Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
129/13.5TJLSB-A.L1-7
Relator: CRISTINA COELHO
Descritores: SIGILO BANCÁRIO
INSTITUIÇÃO BANCÁRIA
PRINCÍPIO DA CONFIANÇA
DEVER DE COOPERAÇÃO PARA A DESCOBERTA DA VERDADE
DEVER DE INFORMAR
DEVER DE COOPERAÇÃO
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 03/25/2014
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Texto Parcial: N
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: BAIXAR À 1ª INSTÂNCIA
Sumário: 1. O segredo bancário é estabelecido em função de vários interesses, a saber o das próprias instituições bancárias, em cuja actividade releva de forma especial o princípio da confiança, o das pessoas, clientes directos do banco, estando em causa a salvaguarda da vida privada, e o dos terceiros (clientes indirectos) que se relacionam com o banco através dos seus clientes.
2. É ponderando estes interesses, o interesse de acesso ao direito e da descoberta da verdade material que está subjacente ao pedido de informação, e a natureza civilística dos mesmos, que se há-de aquilatar, de forma criteriosa, moderada e casuística, qual o interesse preponderante, dando-lhe prevalência.
3. Quando se está perante um elemento de prova indispensável ou fundamental para a descoberta da verdade, deve o sigilo bancário ceder perante o dever de cooperação na descoberta da verdade material, no âmbito da administração da justiça.

(Sumário da Relatora)
Decisão Texto Parcial:
Decisão Texto Integral: Acordam noTribunal da Relação de Lisboa:

RELATÓRIO.
J intentou acção declarativa de condenação, sob a forma de processo sumário, contra a … Companhia de Seguros, S.A. e Dra. Ana pedindo que se condenem as RR. a pagarem-lhe a quantia de € 7.164,65, acrescida de juros vincendos.
 A fundamentar o peticionado, alegou, em síntese:
O A. é proprietário de um veículo que, no dia 23.08.2010, foi interveniente num acidente de viação, no qual também interveio uma viatura dos Bombeiros Voluntários de …, segurada na 1ª R.
Em sede de responsabilidade civil pelo referido acidente, foi determinado por sentença de 7.1.2011 do Centro de Arbitragem da UCP que havia culpa concorrente de ambos os condutores, na proporção de 1/3 para o A. e 2/3 para o condutor da viatura dos bombeiros.
Naquele processo o A. foi representado pela 2ª R. e, inconformado com a referida decisão, mandatou esta para intentar acção contra a 1ª R., a fim de ser ressarcido dos prejuízos causados pela privação do uso da sua viatura, o que a 2ª R fez.
Na PI da referida acção, que corre termos na Comarca da Grande Lisboa Noroeste Amadora, a 1ª R. afirma designadamente no art. 9º que “a R. no dia 16.2.2011 ressarciu o A. na proporção de 2/3 do valor orçamentado para reparação, ou seja, no valor de € 6.129,31”.
Para prova do alegado neste artigo da PI, a 2ª R. junta um documento que designa por “doc. 5”, isto é, um ofício/cheque da 1ª R., no montante referido.
O cheque é cruzado, emitido à ordem do A. e remetido ao c/o da 2ª R., para a morada desta.
Acontece que o referido cheque nunca foi entregue ao A., e, sendo cruzado, nunca foi depositado em nenhuma conta sua, nunca tendo recebido a referida quantia, desconhecendo o destino dado ao cheque.
À data da propositura da referida acção, a 2ª R. era advogada do A. e faltou intencionalmente à verdade, pretendendo prejudicar o A., verificando-se abuso de representação e prestação de falsas declarações.
O A. já instou as RR. a pagarem-lhe a referida quantia, o que se recusam a fazer alegando que já procederam ao pagamento da dívida.
Arrolou uma testemunha e juntou docs., entre os quais o cheque a que faz referência.
Citadas, a 2ª R. contestou, alegando, para além do mais, que:
- é falso o alegado pelo A., porquanto, após a recepção do cheque no montante de € 6.129,31 no seu escritório, contactou o A., tendo-lhe o mesmo sido entregue, inclusivamente, na presença de uma colega de escritório;
- após ter entregue o cheque ao A., ignora o destino dado ao mesmo, bem como se o valor foi efectivamente recebido;
- como se pode verificar  do verso do cheque junto como doc. 3 da PI, foi o mesmo assinado pelo A. e depositado numa conta do Banco B, desconhecendo quem seja o titular da conta onde foi depositado, sendo certo que o A. poderia ter solicitado informação bancária quanto à titularidade da conta na qual o referido cheque foi depositado.
Arrolou uma testemunha e requereu, a final, que se oficiasse ao BANCO B para vir aos autos informar qual a conta e o respectivo titular da conta onde foi depositado o cheque nº …, bem assim como, cópia do talão de depósito do respectivo cheque.
Em audiência prévia foi fixado como objecto do litígio “o direito do A. a que alguma das Rés lhe pague a quantia de € 7.164,65”, e como temas da prova “1- Saber se, em cumprimento da decisão do Centro de Arbitragem da UCP, a Ré Seguradora remeteu ao Autor, através da segunda Ré, sua advogada, um cheque sacado sobre uma sua conta do Banco C, no valor de € 6.129,31, de que consta cópia a fls. 35, e 2- saber se a segunda Ré entregou ao A. o cheque referido.
Mais foi ordenado que se oficiasse ao BANCO B nos termos requeridos pela 2ª R.
Respondeu o BANCO B que não está em condições de prestar a informação solicitada, em virtude de a mesma versar sobre matéria relativamente à qual o Banco está obrigado a observar o dever de segredo profissional, sem prejuízo de lhe ser ordenada a prestação daquelas informações se se considerar ilegítima a argumentação expendida.
Considerando existir legitimidade para a dedução de escusa com base no sigilo bancário, o tribunal recorrido ordenou a remessa deste incidente de dispensa de sigilo a esta Relação para decisão, nos termos dos arts. 135º, nº 3 do CPP e 417º, nº 4 do CPC.

