispositivo (cf. art. 5.º do CPC), o Tribunal tenha tomado em consideração essa alegação fáctica, ao decidir considerar não provados os seguintes factos:
5 - A A. teve mediastinite.
6 - A A. ficou com sequelas do síndrome pós-pericardiectomia/pericardite.
8 - A A. ficou com um défice funcional permanente de integridade física de 51 pontos atentas as sequelas da mediastinite e da pericardite.
9 - A A. ficou impossibilitada de realizar a maioria das atividades desportivas e de lazer que realizava em consequência das sequelas da mediastinite e da pericardite.
10 - A A. necessita de tratamentos médicos regulares para evitar o agravamento das sequelas da mediastinite e da pericardite.
11 - Como consequência das sequelas da mediastinite e da pericardite, a A. necessita da ajuda de terceira pessoa para a realização da maioria das atividades da vida diária relacionadas com a lide e a limpeza doméstica.
Não se vislumbra que outros factos substantivamente relevantes alegados pela Autora pudessem ter sido considerados. Por isso, as afirmações constantes das conclusões 48. a 50. não podem deixar de ser vistas como irrelevantes no plano da impugnação da decisão sobre a matéria de facto, constituindo apenas uma qualificação que a Autora faz de alguns dos factos provados (designadamente os descritos nos pontos 7, 10, 16 e 17), ou seja, matéria que respeita ao enquadramento jurídico dos factos provados.
Na conclusão 52. a Autora clama que “outras sequelas deveriam ter sido dadas como assentes”, referindo de seguida a existência de “sequelas na traqueia e no pericárdio” e que “a traqueia apresenta hoje uma cicatriz, uma fibrose”. Ora, essa alegação não consta da petição inicial e mostra-se demasiado vaga. Afirmar que a Autora teve sequelas na traqueia e no pericárdio, sem concretizar do que se trata, não basta. Aliás, estes factos parecem-nos quase redundantes, considerando estar provado que a Autora teve o pericárdio aberto e que o tecido deste foi utilizado para apoiar as suturas na traqueia, tendo sido necessário aumentar a toracotomia até à região dorsal, tudo para reconstruir a traqueia (pontos 7. e 8. da matéria de facto provada). E ainda que, em consequência de ter sido aumentada a toracotomia até à região dorsal, a Autora apresenta uma cicatriz nacarada na região torácica, a qual determina um dano estético permanente de grau 4 numa escala de 7 graus de gravidade crescente (pontos 15. e 18. da matéria de facto provada). Como é evidente, uma cicatriz na região torácica resultado de toracotomia para abrir o pericárdio e permitir a reconstrução da traqueia lacerada não pode deixar de ser uma cicatriz interna (fibrose), para além do aspeto visível que tem. A cicatriz é precisamente uma fibrose, uma área de tecido fibroso em consequência de uma lesão ou corte cirúrgico.
Entendemos, pois, que os factos agora indicados, além de não terem sido oportunamente alegados na petição inicial, tão pouco podem ser considerados como factos complementares ou concretizadores resultantes da instrução (cf. art. 5.º, n.º 2, do CPC). Pelo contrário, esses factos carecem de ser complementados e concretizados, não tendo sido produzida bastante a seu respeito, sobretudo tendo em conta o depoimento da testemunha JB..., que referiu não estarem documentadas sequelas no caso da Autora, em especial do síndrome pós-pericardiectomia.
Nas conclusões 57. e 58. estamos perante meras conjeturas ou suposta exemplificação do que antes se referiu. Além disso, verificamos, pelo teor das conclusões da sua alegação de recurso, que a Autora não impugnou a decisão sobre a matéria de facto relativamente aos pontos 3. a 6., 8., 9. (parte final), 10. (parte final) e 11. (primeira parte) da matéria de facto não provada na sentença.
Assim, atenta a factualidade alegada e já considerada provada e tendo em atenção o disposto no art. 5.º do CPC, conclui-se não assistir razão à Autora no tocante ao aditamento à matéria de facto provada.

Destarte, conclui-se que não deve ser alterada a decisão sobre a matéria de facto.

