Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa | |||
Processo: |
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Relator: | MAFALDA SEQUINHO DOS SANTOS | ||
Descritores: | ABUSO DE CONFIANÇA FISCAL GESTÃO DE FACTO GESTÃO DE DIREITO DOLO PROVA INDIRECTA | ||
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Nº do Documento: | RL | ||
Data do Acordão: | 02/22/2023 | ||
Votação: | UNANIMIDADE | ||
Texto Integral: | S | ||
Texto Parcial: | N | ||
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Meio Processual: | RECURSO PENAL | ||
Decisão: | NEGADO PROVIMENTO | ||
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Sumário: | I – Detêm a “gestão de facto” da sociedade devedora de IVA, os arguidos que assumem a gestão da mesma com o objetivo de a revitalizar, negociando efetivamente com os credores. II – Os factos psicológicos que traduzem o elemento subjetivo da infração são, por norma (e na ausência de confissão) objeto de prova indireta – resultado de inferências dos factos materiais e objetivos analisados à luz das regras da experiência comum. III – A consumação do crime de abuso de confiança fiscal p. e p. pelo art.º 105.º do RGIT não exige uma intenção de apropriação sendo, no entanto, exigível que o agente obrigado à entrega ao Estado tenha efetivamente recebido a prestação tributária devida. (sumário elaborado pela relatora) | ||
Decisão Texto Parcial: | ![]() | ||
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Decisão Texto Integral: | Acordam em conferência na 5ª Secção do Tribunal da Relação de Lisboa * 1 – Relatório 1.1 Decisão recorrida Após julgamento, em processo comum com intervenção do tribunal singular, foi proferida sentença julgando parcialmente[1] procedente a acusação pública, e consequentemente foram condenados: - o arguido JF pela prática de um crime de abuso de confiança fiscal, previsto e punido pelos artigos 7.º, n.º 1, 15.º, 105.º, n.º 1 e n.º 4, do RGIT na pena de 100 dias de multa à taxa diária de 5€ (cinco euros) num total de 500,00€ (quinhentos euros) ou, subsidiariamente, 66 (sessenta e seis) dias de prisão. - o arguido PO pela prática de cada crime de abuso de confiança fiscal, previsto e punido pelos artigos 7.º, n.º 1, 15.º, 105.º, n.º 1 e n.º 4, do RGIT na pena de 100 (cem) dias de multa à taxa diária de 5€ (cinco euros) num total de 500,00€ (quinhentos euros) ou, subsidiariamente, 66 (sessenta e seis) dias de prisão. Em cúmulo jurídico foi condenado na pena única de 130 (cento e trinta) dias de multa, à taxa diária de 5,00€ (cinco euros), num total de 650,00€ (seiscentos e cinquenta euros) ou, subsidiariamente, 86 (oitenta e seis) dias de prisão. - a arguida HO pela prática de cada crime de abuso de confiança fiscal, previsto e punido pelos artigos 7.º, n.º 1, 15.º, 105.º, n.º 1 e n.º 4, do RGIT na pena de 100 dias de multa à taxa diária de 5€ (cinco euros) num total de 500,00€ (quinhentos euros) ou, subsidiariamente, 66 (sessenta e seis) dias de prisão. Em cúmulo jurídico foi condenada na pena única de 130 (cento e trinta) dias de multa, à taxa diária de 5,00€ (cinco euros), num total de 650,00€ (seiscentos e cinquenta euros) ou subsidiariamente 86 (oitenta e seis) dias de prisão. Mais foi declarado o perdimento da quantia de 21.380,46€ (vinte e um mil, trezentos e oitenta euros e quarenta e seis cêntimos) e condenado o arguido JF a entregá-la ao Estado. Foi, ainda, declarado o perdimento da quantia de 20.653,34€ (vinte mil, seiscentos e cinquenta e três euros e trinta e quatro cêntimos) e condenados os arguidos PO e HO a entregá-la ao Estado. 1.2 Recurso Inconformados com a decisão final, dela interpuseram recurso os arguidos JF, PO e HO pugnando pela respetiva absolvição, extraindo da sua motivação as seguintes conclusões (transcrição): «(…) I. ÂMBITO DO RECURSO 1. O presente recurso vem interposto da decisão proferida sobre a matéria de facto e, por isso, tem por objeto a reapreciação da prova gravada, bem como sobre a matéria de direito; 2. Os Recorrentes põem em crise a sentença de fls... dos autos, que condenou o arguido JF pela prática de um crime de abuso de confiança fiscal, previsto e punido pelos artigos 7º, nº 1 e nº 4, 15º, 105º, nº 1 e nº 4 do RGIT, na pena de 100 dias de multa à taxa diária de € 5,00, num total de €500,00, ou subsidiariamente 66 dias de prisão e na entrega ao Estado da quantia de €21.380,46; 3. Os Recorrentes põem em crise a sentença de fls…. dos autos que condenou o arguido PO pela prática de cada crime de abuso de confiança fiscal, previsto e punido pelos artigos 7º, nº 1 e nº 4 15º, 105º, nº 1 e nº 4 do RGIT, na pena de 100 dias de multa à taxa diária de € 5 num total de €500,00, ou subsidiariamente 66 dias de prisão, sendo que, em cúmulo jurídico na pena única de 130 dias de multa, à taxa diária de €5,00, num total de €650,00; 4. Os Recorrentes põem em crise a sentença de fls…. dos autos que condenou a arguida HO pela prática de cada crime de abuso de confiança fiscal, previsto e punido pelos artigos 7º, nº 1 e nº 4 15º, 105º, nº 1 e nº 4 do RGIT, na pena de 100 dias de multa à taxa diária de €5 num total de €500,00, ou subsidiariamente 66 dias de prisão, sendo que, em cúmulo jurídico na pena única de 130 dias de multa, à taxa diária de €5,00, num total de €650,00; 5. Os recorrentes PO e HO põem em crise a sentença de fls…. dos autos que os condena na entrega ao Estado da quantia de € 20.635,34; II - DA MATÉRIA DE FACTO DO ENQUADRAMENTO 6. Reportados os factos aos períodos de IVA de 2018/07T, no valor de €21.380,46, 2018/11T e 2018/12T, no valor de €20.653,34, merece censura a sentença sub recurso ao não ter ponderado de forma crítica os depoimentos que abaixo se transcrevem, veio a dar por PROVADA a matéria dos Pontos 3, 4, 5, 6, 9 e 10 dos FACTOS PROVADOS e por Não PROVADA a matéria dos Pontos 1, 2, 3, 4 e 5 dos FACTOS NÃO PROVADOS (da contestação); DA IMPUGNAÇÃO DA MATÉRIA DE FACTO 7. Não foi produzida prova que sustente a resposta dada ao Ponto 3 dos Factos Provados da sentença em crise, ao invés, o depoimento da testemunha ST, gravado através do sistema integrado de gravação digital, disponível na aplicação informática em uso no Tribunal, com início às 11:55:43 e fim às 12:22:22, prestado na audiência de discussão e julgamento, realizada 18-02-2022, do minuto 00:02:03 ao minuto 00:03:03 e do minuto 00:19:14 ao minuto 00:20:53, sustenta resposta negativa a tal matéria; 8. A falta de administração efectiva/ de facto dos arguidos, ora, recorrentes PO e HO não conduz e não conduziu, por impossibilidade objectiva, à prática de atos consubstanciados nos Pontos 5, 6, 9 e 10 dos Factos provados, da sentença sub judicie, pelo que estes nunca poderiam ser dados como Factos Provados; 9. O depoimento referido em 7. supra, impõe a alteração da resposta dada no Ponto 3 dos FACTOS PROVADOS, que deve passar a fazer parte do elenco dos FACTOS NÃO PROVADOS e, por consequência, também, a alteração da resposta dada nos Pontos 5, 6, 9 e 10 dos FACTOS PROVADOS e dos Pontos 1, 2, 3, 4 e 5 dos FACTOS NÃO PROVADOS (da contestação) que deverão passar para o elenco dos FACTOS NÃO PROVADOS e dos FACTOS PROVADOS, respetivamente; Ainda, 10. O depoimento da testemunha AR, gravado através do sistema integrado de gravação digital, disponível na aplicação informática em uso no Tribunal, com início às 11:28:04 e fim às 11:46:36, prestado na audiência de discussão e julgamento, realizada 18-02-2022, não sustenta, como se pretende na sentença em crise, a resposta dada ao Pontos 4 e 5 da sentença sub judicie; 11. Tal depoimento prestado sobre a matéria dos Pontos 4 e 5 dos Factos Provados em sentença do minuto 00:09:49, do minuto 00:16:18 ao minuto 00:17:48, mostrou um conhecimento vago, impreciso, inconcludente e incapaz à prova do recebimento, bem como da apropriação do valor do IVA por parte dos arguidos, aqui recorrentes, como se impunha, numa valoração correta e conforme ao Direito, segundo o princípio do ónus da prova! 12. Cabia ao acusador público a prova insofismável de tais factos. O que não logrou fazer! 13. Ao invés, foi produzida prova nos autos que nega a resposta dada a tal matéria e, bem assim, a tese plasmada na sentença em crise, mormente, o depoimento a testemunha ST, gravado através do sistema integrado de gravação digital, disponível na aplicação informática em uso no Tribunal, com início às 11:55:43 e fim às 12:22:22, prestado na audiência de discussão e julgamento realizada 18-02-2022, do minuto 00:08:30 ao minuto 00:17:35 e da testemunha DM, gravado através do sistema integrado de gravação digital, disponível na aplicação informática em uso no Tribunal, com início às 12:24:56 e fim às 12:38:24, prestado na audiência de discussão e julgamento realizada 18-022022, do minuto 00:07:47 ao minuto 00:09:43 e do minuto 00:10:55 ao minuto 00:11:10 provam da falta de recebimento e da do imposto e da fata de apropriação do valor do mesmo pelos arguidos, aqui recorrentes! Diga-se, ainda, que, 14. a resposta dada aos pontos 4 e 5 dos Factos Provados não pode sustentar a resposta dada na sentença sub judicie aos Pontos 6, 9 e 10 dos Factos PROVADOS e aos Pontos 1, 2, 3, 4 e 5 dos FACTOS NÃO PROVADOS; 15. No que concerne aos Pontos 6, 9 e 10 dos Factos PROVADOS na sentença sub judicie, não está em causa a insuficiência da prova produzida, mas uma total ausência de prova sobre a prática dos factos que, aí, são imputados aos arguidos, ora, Recorrentes, não se encontrando nos autos depoimento testemunhal ou documento que sustente a resposta dada; IPSO FACTO, 16. na sentença a quo, o Tribunal valora e faz dos Pontos 4 e 5 dos FACTOS PROVADOS alicerce da sua decisão, renegando do enquadramento em que os factos ocorreram e que, necessariamente, conduzem à conclusão da inexistência de imposto efectivamente recebido e da consequente indisponibilidade dos arguidos, ora, recorrentes ao mesmo; da falta de intenção/ culpa dos arguidos, aqui recorrentes, na omissão de entrega do tributo ao Estado – que, de todo, negam da prática do crime de abuso de confiança fiscal, em que vêm condenados. 17. O tribunal “a quo” julgou erradamente parte da matéria de facto ao considerar como provada a matéria que constitui os Pontos 3, 4, 5, 6, 9 e 10, do acórdão sub judicie, pelo que tais factos devem ser retirados do elenco dos factos provados e considerados como NÃO PROVADOS! 