FUNDAMENTAÇÃO DE FACTO.
A factualidade com relevância para o conhecimento da questão suscitada pelo tribunal de 1ª instância é a constante do relatório supra.

FUNDAMENTAÇÃO DE DIREITO.
Dispõe o art. 411º do CPC que “incumbe ao juiz realizar ou ordenar, mesmo oficiosamente, todas as diligências necessárias ao apuramento da verdade e à justa composição do litígio, quanto aos factos de que lhe é lícito conhecer”.
Por seu turno, estatui o art. 417º, nºs 1 e 2 do CPC que todas as pessoas, sejam ou não partes, têm o dever de prestar a sua colaboração para a descoberta da verdade, respondendo ao que lhes for perguntado e facultando o que for requisitado, sob pena de, em caso de recusa de colaboração, serem condenadas em multa.
Prevê, porém, o nº 3 do mencionado artigo situações em que é legítima a recusa de colaboração, nomeadamente quando a mesma importar violação do sigilo profissional.
Neste caso, deduzida escusa com tal fundamento, é aplicável, com as adaptações impostas pela natureza dos interesses em causa, o disposto no processo penal acerca da verificação da legitimidade da escusa e da dispensa do dever de sigilo invocado (nº 4).
Sobre esta matéria dispõe o art. 135º do CPP, nomeadamente o seu nº 3, segundo o qual a quebra do sigilo profissional pode ter lugar quando se revele justificada em face do princípio da prevalência do interesse preponderante, nomeadamente tendo em conta a imprescindibilidade do depoimento para a descoberta da verdade, a gravidade do crime e a necessidade de protecção de bens jurídicos, havendo, pois, que aquilatar qual dos interesses em confronto assume maior relevância.
No caso em apreço, o tribunal de 1ª instância solicitou ao BANCO B o envio de informações sobre qual a conta e o respectivo titular da conta onde foi depositado o cheque nº …, e de cópia do talão de depósito do respectivo cheque, sendo certo que o que está em causa nos autos é saber se as RR. pagaram ou não ao A. determinada quantia, titulada pelo cheque em causa, que foi emitido em nome do A., mostra-se endossado e foi depositado em determinada conta bancária do BANCO B.
Recusou o BANCO B satisfazer o solicitado, invocando o sigilo profissional a que está sujeito.
Tal recusa é legítima face ao disposto nos arts. 78º e 79º do DL. 298/92 de 31.12, que aprovou o Regime Geral das Instituições de Crédito e Sociedades Financeiras (RGICSF), como considerou o tribunal de 1ª instância.
De facto, dispõe o nº 1 do art. 78º que “os membros dos órgãos de administração ou fiscalização das instituições de crédito, seus empregados, mandatários, comitidos e outras pessoas que lhes prestem serviços permanente ou ocasional não podem revelar ou utilizar informações sobre factos ou elementos respeitantes à vida da instituição ou às relações desta com os seus clientes cujo conhecimento lhes advenha exclusivamente do exercício das suas funções ou da prestação dos seus serviços”.
Esclarecendo o nº 2 que “estão, designadamente, sujeitos a segredo os nomes dos clientes, as contas de depósito e seus movimentos e outras operações bancárias”.
Mas o sigilo profissional em causa não tem valor absoluto, comportando excepções, que vêm previstas no referido art. 79º, desde logo no seu nº 1 que prevê que “os factos ou elementos das relações do cliente com a instituição podem ser revelados mediante autorização do cliente, transmitida à instituição”, do que resulta estar o segredo profissional, essencialmente, concebido como protecção do direito fundamental à reserva da vida privada.
E no nº 2 elencam-se outras situações em que é permitido revelar os factos e elementos cobertos pelo dever de segredo, entre as quais se conta a da al. d), nos termos da qual os referidos factos e elementos podem ser revelados às autoridades judiciárias, no âmbito de um processo penal (redacção introduzida pela L. 36/2010 de 2.09) [1].
