Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa | |||
Processo: |
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Relator: | FERNANDO ESTRELA | ||
Descritores: | CRIME DE MAUS TRATOS A ANIMAIS DE COMPANHIA | ||
Nº do Documento: | RL | ||
Data do Acordão: | 05/23/2019 | ||
Votação: | UNANIMIDADE | ||
Texto Integral: | N | ||
Texto Parcial: | S | ||
Meio Processual: | RECURSO PENAL | ||
Decisão: | NÃO PROVIDO | ||
Sumário: | I-Quem ao ver inequivocamente um cão/ canídeo de porte pequeno, o qual conhecia e tinha tido contacto anteriormente, por ser conhecido da sua detentora, a aproximar-se de si, levantando as patas, e logo lhe desfere um pontapé na zona abdominal, fazendo com que o mesmo fosse projetado contra uma porta de vidro, tendo o animal ganido e ficado dorido, pratica um crime de maus tratos a animais de companhia, previsto e punido pelo artigo 387.°, n.° 1 do Código Penal, tendo aindo agido com dolo directo; II-Um animal de companhia será qualquer animal detido ou destinado a ser detido por seres humanos, designadamente no seu lar, para seu entretenimento e companhia, sendo o bem jurídico protegido pelo tipo legal de crime a manutenção da integridade física e psíquica do animal, evitando os maus-tratos e garantir-lhe uma vida saudável; III-Até à entrada em vigor da Lei n.° 69/2014, de 29.08, que entrou em vigor em 1 de Outubro de 2014, os maus tratos a animais não tinham tutela penal, podendo falar-se numa lacuna a este nível, que era colmatada, por vezes, com a punição a título do crime de dano, p. e p. pelo artigo 212.°, n.° 1 do Código Penal, sendo que, neste caso, o que se protege é o bem jurídico património de alguém, mas também no Direito Civil por via das alterações legislativas operadas ao Código Civil pela entrada em vigor da Lei n.° 8/2017, de 3 de Março, veio consagrar, no seu artigo 201.°-B, que os animais são seres vivos dotados de sensibilidade e objeto de proteção jurídica em virtude da sua natureza cuja proteção jurídica opera pelas disposição desse Código e por legislação especial, só subsidiariamente se aplicando as disposições relativas às coisas, desde que não sejam incompatíveis com a sua natureza — artigos 201.°-C e 201.° -D do Código Civil. | ||
Decisão Texto Parcial: | Acordam na 9ª secção do Tribunal da Relação de Lisboa: I - No proc.° n.° 346/16.6PESNT, da Comarca de Lisboa Oeste, Juízo Local Criminal de Sintra, Juiz 3, por sentença de 17 de dezembro de 2018, foi decidido julgar a acusação procedente e, em consequência condenar o arguido AA pela prática em autoria material e na forma consumada, de um crime de maus tratos a animais de companhia, p. e p. pelo artigo 387.°, n.° 1 do Código Penal, na pena de 100 (cem) dias de multa à razão diária de € 6,00 (seis euros), no total de € 600,00 (seiscentos euros). II — Inconformado, o arguido AA interpôs recurso formulando as seguintes conclusões: 1. O Arguido foi condenado pela prática de um crime de maus tratos a animais de companhia, p. e p. pelo art. 387° do CP, na pena de multa de 100 (cem) dias à taxa diária de € 6,00 (seis euros), perfazendo o total de € 600,00 (seiscentos euros). 2. Para fundamentar a sua decisão, o Tribunal a quo considerou credíveis os depoimentos das duas testemunhas de acusação e julgou que o Arguido praticou um acto intencional e deliberado, agindo com consciência da ilicitude do facto. 3. Julgou provados os seguintes factos: " 1 - No dia 27 de Agosto de 2016, cerca das 20h00 horas, na Rua …………………..São Marcos, o Arguido AA aproximou-se do canídeo de raça indefinida, de cor branco e castanho, pertencente a BB. De súbito e sem que nada o justificasse, o Arguido desferiu um pontapé na zona abdominal do canídeo. - Como consequência directa e necessária da conduta do Arguido, o canídeo sofreu dores na zona do corpo atingida. - O Arguido ao actual da forma descrita, agiu com o propósito concretizado dc molestar fisicamente aquele canídeo e de lhe provocar dor e sofrimento, sem qualquer motivo que justificasse esta actuação. - Agiu de forma livre, deliberada e consciente, bem sabendo que o seu comportamento era proibido e punido por lei. - O Arguido não tem antecedentes criminais registados." 4. Da prova realizada no julgamento emergiram testemunhos opostos das duas testemunhas de acusação relativamente ao facto como decorreu a suposta "agressão", para além de congruentes as declarações do Arguido e o depoimento da Ofendida, na forma e local como os factos sucederam, particularmente, que não foi o aqui Arguido que se dirigiu ao canídeo, mas sim o contrário, foi o canídeo que foi ter com o Arguido. 5. Face à prova produzida em sede de julgamento, o Recorrente, não pode concordar com o enquadramento jurídico e com a sentença à qual foi condenado pela prática do crime que lhe era imputado. 6. Ora, com o devido respeito, não é de todo essa factualidade que resulta das declarações prestadas pelo Arguido em sede de Audiência de Julgamento, uma vez que não existiu qualquer intencionalidade ou vontade de actuação, conforme de seguida se transcreve: (a voltas 3.40 a 9.30) (• ) 7. A mesma descrição factual é relatada pela ofendida e testemunha da acusação, Exma. Senhora BB, conforme depoimento que se transcreve de seguida: (a voltas 3.00 a 5:44): (• • .) 8. Ficou ainda provado que o canídeo vinha sem trela e sem açaime, e assim o Recorrente não tinha como saber se o cão se dirigia a si para lhe morder ou não, tendo em conta que a própria testemunha e dona do cão admite que ele costumava saltar para cima das pessoas, conforme se transcreve de seguida (a voltas de 8.20 a 8.35): (• ) 9. A acrescer a tudo isto, foi ainda relatado pela citada testemunha o seguinte: (a voltas de 16:33' 18:30): (• • .) 10. Versão contraditória sobre a localização e actuação do Arguido, resulta do depoimento da testemunha CC, cujo depoimento se transcreve de seguida: (a voltas de 24:15 a 27:27): (—) 11. Foi referido não só pelo Arguido corno pela própria Ofendida que o cão começou a correr nas costas do Arguido e em direcção a este último, e empoleirou as patas da frente nas pernas do Arguido, 12. Desse modo, e como o referido canídeo andava sempre sem trela e sem açaime e era frequente atirar-se para cima das pessoas, o Arguido, licitamente, pensou e acreditou que este lhe ia morder e num acto defensivo, comummente chamado "coice" (expressão e gesto inclusivamente usados pela Ofendida), afastou o animal com o pé. 13. Não existiu qualquer intencionalidade, na medida em que não é o Arguido que deliberadamente e em consciência, se dirige ao animal! 14. É precisamente quando sente as patas do animal no seu corpo, que ele instintivamente e num acto reflexo de defesa, flecte a perna e afasta-o, tocando-lhe, mas sem qualquer intenção de lhe provocar dor ou maus tratos! 15. A segunda testemunha de acusação assevera mais do que uma vez que o cão vinha de trás, que o Arguido se virou e que só depois de se virar e de ver o animal, levantou o pé e deu-lhe um pontapé! 16. Ora, esta testemunha não pode ter visto o que disse em Audiência de Julgamento, e não pode ter visto por um único motivo: Não assistiu aos factos!, até porque o Arguido cruzou-se com esta testemunha à porta do n° 15 da referida Praceta, quando o Arguido estava a entrar e a testemunha a sair do prédio, já depois dos factos terem ocorrido! 17. No que concerne ao enquadramento jurídico-penal, preceitua o art. 387° n° 1 do CP que "Quem, sem motivo legítimo, infligir dor, sofrimento ou quaisquer outros maus tratos físicos a um animal de companhia é punido com pena de prisão até um ano ou com pena de multa até 120 dias". 18. Relativamente ao elemento objectivo do tipo de crime, " o tipo de ilícito é a figura sistemática de que a doutrina penal se serve para exprimir um sentido de ilicitude, individualizando uma espécie de delito e cumprindo deste modo, a função de dar a conhecer ao destinatário que tal espécie de comportamento é proibida pelo ordenamento jurídico", conforme defende o Professor Doutor Figueiredo Dias, Direito Penal, Parte Geral, Tomo 1, 2.a edição, Coimbra Editora. 