18. Outrossim, erradamente julgou a matéria dos Pontos 1, 2, 3, 4 e 5, dos FACTOS NÃO PROVADOS (da contestação) da sentença sub judicie, cujos depoimentos supra, transcritos, sustentam sejam os mesmos retirados do elenco dos FACTOS NÃO PROVADOS e considerados como FACTOS PROVADOS; 19. A matéria factual dada como provada e não provada, sub apreciação, e que é fundamento material da sentença, não resulta de uma análise atenta, crítica e objetiva por parte da Mma. Juiz a quo dos elementos carreados para os autos, incluindo o depoimento prestado pela testemunha, bem como os demais elementos documentais probatórios carreados para os autos; 20. Andou mal a sentença em crise na apreciação e valoração da prova produzida e, dessa forma, incorreu, em erro de julgamento; 21. Não pode, pois, a sentença a quo, manter-se por válida no ordenamento jurídico! DA MATÉRIA DE DIREITO – DO ERRO DE JULGAMENTO – 22. Do que vem de dizer supra, verifica-se ter o Tribunal a quo incorrido em erro de julgamento, consagrado no artigo 412º, nº 3, do CPP; 23. Alterando-se a matéria de facto dada por provada nos termos defendidos e preconizados no presente recurso e sendo o efectivo recebimento da prestação tributária o pressuposto de punibilidade, a falta de tal elemento, importa, in casu, a falta de preenchimento do requisito que a Lei impõe para ocorrer a punibilidade pela prática dos crimes de abuso de confiança fiscal, em que vêm condenados os arguidos, ora, recorrentes, o que importa a despenalização da conduta dos arguidos, ora, recorrentes e, em consequência a sua absolvição; 24. Impõe-se a revogação do acórdão recorrido e, consequentemente, serem os arguidos absolvidos da prática dos crimes em que vêm condenados; 25. Ao não valorar os depoimentos das testemunhas ST e DM, o Tribunal a quo excedeu os limites da livre convicção do Tribunal capaz de revidar o depoimento da testemunha AR; 26. Ao não valorar os depoimentos das testemunhas ST e DM, o Tribunal a quo, usou de arbítrio subjetivo e imotivado, que faz o acórdão em crise padecer de vício que, importa a revogação do acórdão sub judicie; 27. Viola o acórdão em crise o disposto no artigo 412º, nº 3 e artigo 127º ambos do CPP; –DO CRIME DE ABUSO DE CONFIANÇA FISCAL – 28. Repete-se da falta de prova produzia nos autos capaz ao preenchimento dos elementos integrantes do tipo legal do crime de abuso de confiança fiscal, pelo que se nega a verificação dos pressupostos da punição dos arguidos, ora, recorrentes, na sentença sub recurso; 29. O tipo objetivo do crime de abuso de confiança fiscal exige e impõe o recebimento efectivo da prestação tributária, como se lê no Ac. STJ nº 8/2015, in www.dgsi.pt.: “… no âmbito do imposto sobre o valor acrescentado (IVA), significa que o devedor tributário só pode praticar esse crime se tiver recebido o montante da prestação tributária ou seja se esta lhe tiver sido entregue pelo adquirente”; 30. O artigo 105º, nºs 1 e 4 do RGIT, que pune como crime a falta de entrega de prestação tributária, não abrange, na sua previsão legal, situações em que o imposto que deva ser entregue não esteja em poder do sujeito passivo, por este não o ter recebido ou retido; 31. Ora, da prova produzida em audiência de discussão e julgamento não resulta do recebimento efectivo dos valores do IVA, quer da apropriação de tais valores pelos arguidos, ora, recorrentes, ou sequer da intenção subjacente à não entrega ou apropriação; 32. In casu, da prova produzia nos autos, não resulta e, por isso, não podia ter sido valorado na sentença em recurso - de modo a que se mostre insuperável - de que os arguidos, aqui recorrentes, agiram com a predita intenção de se apropriarem dos valores do tributo e que tivessem, efetivamente, recebido; 33. Não se mostra, pois, preenchido o imprescindível elemento objectivo do crime e subjetivo da ilicitude legalmente previstos, pelo que, no mínimo e no limite, sempre na douta sentença em recurso, se impunha observar o princípio do in dubio pro reo, ou seja, “O princípio in dubio pro reo dá resposta à questão processual da dúvida sobre o facto, impondo ao juiz que o non liquet da prova seja resolvido a favor do arguido.”; Ainda, 34. “O preenchimento do tipo legal do crime de abuso de confiança fiscal pressupõe a conduta de quem tem o domínio e a capacidade efectiva de administração da sociedade comercial e só pode ser responsabilizado criminalmente quem, na ocasião em que não foi entregue a prestação tributária retida ou deduzida, reunia os poderes de facto necessários para optar pelo incumprimento da obrigação tributária. II) Daí que a qualidade de "gerente" no sentido formal, mesmo que com um conhecimento da situação de incumprimento, seja insuficiente para a imputação do referido tipo de crime e se torne necessário demonstrar que esse gerente ou administrador de direito tinha o domínio funcional dos factos referentes ao exercício das obrigações fiscais da empresa.” (Ac. TRG de 11-05-2015, in www.dgsi.pt); - DA MERA ADMINISTRAÇÃO DE DIREITO – 35. Transmutando para o caso sub judicie, diga-se que, da prova produzida não resulta qualquer referência, nem permite qualquer ilação, quanto ao comportamento dos Recorrentes, mormente PO e HO, relativamente à decisão de a sociedade não pagar o tributo em causa; 36. Vingou na sentença sub judicie a presunção judicial, que Jurisprudência dos Tribunais, supra referida, vem a afastar como possível, ou seja, a consideração de culpa igual numa administração de Direito e numa administração de Facto, quando, a mera administração de Direito não é suscetível de diminuir patrimónios, nem de praticar crimes, em representação da sociedade administrada; 37. A sentença em crise, atenta a administração meramente de Direito e face à prova produzida, tinha, no mínimo que se situar no campo da dúvida razoável e, não tendo sido apurados quaisquer factos relativamente a à atuação dos Recorrentes, PO e HO, não podia ter feito um juízo individualizado sobre a culpa, por forma à condenação, nela plasmada; 38. Há na sentença em recurso uma presunção de culpa dos administradores de Direito, presunção inadmissível no nosso ordenamento jurídico; 39. Releve-se e reitere-se do erro na sentença em crise, que não obstante prova omissa, relativamente ao arguido JF, dá como provada a matéria dos Pontos 6, 9 e 10 da sentença a quo; 40. A douta sentença recorrida violou o disposto nos nas als. a) e b) do n.º 2, do artigo 412.º do CPP, artigo 127.º, do CPP, os artigos 26.º, 40º, n 2 e 71º, do CP e ainda os artigos 7º, nº 1, 15º e 105º, nºs 1 e 4, do RGIT, porquanto não se encontram preenchidos os pressupostos intrínsecos do referido tipo legal de crime: efectivo recebimento e específica intenção de apropriação, bem como o princípio in dúbio pro reo; 41. Há na sentença sub recurso erro na apreciação das provas e, por isso, erro de julgamento, por ausência de valoração racional, integrada, perceção e análise do depoimento testemunhal e documental dos autos; 42. Impunha-se, na sentença a quo, atenta da prova produzia nos autos e/ou a ausência de prova quanto à matéria de facto sub análise – falta de recebimento efetivo do tributo, da intenção de apropriação e também da administração efectiva ou de facto (dos arguidos PO e HO) – a absolvição dos arguidos, ora, recorrentes do crime de abuso de confiança fiscal, e da condenação na entrega dos valores ao Estado, em que vêm condenados; 43. Há na sentença sub recurso erro na apreciação das provas e, por isso, erro de julgamento, por ausência de valoração racional, integrada, perceção e análise do depoimento testemunhal e documental dos autos; 44. Impõe-se, por justiça e em nome da verdade material, a revogação da sentença em recurso, em conformidade com a absolvição dos arguidos, ora, recorrentes aqui preconizada!» 1.3 O recurso foi admitido, por tempestivo e legal, com subida imediata, nos próprios autos e efeito suspensivo. 1.4 O Ministério Público apresentou resposta ao recurso interposto pelos arguidos, pugnando pela respetiva improcedência, formulando as seguintes conclusões: « 1. Quanto ao recurso sobre a matéria de facto e aos concretos pontos de facto impugnados, a sentença encontra-se devidamente fundamentada e a decisão sobre a matéria de facto, salvo melhor opinião, não merece qualquer censura, nem outra coisa resulta da prova indicada pelo arguido, que, por si só, conjugada com as demais provas, não “impunha” decisão diversa, conforme a lei exige. 2. Acresce que a decisão, além de fundamentada, baseou-se na análise conjugada e criteriosa de toda a prova produzida em julgamento, bem como toda a prova documental que consta dos autos, tendo contribuído para a formação da convicção do julgador, reforçado pelo princípio da imediação que apenas ao desta forma pode ser cumprido. 3. O recurso da matéria de facto não visa, nem pode visar, a realização de um segundo julgamento ou um segundo juízo sobre a prova produzia, servindo apenas para reparar erros de julgamento que resultem evidentes da prova produzida, sem prejuízo do princípio da livre apreciação da prova previsto no artigo 127.º do Código de Processo Penal. 4. Como a decisão recorrida está devidamente fundamentada e, quanto aos pontos impugnados, constitui uma das soluções objectivamente possíveis face à prova documental dos autos e à prova testemunhal produzida em julgamento, constituindo aliás, a nosso ver, a solução correcta, a mesma deve manter-se sob pena de violação do princípio da livre apreciação da prova. 5. Se os recorrentes pretendiam sustentar a “tese” de que, apesar da prova documental que consta dos autos, as quantias relativas ao IVA liquidado, apesar de terem sido pagas pelos credores, não foram recebidas por si, mas penhoradas pela Segurança Social e Finanças, cumpria-lhes fazerem prova disso (o que poderiam, sem qualquer esforço e de forma simples, fazer) e, não o tendo feito, face à ampla prova produzida em julgamento, o Tribunal apenas podia ter decidido como decidiu. 6. Ainda sobre a questão do recebimento efectivo das quantias liquidadas a título de IVA, convém ter presente que tal recebimento resulta, além do mais: - Das “informações” elaboradas pela Inspectora Tributária e testemunha AR, de fls. 510 a 513 e 535 a 537, bem como dos quadros anexos a tais informações (fls. 514 e 538/539); - Das cópias das facturas e dos meios de pagamento respectivos, de fls. 515 a 531 e 540 a 584, do qual decorre indubitavelmente que tais facturas foram pagas e o valor transferido para a sociedade arguida, em diferentes datas ao longos de todos os períodos em apreço; - Do depoimento da referida testemunha, que reiterou integralmente aquelas informações e documentos e explicou o teor das mesmas; - Do “Parecer” de fls. 703 e ss. (designadamente os pontos 4.12 e 4.13 de fls. 708 a 710). 7. Quanto à segunda parte do recurso, que alegadamente versa sobre de matéria de direito (designadamente, “do erro de julgamento” e “da mera administração de direito”), ela debruça-se novamente e apenas sobre a prova produzida e os factos provados. 