Enquadramento jurídico

Importa então aplicar o direito aos factos provados acima enunciados.
A fundamentação de Direito da sentença recorrida (suprimidas as passagens com citações de jurisprudência) é a seguinte:
“Na presente ação, a A. invocou a responsabilidade contratual.
(…) Resulta da matéria de facto provada que a A. escolheu o R. J... para a realização da cirurgia; que o R. J... sugeriu à A. o C..., S.A.; que o R. J... não pertence ao quadro clínico da R. C..., S.A..; que o R. J... requereu à R. C..., S.A. bloco operatório para a realização da cirurgia; que o R. J... requereu à R. C..., S.A. o apoio de anestesista para a intervenção cirúrgica; e que a R. MFP... faz parte do quadro clínico da R. C..., S.A..
Face a tal matéria de facto, importa considerar estarmos perante um contrato total com escolha de médico.
Nos termos do art. 800° n° 1 do C.C., "o devedor é responsável perante o credor pelos atos dos seus representantes legais ou das pessoas que utilize para o cumprimento da obrigação, como se tais atos fossem praticados pelo próprio devedor".
Na relação contratual entre a A. e a R. C..., S.A., esta é responsável pela conduta da R. MFP... e, na relação contratual entre a A. e o R. J..., este é responsável pela sua conduta.
Não tem, pois, a R. legitimidade substantiva.
Nos termos do art. 798° do C.C., "o devedor que falte culposamente ao cumprimento da obrigação torna-se responsável pelo prejuízo que causa ao credor".
Da leitura desta norma pode-se extrair os pressupostos da responsabilidade contratual, a saber: o facto, a ilicitude, a culpa, o dano e o nexo de causalidade.
(…) Então, o médico erra não quando não atinge o resultado da cura ou da atenuação do mal ou do sofrimento do paciente, mas quando não utiliza com diligência, perícia, e consideração as técnicas e conhecimentos reconhecidos pela ciência médica, para o concreto caso clínico, que definem, em cada momento, as leges artis.
Sempre que assim é, trata-se de uma mera obrigação de meios, que não de uma obrigação de resultado, incumbindo, pois, ao doente o ónus de provar a falta de diligência do médico (www.dgsi.pt Acórdão do STJ proferido a 15 de dezembro de 2011, processo 209/06.3TVP RT. P1.S1).
(…) Resulta da matéria de facto provada que ocorreu uma laceração da traqueia de 5-8 cm com tubo endotraqueal a sair fora do lumen da traqueia; que a laceração da traqueia com rutura foi provocada pelo tubo endotraqueal que foi colocado pela R. MFP... durante o procedimento anestésico; e que a laceração da traqueia com rutura é um risco da entubação endotraqueal que é necessária para a realização da cirurgia a que a A. foi sujeita.
Da matéria de facto provada não resulta que algo houve de errado na atuação da R. MFP....
(…) No meu entender, não ser a responsabilidade médica uma responsabilidade objetiva é o argumento que permite refutar a posição que defende que basta provar que ocorreu uma lesão da integridade física do doente não exigida pelo cumprimento do contrato para se considerar verificada a ilicitude.
Assim, se a lesão da integridade física ocorrida constitui um risco da intervenção, incumbe ao doente o ónus de provar a falta de diligência do médico.
No caso dos autos, a A. não alegou nem provou a falta de diligência da R. MFP... na entubação endotraqueal.” (sublinhado nosso).

A Autora/Recorrente, nas conclusões da sua alegação de recurso, salienta que ocorreu uma laceração da sua traqueia com rutura, logo uma lesão da sua integridade física, pelo que a ilicitude está verificada; que a 2.ª Ré atuou com imperícia e culpa negligente, descurando o seu dever de cuidado; que a referida laceração foi provocado pelo tubo endotraqueal colocado por esta Ré durante o procedimento anestésico, pelo que existe nexo de causalidade entre a atuação desta Ré e dano. Mais refere que na relação contratual entre a Autora e a Recorrida 1.ª Ré, esta é responsável pela conduta da 2.ª Ré, sua funcionária; e que estamos perante um caso de contrato total com escolha de médico (com contrato de médico adicional), concluindo que a sentença recorrida violou os artigos 483.º, 496.º, 562.º, 564.º, 566.º, 798.º, 799.º e 800.º do CC.
A Recorrida G..., S.A. defende não ter resultado provado qualquer “comportamento violador da legis artis praticado pela 2.ª Ré, o que naturalmente implica a absolvição da Ré C..., S.A. e, por via da mesma, a ausência de eventual direito de regresso desta sobre a Interveniente G..., S.A..”
A Recorrida 2.ª Ré sustenta que a laceração da traqueia é um risco inerente à entubação endotraqueal que, por sua vez, é necessária à realização da cirurgia ao pulmão, que a laceração ocorrida constituiu uma complicação da cirurgia e ficou resolvida sem sequelas para a Recorrente; que a 2.ª Ré atuou de acordo com as legis artis e não provou que tenha atuado de forma negligente, tão pouco se provando a existência de responsabilidade do Hospital C..., S.A..