19. No que concerne ao elemento subjectivo do tipo de crime, refere ainda o Professor Doutor Figueiredo Dias que, " O art. 13° determina que "só é punível o facto praticado com dolo ou, nos casos especialmente previstos na lei, com negligência". 20. Ainda segundo a mesma doutrina e mais precisamente na apreciação e definição dos especiais elementos subjectivos "são as "intenções" os especiais elementos subjectivos que mais próximos se encontram do dolo do tipo. A intenção pode constituir apenas uma das formas que assume o elemento volitivo do dolo, a forma a que chamámos de dolo intencional ou dolo directo de primeira grau." 21. No que se refere ao elemento subjectivo do ilícito, o crime de maus tratos a animais de companhia p. e p. pelo art. 387° do CP é um crime doloso, em que pressupõe a inexistência de um motivo legítimo, implicando dessa forma a intencionalidade da actuação do agente. 22. Concluindo, há dolo quando o agente quis o facto criminoso. 23. O Arguido e aqui Recorrente não quis agir daquela forma e produzir os efeitos e consequências inerentes à sua involuntária e defensiva conduta. 24. Para terminar, existindo dúvidas como os factos ocorreram, depoimentos contraditórios das testemunhas de acusação inquiridas em sede de Audiência de Julgamento e não tendo resultado provado o dolo, ou seja, o elemento subjectivo do tipo de crime, não pode o Arguido, em prol do princípio da verdade e da justiça material e na defesa do princípio in dúbio pro reo, ser condenado pela prática do crime que lhe era imputado! Nestes termos e nos mais de Direito deve o presente Recurso ser admitido e ser revogada a Sentença Condenatória Recorrida, substituindo-a por uma Sentença que absolva o Arguido e ora Recorrente, da prática em autoria material de um crime de maus tratos a animais de companhia, previsto e punido pelo art. 387° do Código Penal. III — Em resposta, veio o Ministério Público na 1.a instância manifestar-se no sentido da improcedência do recurso do arguido. IV — Transcreve-se a decisão recorrida. RELATÓRIO: O Ministério Público requereu o julgamento, em processo comum, com intervenção do tribunal singular, de: -AA, nascido em ………, divorciado, informático, actualmente desempregado, (...) - imputando-lhe a prática, em autoria material e na forma consumada, de um crime de maus tratos a animais de companhia, p. e p. pelo artigo 387.°, n.° 1, com referência ao artigo 389.°, todos do Código Penal, cujos factos constantes da acusação do Ministério Público para julgamento, aqui se dão por integralmente reproduzidos. (• • .) FACTOS PROVADOS: 1 - No dia 27 de Agosto de 2016, cerca das 20h00, na Rua ………….. São Marcos, o arguido AA, aproximou-se do canídeo de raça indefinida pertencente a BB. 2 - De súbito e sem que nada o justificasse, o arguido desferiu um pontapé na zona abdominal do canídeo. 3 - Como consequência direta e necessária da conduta do arguido, o canídeo sofreu dores na zona do corpo atingida. 4 - O arguido, ao atuar da forma descrita, agiu com o propósito concretizado de molestar fisicamente aquele canídeo e de lhe provocar dor e sofrimento, sem qualquer motivo que justificasse esta atuação. 5 - O arguido sabia que a sua conduta era e é proibida e punida por lei penal. 6 - Agiu livre, deliberada e conscientemente, bem sabendo que o seu comportamento era proibido e punido por lei penal. Mais se provou que: 7 - O canídeo tem o porte de um caniche e pesa 10 kg. 8 - O arguido não tem antecedentes criminais. 9 - Vive com a mãe, em casa desta. 10 - Está desempregado há mais de um ano e não tem rendimentos próprios, sendo sustentado pela mãe. 11 Não tem filhos. 12 - Tem o 12.° ano de escolaridade. 13 - O arguido não demonstrou arrependimento nem interiorizou criticamente o desvalor do ilícito e do resultado perpetrado. (• • .) MOTIVAÇÃO DA MATÉRIA DE FACTO: (• • .) O arguido referiu que foi amigo de BB, dona do canídeo, e que se desentendeu com esta quando a mesma expulsou a filha de casa, tendo o arguido dado guarida à mesma. Aduz que, doravante, BB começou a insultá-lo. Efetivamente, BB corroborou ter sido amiga do arguido, sendo que este se dava muito bem consigo e com o seu canídeo e brincava muitas vezes com o animal. Todavia, BB expulsou a filha de casa por ser vítima de agressões físicas por parte da filha, ao que o arguido a acolheu em sua casa, tendo referido que este tomou, no entendimento daquela, "as dores da filha", motivo pelo qual passou a ser indelicado para si, ao que acabaram por cortar relações. Por sua vez, quanto aos factos objeto da acusação, o arguido apresentou uma versão destituída de credibilidade. Veja-se que referiu que ia a caminhar, carregado de sacos ou caixotes (que não sabe precisar) e ouviu umas passadas de corrida, por trás de si, tendo o canídeo embatido contra si, por trás. Referiu, então, o arguido que fletiu o joelho mas fazendo um gesto de flexão para a frente, para se defender. Perguntado do que é que se iria defender, uma vez que o animal não rosnou, não lhe mordeu, não o deitou ao chão, não soube explicar, sendo que não se percebe, por que razão, haveria que fletir o joelho em frente, para se defender (negando que tenha desferido para trás um pontapé para atingir o animal), porque, segundo aduz, o animal veio por trás de si e ter-lhe-á embatido no seu dorso ou pernas da parte traseira. Perguntado se lhe deu um pontapé, admite que possa ter dado um pontapé, não se lembrando, porém, mas sempre por reação instintiva, para se defender. Aduziu, ainda, que o animal estava sem trela e sem açaime, o que acontecia noutras ocasiões, sendo que, neste dia, pensa ter ouvido BB incitar o cão, dizendo algo, o que, porém, não garantiu ter sido efetuado, com certezas. A versão do arguido não merece acolhimento do Tribunal, porque não credível. Primeiro, aduziu que fletiu o joelho em frente (sendo que, no seu entendimento, o cão tocou-lhe por trás), admitindo que possa ter dado um pontapé no animal para se defender, sendo que não aduziu factualidade alguma donde se pudesse extrair que o animal o atacou ou se preparava para o fazer, não se olvidando que se tratava de um animal de pequeno porte, com 10 kg de peso. Por outra banda, as suas declarações são totalmente infirmadas pelo conjunto da prova testemunhal produzida. BB e CC mereceram inteira credibilidade ao Tribunal pela forma como prestaram os seus depoimentos, de forma absolutamente isenta, idónea, desinteressada e objetiva. Ambas estavam juntas a passear os seus cães, quando o canídeo de BB, com porte idêntico ao de um caniche e 10 kg de peso, se aproximou do arguido para o saudar, na medida em que o cão o conhecia. Nisto, o arguido ao aperceber-se da aproximação do canídeo, tendo ambas as testemunhas referido que o mesmo olhou, de lado, pelo ombro, e viu, inequivocamente o cão a aproximar-se, levantando as patas, sem mais, desferiu um pontapé na zona abdominal do canídeo, que fez com que o mesmo fosse projetado contra uma porta de vidro, tendo o animal ganido e ficado dorido. BB referiu ter levado o animal ao veterinário, dizendo que o mesmo não partiu nada, pese embora tivesse ficado dorido alguns dias, pois que ao toque, gania e sentia-se incomodado. Nem BB nem CC referiram que o animal atacou ou se preparava para atacar o arguido, bem pelo contrário, conhecendo-o, foi ter com ele, para brincar e o saudar. Não têm dúvidas nenhumas de que o arguido bem viu o canídeo, tendo o seu ato sido intencional. Tanto assim foi que, não obstante o animal ter sido projetado contra uma porta de vidro, o arguido seguiu o seu caminho, firme e com a convicção de que tinha agido corretamente, sem se inteirar do estado de saúde do animal. É evidente, pois, que o arguido, movido pelo facto de estar com o relacionamento cortado com BB, por motivos relacionados com a filha desta, ao ver o animal daqueloutra, quis ataca-lo, agredindo-o de forma brutal e