8. Assim, quanto à matéria de direito o recurso é materialmente uma continuação do recurso de matéria de facto, que nada acrescenta ao que já havia sido dito, não incidindo sobre matéria de direito e não estando motivado enquanto tal.» 1.5 Neste Tribunal, a Exma. Procuradora-Geral Adjunta emitiu parecer no sentido da improcedência do recurso, subscrevendo a posição assumida pelo Ministério Público na 1ª instância. 1.6 Foi dado cumprimento ao disposto no artigo 417º, nº 2 do Cód. de Processo Penal, não tendo os arguidos apresentado resposta. 1.7 Colhidos os vistos e realizada a Conferência, cumpre decidir. * 2. Questões a decidir no recurso O âmbito do recurso é delimitado pelas conclusões da motivação que o recorrente produziu para fundamentar a sua impugnação da decisão da primeira instância, sem prejuízo das questões que forem de conhecimento oficioso (artigos 379.º, 403.º, 410.º e 412.º, nº 1 do Cód. Processo Penal e AUJ n.º 7/95, de 19/10/95, in D.R. 28/12/1995). Não se detetam questões de conhecimento oficioso que imponham a intervenção deste Tribunal. Atendendo às conclusões apresentadas, cumpre conhecer: - Do recurso da matéria de facto (erro de julgamento); -Do preenchimento do tipo legal do crime de abuso de confiança fiscal. * 3. Da decisão recorrida Transcreve-se, em seguida, a decisão recorrida, nos segmentos relevantes para a apreciação do recurso: «Da discussão da causa resultaram provados os seguintes factos: 1. A sociedade comercial denominada “KW, S.A.” (Zona Franca da Madeira), cuja matricula se encontra cancelada, foi uma sociedade anónima, com sede, à data dos factos, na Rua …., Funchal, tinha por objecto social, a cedência temporária de trabalhadores para ocupação por utilizadores, actividade de selecção, orientação e formação profissional, consultadoria e gestão de recursos humanos, foi contribuinte com o n.º 502 … … e estava enquadrada, para efeitos de IVA, no regime normal de periodicidade trimestral. 2. Os arguidos JF e MF exerceram a administração de direito e o arguido JF também de facto, da sociedade “KW, S.A.” (Zona Franca da Madeira), na qualidade de Presidente do Conselho de Administração e Administrador, respectivamente, no período compreendido entre o dia 23 de Novembro de 2017 e o dia 25 de Outubro de 2018, sendo o arguido JF quem, em representação da sociedade, tomavam todas as decisões de gestão da sociedade e definia o rumo dos negócios, dava ordens aos funcionários, contratava com fornecedores e clientes, pagava aos primeiros, recebia dos segundos e representava a sociedade junto das repartições públicas, nomeadamente a Administração Fiscal. 3. Os arguidos PO e HO exercem, desde pelo menos, o dia 25 de Outubro de 2018 e exerciam, à data dos factos, a administração de facto e de direito da sociedade “KW, S.A.” (Zona Franca da Madeira), na qualidade de Presidente do Conselho de Administração e Administradora, respectivamente, sendo eles quem, em representação da sociedade, tomavam todas as decisões de gestão da sociedade e definiam o rumo dos negócios, davam ordens aos funcionários, contratavam com fornecedores e clientes, pagavam aos primeiros, recebiam dos segundos e representavam a sociedade junto das repartições públicas, nomeadamente a Administração Fiscal. 4. No âmbito da sua actividade profissional, o arguido JF, actuando no seu próprio interesse e no da sociedade, não obstante ter efectivamente recebido os montantes devidos pela cobrança do IVA e ter entregado a correspondente declaração periódica referente ao período de 2018/07T, não efectuou no prazo legal, nem nos 90 dias posteriores ao termo do prazo legalmente estipulado, o pagamento do imposto apurado no valor de € 21.380,46 (vinte e um mil trezentos e oitenta euros e quarenta e seis cêntimos). 5. Ainda no âmbito da sua actividade profissional, os arguidos PO e HO, no seu próprio interesse e no da sociedade, não obstante terem efectivamente recebido os montantes devidos pela cobrança do IVA e terem entregado a correspondente declaração periódica referente aos períodos de 2018/11T e 2018/12T, não efectuaram no prazo legal nem nos 90 dias posteriores ao termo do prazo legalmente estipulado, o pagamento do imposto apurado no valor de € 15.169.90 (quinze mil cento e sessenta e nove euros e noventa cêntimos) e € 13.153,66 (treze mil cento e cinquenta e três euros e sessenta e seis cêntimos), respectivamente. 6. Os arguidos JF, PO e HO não efectuaram os pagamentos acima discriminados à Administração Fiscal, fazendo suas as referidas quantias, utilizando-as em proveito próprio, integrando-as no seu património e obtendo, desse modo, vantagens patrimoniais e benefícios que sabiam ser indevidos e proibidos por lei. 7. Os arguidos JF, PO e HO, por si e na qualidade de legais representantes da sociedade “KW, S.A.” (Zona Franca da Madeira), foram notificados pessoalmente, nos dias 29 de Novembro de 2019, 23 de Janeiro de 2020, 21 de Novembro de 2019 e 12 de Fevereiro de 2020, respectivamente, para, no prazo de 30 dias, procederem ao pagamento voluntário da quantia em dívida, não efectuando, no entanto, nesse prazo e até à presente data, o pagamento devido à Administração Fiscal. 8. O não pagamento do imposto referente ao período 2018/11T, no valor de € 15.169.90 (quinze mil cento e sessenta e nove euros e noventa cêntimos) deu origem ao processo de execução fiscal nº….., sendo o montante actual em divida de €7.499,68 (sete mil quatrocentos e noventa e nove euros e sessenta e oito cêntimos). 9. Os arguidos agiram de modo livre e consciente, com o propósito deliberado e concretizado de não entregar à Administração Fiscal o imposto que estavam obrigados a entregar, prejudicando a Administração Fiscal, pelo menos, em valor equivalente. 10. Os arguidos sabiam ainda que a sua conduta os fazia incorrer em responsabilidade criminal. MAIS SE PROVOU QUE: 1 – Os arguidos MF e HO não têm antecedentes criminais. 2- O arguido JF averba no seu CRC uma condenação pela prática em 19.04.1999, de um crime de fraude fiscal qualificada. 3- Os arguidos não regularizaram a sua situação fiscal. Da contestação: 1. O arguido JF exerceu o cargo de presidente do Conselho de Administração da sociedade KW, S.A., como o NIPC 502…….. desde 06.12.2013, tendo sido reconduzido em 28.12.2017, e renunciado ao cargo em 25.10.2018, tudo conforme print da certidão permanente da identificada sociedade. 2. No período de 2018/07T o arguido foi confrontado com uma situação deficitária da sociedade KW, S.A. 3. O ISS, IP, é o maior credor da identificada sociedade da qual o arguido JF foi administrador, conforme Lista Provisória de Credores que se junta e que foi lavrada no âmbito do processo de insolvência da identificada sociedade “KW, S.A. (Zona Franca da Madeira)”, com o NIPC 502…. … , com n.º …T8FNC e que correu termos no Tribunal Judicial da Comarca da Madeira – Juízo do Comércio do Funchal – Juiz 2. 4. A identificada sociedade foi declarada insolvente em 25 de junho de 2019. 5. A identificada sociedade, da qual o arguido foi o representante legal desde 06.12.2013 até 25.10.2018, era uma empresa de trabalho temporário. 6. O IEFP, IP, emitiu despacho de suspensão da actividade da identificada sociedade, pelo período de dois meses, o que equivale à falta de licenciamento para o exercício da actividade. 7. Por dificuldades de tesouraria, e pela necessidade de pagamentos de outras despesas correntes da identificada sociedade, a totalidade do IVA pago pelas empresas portuguesas à sociedade “KW, S.A. (Zona Franca da Madeira)”, foi afecto ao pagamento dos salários aos trabalhadores. 8. A sociedade KW, S.A., como o NIPC 502…….., foi declarada insolvente em 25/06/2019 no âmbito do processo que correu termos no Tribunal Judicial da Comarca da Madeira - Juízo de Comércio do Funchal - Juiz 2, sob o número …0T8FNC, entretanto, já encerrado. 9. O arguido MF foi gerente/administrador de direito daquela sociedade nos períodos compreendidos entre 2008 e 2018. 10. Apesar do arguido figurar como administrador da referida sociedade nos referidos períodos, nunca exerceu a gerência/administração de facto. 11. não praticou qualquer acto de gestão efetiva, 12. Não controlou ou ditou o destino da sociedade, limitando-se, apenas, a ser um mero gerente de direito. 13. O arguido MF é pai do arguido JF, reformado, com cerca de 85 anos e foi por razões meramente formais que assumiu a gerência da “KW, S.A. (Zona Franca da Madeira)”. 14. Apesar do arguido figurar como gerente/administrador da referida sociedade no período em causa, nunca exerceu qualquer tipo de funções naquela. 15. Nunca auferiu qualquer salário, nem recebeu qualquer montante da referida sociedade. 16. Não contratou empregados. 17. Não estabeleceu qualquer contacto com os clientes da referida sociedade, 18. Não praticou qualquer ato de gerência/administração da mesma, 19. Este arguido, incluindo o período em causa - 2018/07T - não tinha, nem nunca teve, qualquer poder de ingerência na identificada sociedade, intervenção, ou influência, ou controlo sobre os seus destinos. 20. No âmbito do processo n.º …T8FNC que correu termos no Tribunal Judicial da Comarca da Madeira – Juízo do Comércio do Funchal – Juiz 2, a sociedade “KW, S.A. (Zona Franca da Madeira)”, com o NIPC 502……. - foi declarada insolvente em 25 de junho de 2019, conforme referido em 11. supra, tendo a sentença transitado em julgado em 16 de julho de 2019. 21. Os arguidos PO e HO foram nomeados como administradores da identificada sociedade em 02 de Novembro de 2018, conforme AP. 14/20181102, inserta na certidão permanente da identificada sociedade. 22. Os períodos do imposto em causa reportam-se aos meses de Novembro e Dezembro de 2018. 23. Nessa mesma altura, a sociedade arguida, não obstante todos os esforços, deparou-se com uma situação económica difícil, nomeadamente, ao nível da tesouraria, tendo-se debatido com sérias dificuldades para cumprir pontualmente as suas obrigações por falta de liquidez. 24. Perante o cenário de estrangulamento financeiro da identificada sociedade, encontrando-se sem capacidade de cumprir integral e pontualmente as suas obrigações e considerando-se que a mesma era viável desde que fosse objecto de uma reestruturação do seu passivo de forma a poder cumprir as suas obrigações e amortizar o passivo acumulado, não restou alternativa à apresentação da sociedade arguida ao PER em 08 de Novembro de 2018, que correu termos no Tribunal Judicial da Comarca da Madeira - Juízo de Comércio do Funchal – Juiz 2, sob o número ….7T8FNC. 25. Em 09.11.2018 foi nomeado à sociedade arguida o Senhor Administrador Judicial Provisório, conforme despacho de nomeação e Edital com a publicidade do referido despacho. 26. Em 09 de Abril de 2019 o Senhor Administrador Judicial Provisório submeteu aos identificados autos do PER o Resultado da Votação do Plano de Revitalização apresentado sendo que o mesmo não foi aprovado pelos credores da sociedade arguida. 