A responsabilidade civil médica é uma matéria que tem merecido amplo tratamento na doutrina e na jurisprudência. Destacamos, pela sua atualidade e interesse, o estudo de Rui Torres Vouga, “A Responsabilidade médica (Uma imprescindível mudança de paradigma na jurisprudência)”, publicado no e-book do CEJ “Responsabilidade civil Profissional”, Março 2017, disponível em www.cej.mj.pt.
No âmbito da responsabilidade médica privada, a regra é a da natureza contratual da responsabilidade médica, podendo revestir, por vezes, natureza excontratual ou delitual, por violação de direitos absolutos (mormente o direito à vida e o direito à integridade física). Quando tal suceda, isto é, quando ao lesado assista uma dupla tutela (contratual e delitual), poderá optar por invocar uma ou outra, muito embora, em regra, o regime que mais lhe convenha seja o da responsabilidade contratual, face às regras atinentes ao ónus da prova da culpa (artigos 344.º, 487.º, n.º 1, e 799.º, n.º 1, do CC). Independentemente da opção que fizer, o Tribunal poderá qualificar diversamente os factos alegados pelo autor/lesado – cf. art. 5.º, n.º 3, do CPC.
Seguindo de perto o referido estudo, consideramos a respeito da natureza jurídica do contrato que se estabelece entre o paciente/lesado e os médicos ou os estabelecimentos de saúde privados, que se trata de contrato de prestação de serviços inominado, ao qual se aplicam, com as necessárias adaptações, as regras relativas ao mandato (cf. art. 1156.º do CC).
No caso de atividade médica exercida nos estabelecimentos de saúde privados, o mais normal será a qualificação da responsabilidade civil destes estabelecimentos como tendo natureza contratual (“o paciente escolhe dirigir-se àquele estabelecimento” – estudo citado, pág. 142), respondendo pelos atos daqueles (médicos, enfermeiros, auxiliares administrativos ou de limpeza) que utilizar no cumprimento das suas obrigações nos termos do art. 800, n.º 1, do CC. Já o médico que atua como auxiliar, exercendo a sua atividade na clínica, seja como funcionário desta seja como um mero prestador de serviços, no quadro de contrato de prestação de serviços que o vincula à clínica, apenas responderá a título delitual, no quadro da responsabilidade por factos ilícitos (estudo citado, pág. 144).
Conforme se refere neste estudo (pág. 147), nestes contratos celebrados entre o doente e os estabelecimentos de saúde privados podem ser identificadas três modalidades distintas, na esteira de Carlos Ferreira de Almeida (in “Os Contratos Civis de Prestação de Serviço Médico”, comunicação publicada em “Direito da Saúde e Bioética”, 1996, AAFDL, págs. 90 e seguintes):
“a) Contrato total, em que a clínica assume directa e globalmente obrigações de prestação de actos médicos conjuntamente com as de internamento hospitalar: a clínica é responsável, nos termos do artigo 800º, nº 1, do Código Civil, pelos actos praticados pelas pessoas que utiliza para o cumprimento das suas obrigações, incluindo os actos do médico ou médicos integrados no contrato;
b) Contrato dividido, que compreende apenas as obrigações próprias do contrato de internamento, embora acordado em conexão com um outro contrato de prestação de serviço médico directa e autonomamente celebrado com um médico: a clínica é, nestes casos, responsável apenas pelos actos praticados pelo pessoal envolvido na execução do contrato de internamento, com exclusão, pois, dos actos médicos;
c) Contrato entre a clínica e o paciente, cujo objecto exclusivo é a prestação de serviços médicos, necessariamente praticados por um ou mais médicos – por via de regra, serviço médico prestado em regime ambulatório e consistente em consultas, cuidados de saúde simples e/ou exames complementares de diagnóstico: o contrato tem o mesmo conteúdo e a mesma natureza que o contrato celebrado directamente com um médico profissional liberal, mas a obrigação de prestação de serviço médico é assumida pela clínica, pelo que é esta que é responsável nos termos do artigo 800º, nº 1, do Código Civil, nos termos supra apontados.”
Ainda no referido estudo (pág. 148), citando André Gonçalo Dias Pereira (obra citada, pág. 687), identifica-se “Uma sub-modalidade do contrato total é o chamado contrato total com escolha de médico (contrato médico adicional): «Por vezes, nas clínicas privadas, o paciente deseja que uma determinada prestação, por exemplo, uma cirurgia, seja levada a cabo por um determinado cirurgião, tendo acordado com ele um pagamento adicional de honorários». Refere-se também que “Na Alemanha, a jurisprudência do BGH (Supremo Tribunal Federal) considerou tratar-se ainda de um contrato total, mas com a especificidade de haver um contrato médico adicional (relativo a determinadas prestações)”.