gratuita, quando o animal foi ter com ele para brincar. E, diga-se, não é o facto de as testemunhas de defesa, DD, sua ex-namorada e EE, amiga de há duas décadas, terem vindo referir que o arguido é pessoa calma, que tem um cão e sempre o tratou bem, que tal retira credibilidade aos depoimentos de BB e CC, tanto mais que aquelas outras testemunhas nem presenciaram os factos supra descritos. Não se colocando em crise que o arguido trate bem o seu canídeo, a verdade é que, direcionou os atritos de relacionamento com BB, sobre o cão desta, agredindo-o, com violência, quando o cão veio ter consigo tão-somente para brincar. Não colhe o facto de, em sede de últimas declarações, o arguido ter referido que BB e CC o queriam "entalar", pois que esta última nem sequer o conhece, senão de vista, por terem morado no mesmo prédio, a que acresce, ainda, o facto de BB atualmente se dar, inclusive, muito bem com a filha, demonstrando total isenção no seu depoimento. Da conduta adotada no momento após a agressão, bem como da postura do arguido em julgamento, foi patente a ausência de arrependimento e a falta de interiorização do desvalor do ilícito e do resultado perpetrado. Valoraram-se, ainda, o auto de denúncia de fls.4 e 5, donde se extrai a data, hora, rua e localidade onde ocorreram os factos. Valorou-se o CRC do arguido, a fls. 91 e, quanto às condições sociais e económicas de vida, o declarado pelo arguido. Não existem elementos probatórios que infirmem os supra referidos. DIREITO: Estatui o artigo 387.°, n.° 1 do Código Penal, que: «Quem, sem motivo legítimo, infligir dor, sofrimento ou quaisquer outros maus tratos físicos a um animal de companhia, é punido com pena de prisão até um ano ou com pena de multa até 120 dias». Nos termos do artigo 389.°, n.° 1 do Código Penal, entende-se por animal de companhia qualquer animal detido ou destinado a ser detido por seres humanos, designadamente no seu lar, para seu entretenimento e companhia. Importa, desde logo, apurar qual o bem jurídico neste tipo legal de crime. Até à entrada em vigor da Lei n.° 69/2014, de 29.08, que entrou em vigor em 1 de Outubro de 2014, os maus tratos a animais não tinham tutela penal, podendo falar-se numa lacuna a este nível, que era colmatada, por vezes, com a punição a título do crime de dano, p. e p. pelo artigo 212.°, n.° 1 do Código Penal, sendo que, neste caso, o que se protege é o bem jurídico património de alguém. Ou seja, se um animal de alguém fosse agredido ou ficasse lesionado, o seu dono poderia ter tutela penal, ao abrigo deste crime, por se sentir lesado no seu património, crime este que, por regra, dependia da queixa do titular que se sentisse lesado (exceto no caso de se tratar do caso previsto no artigo 213.°, n.° 1, alínea a) do C. Penal, em que o crime assume natureza pública). Ora e, a verdade é que, o artigo 202.° do Código Civil define «coisa» como tudo aquilo que pode ser objeto de relações jurídicas, sendo que, na verdade, os animais podem ser alvo de contratos de compra e venda, doação, aluguer, comodato, alvo de posse e de direitos reais de gozo e garantia. A própria dominante conceção personalista do Direito fez opor as pessoas às coisas. Não tendo o Código Civil, antes da redação introduzida pela Lei n.° 8/2017, de 3 de Março, autonomizado regras específicas que atendessem à natureza e classificação dos animais não humanos, a sua classificação cairia na regra geral do artigo 205.°, n.° 1 do Código Civil, ou seja, como «coisas móveis» semoventes. Todavia, o mundo mudou — imperam hoje necessidades especiais, não só no que concerne à tutela e preservação da fauna, mormente certas espécies em vias de extinção, sob o ponto de vista da componente ambiental, mas sem dúvida e, mais importante, que isso, dignificar o estatuto dos animais, enquanto "coisas" e animais não humanos, que, por terem sentimentos, terem dores físicas e psíquicas, padecerem de stress, não podem cingir-se ao conceito civilista de «res» ou de «coisas móveis» tout court. Imperou, pois, a necessidade de dignificar o seu estatuto enquanto animais e não enquanto «coisas» tout court, o que foi agora consagrado, e permitir, por conseguinte, a tutela penal de quem, sem motivo legítimo, venha a infligir dor, maus tratos físicos ou sofrimentos a animais de companhia. Ora, mas com isto, é nosso entendimento que os animais deixaram de ser tipificados como «coisas» propriamente ditas, pese embora, possam, ainda, ser objetos de relações jurídicas. A este propósito, partilhamos o sufragado por FILIPE CABRAL, in Fundamentação dos Direitos dos Animais, a Existencialidade Jurídica, Alfarroba, Novembro de 2015, p. 208 e seguintes «não são os nomes dados às realidades que as transformam juridicamente, mas o regime que lhes é dispensado. Mas, então os animais deixaram de ser coisas para ser o quê? Com efeito, apesar de não ser suficiente para se afirmar, com propriedade científica, um tertium genius, oponível tanto à pessoa como à coisa/bem, é quanto baste para se o anunciar. Pois que representa, afinal, a presente alteração qualificativa senão a denúncia do anacronismo imanente à velha dicotomia pessoa-coisa?» A Constituição da República Portuguesa reconhece a dignidade como o princípio fundamental de um Estado de Direito Democrático, no seu artigo 1.°, restringindo-a, porém, à pessoa humana. A nosso ver, tendo em conta o já acima exposto, houve necessidade de fazer uma interpretação atualista e positivista da norma, abarcando o princípio da dignidade, também, aos animais não humanos, com valor e sentimentos intrínsecos. Trata-se da proteção de um bem jurídico individual e subjetivo, «independentemente de o próprio ter capacidade para diretamente a fazer valer judicialmente ou, mesmo, de dela ter consciência (...); cumpre assim proceder à concretização do princípio da dignidade em relação aos não-humanos, o que passa, desde logo, pela construção de um conceito apto a subjetivizá-los juridicamente. Designaremos tal conceito de existencialidade jurídica» - Ob. Cit., abarcado aos seres vivos não humanos com valor intrínseco e valioso no mundo do direito. Tal existencialidade jurídica, a nosso ver, corresponde, à transposição da equivalência da dignidade da pessoa humana a seres vivos não humanos, mas emotivos. Tanto assim é que, o Direito Civil por via das alterações legislativas operadas ao Código Civil pela entrada em vigor da Lei n.° 8/2017, de 3 de Março, veio consagrar, no seu artigo 201.°-B, que os animais são seres vivos dotados de sensibilidade e objeto de proteção jurídica em virtude da sua natureza cuja proteção jurídica opera pelas disposição desse Código e por legislação especial, só subsidiariamente se aplicando as disposições relativas às coisas, desde que não sejam incompatíveis com a sua natureza — artigos 201.°-C e 201.° -D do Código Civil. Bem jurídico protegido pelo tipo legal de crime é, pois, a manutenção da integridade física e psíquica do animal, evitar maus-tratos e garantir-lhe uma vida saudável. E aí, existe, desde logo, uma aparente incompatibilidade entre o direito de propriedade e a limitação da atividade humana no interesse da própria coisa. Filipe Cabral, na obra já citada, fala mesmo na tutela do «direito à existencialidade», sendo a vida o suporte vital dessa existencialidade, sendo que perpassa, ainda, outros direitos fundamentais como a preservação da integridade física e psíquica do animal e a sua liberdade de movimentação. Efetuado o julgamento, resultou provado que: No dia 27 de Agosto de 2016, cerca das 20h00, na Rua ………….São Marcos, o arguido AA, aproximou-se do canídeo de raça indefinida pertencente a BB. De súbito e sem que nada o justificasse, o arguido desferiu um pontapé na zona abdominal do canídeo. Como consequência direta e necessária da conduta do arguido, o canídeo sofreu dores na zona do corpo atingida. O arguido, ao atuar da forma descrita, agiu com o propósito concretizado de molestar fisicamente aquele canídeo e de lhe provocar dor e sofrimento, sem qualquer motivo que justificasse esta atuação. O arguido sabia que a sua conduta era e é proibida e punida por lei penal. Agiu livre, deliberada e conscientemente, bem sabendo que o seu comportamento era proibido e punido por lei penal. Não há dúvidas de que, com a sua conduta, o arguido infligiu dor e sofrimento físico e psíquico no canídeo, animal de companhia de BB, colocando em crise o direito à sua existencialidade condigna, na vertente da integridade física e psíquica, tutelada, e que foi severamente posta em causa pelo arguido. O arguido agiu com dolo direto. Inexistem dúvidas, pois, de que cometeu o crime previsto no artigo 387.