27. Em 13 de Maio de 2019, o Senhor Administrador Judicial Provisório juntou aos autos o Parecer nos termos do art.º 17.º G, n.º 4 do CIRE, nos termos do qual entendeu que a sociedade arguida se encontrava em situação de insolvência, tendo requerido a insolvência da sociedade arguida. 28. Em 14 de Maio de 2019 foi proferido despacho a ordenar a remessa dos autos do identificado PER à distribuição como processo de insolvência. FACTOS NÃO PROVADOS: 1. O arguido MF exerceu a administração de facto, da sociedade “KW, S.A.” (Zona Franca da Madeira), na qualidade de Administrador, no período compreendido entre o dia 23 de Novembro de 2017 e o dia 25 de Outubro de 2018, sendo ele quem, em representação da sociedade, tomava juntamente com o arguido JF todas as decisões de gestão da sociedade e definiam o rumo dos negócios, davam ordens aos funcionários, contratavam com fornecedores e clientes, pagavam aos primeiros, recebiam dos segundos e representavam a sociedade junto das repartições públicas, nomeadamente a Administração Fiscal. 2. No âmbito da sua actividade profissional, o arguido MF, actuando no seu próprio interesse e no da sociedade, não obstante ter efectivamente recebido os montantes devidos pela cobrança do IVA e ter entregado a correspondente declaração periódica referente ao período de 2018/07T, não efectuou no prazo legal nem nos 90 dias posteriores ao termo do prazo legalmente estipulado, o pagamento do imposto apurado no valor de €21.380,46 (vinte e um mil trezentos e oitenta euros e quarenta e seis cêntimos). 3. O arguido MF, não efectuou o pagamento acima discriminado à Administração Fiscal, fazendo suas as referidas quantias, utilizando-as em proveito próprio, integrando-as no seu património e obtendo, desse modo, vantagens patrimoniais e benefícios que sabiam ser indevidos e proibidos por lei. Da contestação: 1- Os valores em causa nunca foram recebidos, pelo facto de as clientes em França terem sido notificadas pela SS Francesa da penhora dos créditos da “KW, S.A. (Zona Franca da Madeira. 2- Os arguidos não fizeram suas as quantias correspondentes ao imposto. 3- Não as utilizaram em proveito próprio. 4. não as integraram no seu património, 5. não obtiveram qualquer vantagem patrimonial e/ou benefício em detrimento da Administração Fiscal. * FUNDAMENTAÇÃO DA MATERIA DE FACTO: A convicção do tribunal adveio fundamentalmente do seguinte: Relativamente ao facto provado 1 resultou quer do depoimento seguro e preciso da inspetora tributária AR, quer ainda da análise do documento de fls. 4 a 22 (certidão do registo comercial), que corroboram estas declarações, que não foram postas em causa por qualquer outro meio de prova. Foi também através do depoimento desta testemunha que pudemos dar como provados os factos 4 e 5, confirmando desta forma a informação por si elaborado a fls. 535 a 583, explicando quais os montantes em divida, como percebeu se as quantias tinham ou não sido efectivamente recebidas (consulta de extratos bancários recibos e faturas dos clientes.) A testemunha RA, que exerce as funções de técnica tributária, indicou qual o montante ainda em divida actualmente com juros e custas e bem assim o montante que já foi pago em execução fiscal. A testemunha ST trabalhou para a sociedade até 2018, como contabilista e de modo seguro e detalhado explicou que enviou todas as declarações da sociedade, mas não enviou os meios de pagamento, porque a empresa encontrava-se com dificuldades financeiras graves, sendo que havia muitos clientes que lhes deviam dinheiro, e o pouco que iam recebendo era canalizado para outros pagamentos que consideravam prioritários, como salários. Mais esclareceu que o arguido MF era o Pai do arguido JF e não exercia nenhuma função na sociedade, nunca dele recebeu qualquer ordem ou instruções, não decidia nada nem emitia opiniões. Quando entraram na sociedade os arguidos PO e HO, estes foram tentar recuperar créditos e recuperar a sociedade. Quanto à testemunha DS, advogado, de forma isenta declarou que prestou serviços jurídicos à empresa dos arguidos até ao fim de 2018, tendo aí começado a trabalhar ainda antes do arguido JF. Explicou ainda que o arguido MF só deu o nome, e nada fazia na empresa, nunca ali se deslocava, e nem às Assembleias Gerais comparecia. Os arguidos PO e HO entraram na sociedade com o objectivo de revitalizarem a sociedade, tendo ainda chegado a negociar dividas com a segurança social. Quanto à restante matéria que não foi dada como provada nem como não provada, resultou do facto de se tratarem de conceitos de direito ou conclusões, ou ainda por não ter interesse para a decisão da causa, e quanto à não provada, por falta de prova ou por prova do contrário. Foi ainda relevante a análise do CRC dos arguidos de fls. 1012 a 1015. Para além dos já elencados, foi relevante a análise dos seguintes documentos: 351, 467, 415, 597,642, (notificações para pagamento voluntário) Parecer de fls. 733. Documentos de fls. 972 a 992 para prova da matéria da contestação. Para prova do elemento subjetivo baseamo-nos nos dados objetivos dados como assentes, resultando das regras da experiência comum o conhecimento que o arguido tem da ilicitude e censurabilidade da sua conduta. * FUNDAMENTAÇÃO DE DIREITO: Vêm os arguidos JF e MF acusados da prática em co-autoria de um crime de Abuso de Confiança Fiscal, p. e p. art.º 105º, nº l do RGIT e os arguidos PO e HO da prática em co-autoria de dois crimes de Abuso de Confiança Fiscal, p. e p. art.º 105º, nº l do RGIT. Nos termos do disposto no artigo 105º, nº 1 do R.G.I.T., com a epígrafe “Abuso de confiança”, na redacção da Lei nº 64-A/2008, de 31 de Dezembro, comete o crime de abuso de confiança fiscal: “1- Quem não entregar à administração tributária, total ou parcialmente, prestação tributária deduzida nos termos da lei e que estava legalmente obrigado a entregar é punido com pena de prisão até três anos ou multa até 360 dias. 2- Para os efeitos do disposto no número anterior, considera-se também prestação tributária a que foi deduzida por conta daquela, bem como aquela que, tendo sido recebida, haja obrigação legal de a liquidar, nos casos em que a lei o preveja. 3- (…) 4- Os factos descritos nos números anteriores só são puníveis se: a) Tiverem decorrido mais de 90 dias sobre o termo do prazo legal da entrega da prestação; b) A prestação, comunicada a administração tributaria através da correspondente declaração, não for paga, acrescida dos Juros respectivos e do valor da coima aplicável, no prazo de 30 dias após notificação para o efeito. 5. (…) 6. (revogado) 7. Para efeitos do disposto nos números anteriores, os valores a considerar são os que, nos termos da legislação aplicável, devam constar de cada declaração a apresentar à administração tributária. São elementos constitutivos do crime de abuso de confiança fiscal a apropriação da prestação tributária total ou parcial, pelo responsável pela entrega dos rendimentos tributários deduzidos e a não entrega do respectivo montante ao credor tributário – o Fisco. Pretende-se tutelar o património tributário do Estado por via da obtenção completa das prestações tributárias, através do cumprimento dos deveres de colaboração impostos pela lei fiscal. O tipo realiza-se com a não entrega dolosa das prestações tributarias deduzidas pelo agente que, desta forma, lesa o património do Estado. Sendo, nesta perspectiva, um crime de dano. O art.º 105º do RGIT tem em vista situações de substituição tributária (art.º 20º, nº 1 da Lei Geral Tributária). A substituição tributária verifica-se quando a prestação tributária for exigida a pessoa diferente do contribuinte. Para que a não entrega no tempo devido, com a qual se consuma o crime de abuso de confiança fiscal constitua crime é necessário que a prestação tributária tenha sido efectivamente deduzida ou recebida pelo agente. A lei coloca o devedor substituto numa posição jurídica de detenção e de domínio sobre prestação – entrega jurídica – para que ele, posteriormente, a devolva ao Fisco. O desvalor da acção integra, em suma, a defraudação da confiança deste modo depositada no autor. Ao assumir uma posição de domínio, legalmente imposta, sobre a prestação tributária, o substituto tem a possibilidade de a dissipar em proveito próprio com violação dos deveres fiscais que sobre ele impendem e, consequentemente, lesando uma relação de confiança. Vêm os arguidos invocar que a sociedade encontrava-se em dificuldades financeiras e que não conseguiram pagar à Autoridade Tributária, e ainda que têm milhares de euros em créditos não pagos e o que foram recebendo foram pagando aos trabalhadores e outras entidades. Verificados os documentos dos autos e tendo ainda em conta o depoimento prestado pela Sr.ª inspetora tributária, nestes autos, apenas foi tido em conta para calculo do montante que deveria ter sido entregue a Autoridade Tributária, a título de IVA, os montantes efetivamente recebidos, pese embora a sociedade tenha, ao que parece, vários montantes a receber. Acresce que, a circunstância de as quantias em causa terem sido usadas para pagamento de salários não integra a causa de exclusão da ilicitude prevista no art.º 36.º do Código Penal, isto é, a actuação numa situação de conflito de deveres. Segundo dispõe o mencionado preceito legal, “Não é ilícito o facto de quem, em caso de conflito no cumprimento de deveres jurídicos ou de ordens legítimas da autoridade, satisfizer dever ou ordem de valor igual ou superior ao do dever ou ordem que sacrificar”. Há assim conflito de deveres quando o agente seja posto perante deveres jurídicos ou ordens legítimas da autoridade que concorrem entre si e tenha que escolher qual ou quais há-de sacrificar em prejuízo dos demais, na consideração que, havendo por detrás desses deveres e ordens valores jurídicos a respeitar, serão esses valores que vão determinar a escolha final. De salientar que não se exige que o dever ou ordem que se cumpre seja sensivelmente superior ao dever ou ordem que se sacrifica e que o agente não é livre de se envolver ou não no conflito, uma vez que tem de cumprir, pelo menos, um dos deveres em choque. Como referem Leal Henriques e Simas Santos in “Código Penal Anotado”, 1.º vol. Parte geral, 3.ª ed., pág. 549, “na avaliação dos deveres em presença é decisiva a importância dos valores jurídicos que aqueles deveres servem (…)”. Ora, os arguidos não estavam no dilema de dar um ou outro destino a determinada quantia monetária sua ou da empresa, desde logo, porque não se trata de uma importância sua ou da empresa. As quantias não entregues ao Estado pertenciam a este a partir do momento em que foram deduzidas, sendo os arguidos simples depositário das mesmas até à sua entrega. Assim sendo, não existe qualquer dever de pagar aos trabalhadores ou fornecedores com dinheiro que não lhe pertence, nem à sociedade arguida. Por outro lado, e ainda que assim não se entendesse, a verdade é que as obrigações que poderiam estar em conflito não são sequer de valor igual já que a obrigação de pagar impostos é uma imposição legal, logo de plano superior à uma obrigação contratual. De salientar que o sistema fiscal visa a repartição justa dos rendimentos e da riqueza, a diminuição das desigualdades, a igualdade dos cidadãos e a justiça social (art.