O segredo bancário é estabelecido em função de vários interesses, a saber o das próprias instituições bancárias, em cuja actividade releva de forma especial o princípio da confiança, o das pessoas, clientes directos do banco, estando em causa a salvaguarda da vida privada (neste âmbito se inserindo a primeira excepção supra referida), e o dos terceiros (clientes indirectos) que se relacionam com o banco através dos seus clientes.
É ponderando estes interesses, o interesse de acesso ao direito e da descoberta da verdade material que está subjacente ao pedido de informação, e a natureza civilística dos mesmos, que se há-de aquilatar, de forma criteriosa, moderada e casuística, qual o interesse preponderante, dando-lhe prevalência.
No caso, está, essencialmente, em causa, o interesse do cliente do BANCO B, titular da conta em causa, de salvaguarda da intimidade da sua vida privada, consagrado no art. 26º da CRP, e o direito à prova, constitucionalmente consagrado no art. 20º da CRP, na medida em que representa uma componente do direito geral à protecção jurídica e de acesso aos tribunais.
Ora, vem a jurisprudência entendendo que, quando se está perante um elemento de prova indispensável ou fundamental para a descoberta da verdade, deve o sigilo bancário ceder perante o dever de cooperação na descoberta da verdade material, no âmbito da administração da justiça [2].
Invocando o A. que o cheque não lhe foi pago, e constando do verso do mesmo o seu depósito em conta bancária do BANCO B, não existe outra maneira de se conhecer, então, a identidade do titular da conta de destino do referido cheque, por forma a apurar se o A. foi ou não (ainda que indirectamente) pago do seu valor.
O meio de prova em causa é fundamental para apurar a factualidade que está subjacente ao pleito.
Afigura-se-nos, ainda, que um outro interesse determina o levantamento do sigilo bancário em causa, que, por ser fundamental, se torna preponderante – é que subjacente ao pleito está a invocação, pelo A., da violação grave dos deveres profissionais pela 2ª R., advogada e sua mandatária à data dos factos, o que põe em causa o seu bom nome, nomeadamente o profissional, direito pessoal constitucionalmente reconhecido (art. 26º da CRP), e para cuja defesa é fundamental apurar o nome do titular da conta onde o cheque foi depositado.
Face a tudo quanto se deixa dito conclui-se ser de dar prevalência ao dever de cooperação em detrimento do dever de sigilo, devendo julgar-se procedente o incidente, dispensando-se o BANCO B da observância do dever de segredo e ordenando-se que preste ao tribunal de 1ª instância as informações solicitadas.
DECISÃO.
Pelo exposto, acorda-se em dispensar a entidade bancária Banco B, da observância do sigilo bancário e determinar a apresentação pela mesma à 1ª instância das informações solicitadas.
            Sem custas.
                                                           *
                                               Lisboa, 2014.03.25
                                              
                                               Cristina Coelho
                                             Roque Nogueira
                                            Pimentel Marcos

[1] A finalidade da alteração legislativa introduzida pela L. 36/2010 de 2.09 foi a de combater a morosidade processual, facilitando o acesso da autoridade judiciária a informação que, em princípio, estaria a coberto do sigilo bancário desde que destinada a um processo penal, não tendo sido, porém, intenção do legislador impedir que no âmbito do processo civil possam ser revelados factos ou elementos cobertos pelo segredo bancário – neste sentido, cfr., entre outros, os Acs. desta Relação de 3.07.2012, P. 406/10.7TMLSB-A.L1, rel. Desemb. Graça Amaral e de 4.12.2012, P. 1555/09.0TBALM-A.L1, rel. Desemb. Orlando Nascimento, ambos em www.dgsi.pt., onde se fazem referência a outros acórdãos.
[2] Entre muitos outros, cfr., desta Relação, os Acs. de 26.10.2010, P. 44/2002.L1, rel. Desemb. Pedro Brighton, de 27.01.2011, P. 2065/09.0TBALM-A.L1, rel. Desemb. Olindo Geraldes, de 28.02.2012, P. 4433/09.9TBSXL-D.L1, rel. Desemb. Pimentel Marcos, e de 13.09.2012, P. 3218/07.1TBLSB.L1, rel. Desemb. Teresa Prazeres Pais, todos em www.dgsi.pt.