°, n.° 1 do Código Penal e, inexistindo causas de exclusão da culpa ou da ilicitude, não nos resta senão aferir da espécie e medida concreta da pena a aplicar. DAS CONSEQUÊNCIAS JURÍDICAS DO CRIME: O tipo legal de crime de maus tratos a animais de companhia p. e p. pelo artigo 387.°, n.° 1 do Código Penal prevê a punição com pena de multa de 10 a 120 dias ou de prisão de 1 mês até 1 ano — vide artigos 41.°, n.° 1, 47.°, n.° 1 e 387.°, n.° 1, todos do Código Penal. Estabelece o artigo 40.°, n.° 1 do Código Penal que "a aplicação das penas e de medidas de segurança visa a proteção de bens jurídicos e a reintegração do agente na sociedade". As finalidades da punição cifram-se na satisfação das exigências de prevenção geral, mais positivas do que negativas, e de prevenção especial, quer positiva — de socialização do agente infrator, quer negativa — de dissuadi-lo do cometimento, no futuro, de novos crimes. «É com uma dimensão positiva que a prevenção geral hoje logra sobretudo reconhecimento (...) tem um cariz compensador, de integração ou estabilizador, em que o que se pretende é assegurar o restabelecimento e a manutenção da paz jurídica perturbada pelo cometimento do crime através do fortalecimento da consciência jurídica da comunidade no respeito pelos comandos jurídico — criminais. Pelo que diz respeito à prevenção especial, o aspeto negativo consiste na intimidação do agente ou, ainda mais, na sua inocuização. O aspeto positivo é, pelo contrário, representado pela socialização.» (ANABELA MIRANDA RODRIGUES, A determinação da medida da pena privativa da Liberdade, Coimbra Editora, 1995, p.322 e seguintes). A proteção dos bens jurídicos, sendo estes determinados por referência à ordem axiológica jurídico-constitucional, implica a rejeição de uma legitimação da intervenção penal assente numa qualquer ordem transcendente e absoluta de valores, como que derivada de exigências "metafísicas", fazendo assentar a referida legitimação unicamente em critérios funcionais de necessidade (e de consequente utilidade) social. Por isso, a aplicação da pena não mais pode fundar-se em exigências de retribuição ou de expiação da culpa, sem qualquer potencial de utilidade social, mas apenas em propósitos preventivos de estabilização contrafáctica das expectativas comunitárias na validade da norma violada (Figueiredo Dias, Revista Portuguesa de Ciência Criminal, Ano 1, Fascículo 1, 1991,Aequitas, Editorial Noticias, pág. 17 e 18). DA ESCOLHA DA PENA: Nos termos do artigo 70.° do Código Penal, «Se ao crime foram aplicáveis, em alternativa, pena privativa e pena não privativa da liberdade, o tribunal dá preferência à segunda sempre que esta realizar de forma adequada e suficiente as finalidades da punição.» As exigências de prevenção geral são muito elevadas, atenta a cada vez maior profusão de crimes contra animais de companhia, pelos donos ou por terceiras pessoas. O grau de ilicitude é elevado, sendo grave o desvalor do resultado, atenta a natureza do sofrimento físico e psíquico infligido ao canídeo. O dolo do arguido é direto e reveste intensidade elevada, sendo elevada a censurabilidade social da sua conduta. Por outra banda, o arguido é familiar e socialmente inserido, não tendo antecedentes criminais. Não demonstrou o menor arrependimento pela conduta perpetrada nem juízo crítico para a sua conduta, o que permite concluir serem elevadas as exigências de prevenção geral, do ponto de vista positivo e negativo. Todavia e, por entendermos que o arguido lamentavelmente, projetou sobre o canídeo, as quezílias e atritos havidos com a dona daquele, provocando agressão violenta sobre o animal, entendemos que as finalidades da punição serão asseveradas com a sua condenação em pena de multa. DA MEDIDA CONCRETA DA PENA: Nos termos do artigo 71.0, n.° 1 do Código Penal, a determinação da medida da pena parte da moldura legal abstrata de cada tipo de crime (limites mínimo e máximo aplicados), a qual é graduada e concretizada em função da culpa do agente e das exigências de prevenção geral e especial que, em cada caso se fazem sentir. A pena tem por fundamento e limite a medida da culpa, não podendo ultrapassá-la (artigos 40.°, n.° 2 e 71.°, n.° 1 do C. Penal e artigo 1.° da Constituição da República Portuguesa). «A culpa configurará, neste âmbito, desde logo, a barreira intransponível da finalidade preventiva» (ANABELA MIRANDA RODRIGUES, A determinação da medida da pena privativa da Liberdade, Coimbra Editora, 1995, p. 312). Na determinação da medida concreta da pena, o tribunal atende a todas as circunstâncias que, não fazendo parte do tipo de crime, depuserem a favor do agente ou contra ele, a saber: o grau de ilicitude do facto, o modo de execução e atuação criminosa, o grau de violação dos deveres impostos ao agente, bem como a intensidade do dolo, a conduta anterior e posterior ao crime, as condições pessoais do agente e a sua situação económica. - Como circunstâncias da prática do crime de maus tratos a animais de companhia, em desfavor do arguido, militam: -as significativas exigências de reprovação e prevenção geral que os crimes que atentam contra a integridade física e psíquica dos animais, enquanto seres vivos não humanos, com direito a existencialidade condigna, reclamam; -a intensidade do dolo direto, que é elevada; -o grau de ilicitude é elevado, sendo grave o desvalor do resultado; -a censurabilidade social da conduta do arguido, de intensidade elevada; -a ausência de arrependimento demonstrado e de formulação de juízo crítico para a gravidade da conduta; - Como circunstâncias da prática do crime de condução de maus tratos a animais de companhia, a favor do arguido, militam: -a ausência de antecedentes criminais; -a inserção social e familiar; Atento o circunstancialismo apurado, o tribunal reputa por justa, adequada e proporcional a condenação do arguido na pena de 100 (cem) dias de multa. O artigo 47.°, n.° 2 do Código Penal estatui que «A cada dia de multa corresponde uma quantia entre € 5,00 e € 500,00, que o tribunal fixa em função da situação económica e financeira do condenado e dos seus encargos pessoais.» A pena de multa há-de ser fixada em termos de ser interiorizada como uma verdadeira sanção penal, devendo revestir para o condenado um sacrifício, sem que seja posta em causa o essencial para assegurar condignamente a sua subsistência. Tendo em conta que o Estado de Direito Democrático tem como ideal que ninguém viva abaixo do limiar mínimo desejado para a subsistência básica e, sopesadas e ponderadas as circunstâncias de relevo para a dosimetria penal, mormente as condições económicas e sociais de vida do arguido, reputa-se por justa, adequada e proporcional a aplicação ao mesmo da quantia de € 6,00 (seis euros), a título de razão diária da multa. Assim, vai o arguido condenado na pena de 100 (cem) dias de multa à razão diária de € 6,00 (seis euros), no total de € 600,00 (seiscentos euros). Não será de aplicar a pena acessória prevista no artigo 388.°-A, n.