º 103.º e 104.º da Constituição da República Portuguesa), pelo que, os interesses constitucionalmente garantidos de um grupo não podem sobrepor-se aos interesses de toda a comunidade também garantidos pela Constituição da República. Vêm ainda invocar que não se apropriaram da quantia em causa nem a utilizaram em proveito próprio. A apropriação prevista no tipo legal, não exige que os arguidos tenham integrado no seu património pessoal ou de terceiros quantias que deveriam ser entregues nos cofres do Estado. A apropriação neste tipo de ilícito criminal mais não é do que o resultado do facto dos arguidos não terem entregue as importâncias devidas (neste sentido vide Ac. da Relação do Porto de 5/12/2001 in www.dgsi.pt). Entende-se assim por apropriação, a integração na esfera patrimonial dos agentes dos valores correspondentes aos impostos não pagos, os quais, ao inverter o título da posse, passam a dispor de tais quantitativos para satisfazer compromissos de outra ordem, independentemente da existência ou não de lucro daí directa ou indirectamente resultante – cfr. no mesmo sentido os Acs. do STJ de 15/01/97 in CJ, ano V, tomo 1, pág. 194 e 12/10/2000, in CJ, ano VIII, tomo 3, pág. 197. É ainda importante referir o entendimento do Tribunal da Relação do Porto constante num acórdão de 14/11/2001, in www.dgsi.pt, segundo o qual “no crime de abuso de confiança fiscal, não é necessário que a apropriação tenha sido efectuada para o benefício ou integração no património do próprio arguido, bastando, verbis gratia, que tal apropriação tenha sido feita em proveito de uma sociedade de que o arguido era gerente”. Vêm ainda os arguidos MF, PO e HO, invocar que eram meros gerente de direito e não de facto, sendo que estes dois últimos, não praticaram qualquer ato porque assumem a gestão em data em que a sociedade já não teria liquidez. No entanto a assunção da gestão tinha já esse pressuposto, não excluindo a responsabilidade penal do gerente à data da consumação. Do mesmo modo, a nomeação de um Administrador Judicial provisório no âmbito do PER não impossibilita o pagamento de impostos, mesmo sem a autorização deste, na medida em que não se trata de acto de especial relevo que careça de autorização (cfr. art.º 17.º-E do CIRE). Da certidão do registo comercial da sociedade arguida, todos figuram como gerentes (de direito) nos períodos mencionados nos autos, razão pela qual foram todos constituídos arguidos nos presentes autos. Tal facto, no entanto, não é, só por si, suficiente para imputar a prática dos referidos crimes a todos os arguidos. De facto, exigindo a lei expressamente uma actuação voluntária, a mera identificação da posição nominal ou de direito de representante não basta para desencadear responsabilização penal pelas dívidas tributárias como bem se compreende, pois a responsabilidade penal é, por natureza, subjectiva. Com efeito, o artigo 6º, inserido nas disposições comuns do Regime Geral das Infracções Tributárias, sob a epígrafe "Actuação em nome de outrem", dispõe no que ora releva, o seguinte: "Quem agir voluntariamente como titular de órgão, membro ou representante de uma pessoa colectiva, sociedade (...) será punido mesmo quando o tipo legal de crime exija: (…) que o agente pratique o facto no seu próprio interesse e o representante actue no interesse do representado". O citado normativo alarga a responsabilidade penal e consequentemente a punibilidade pela actuação em nome de outrem (na linha traçada pelo art.º 12 do C. Penal), quando o agente actuou voluntariamente como titular dos órgãos de uma pessoa colectiva, sociedade. A lei ao exigir uma actuação voluntária afasta “qualquer tentativa de nele ver uma responsabilidade funcional-objectiva, decorrente da mera titularidade da posição de representante» - cf. PAULO SARAGOÇA DA MATTA in «O Artigo 12º do Código Penal e a Responsabilidade dos Quadros das Instituições”, pág. 105. E noutro passo escreve o mesmo autor: «A posição de representante é, pois, insuficiente para gerar responsabilização penal, na medida em que sempre será necessário que o mesmo actue voluntariamente». Ou seja, seria preciso demonstrar que os arguidos, para além da gerência de direito, exerciam ainda a gerência de facto da sociedade. Ora, dos elementos carreados para os autos, documentos e testemunhas, verificamos que o facto conhecido (o pressuposto e a base da presunção) não é só a gerência de direito, o que por si só e sem outros elementos de prova (nomeadamente documental - v.g. através de elementos da escrita e contabilidade da sociedade) não permite extrair a ilação de que o arguido MF, no período temporal assinalado, exerceu ou desempenhou de facto a gerência ou administração da sociedade. Efectivamente, não resultou provado por qualquer meio que o mesmo tivesse praticado qualquer ato de gestão, mas apenas figurava no pacto social como gerente. Pelo exposto, este arguido não pode ser criminalmente responsável. Mostram-se assim preenchidos os elementos objectivos e subjectivos deste tipo legal de crime: um crime de abuso de confiança fiscal, relativamente ao arguido Júlio e dois crimes relativamente aos arguidos PO e HO (por duas terem sido as suas resoluções criminosas).» * 4. Fundamentação 4.1 Recurso da matéria de facto (erro de julgamento): Invocam os recorrentes a existência de erro na apreciação da matéria de facto. Em concreto, alegam que foram indevidamente dados por provados os pontos 3, 4, 5, 6, 9 e 10, pelo que tais factos devem ser retirados do elenco dos factos provados e considerados como não provados. Mais sustentam que o Tribunal a quo julgou erradamente a matéria dos pontos 1, 2, 3, 4 e 5 dos factos não provados (da contestação), cujos depoimentos das testemunhas ST e DM, sustentam sejam considerados como factos provados. Indicam as passagens do depoimento das testemunhas que, no entendimento destes, impõem distinta decisão quanto à matéria de facto provada. Preliminarmente e com vista à apreciação dos argumentos invocados, impõem-se algumas considerações teóricas a respeito do recurso sobre a matéria de facto. O erro de julgamento da matéria de facto ocorre quando o tribunal considera como provado determinado facto, sem que o mesmo tenha sido objeto de comprovação na audiência de julgamento ou dá por não provado facto que, perante a prova produzida, deveria ter sido considerado como provado. Trata-se de erro no processo de valoração da prova por parte do Tribunal. Como se refere no Ac. do STJ de 12/03/2009[2].“O erro de julgamento da matéria de facto existe quando o Tribunal dá como provado certo facto relativamente ao qual não foi feita prova bastante e que, por isso, deveria ser considerado não provado, ou então o inverso, e tem que ver com a apreciação da prova produzida em audiência em conexão com o princípio da livre apreciação da prova constante do art.º 127.º do Cód. Penal.” De acordo com o art.º 428.º do Cód. Processo Penal, o Tribunal da Relação conhece de facto e de direito, mas os seus poderes de cognição são limitados. O recurso é um remédio jurídico, permitindo a verificação e fiscalização, por parte de um tribunal superior, de eventuais erros na decisão da matéria de facto, mas não equivale a um novo julgamento do objeto do processo. Por isso se considera que a reapreciação, com vista a detetar erros de julgamento de facto, é limitada aos pontos de facto concretos que o recorrente considera julgados de forma incorreta e às razões concretas invocadas para sustentar essa discordância. O mecanismo de impugnação da matéria de facto aqui previsto visa corrigir erros manifestos, ostensivos de julgamento, por apelo à prova produzida e que se extraíam do registo da mesma, não legitimando a repetição do julgamento pelo tribunal ad quem. O tribunal de recurso, ao apreciar os fundamentos da impugnação da matéria de facto, deve verificar se o tribunal de 1ª instância apreciou os meios de prova de acordo com as regras de experiência comum, não retirando deles conclusões ilógicas, irrazoáveis, sem sentido ou contrárias à lei. E, fora destes casos, deve respeitar a livre convicção do tribunal recorrido, em obediência ao princípio expresso no art.º 127º, do Cód. Processo Penal. “Isto significa que o Tribunal de recurso não pode sindicar certos meios de prova quando para a credibilidade do testemunho foi relevante o funcionamento do princípio da imediação, embora possa controlar a convicção do julgador da primeira instância quando ela se mostre contrária às regras da experiência, da lógica e dos conhecimentos científicos (…) Assim, a determinação da credibilidade como segmento do âmbito estritamente do juiz de primeira instância está condicionada pela aplicação de regras da experiência que tem de ser válidas, e legítimas, dentro de um determinado contexto histórico e jurídico»[3]. O art.º 127.º do Cód. Processo Penal, complementado com o art.º 374.º, n.º 2 do mesmo diploma, impõe limites à discricionariedade, uma vez que a livre convicção não se confunde com a íntima convicção do julgador: o ato de julgar está delimitado pelas regras da experiência comum e pela lógica do homem médio suposto pela ordem jurídica, impondo que se extraía das provas um convencimento lógico e motivado. Porque o art.º 374.º, n.º 2 do Código de Processo Penal exige o “exame crítico das provas” é que o tribunal deve fundamentar a decisão em operações intelectuais que permitam explicar a razão das opções e da convicção do julgador, a sua lógica e raciocínio e deve observar as normas processuais relativas à prova, segundo o aludido princípio geral da livre apreciação, mas respeitando as proibições de prova (art.ºs 125º e 126º do Código de Processo Penal), as nulidades de prova, as regras de valoração de alguns tipos de prova como a testemunhal (art.ºs 129º e 130º do Código de Processo Penal) pericial (art.º 163º do Código de Processo Penal) e a documental (167º a 169º do Código de Processo Penal). Em suma, no recurso cumpre verificar a prova e o respetivo processo de aquisição probatória, nomeadamente a observância dos princípios da igualdade, oralidade, imediação e contraditório, mas privilegiando-se a valoração da prova efetuada pela 1.