No caso em apreço, a Autora invoca a responsabilidade contratual e considera que existe um contrato total com escolha de médico. Mas, ao contrário do que sucede na G..., S.A.dade das situações apreciadas na jurisprudência, não alegou nem provou nenhum facto que permita considerar que entre ela e a 1.ª Ré foi celebrado um contrato de prestação de serviços médicos. Não alegou que escolheu ser aí submetida a intervenção cirúrgica e internada mediante o pagamento de contrapartida monetária (ainda que por intermédio do seguro de saúde). E se na maior parte dos casos quase se poderá dizer que existe um comportamento concludente revelador da celebração de um tal contrato, é claro que no presente caso isso não pode ser afirmado, porquanto a 1.ª Ré afirmou não se estar perante “um caso de contrato total com escolha de médico – como levianamente afirma a A. – mas antes um contrato dividido, pelo que a clínica pode reclamar a ilegitimidade numa lide de responsabilidade médica”. Mais, esta Ré alegou um conjunto de factos para afastar o enquadramento jurídico propugnado pela Autora, factos que resultaram provados, designadamente que:
- A Autora escolheu o Réu J... para a realização da cirurgia;
- O Réu J... sugeriu à A. o C..., S.A.;
- O Réu J... não pertence ao quadro clínico da R. C..., S.A.;
- O Réu J... requereu à R. C..., S.A. bloco operatório para a realização da cirurgia;
- O Réu J... requereu à R. C..., S.A. o apoio de anestesista para a intervenção cirúrgica;
- A R. MFP... faz parte do quadro clínico da R. C..., S.A..
Desta factualidade resulta que existe um contrato de prestação de serviços médicos entre a Autora e o Réu médico. Ainda que paralelamente possa existir um contrato de internamento entre a Autora e a 1.ª Ré HCV (admitimos que isso já seja concludente), o que nos remete para a figura do contrato dividido, a responsabilidade desta Ré limitar-se-á aos atos praticados pelo pessoal envolvido na execução do contrato de internamento, com exclusão, pois, dos atos médicos. Ora, estando em causa a laceração da traqueia durante a intervenção cirúrgica, não questionando a Autora a qualidade dos serviços prestados durante o internamento, impõe-se concluir que a 1.ª Ré não é contratualmente responsável pelos danos invocados e não vislumbramos que outra responsabilidade lhe possa ser assacada.