° 1, alínea a) do C.P., pois não obstante o arguido ser detentor de um canídeo, conforme decorre da fundamentação da matéria de facto, o mesmo trata bem o animal e, estamos cientes, de que a conduta perpetrada, nestes autos, teve por base os atritos que ultrapassava, na altura, o seu relacionamento com a dona do canídeo, estando o Tribunal em crer que, apesar de grave, se tenha tratado de episódio único. DISPOSITIVO: Com os fundamentos expostos, julgo procedente, por provada, a acusação do Ministério Público e, consequentemente: 1 - Condeno o arguido AA pela prática em autoria material e na forma consumada, de um crime de maus tratos a animais de companhia, p. e p. pelo artigo 387.°, n.° 1 do Código Penal, na pena de 100 (cem) dias de multa à razão diária de € 6,00 (seis euros), no total de € 600,00 (seiscentos euros). (• • .) V — Nesta Relação a Exma. Procuradora-Geral Adjunta pronunciou-se no sentido da improcedência do recurso da sentença condenatória. VI - Cumpre decidir. 1. O âmbito do recurso é delimitado pelas conclusões do recorrente (cf., entre outros, os Acs. do STJ de 16.11.95, de 31.01.96 e de 24.03.99, respectivamente, nos BMJ 451° - 279 e 453° - 338, e na CJ (Acs. do STJ), Ano VII, Tomo I, pág. 247, e cfr. ainda, arts. 403° e 412°, n° 1, do CPP). 2. O recurso será julgado em conferência, atento o disposto no art.° 419.° n.° 3 alínea c) do C.P.Penal, a contrario. 3. O arguido veio recorrer invocando, em suma, erro de julgamento pelo que deveria ter sido absolvido. 4. É de verificação oficiosa os vícios constantes do art.° 410.° n. °s 2 e 3 do C.P.Penal , que no caso se não constatam ,como se verá. Recorde-se que a norma respeita aos vícios da decisão, verificáveis pelo mero exame do seu (dela, decisão) próprio texto, ou por esse exame conjugado com as regras da experiência comum. Por outras palavras, elementos estranhos à decisão não podem ser invocados ou chamados a fundamentar esses vícios que, repete-se, têm de resultar do próprio texto, e apenas deste. Da leitura da sentença recorrida ressalta a enorme clareza do texto e do sentido da decisão. Clareza que resulta desde logo da simplicidade factual e jurídica do caso, não existindo a mais ténue obscuridade ou contradição. Trata-se de um texto integralmente lógico, bem estruturado e devidamente fundamentado. Do erro notório na apreciação da prova - trata-se, como pacificamente tem vindo a ser considerado, de um erro (ignorância ou falsa representação da realidade) evidente, facilmente detectado, e resultante do texto da decisão ou do encontro deste com a experiência comum. É manifesta a ausência de tal erro. Em tese geral diremos que a decisão impugnada mostra-se correctamente fundamentada quer no aspecto de facto quer no direito aplicado, de forma a poder apreender-se plenamente os motivos e o processo lógico-formal que o julgador usou para, de acordo com as regras da experiência comum, formar a sua livre convicção -cfr. art. 127° do Código de Processo Penal. Por outro lado, não vislumbramos que a decisão impugnada acolha conclusões incompatíveis ou contraditórias com a prova produzida e constante dos autos, sendo certo que, do quadro factológico dado como provado, não poderia resultar outra decisão que não fosse a condenação do arguido pelos factos imputados. Da insuficiência para a decisão da matéria de facto provada - verifica-se este vício quando a matéria de facto provada é insuficiente para fundamentar a decisão de direito. E só existe quando o tribunal deixar de investigar o que devia e podia, tornando a matéria de facto insusceptível de adequada subsunção jurídica, concluindo-se pela existência de factos não apurados que seriam relevantes para a decisão da causa. É por demais evidente que todos os factos à boa decisão foram devidamente apreciados pelo tribunal, sendo os demonstrados, objectiva e subjectivamente típicos, e suficientes para a conclusão de direito. - Da contradição insanável da fundamentação e da fundamentação e da decisão — nada na fundamentação da decisão recorrida aponta no sentido de decisão oposta à tomada, ou no sentido da colisão entre os fundamentos invocados. Pelo contrário, a decisão de facto encontra-se devidamente fundamentada e suportada por declarações do arguido e prova testemunhal e documental, que o tribunal devidamente valorou, numa forma clara, sendo facilmente perceptível o seu processo lógico-mental de formação da convicção. Com efeito, a decisão não enferma de qualquer dos vícios do n° 2 do art. 410° do CPP. 5. Da violação do princípio in dubio pro reo. Não existiu qualquer violação do princípio "in dubio pro reo". Como se pode constatar na sentença dos autos o Tribunal a quo não manifestou quaisquer dúvidas relativamente aos factos, pelo que não estão verificados os pressupostos de que depende a aplicação de um tal princípio. "O princípio 'in dubio pro reo' que o recorrente invoca é, como refere Maia Gonçalves no seu " Código de Processo Penal Anotado, 2002, 13' edição, pág. 338 ", " um princípio de prova que vigora em geral, isto é, quando a lei, através de uma presunção não estabelece o contrário. Este princípio identifica-se com o da presunção de inocência do arguido, e impõe que o Julgador valore sempre em favor daquele um 'non liquet', e ainda que em processo penal não seja admitida a inversão do ónus da prova em seu detrimento ". Significa que o Julgador deve decidir a favor do arguido se, face ao material probatório produzido em audiência de julgamento, tiver dúvidas sobre qualquer facto, sendo certo que se trata de mero equívoco estender um princípio relativo à prova a matéria de interpretação. O uso deste princípio só poderia ser censurado se da decisão recorrida resultasse que o tribunal " a quo " chegou a um estado de dúvida insanável e que, face a ela, escolheu a tese desfavorável ao arguido. No caso vertente, tal dúvida não se colocou ao Tribunal relativamente aos factos que teve como provados e que de forma exaustiva fundamentou, valorando as provas em determinado sentido e considerando provada certa versão fáctica, em conformidade com o princípio de livre apreciação da prova que resulta do art° 127° do C.P.P.". Não ocorreu qualquer violação do princípio in dúbio pro reo. 6. Sobre um eventual erro de julgamento. Nos termos do artigo 127.° Código de Processo Penal, salvo quando a lei dispuser diferentemente, a prova é apreciada segundo as regras da experiência e a livre convicção da entidade competente. Do referido preceito decorre o princípio da livre apreciação da prova. A livre apreciação da prova tem de se traduzir numa valoração racional e crítica, de acordo com as regras comuns da lógica, da razão, das máximas da experiência e dos conhecimentos científicos, que permita objectivar a apreciação, requisito necessário para uma efectiva motivação da decisão (...) Com a exigência de objectivação da livre convicção poderia pensar-se nada restar já à liberdade do julgador, mas não é assim. A convicção do julgador há-de ser sempre uma convicção pessoal, mas há-de ser sempre "uma convicção objectivável e motivável, portanto capaz de impor-se aos outros. A sentença condenatória, na sua fundamentação, enumera os factos provados e não provados, faz uma exposição completa dos motivos de facto e de direito, com indicação e exame crítico das provas que serviram para formar a convicção do tribunal, tal como estatui o artigo 374.° do Código de Processo Penal. É da fundamentação invocada para a decisão que se afere da correcção do juízo crítico sobre as provas produzidas. Deste modo, tal juízo só poderá ser valorado pela razoabilidade da fundamentação da decisão de facto, à qual in casu nada há a apontar. Cumpre ainda referir que é também entendimento pacífico que o termo "questões" a quer se refere o art° 379°, n° 1, alínea c) do Código de Processo Penal, não abrange os argumentos, motivos ou razões jurídicas invocadas pelas partes, antes se reportando às pretensões deduzidas ou aos elementos integradores do pedido e da causa de pedir, ou seja, entende-se por "questões" a resolver, as concretas controvérsias centrais a dirimir [ "(...) quando as partes põem ao tribunal determinada questão, socorrem-se, a cada passo, de várias razões ou fundamentos para fazer valer o seu ponto de vista. O que importa é que o tribunal decida a questão posta, não lhe incumbindo apreciar todos os fundamentos ou razões em que as partes se apoiam para sustentar a sua pretensão" (Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 5 de Maio de 2011, in www.dgsi.pt)]. O tribunal lançou também mão de presunções para dar alguns factos como provados. Sob a epígrafe "Presunções", diz o Artigo 349.