ª instância. A este propósito se refere no Ac. RL 20/02/2019[4] «Essa apreciação livre da prova não pode ser confundida com a apreciação arbitrária da prova nem com a mera dúvida gerada no espírito do julgador pelos diversos meios de prova; tem como valorativos a obediência a critérios da experiência comum e da lógica do homem médio. Trata-se da liberdade de decidir segundo o bom senso e a experiência da vida, temperados pela capacidade crítica de distanciamento e ponderação, ou no dizer de Castanheira Neves da “liberdade para a objectividade”. Também a este propósito, salienta o Prof. Figueiredo Dias “a liberdade de apreciação da prova é uma liberdade de acordo com um dever - o dever de perseguir a verdade material - de tal sorte que a apreciação há-de ser, em concreto, recondutível a critérios objectivos e, portanto, em geral susceptível de motivação e controlo”. É na audiência de julgamento que tal princípio assume especial relevo, tendo, porém, que ser sempre motivada e fundamentada a forma como foi adquirida certa convicção, impondo-se ao julgador o dever de dar a conhecer o seu suporte racional, o que resulta do art.º 374º nº 2 do Código de Processo Penal. Assim, a livre convicção não pode confundir-se com a íntima convicção do julgador, impondo-lhe a lei que extraia das provas um convencimento lógico e motivado, avaliadas as provas com sentido da responsabilidade e bom senso. O art.º 127º do Código de Processo Penal indica-nos um limite à discricionariedade do julgador: as regras da experiência comum e da lógica do homem médio suposto pela ordem jurídica. Sempre que a convicção seja uma convicção possível e explicável pelas regras da experiência comum, deve acolher-se a opção do julgador, até porque o mesmo beneficiou da oralidade e da imediação na recolha da prova. Assim, ao tribunal de recurso cumpre verificar se o tribunal a quo recorreu às regras de experiência e apreciou a prova de forma objectiva e motivada, se na sentença se seguiu um processo lógico e racional de apreciação da prova, ou seja, se a decisão recorrida não se mostra ilógica, arbitrária ou notoriamente violadora das regras da experiência comum, todavia sem esquecer que, face aos princípios da oralidade e da imediação, é o tribunal de 1ª instância que está em condições melhores para fazer um adequado uso do princípio de livre apreciação da prova.» No que diz respeito à intenção do arguido, conforme escreve o Professor Manuel Cavaleiro de Ferreira, se a intenção é vontade e esta é acto psíquico, acto interior são, contudo, grandes as dificuldades para dar praticabilidade a conceitos que designam actos internos, de carácter psicológico e espiritual. Por isso se recorre a regras da experiência, que as leis utilizam quando elas podem dar aos conceitos maior precisão... Por isso, importa recorrer a regras de experiência para se aferir ou não da intenção criminosa e da consciência da ilicitude e para extrair os elementos confirmativos da sua verificação da matéria fáctica dada como provada.» Na génese do art.º 412.º, n.º 3, al.b), do Cód. Processo Penal, não basta que se apure a possibilidade de ocorrência de uma versão distinta. A imposição de decisão diversa, em que a norma se sustenta, implica que a decisão de facto recorrida está errada, que se mostra impossível ou é destituída de toda e qualquer lógica ou razoabilidade (de acordo com as regras de experiência comum), que o tribunal recorrido fez uso de meios de prova não idóneos ou que existem contradições nas provas produzidas, que levaram à formação de uma convicção inaceitável e que, por isso, não se poderá manter. O conhecimento dos factos por parte do Tribunal Superior é, como referimos, limitado, apenas podendo introduzir alterações quando exista erro manifesto ou a audição dos registos de prova permita, com toda a segurança, afirmar que foram violadas as regras da experiência comum, não podendo sindicar as convicções do tribunal recorrido no que respeita à prova oral produzida. E a diferente valoração do recorrente quanto à prova produzida também não sustenta a existência de erro de julgamento. Quando impugne a decisão sobre a matéria de facto, o recorrente deve especificar os concretos pontos de facto que considera incorretamente julgados, as concretas provas que impõem decisão diversa da recorrida e as provas que devem ser renovadas (art.º 412.º, n.º 3 do Cód. Processo Penal). Quando as provas tenham sido gravadas, as especificações previstas nas alíneas b) e c) do n.º 3 do art.º 412.º do Cód. Processo Penal fazem-se por referência ao consignado na ata, nos termos do disposto no n.º 3 do art.º 364.º, devendo o recorrente indicar concretamente as passagens em que se funda a impugnação[5]. O recorrente observou os requisitos para a impugnação ampla da matéria de facto, mas, ouvida a prova gravada, é manifesta a improcedência da mesma, desde logo por não contrapor razões atendíveis ao juízo valorativo probatório formulado pela primeira instância e fundar a sua impugnação em segmentos criteriosamente escolhidos dos depoimentos das testemunhas de defesa. Concretizando, relativamente ao ponto 3[6] da matéria de facto provada, que diz respeito ao exercício da gerência de facto por parte dos arguidos PO e HO, alegam os recorrentes que inexiste prova que sustente a decisão. No entender dos recorrentes, do depoimento da testemunha ST resulta inequívoca a falta de administração efetiva da sociedade devedora de IVA por parte dos recorrentes PO e HO, pelo que tal facto deveria ter sido dado como não provado. Em concreto, justificou o Tribunal a quo a sua convicção na análise dos documentos juntos ao processo, nomeadamente na certidão da matrícula da sociedade “KW, S.A.”, onde se encontra inscrita a qualidade dos recorrentes, bem como no depoimento das próprias testemunhas de defesa. E, na verdade, são estas que (em segmentos convenientemente não transcritos nas alegações), confirmam que os recorrentes assumiram a gestão da empresa com o objetivo de a revitalizar, negociando dívidas com credores. Estamos, obviamente, a falar de atos de gestão de facto, sendo inequívoco que após outubro de 2018 (e até à declaração de insolvência) nenhuma outra pessoa tomou decisões em representação da sociedade. Nenhuma alteração, por isso, temos a fazer ao ponto 3 da matéria de facto provada. No que respeita aos pontos 4, 5 e 6 da matéria de facto provada[7] que se reporta, em síntese, ao recebimento dos valores declarados e respetiva apropriação, alegam os recorrentes que a sentença se baseia unicamente no depoimento da testemunha AR, que referem ser vago, impreciso, inconcludente e incapaz à prova. Já as testemunhas de defesa, ST e DM, segundo os recorrentes, confirmam que os valores em causa não foram recebidos. Mas a tese sustentada pelos recorrentes não tem suporte nos elementos probatórios, considerados no seu conjunto (e não apenas nos excertos que os recorrentes entenderam transcrever). Em primeiro lugar, a sentença recorrida não se baseou apenas no depoimento da inspetora tributária AR. Considerou, de igual forma, os documentos juntos aos autos e o parecer final. Estes foram confirmados pela referida testemunha, que de forma segura relatou como chegou a esta documentação, fornecida pelos clientes, na ausência de colaboração da sociedade devedora. Os referidos documentos comprovam o pagamento e não foram infirmados por nenhuma prova produzida pelos recorrentes. Estes pretenderam demonstrar a existência de penhoras dos montantes em causa nos autos por parte da Segurança Social, mas nenhum documento juntaram ao processo que o indiciasse (tratando-se de matéria que apenas pode ser provada por documentos e alegada em sede de defesa, cabia à mesma a respetiva junção). Também poderiam ter feito chegar ao processo extratos bancários da sociedade que geriram e nada consta dos autos. Mas mais uma vez, o depoimento da testemunha ST (nas respostas ao Sr. Procurador da República) infirma a tese que os recorrentes pretendem aqui fazer valer. Os clientes que terão pago o IVA e identificados nos documentos juntos aos autos não constam da lista de devedores que a referida testemunha, contabilista da sociedade, se fazia munir. Quer esta testemunha, quer a testemunha DM, à pergunta do Sr. Advogado dos recorrentes, foram referindo que alguns clientes não pagavam, mas nenhum identificou, concretamente, os clientes das faturas constantes do processo como devedores. Não questionamos que a sociedade devedora de IVA e representada pelos recorrentes atravessasse dificuldades financeiras decorrentes, nomeadamente, da falta de pagamento por parte de clientes, tanto mais que tal resulta comprovado nos autos (factos 3 e 7 da matéria da contestação) e veio a ser declarada insolvente. Mas tal não significa que os pagamentos que estão em causa neste processo não correspondam a valores efetivamente cobrados (e que não pertenciam à sociedade) e que não foram entregues ao Estado no prazo devido. Nada invalida, por isso, o depoimento da inspetora tributária e os documentos juntos ao processo, dos quais resulta a prova do recebimento e não entrega dos montantes pagos. Apropriação também comprovada pelo depoimento da testemunha RA. Quanto aos factos enumerados nos pontos 9 e 10[8], que os recorrentes reclamam terem sido considerados provados sem qualquer suporte probatório e que se reportam ao elemento subjetivo do tipo, refere o Tribunal a quo para suportar a respetiva convicção «…baseamo-nos nos dados objetivos dados como assentes, resultando das regras da experiência comum o conhecimento que o arguido tem da ilicitude e censurabilidade da sua conduta.» E visto os factos dados por provados e as regras da experiência comum (sendo expetável que quem assume a gestão de pessoas coletivas esteja ciente das respetivas obrigações fiscais e das consequências da não observância das mesmas) nenhuma censura merece, também neste segmento, a decisão recorrida. As ilações retiradas pelo Tribunal a quo suportam-se em factos objectivos, adquiridos nos autos com base em prova direta, sendo que as mesmas se mostram conformes com as regras da experiência comum. O princípio da livre apreciação da prova, consagrado no art.º 127.