Temos, pois, que só relativamente ao Réu se pode equacionar a existência de responsabilidade contratual, colocando-se ainda a questão de saber se este responde ou não pelos atos da anestesista cujo apoio requereu.
A este respeito, a doutrina e a jurisprudência dividem-se. Com efeito, enquanto para alguns “se o doente contratou apenas com o cirurgião, este responde pelos actos de todos os membros da equipa, incluindo o anestesista” (assim Figueiredo Dias e Sinde Monteiro, in “Responsabilidade Médica em Portugal”, BMJ n.º 332, pág. 51, citados no referido estudo pág. 66, nota de rodapé 201), para outros não é assim. Passamos a citar o que este a propósito se explana, de forma bem elucidativa, no aludido estudo, págs. 67 e 68. Trata-se de citação extensa, mas que consideramos da maior utilidade para a compreensão do caso em apreço.
“(…) relativamente aos actos praticados pelo médico anestesista, embora «sem excluir liminarmente a possibilidade de um médico poder actuar como auxiliar de outro médico (art. 800º do Código Civil), de molde a responsabilizá-lo pelos actos que o primeiro pratique, a verdade é que não se vê bem que tal qualificação quadre em absoluto à relação cirurgião-anestesista».
Pelo menos nos casos em que o doente faz questão de ser assistido por determinado profissional especialista em anestesiologia, em vez de um outro que alternadamente faz equipa com o cirurgião, «só forçando a realidade das coisas se poderá afirmar que o anestesista é um mero auxiliar do cirurgião». «Ao contrário, deverá considerar-se que é o próprio anestesista que pessoal e directamente responde pelos danos causados por força de qualquer actuação negligente». Efectivamente, «cirurgiões e anestesistas têm áreas bem delimitadas de responsabilidade perante o doente e, por via de regra, nenhum deles controla ou dirige as actividades do outro». Consequentemente, «os anestesistas são, em princípio, autónomos e (…) o cirurgião não é responsável pelos actos que os primeiros pratiquem».
De resto – segundo JOÃO ÁLVARO DIAS (in ob. cit., p. 243) -, «se é verdade poder afirmar-se que, em certos casos, o anestesista não tem qualquer relação com o doente antes da intervenção, na maior parte dos casos vai examiná-lo antes, inteirar-se do seu dossier, recomendar-lhe certas análises». «Forma-se assim entre o médico anestesista e o doente um contrato, por força do qual este último aceita submeter-se aos cuidados que o primeiro se propõe prestar-lhe»
Aliás – sempre segundo JOÃO ÁLVARO DIAS (in ob. cit., p. 243) -, «parece curial considerar que se acaso o médico anestesista, ressalvadas circunstâncias excepcionais, tomasse a seu cargo o doente em plena sala de operações, sem previamente ter tido qualquer contacto com ele e o haver examinado, estaria só por isso a praticar um facto ilícito e culposo, susceptível de o fazer incorrer em responsabilidade por qualquer dano que daí pudesse advir».
De todo o modo, «se não houver qualquer contacto anterior à operação com os colaboradores do cirurgião nem elementos dos quais se deduza que o cirurgião tenha actuado em representação de algum ou de cada um dos outros médicos ou do doente, concluir-se-á que nenhum contrato foi celebrado entre os colaboradores e o doente».
Na jurisprudência, a responsabilidade do médico anestesista interveniente numa cirurgia realizada por outro médico foi tratada “ex professo” no recente Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 28/01/2016 (Proc. nº 136/12.5TVLSB.L1.S1; Relator – MARIA DA GRAÇA TRIGO) – cujo texto integral está acessível on-line in: http://www.dgsi.pt/jstj.nsf -, no qual se concluiu que:
«É do conhecimento geral que, do ponto de vista científico e técnico, o médico anestesista não está dependente do cirurgião, nem se encontra sujeito às ordens deste (cfr., por exemplo, Sónia Fidalgo, Responsabilidade penal por negligência no exercício da medicina em equipa, 2008, págs. 196 e segs.). Não é de excluir, em absoluto, a possibilidade de responsabilizar o cirurgião pela conduta da anestesista se se apurar que esta última era, em concreto, uma auxiliar, ainda que independente, de cumprimento das obrigações de que aquele é devedor. Contudo, no caso em apreciação, os factos provados (sabe-se apenas que o Réu médico-cirurgião “contactou com a Interveniente, médica anestesista que presta serviço regular junto do BB, a qual é experiente, nomeadamente em cirurgias ortopédicas, para a mesma realizar a anestesia à A.”) são insuficientes para definir com clareza e rigor a relação entre o R. médico cirurgião e a Interveniente médica anestesista, de modo a qualificar a segunda como auxiliar de cumprimento da prestação do primeiro.
Assim, o R. médico-cirurgião é responsável, desde que se prove que os danos foram causados pela sua conduta ou pela conduta daqueles que são seus auxiliares de cumprimento. Mas não é responsável pela conduta da Interveniente anestesista, por não ser esta sua auxiliar de cumprimento.»

Estas considerações, mormente a citada jurisprudência do STJ, merecem a nossa concordância, pelo que se impõe concluir que, relativamente ao Réu, o caso deve ser analisado do prisma da responsabilidade contratual, mas relativamente à 2.ª Ré, anestesista, não tendo a Autora alegado quaisquer factos que permitam considerar ter também escolhido contratar com esta Ré, temos de descartar a sua responsabilidade contratual.
E também não logramos retirar com segurança da matéria de facto provada que a 2.ª Ré seja uma mera auxiliar do Réu, antes pelo contrário. Logo, a sua responsabilidade, a existir, apenas poderá configurar responsabilidade extracontratual, por facto ilícito.
Quanto ao Réu, ainda que se presuma a sua culpa (art. 799.º do CC), é claro que tal presunção se mostra ilidida, já que não poderá ser responsabilizado pela atuação da Ré anestesista, resultando dos factos provados que a laceração da traqueia com rutura foi provocada pelo tubo endotraqueal colocado pela referida Ré durante o procedimento anestésico e que a laceração da traqueia com rutura é um risco da entubação endotraqueal.