° (Noção) do Código Civil: Presunções são as ilações que a lei ou o julgador tira de um facto conhecido para firmar um facto desconhecido. E nas anotações ao Código Civil, de Abílio Neto refere-se: 3. As presunções pressupõem a existência de um facto conhecido (base das presunções) cuja prova incumbe à parte que a presunção favorece e pode ser feita por meios probatórios gerais; provado esse facto, intervém a Lei (no caso de presunções legais) ou o julgador (no caso de presunções judiciais) a concluir dele a existência de outro facto (presumido), servindo-se o julgador, para esse fim, de regras deduzidas da experiência da vida (RLJ, 108.0-352). (...) 6. "Estas presunções são afinal o produto de regras de experiência: o juiz, valendo-se de certo facto e de regras de experiência conclui que aquele denúncia a existência doutro facto. Ao procurar formar a sua convicção acerca dos factos relevantes para a decisão, pode utilizar o juiz a experiência da vida, da qual resulta que um facto é a consequência típica de outro; procede então mediante uma presunção ou regra da experiência ou, se se quiser, vale se de uma prova de primeira aparência" (A. Lopes Cardoso, RT, 86.0-112). E ainda o Acórdão do S.T.J. de 11 de Outubro de 2007, proc.° 07P3240 , Relator: SIMAS SANTOS in www.dgsi.pt : "4 - Como tem sido jurisprudência deste Tribunal, é admissível a prova por presunção, o sistema probatório alicerça-se em grande parte no raciocínio indutivo de um facto desconhecido para um facto conhecido; toda a prova indirecta se faz valer através desta espécie de presunções." Conforme se refere no Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, de 17 de Março de 2004, in "www.dgsi.pt", os meios de prova directos não são os únicos a poderem ser utilizados pelo julgador. Existem os meios de prova indirecta, que são os procedimentos lógicos, para prova indirecta, de conhecimento ou dedução de um facto desconhecido a partir de um (ou vários) factos conhecidos, ou seja as presunções. As presunções, cuja definição se encontra no artigo 349° do Código Civil, são também válidas em processo penal, importando, neste domínio as presunções naturais que são, não mais que o produto das regras de experiência: o juiz valendo-se de um certo facto e das regras da experiência, conclui que esse facto denuncia a existência de outro facto. O juiz utiliza a experiência da vida, da qual resulta que um facto é consequência de outro, ou seja, procede mediante uma presunção natural. Na passagem do facto conhecido para a aquisição do facto desconhecidos, têm de intervir procedimentos lógicos e intelectuais que permitam, com fundamento, segundo as regras da experiência que determinado facto anteriormente desconhecido, é a natural consequência, ou resulta com probabilidade próxima da certeza de outro facto conhecido. O recurso do arguido mais não é do que uma diferente avaliação da prova produzida que por lei cabe ao tribunal (vd art.° 127.° do C.P.P.) e não da existência de um qualquer erro de julgamento, que não ocorreu. "O juiz não tem que aceitar ou recusar cada um dos depoimentos na globalidade, cabendo-lhe a difícil tarefa de dilucidar em cada um deles o que lhe merece crédito. - Ac. Rel. Porto, de 2009-06-17 (Rec. n° 229/06.8TAMBR.P1, rel. Borges Martins, in___________ Como se decidiu no Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra, de 12 de Maio de 2010 (processo n° 258/08.7GDLRA.C1), disponível em www.dgsi.pt, "para respeitarmos os princípios da oralidade e da imediação na produção de prova, se a decisão do julgador estiver fundamentada na sua livre convicção baseada na credibilidade de determinadas declarações e depoimentos e for uma das possíveis soluções segundo as regras da experiência comum, ela não deverá ser alterada pelo tribunal de recurso". E, como se pode ler no Acórdão do Tribunal da Relação de Évora proferido no processo n.° TRE 658/08.2TAEVR de 7 de Dezembro de 2012 "Perante uma determinada situação em concreto, produzidos em audiência depoimentos de sentido contrário, é natural que sejam lícitas e possíveis várias soluções, na decisão da matéria de facto. Se aquela que é assumida pelo juiz é uma das soluções admissíveis, à luz das regras da experiência comum (e se, para além disso, tal solução se mostrar suficientemente motivada e esclarecida, como é manifestamente o caso dos autos), então estamos perante decisão inatacável no plano fáctico, pois que produzida em estrita obediência ao estatuído no artigo 127.", do Código de Processo Penal. (...) Em suma: se perante determinada situação de facto em concreto, as provas produzidas permitem duas (ou mais) soluções possíveis e o juiz, fundamentadamente, optar por uma delas, a decisão (sobre a matéria de facto) é inatacável. O recorrente (tenha ele, nos autos, a posição processual que tiver), ainda que haja feito da prova produzida uma leitura diversa da efectuada pelo julgador, não pode opor-lhe a sua convicção e reclamar, do tribunal de recurso, que por ela opte, em detrimento e atropelo do princípio da livre apreciação da prova." Transcreve-se aqui parcialmente a fundamentação da decisão recorrida que se subescreve: "O arguido referiu que foi amigo de BB, dona do canídeo, e que se desentendeu com esta quando a mesma expulsou a filha de casa, tendo o arguido dado guarida à mesma. Aduz que, doravante, BB começou a insultá-lo. Efetivamente, BB corroborou ter sido amiga do arguido, sendo que este se dava muito bem consigo e com o seu canídeo e brincava muitas vezes com o animal. Todavia, BB expulsou a ,filha de casa por ser vítima de agressões físicas por parte da filha, ao que o arguido a acolheu em sua casa, tendo referido que este tomou, no entendimento daquela, "as dores da filha", motivo pelo qual passou a ser indelicado para si, ao que acabaram por cortar relações. Por sua vez, quanto aos factos objeto da acusação, o arguido apresentou uma versão destituída de credibilidade. Veja-se que referiu que ia a caminhar, carregado de sacos ou caixotes (que não sabe precisar) e ouviu umas passadas de corrida, por trás de si, tendo o canídeo embatido contra si, por trás. Referiu, então, o arguido que fletiu o joelho -mus fazendo um gesto de flexão para a frente, para se defender. Perguntado do que é que se iria defender, uma vez que o animal não rosnou, não lhe mordeu, não o deitou ao chão, não soube explicar, sendo que não se percebe, por que razão, haveria que fletir o joelho em frente, para se defender (negando que tenha desferido para trás um pontapé para atingir o animal), porque, segundo aduz, o animal veio por trás de si e ter-lhe-á embatido no seu dorso ou pernas da parte traseira. Perguntado se lhe deu um pontapé, admite que possa ter dado um pontapé, não se lembrando, porém, mas sempre por reação instintiva, para se defender. Aduziu, ainda, que o animal estava sem trela e sem açaime, o que acontecia noutras ocasiões, sendo que, neste dia, pensa ter ouvido BB incitar o cão, dizendo algo, o que, porém, não garantiu ter sido efetuado, com certezas. A versão do arguido não merece acolhimento do Tribunal, porque não credível. Primeiro, aduziu que fletiu o joelho em frente (sendo que, no seu entendimento, o cão tocou-lhe por trás), admitindo que possa ter dado um pontapé no animal para se defender, sendo que não aduziu factualidade alguma donde se pudesse extrair que o animal o atacou ou se preparava para o fazer, não se olvidando que se tratava de um animal de pequeno porte, com 10 kg de peso. Por outra banda, as suas declarações são totalmente infirmadas pelo conjunto da prova testemunhal produzida. BB e CC mereceram