º do Código de Processo Penal, é observado sempre que a convicção alcançada pelo Tribunal surja na sequência de procedimento lógico e coerente de valoração, com motivação bastante, sem arbítrio na apreciação da prova. Se quanto aos elementos objetivos da infração já se consignou o suficiente para se concluir pela falta de razão dos recorrentes (a prova testemunhal e documental utilizada é prova direta), também quanto aos elementos subjetivos e à factualidade a que se reportam os pontos 9 e 10 dos factos provados se deverá chegar à mesma conclusão. Efetivamente, no que concerne à convicção quanto à atitude interior dos recorrentes, o Tribunal a quo teve de socorrer-se das máximas da experiência comum, como não podia deixar de ser, uma vez que a atitude interior dos arguidos não foi por estes revelada (registando-se a ausência de confissão dos factos, designadamente das intenções). Os factos psicológicos que traduzem o elemento subjetivo da infração são, por norma, objeto de prova indireta, isto é, só são suscetíveis de serem provados com base em inferências a partir dos factos materiais e objetivos, analisados à luz das regras da experiência comum. E essa tarefa cabe ao julgador, sendo a avaliação resultado da conjugação e ponderação de vários elementos probatórios. Nesse sentido, o Acórdão do TRP de 25/03/2010[9]: “A este respeito importa, antes de mais, referir que nem sempre a prova em que o tribunal se baseia é prova directa. Não pode, contudo, deixar de ser valorada à luz da experiência comum e de forma concertada com todos os elementos de prova, designadamente no que concerne a aspectos que digam respeito ao foro íntimo das pessoas, tal como sucede com as intenções e também com a consciência da ilicitude. E, tratando-se de processos interiores, se não forem admitidos pelos próprios, só uma avaliação alicerçada em presunções judiciais, não proibidas por lei, com base nos demais factos apurados e nas circunstâncias e contexto global em que se verificam e em dados da personalidade do agente, avaliação essa permitida se feita com respeito pelas regras da experiência comum, permite retirar tais conclusões. Outrossim, não está vedado ao julgador estabelecer presunções desde que assentes em factos, sendo a este propósito que faz todo o sentido apelar às regras da experiência comum pois são elas o necessário elemento aglutinador da avaliação feita a partir dos meios de prova para fazer assentar em factos provados e adquiridos outros não imediatamente apreensíveis mas que se impõem ao juízo de um cidadão de medianas capacidades e conhecimentos de vida.” . Ainda a respeito da prova do elemento subjetivo, refere Ana Maria Barata de Brito[10]:«Os factos que integram o dolo constituem um exemplo frequente de demonstração por prova indirecta. Os actos interiores ou factos internos, que respeitam à vida psíquica, raramente se provam directamente. (…) Mas as vicissitudes da prova da intenção são comuns à generalidade dos crimes. Na ausência de confissão, em que o arguido reconhece ter sabido e querido os factos que realizam um tipo objectivo de crime, a prova do dolo terá de fazer-se por ilações, a partir de indícios, através de uma leitura do comportamento exterior e visível do agente. O julgador deve resolver a questão de facto decidindo que (ou se) o agente agiu internamente da forma como o revelou externamente. A tudo procedendo sempre de acordo com a explicação clara do acórdão do STJ de 06/10/2010, relatado por Henriques Gaspar, sem “descontinuidade ou incongruências”». Tudo visto, mostra-se efetivamente bem fundado o juízo probatório do Tribunal quanto às intenções dos arguidos. Assentando as suas ilações na prova documental e testemunhal, extraiu o julgador conclusões perfeitamente harmoniosas com os dados da experiência comum, sem que se evidencie qualquer falha no raciocínio seguido. Já quanto à pretensão dos recorrentes de dar como provados os factos considerados como não provados nos pontos 1, 2, 3, 4 e 5 (da contestação)[11], valem aqui as razões acima expostas e pelas quais resulta a prova do seu contrário, isto é, do recebimento e não entrega do valor retido a título de IVA por parte dos arguidos. Nada impõe, ou sequer permite, outra valoração da prova. Do exposto, resultam as razões que determinaram o juízo probatório do Tribunal a quo, nomeadamente a prova que levou à convicção quanto à gestão de facto, ao recebimento dos pagamentos por parte dos clientes, à retenção do IVA e não entrega do mesmo que é, na verdade, o que os recorrentes contestam. A impugnação apresentada pelos recorrentes ficou muito aquém do que se lhes exigia – que fundamentassem a imperiosa existência de erro de julgamento, desconstruindo a argumentação expendida pelo julgador-, limitando-se, na verdade, a aportar ao processo aquela que é a sua versão dos acontecimentos, não demonstrando com argumentos a verificação de erro judiciário. No fundo, os recorrentes criticam a valoração da prova feita pelo Tribunal recorrido, pretendendo fazer valer uma perspetiva diferente da mesma, a sua versão dos factos, o que não se reconduz a uma real impugnação da matéria de facto. E observada a decisão recorrida e ouvida a prova, verificamos que o Tribunal a quo, de forma que não nos merece reparo, demonstrou o processo do seu convencimento, indicando os meios probatórios e os motivos por que foram esses meios determinantes para a sua convicção, fazendo-o em conformidade com as boas regras de apreciação da prova. Temos, pois, que a conjugação de todos os elementos probatórios recolhidos e devidamente explicitados na decisão do Tribunal a quo permite inferências suficientemente seguras no sentido da matéria dada como provada, não se vislumbrando qualquer razão de sentido divergente que justifique, e muito menos que imponha, solução diferente daquela a que chegou o Tribunal recorrido. Pretendem os recorrentes, que vingue a sua visão pessoal sobre a prova produzida, quando a convicção prevalecente, se alcançada com isenção e imparcialidade na avaliação do conjunto da prova que perante ele é produzida, é a do Tribunal. E assim é pois o Tribunal recorrido, que está numa posição de imparcialidade, teve contacto imediato com as testemunhas, de onde extraiu um sem número de impressões, que transpôs para a motivação da respetiva convicção, onde não só se elencaram as provas reputadas relevantes, como, também, se procedeu ao seu exame crítico, explicitando-se, ainda, o processo de formação da convicção, tecendo considerações sobre a credibilidade a conferir aos depoimentos, não se limitando a decisão recorrida a mostrar os meios de prova, através do seu elenco, pois demonstrou e exteriorizou por que razão se convenceu que os arguidos cometeram os factos por que foram condenados. Não se vislumbra qualquer falha de lógica na convicção do tribunal a quo nem violação das regras da experiência: os factos provados e não provados não conflituam entre si, nem com a motivação e com a decisão e são bastantes para fundamentar a qualificação jurídica dos factos e a decisão e a motivação aparece na sequência lógica da factualidade provada e não provada, clarificando e esclarecendo a convicção do tribunal de acordo com as regras da experiência. A sentença proferida pelo Tribunal a quo assenta em operações intelectuais válidas e justificadas e com respeito pelas normas processuais atinentes à prova. Afigura-se-nos, assim, evidente a inexistência de erro de julgamento que justifique a intervenção do Tribunal de recurso, não merecendo, por isso, a decisão relativa à matéria de facto qualquer censura, termos em que, nesta parte, improcederá o recurso. § Da violação do in dubio pro reo Por último, invocam, ainda os recorrentes[12] a violação do princípio in dubio pro reo, alegando que, no limite, deveria o Tribunal ter ficado na dúvida quanto ao preenchimento dos elementos objetivos e subjetivos do tipo legal de crime. Como vimos, o Tribunal alcançou a sua convicção pela conjugação de distintos elementos de prova, em juízo que respeita a lógica e o senso comum. E na prova dos factos dados como assentes, o Tribunal a quo é claro ao referir que não existiu qualquer dúvida quanto à positividade dos mesmos. Por isso, nesta parte, o Tribunal não se socorreu do princípio in dubio pro reo (que apenas significa que perante factos incertos, a dúvida favorece o arguido) porque não teve quaisquer dúvidas da valoração da prova e ficou seguro do juízo quanto à autoria dos factos, ao recebimento da prestação e não entrega da mesma. Tal princípio só teria sido violado se da prova produzida e documentada resultasse que, ao condenar os arguidos com base naquela, o julgador tivesse contrariado as regras da experiência comum ou atropelasse a lógica intrínseca dos fenómenos da vida, caso em que, ao contrário do decidido, deveria ter chegado a um estado de dúvida insanável e, por isso, deveria ter decidido a favor dos arguidos. Como se refere no Ac. da RE de 8/03/2018 [13] «Quando se aprecia a prova no âmbito do artigo 127º do C.P.P. usa-se a razão, os conhecimentos empíricos, os conhecimentos técnicos e científicos, as regras sociais e de experiência comum. Aqui não há método dubitativo, há métodos racionais de dedução e indução. A final do labor anteriormente referido, o princípio in dubio pro reo impõe ao tribunal que, na dúvida, favoreça o arguido quando formula uma apreciação racional sobre o acontecer naturalístico, no caso de se não ter a certeza sobre esse acontecer. O princípio in dubio pro reo, com efeito, «parte da dúvida, supõe a dúvida e destina-se a permitir uma decisão judicial que veja ameaçada a concretização por carência de uma firme certeza do julgador» – Cristina Líbano Monteiro, «In Dubio Pro Reo», Coimbra, 1997. Essa «dúvida que há-de levar o tribunal a decidir pro reo tem de ser uma dúvida positiva, uma dúvida racional que ilida a certeza contrária, ou, por outras palavras ainda, uma dúvida que impeça a convicção do tribunal». Ac. STJ de 25-10-2007, in proc. 07P3170, relator Cons. Carmona da Mota, citando a autora anteriormente citada. Operar o princípio in dubio pro reo pressupõe, assim, um juízo positivo de dúvida resultante de um inultrapassável impasse probatório, mas apenas no final do processo racional de decisão sobre a matéria de facto. Por fim, quando se formula um juízo de convicção tem-se presente a existência de uma presunção de inocência e, por isso, não vale um mero juízo de maior probabilidade de que os factos terão ocorrido de determinada forma, exigindo-se um forte juízo de certeza de que os factos terão ocorrido de determinada forma, não de outra.» Se a fundamentação não viola o princípio da legalidade das provas e da livre apreciação da prova, alicerçando-se em provas legalmente válidas e valorando-as de forma racional, lógica, objetiva e em consonância com a experiência comum, não pode concluir-se que a mesma prova gera factos incertos, que implique dúvida razoável que afaste a valoração efetuada pelo Tribunal e que imponha a alteração da decisão de facto recorrida, sendo por conseguinte, lícita e válida a decisão do Tribunal a quo. No caso dos autos a livre apreciação da prova não conduziu à subsistência de qualquer dúvida razoável sobre a existência dos factos dados por assentes e dos seus autores, nem a mesma se impunha. Por isso, não há lugar a invocar aqui o princípio in dubio pro reo. Assim, e na medida que da decisão recorrida não resulta ter havido qualquer dúvida quanto à culpabilidade dos recorrentes, assim como quanto ao preenchimento dos elementos constitutivos dos ilícitos criminais por que foram aqueles condenados, improcede, também, nesta parte, o recurso, por não ter existido qualquer violação do princípio in dubio pro reo ou violação do disposto no art.