Resta saber se, relativamente à 2.ª Ré, estão verificados todos os pressupostos da responsabilidade civil delitual.
O princípio geral no domínio da responsabilidade civil por factos ilícitos está consagrado no n.º 1 do art. 483.º do CC, segundo o qual “Aquele que, com dolo ou mera culpa, violar ilicitamente o direito de outrem ou disposição legal destinada a proteger interesses alheios fica obrigado a indemnizar o lesado pelos danos resultantes da violação”.
Assim, para que alguém incorra em responsabilidade civil extracontratual, suportando a respetiva obrigação de indemnizar, é necessário que estejam verificados os seguintes pressupostos:
a) o facto voluntário do agente, conduta humana (que pode traduzir-se numa ação ou numa omissão) dominada ou dominável pela vontade;
b) a ilicitude desse facto, que pode revestir a modalidade de violação de direito alheio (direito subjetivo) ou de violação de uma disposição legal destinada a proteger interesses alheios;
c) o nexo de imputação do facto ao lesante, ou culpa do agente, em sentido amplo, que se traduz num juízo de censura ou reprovação da sua conduta, e que pode revestir a forma de dolo ou de negligência;
d) o dano ou prejuízo;
e) o nexo de causalidade entre o facto praticado pelo agente e o dano sofrido pela vítima.
No quadro da responsabilidade civil por factos ilícitos, todo aquele que intenta uma ação de indemnização nela fundada tem de demonstrar que estão verificados todos os pressupostos acima referidos para que o Tribunal possa concluir pela titularidade do direito à indemnização, constituindo tais pressupostos factos constitutivos do direito que o lesado se arroga (arts. 342,º, n.º 1, do CC).
Assim, o art. 487.º, n.º 1, do CC, preceitua que é ao lesado que incumbe provar a culpa do autor da lesão, salvo se existir uma presunção legal de culpa, com a consequente inversão do ónus da prova (art. 344.º, n.º 1, do CC).
De entre essas presunções, merece especial destaque a consagrada no art. 493.º, n.º 2, do CC. A tese mais amplamente defendida na doutrina e na jurisprudência é a de que, embora a medicina seja uma atividade que intrinsecamente comporta perigo, a mesma não se enquadra na previsão do art. 493.º, n.º 2, do CC, não se tratando de atividade genericamente perigosa, nem por si, nem nas suas consequências, só em situações muito excecionais se devendo considerar como tal (estudo citado, páginas 108 a 111).

Era à Autora que incumbia, obviamente, alegar e provar os factos que permitissem subsumir a atuação da 2.ª Ré no referido preceito legal, alegando que os procedimentos realizados por aquela, pelos meios técnicos envolvidos, se mostravam particularmente arriscados face à comum anestesia. Porém, a Autora não o alegou. Pelo contrário, da sua alegação resulta que se trata de procedimento corrente, sendo mínimo o risco de rutura traqueal após intubação. Nada nos factos provados permite, pois, lançar mão da referida presunção legal.
Não estando provado que a laceração da traqueia se deveu a um qualquer procedimento errado levado a cabo pela Ré médica anestesista, antes se provando que se trata de um risco da entubação endotraqueal, uma complicação da cirurgia que se resolveu, sem outras sequelas, para além da maior extensão da cicatriz, é claro que não se pode considerar verificada a prática de ato ilícito culposo por parte da 2.ª Ré, quedando afastada a sua responsabilidade pelos invocados danos.
Assim, sem necessidade de mais considerações, conclui-se que improcedem as conclusões da alegação de recurso.

Vencida a Autora, suportará o pagamento das custas processuais, nos termos dos artigos 527.º e 529.º do CPC.

***
III - DECISÃO

Pelo exposto, decide-se negar provimento ao recurso e, em consequência, confirmar a sentença recorrida e condenar a Autora no pagamento das custas do recurso.

Lisboa, 08-11-2018

Laurinda Gemas

Gabriela Cunha Rodrigues

Arlindo Crua