inteira credibilidade ao Tribunal pela forma como prestaram os seus depoimentos, de forma absolutamente isenta, idónea, desinteressada e objetiva. Ambas estavam juntas a passear os seus cães, quando o canídeo de BB, com porte idêntico ao de um caniche e 10 kg de peso, se aproximou do arguido para o saudar, na medida em que o cão o conhecia. Nisto, o arguido ao aperceber-se da aproximação do canídeo, tendo ambas as testemunhas referido que o mesmo olhou, de lado, pelo ombro, e viu, inequivocamente o cão a aproximar-se, levantando as patas, sem mais, desferiu um pontapé na zona abdominal do canídeo, que fez com que o mesmo fosse projetado contra uma porta de vidro, tendo o animal ganido e ficado dorido. BB referiu ter levado o animal ao veterinário, dizendo que o mesmo não partiu nada, pese embora tivesse ficado dorido alguns dias, pois que ao toque, gania e sentia-se incomodado. Nem BB nem CC referiram que o animal atacou ou se preparava para atacar o arguido, bem pelo contrário, conhecendo-o, foi ter com ele, para brincar e o saudar. Não têm dúvidas nenhumas de que o arguido bem viu o canídeo, tendo o seu ato sido intencional. Tanto assim foi que, não obstante o animal ter sido projetado contra uma porta de vidro, o arguido seguiu o seu caminho, firme e com a convicção de que tinha agido corretamente, sem se inteirar do estado de saúde do animal. É evidente, pois, que o arguido, movido pelo facto de estar com o relacionamento cortado com BB, por motivos relacionados com a filha desta, ao ver o animal daqueloutra, quis ataca-lo, agredindo-o de forma brutal e gratuita, quando o animal foi ter com ele para brincar. E, diga-se, não é o facto de as testemunhas de defesa, DD, sua ex-namorada e EE, amiga de há duas décadas, terem vindo referir que o arguido é pessoa calma, que tem um cão e sempre o tratou bem, que tal retira credibilidade aos depoimentos de BB e CC, tanto mais que aquelas outras testemunhas nem presenciaram os factos supra descritos. Não se colocando em crise que o arguido trate bem o seu canídeo, a verdade é que, direcionou os atritos de relacionamento com BB, sobre o cão desta, agredindo-o, com violência, quando o cão veio ter consigo tão-somente para brincar. Não colhe o facto de, em sede de últimas declarações, o arguido ter referido que BB e CC o queriam "entalar", pois que esta última nem sequer o conhece, senão de vista, por terem morado no mesmo prédio, a que acresce, ainda, o facto de BB atualmente se dar, inclusive, muito bem com a filha, demonstrando total isenção no seu depoimento. Da conduta adotada no momento após a agressão, bem como da postura do arguido em julgamento, foi patente a ausência de arrependimento e a falia de interiorização do desvalor do ilícito e do resultado perpetrado." Não existe qualquer erro de julgamento. 7. Da qualificação jurídico-penal. Encontram-se preenchidos os elementos objectivos e subjectivos que permitiu condenar o arguido recorrente pela prática de um crime de maus tratos a animais de companhia p. e p. pelo artigo 387.°, n.° 1 do Código Penal. "Nos termos do artigo 389.°, n.° 1 do Código Penal, entende-se por animal de companhia qualquer animal detido ou destinado a ser detido por seres humanos, designadamente no seu lar, para seu entretenimento e companhia. Imperou, pois, a necessidade de dignificar o seu estatuto enquanto animais e não enquanto «coisas» tout court, o que foi agora consagrado, e permitir, por conseguinte, a tutela penal de quem, sem motivo legítimo, venha a infligir dor, maus tratos físicos ou sofrimentos a animais de companhia. Ora, mas com isto, é nosso entendimento que os animais deixaram de ser tipificados como «coisas» propriamente ditas, pese embora, possam, ainda, ser objetos de relações jurídicas. A nosso ver, tendo em conta o já acima exposto, houve necessidade de fazer uma interpretação atualista e positivista da norma, abarcando o princípio da dignidade, também, aos animais não humanos, com valor e sentimentos intrínsecos. Trata-se da proteção de um bem jurídico individual e subjetivo, «independentemente de o próprio ter capacidade para diretamente a fazer valer judicialmente ou, mesmo, de dela ter consciência (...); cumpre assim proceder à concretização do princípio da dignidade em relação aos não-humanos, o que passa, desde logo, pela construção de um conceito apto a subjetivizá-los juridicamente. Designaremos tal conceito de existencialidade jurídica» - Ob. Cit., abarcado aos seres vivos não humanos com valor intrínseco e valioso no mundo do direito. Tal existencialidade jurídica, a nosso ver, corresponde, à transposição da equivalência da dignidade da pessoa humana a seres vivos não humanos, mas emotivos. Tanto assim é que, o Direito Civil por via das alterações legislativas operadas ao Código Civil pela entrada em vigor da Lei n.° 8/2017, de 3 de Março, veio consagrar, no seu artigo 201.°-B, que os animais são seres vivos dotados de sensibilidade e objeto de proteção jurídica em virtude da sua natureza cuja proteção jurídica opera pelas disposição desse Código e por legislação especial, só subsidiariamente se aplicando as disposições relativas às coisas, desde que não sejam incompatíveis com a sua natureza — artigos 201.°-C e 201.° -D do Código Civil. Bem jurídico protegido pelo tipo legal de crime é, pois, a manutenção da integridade física e psíquica do animal, evitar maus-tratos e garantir-lhe uma vida saudável. E aí, existe, desde logo, uma aparente incompatibilidade entre o direito de propriedade e a limitação da atividade humana no interesse da própria coisa. Filipe Cabral, na obra já citada, fala mesmo na tutela do «direito à existencialidade», sendo a vida o suporte vital dessa existencialidade, sendo que perpassa, ainda, outros direitos fundamentais como a preservação da integridade física e psíquica do animal e a sua liberdade de movimentação. Ora, tais condutas estão, naturalmente, protegidas pelo tipo criminal acima descrito, já que atentatórias do corpo e saúde de um animal, donde necessariamente se têm por preenchidos os elementos objectivos do tipo de crime de maus tratos a animais de companhia. Relativamente aos elementos subjectivos do tipo incriminador, resultou provado que o arguido agiu com o propósito de agredir o animal, o que conseguiu, agindo sempre livre, voluntaria e conscientemente, mesmo sabendo que a sua conduta era proibida e punida por lei, e, por isso, com conhecimento e vontade de produzir o resultado verificado. Não há dúvidas de que, com a sua conduta, o arguido infligiu dor e sofrimento físico e psíquico no canídeo, animal de companhia de BB, colocando em crise o direito à sua existencialidade condigna, na vertente da integridade física e psíquica, tutelada, e que foi severamente posta em causa pelo arguido." Bem sabia o arguido que tal conduta não lhe era permitida mas, ainda assim, quis agir do modo descrito, actuando com dolo directo, porquanto dispõe o artigo 14.°, n.° 1 do Código Penal que "Age com dolo quem, representando um facto que preenche um tipo de crime, actuar com intenção de o realizar". Deste modo, preenchidos os elementos objectivos e subjectivos do tipo legal de ofensa à integridade física e incxistindo quaisquer causas de exclusão da ilicitude do acto ou da culpa do arguido, conclui-se que cometeu o imputado crime de maus tratos a animais de companhia, pelo qual vinha acusado." 8. Da medida da pena. O arguido foi condenado pela prática, em autoria material, na forma consumada, de um crime de maus tratos a animais de companhia, na pena de na pena de 100 (cem) dias de multa à razão diária de € 6,00 (seis euros), no total de € 600,00 (seiscentos euros). O tipo legal de crime de maus tratos a animais de companhia p. e p. pelo artigo 387.°, n.° 1 do Código Penal prevê a punição com pena de multa de 10 a 120 dias ou de prisão de 1 mês até 1 ano — vide artigos 41.°, n.° 1, 47.°, n.° 1 e 387.°, n.