º 32.º, n.º 2 da Constituição da República Portuguesa. Tem-se, assim, por assente o juízo do Tribunal a quo quanto à matéria de facto. 4.2 Preenchimento do tipo legal do crime de abuso de confiança fiscal Os recorrentes foram condenados pela prática de crime de abuso de confiança fiscal p. e p. pelo art.º 7.º, n.º 1 e 4, 15.º e 105.º, n.º 1 e 4 do RGIT. Alegam os recorrentes não estarem preenchidos os elementos do tipo legal de crime, porquanto o art.º 105.º do RGIT apenas pune a falta de entrega da prestação tributária efetiva e previamente recebida. De igual forma sustentam, quanto aos arguido PO e HO, que os mesmos não exerceram gerência de facto da sociedade devedora de IVA. De acordo com o preceito legal em apreço, incorre na prática de um crime de abuso de confiança fiscal quem não entregar à administração tributária, total ou parcialmente, prestação tributária de valor superior a 7.500,00€, deduzida nos termos da lei e que estava legalmente obrigado a entregar, sendo punido com pena de prisão até 3 anos ou multa até 360 dias. Os valores a considerar, para efeitos, nomeadamente, do referido valor de 7.500,00€ a partir do qual a conduta é punível, são os que, nos termos da legislação aplicável, devem constar de cada declaração a apresentar à administração tributária (n.º 7, do art.º 105.º, do RGIT). São, assim, elementos constitutivos deste ilícito criminal: a) Elemento objetivo – não entrega da prestação tributária deduzida pelo agente, nos termos da lei, e que estava legalmente obrigado a entregar ao credor tributário, daí advindo um prejuízo para o património fiscal, não sendo necessário que para aquele resulte um proveito direto das quantias retidas; b) Elemento subjetivo - o agente liquida a prestação tributária, devida ao Estado no caso do IVA e, ficando com a posse de tais quantias, passa conscientemente a dispor da coisa como se fosse sua, com o propósito de não a restituir ou de não lhe dar o destino devido. Traduz-se, assim, a conduta numa omissão pura, que se consuma na não entrega, dolosa, das prestações deduzidas. Tal como refere, à semelhança de outros, o Ac. do STJ de 20/12/2007[14], estamos perante um crime omissivo puro, que se consuma no momento em que o agente não entrega a prestação tributária que deduziu nos termos da lei como substituto tributário, e que estava, também nos termos da lei, obrigado a entregar em determinado prazo. O preenchimento do tipo de ilícito do art.º 105.º do RGIT, no caso da falta se reportar ao IVA, terá de entrar em consideração com a natureza da obrigação tributária e com a forma da sua liquidação. Protege a incriminação o dever de pagamento de imposto, essencial à realização dos fins do Estado. Sem prejuízo da verificação das condições objetivas de punibilidade (art.º 105.º, n.º 4 do RGIT), para a consumação do crime não se exige uma intenção de apropriação, sendo no entanto exigível que o agente obrigado ao pagamento tenha efetivamente recebido a prestação tributária que é devida (neste sentido, cfr., entre outros, Acs. TRC de 15/12/2010[15], 29/02/2012[16], 28/03/2012[17], 22/01/2014[18] e Ac. STJ de 29/04/2015[19]). O imposto sobre o valor acrescentado incide sobre as transações de produtos e prestação de serviços em geral, tendo como sujeitos passivos as pessoas singulares ou coletivas que, com carácter de habitualidade, intervenham nessas transações. Abrange as diversas fases do circuito económico, repercutindo-se no consumidor final. A base tributável incide sobre o valor acrescentado em cada fase e determina-se com a aplicação da respetiva taxa ao valor global das transações de cada sujeito passivo, deduzindo-se o imposto suportado pelo mesmo nas compras desse período. Nestes termos, o imposto devido ao Estado não é o que foi liquidado em cada fatura e cada transação individualmente considerada, mas o saldo positivo apurado no confronto do valor global do imposto liquidado a terceiros a esse título com o imposto pago pelo sujeito passivo, aos seus fornecedores ou prestadores de serviços, também a esse título. Exige-se, assim, para efeitos de prossecução criminal, que se apure a existência desse saldo positivo a favor da administração fiscal. E falecendo o recurso quanto ao invocado erro de julgamento, assente que está a matéria de facto, é inequívoco o recebimento por parte da sociedade dos valores em causa neste processo, pagos pelos clientes identificados nas faturas consideradas pela administração tributária. Por outro lado, alegando os arguidos PO e HO que nunca tiveram a gerência efetiva da sociedade e que apenas assumiram a gestão de direito, por um curto período, o contrário resulta da factualidade assente. Os recorrentes detiveram o exercício efetivo de poderes de gestão da sociedade que representaram, fazendo pagamentos de impostos (período de Novembro de 2018, parcialmente pago) e tentando negociar dívidas com os credores. Aliás, nesse período ninguém mais tomava decisões em representação da sociedade arguida. Nenhum reparo, por isso, merece a condenação dos recorrentes pela prática dos referidos crimes de abuso de confiança fiscal p. e p. pelos art.ºs 7.º, n.º 1, 15.º, 105.º, n.º 1 e n.º 4, do RGIT, com a consequente condenação na entrega ao Estado dos montantes ainda em dívida. O recurso não pode, por isso, deixar de improceder na totalidade. * 5. Decisão Pelo exposto acordam as Juízas desta Relação em julgar totalmente improcedente o recurso interposto pelos arguidos JF, PO e HO, confirmando, em consequência, a sentença recorrida. Custas a cargo dos arguidos, fixando-se a taxa de justiça devida por cada um dos recorrentes em 4 UC’s (art.ºs 513º, nº1, do Cód. Proc. Penal e art.º 8º, nº 9, do Reg. Custas Processuais e Tabela III anexa a este último diploma). Notifique. * Lisboa, 22 de fevereiro de 2023 Mafalda Sequinho dos Santos Capitolina Fernandes Rosa Carla Francisco _______________________________________________________ [1] Foi absolvido o arguido, MF da prática do crime de abuso de confiança fiscal, previsto e punido pelos artigos 7.º, n.º 1, 15.º, 105.º, n.º 1 e n.º 4, do RGIT, pelo qual vinha acusado. [2] Proc. n.º 08P3781, in www.dgsi.pt. [3] STJ 29/10/2008, in www.dgsi.pt. [4] Proc. n.º 147/17.4ZFLSB.L1-3, Relator Jorge Raposo, in www.dgsi.pt. [5] AUJ n.º 3/2012, in D.R. 18/04/2012 “Visando o recurso a impugnação da decisão sobre a matéria de facto, com reapreciação da prova gravada, basta, para efeitos do disposto no art.º 412.º, n.º 3, al. b) do CPP, a referência às concretas passagens/excertos das declarações que, no entendimento do recorrente, imponham decisão diversa da assumida, desde que transcritas, na ausência de consignação na acta de início e termo da declaração”. [6]De seguinte teor: “Os arguidos PO e HO exercem, desde pelo menos, o dia 25 de Outubro de 2018 e exerciam, à data dos factos, a administração de facto e de direito da sociedade “KW, S.A.” (Zona Franca da Madeira), na qualidade de Presidente do Conselho de Administração e Administradora, respectivamente, sendo eles quem, em representação da sociedade, tomavam todas as decisões de gestão da sociedade e definiam o rumo dos negócios, davam ordens aos funcionários, contratavam com fornecedores e clientes, pagavam aos primeiros, recebiam dos segundos e representavam a sociedade junto das repartições públicas, nomeadamente a Administração Fiscal”. [7]De seguinte teor: “No âmbito da sua actividade profissional, o arguido JF, actuando no seu próprio interesse e no da sociedade, não obstante ter efectivamente recebido os montantes devidos pela cobrança do IVA e ter entregado a correspondente declaração periódica referente ao período de 2018/07T, não efectuou no prazo legal, nem nos 90 dias posteriores ao termo do prazo legalmente estipulado, o pagamento do imposto apurado no valor de €21.380,46 (vinte e um mil trezentos e oitenta euros e quarenta e seis cêntimos). 5. Ainda no âmbito da sua actividade profissional, os arguidos PO e HO, no seu próprio interesse e no da sociedade, não obstante terem efectivamente recebido os montantes devidos pela cobrança do IVA e terem entregado a correspondente declaração periódica referente aos períodos de 2018/11T e 2018/12T, não efectuaram no prazo legal nem nos 90 dias posteriores ao termo do prazo legalmente estipulado, o pagamento do imposto apurado no valor de € 15.169.90 (quinze mil cento e sessenta e nove euros e noventa cêntimos) e €13.153,66 (treze mil cento e cinquenta e três euros e sessenta e seis cêntimos), respectivamente. 6. Os arguidos JF, PO e HO não efectuaram os pagamentos acima discriminados à Administração Fiscal, fazendo suas as referidas quantias, utilizando-as em proveito próprio, integrando-as no seu património e obtendo, desse modo, vantagens patrimoniais e benefícios que sabiam ser indevidos e proibidos por lei.” [8] Com o seguinte teor: “9. Os arguidos agiram de modo livre e consciente, com o propósito deliberado e concretizado de não entregar à Administração Fiscal o imposto que estavam obrigados a entregar, prejudicando a Administração Fiscal, pelo menos, em valor equivalente. 10. Os arguidos sabiam ainda que a sua conduta os fazia incorrer em responsabilidade criminal.” [9] Proc. 1052/05.2GALSD.P1, Relatora Eduarda Lobo disponível in www.dgsi.pt. [10]“Da Prova Indireta ou Por Indícios” e-book CEJ, Julho 2020, Inhttps://cej.justica.gov.pt/LinkClick.aspx?fileticket=2Q2jAFdx_c4%3D&portalid=30 [11] De seguinte teor: “1- Os valores em causa nunca foram recebidos, pelo facto de as clientes em França terem sido notificadas pela SS Francesa da penhora dos créditos da “KW, S.A. (Zona Franca da Madeira. 2- Os arguidos não fizeram suas as quantias correspondentes ao imposto. 3- Não as utilizaram em proveito próprio. 4 - não as integraram no seu património, 5 - não obtiveram qualquer vantagem patrimonial e/ou benefício em detrimento da Administração Fiscal.” [12]Indevidamente, na parte do recurso relativo à matéria de direito, quando estamos perante princípio que opera, sendo caso, na apreciação da matéria de facto. [13] Proc. n.º 1360/14.IT9STB.E1, Relator Gomes de Sousa, in www.dgsi.pt. [14] Proc. n.º 07P3220, Relator Simas Santos, www.dgsi.pt. [15] Proc. n.º 24/06.4IDGRD.C1, Relator Mouraz Lopes, www.dgsi.pt. [16] Proc. 1638/09.6IDLRA.C1, Relator Paulo Guerra, www.dgsi.pt. [17] Proc. n.º 1133/10.0IDLRA.C1, Relator Paulo Guerra, www.dgsi.pt. [18] Proc. n.º 49/08.5IDAVR.C2, Relator Jorge Dias, www.dgsi.pt. [19] Proc. n.º 85/14.2YFLSB, Relator Santos Cabral, www.dgsi.pt. |