° 1, todos do Código Penal. Para a aferição da medida concreta da pena há que considerar, primeiro, a delimitação rigorosa da moldura penal abstractamente aplicável ao caso concreto, a fixação do grau de culpa do agente, que figurará como limite máximo da moldura penal, acima do qual a imposição de qualquer pena viola o princípio da culpa e, simultaneamente, a dignidade humana constitucionalmente protegida ( vd. art° 1° da C.R.P. ) e, por último, a equação das exigências de prevenção social e especial que auxiliarão o julgador no âmbito da qualificação penal — cfr. Figueiredo Dias — in Direito Penal II, Coimbra 1988. No domínio do Código Penal vigente rege um princípio basilar que se substancia na compreensão de que toda a pena repousa no suporte axiológico —normativo de culpa concreta (vd art.° 13.° do C.Penal ). Daí que, e sem esforço, se admita ainda a ausência de pena ante a inexistência de culpa e, mui especialmente, que a medida desta condiciona o limite máximo daquela — vd Acd do STJ de 15/04/99, Proc.243/99 — 3a Secção. O art.° 70.° do Código Penal, que enuncia os critérios de opção pela pena privativa de liberdade ou não, o art.°71°, do mesmo diploma legal, manda que o Tribunal, no encontro da pena, actue em função da culpa do agente, das exigências de prevenção e na ponderação das demais circunstâncias aí enumeradas e o art.° 40°, ainda daquele Código, dispõe que a pena não pode ultrapassar a medida da culpa e que aquela visa a protecção de bens jurídicos e a reintegração do agente na sociedade. Assim, o percurso conducente à fixação da pena concreta não se move, no domínio de princípios mais ou menos vagos e, portanto, geradores de uma prática judiciária marcada pela insegurança e ambiguidade, mas ao invés escorada em regras e comandos normativos precisos. No plano da graduação da pena é conhecida a variação evolutiva seguida pela Jurisprudência e doutrina. Hoje, e com suporte no Código Penal em vigor, a jurisprudência orienta-se no sentido da não partida do chamado ponto médio de arranque para punir os agentes da infracção sob pena de não haver mais margem no limite superior da moldura abstracta em casos de particular gravidade e de, afinal, converter as penas variáveis em fixas —vd Ac. do STJ, BMJ, 351/211. Dito de outro modo, na graduação da pena deverá partir-se do limite mínimo, agravando-se a mesma à medida que a culpa se eleva e ajustando-se em razão das exigências de prevenção geral e especial verificáveis. Da análise da sentença sob recurso consideramos que a matéria de facto dada como provada na decisão recorrida, é clara e incontroversa. Encontra-se de forma nítida verificado o preenchimento dos elementos objectivo e subjectivo do tipo legal de crime - crime de ofensa à integridade física simples - pelo qual foi condenado o arguido. A determinação da medida da pena continua compreendida dentro da faculdade discricionária do juiz (Cavaleiro Ferreira, "Boletim dos Institutos de Criminologia", 64) após a subsunção dos factos aos preceitos penais e respeitando os pressupostos a que se refere o artigo 71.° do Código Penal. E um dos princípios basilares do Direito Penal reside na compreensão de que toda a pena tem como suporte axiológico-normativo uma culpa concreta. Sendo finalidades das penas, a protecção de bens e valores jurídicos e a reintegração do agente delituoso na sociedade (prevenção geral e prevenção especial, respectivamente), há que buscar um ajustado equilíbrio entre elas, equilíbrio esse que não inibe que, perante o caso concreto, uma dessas finalidades possa e deva prevalecer sobre a outra. Na determinação da medida concreta da pena, importa, antes de mais, atender aos fundamentos da aplicação da pena, sendo que, nos termos do art. 40°, n° 1 e 2 do Código Penal "A aplicação de penas e de medidas de segurança visa a protecção de bens jurídicos e a reintegração do agente na sociedade." E que "Em caso algum a pena pode ultrapassar a medida da culpa." Além deste princípio geral, e especificadamente em relação à determinação da medida concreta da pena, dispõe o art. 71° n° 1 e 2 do Código Penal que "A determinação da pena, dentro dos limites definidos na lei, é feita em função da culpa do agente e das exigências de prevenção. (...) Na determinação concreta da pena o tribunal atende a todas as circunstâncias que, não fazendo parte do tipo de crime depuserem a favor do agente ou contra ele, considerando, nomeadamente: a) o grau de ilicitude do facto, o modo de execução deste e a gravidade das suas consequências, bem como o grau de violação dos deveres impostos ao agente; (...) (d) As condições pessoais do agente e a sua situação económica; (...) (f) A falta de preparação para manter uma conduta lícita, manifestada no facto, quando essa falta deva ser censurada através da aplicação da pena." Da leitura da sentença recorrida resulta que o tribunal a quo ponderou e aplicou correctamente os critérios de determinação da medida da pena constantes do art° 71° do Código Penal, à luz das finalidades da punição consagradas no art° 40° n° 1 do mesmo código. Decorre do artigo 70.° do Código Penal que o Tribunal deve dar preferência à pena não privativa da liberdade sempre que esta realizar de forma adequada e suficiente as finalidades da punição, dependendo a escolha entre a pena de prisão e a alternativa unicamente de considerações de prevenção geral e especial. Na decisão recorrida foram ponderados, devidamente, em nosso entender, todos os factos que atenuam ou agravam a responsabilidade criminal do arguido. "- Como circunstâncias da prática do crime de maus tratos a animais de companhia, em desfavor do arguido, militam: -as significativas exigências de reprovação e prevenção geral que os crimes que atentam contra a integridade física e psíquica dos animais, enquanto seres vivos não humanos, com direito a existencialidade condigna, reclamam; -a intensidade do dolo direto, que é elevada; -o grau de ilicitude é elevado, sendo grave o desvalor do resultado,. -a censurabilidade social da conduta do arguido, de intensidade elevada; -a ausência de arrependimento demonstrado e de formulação de juízo crítico para a gravidade da conduta; - Como circunstâncias da prática do crime de condução de maus tratos a animais de companhia, a favor do arguido, militam: -a ausência de antecedentes criminais; -a inserção social e familiar; Atento o circunstancialismo apurado, o tribunal reputa por justa, adequada e proporcional a condenação do arguido na pena de 100 (cem) dias de multa. O artigo 47.°, n.° 2 do Código Penal estatui que «A cada dia de multa corresponde uma quantia entre E 5,00 e C 500,00, que o tribunal fixa em função da situação económica e financeira do condenado e dos seus encargos pessoais.» A pena de multa há-de ser fixada em termos de ser interiorizada como uma verdadeira sanção penal, devendo revestir para o condenado um sacrifício, sem que seja posta em causa o essencial para assegurar condignamente a sua subsistência. Tendo em conta que o Estado de Direito Democrático tem como ideal que ninguém viva abaixo do limiar mínimo desejado para a subsistência básica e, sopesadas e ponderadas as circunstâncias de relevo para a dosimetria penal, mormente as condições económicas e sociais de vida do arguido, reputa-se por justa, adequada e proporcional a aplicação ao mesmo da quantia de C 6,00 (seis euros), a título de razão diária da multa. Assim, vai o arguido condenado na pena de 100 (cem) dias de multa à razão diária de é' 6,00 (seis euros), no total de C 600,00 (seiscentos euros)." Pelo exposto, nada há a censurar o Tribunal a quo, encontrando-se a pena aplicada doseada de forma equilibrada. VII - Termos em que se nega provimento ao recurso interposto pelo arguido, e se confirma na íntegra a sentença recorrida. Custas pelo arguido recorrente, sendo de 3 UC a taxa de justiça. (Acórdão elaborado e revisto pelo relator - vd. art.° 94 ° n.° 2 do C.P.Penal) Lisboa, 23 de maio de 2019 Fernando Estrela Guilherme Castanheira | ||
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