Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
75/22.6PGPDL.L1-9
Relator: PAULA SOFIA ALBUQUERQUE
Descritores: IMPUGNAÇÃO AMPLA DA DECISÃO DA MATÉRIA DE FACTO
TRÁFICO DE MENOR GRAVIDADE
MEDIDA DA PENA
PRINCÍPIO DA CULPA
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 03/07/2024
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Texto Parcial: N
Meio Processual: RECURSO PENAL
Decisão: NÃO PROVIDO
Sumário: (da responsabilidade da relatora)
I- Na impugnação ampla da decisão da matéria de facto só haverá erro de julgamento suscetível de ser modificado em sede de recurso, nas situações em que o recorrente demonstre que a convicção do tribunal a quo sobre a veracidade de certo facto é inadmissível porque assente, veja-se, em prova proibida ou ausência de dados objetivos, ou demonstre que existe outra hipótese dada pelas provas mais conforme às regras de experiencia comum, do que a adotada pelo tribunal recorrido.
II- É pela razão de se revelar diversa e distinta a factualidade em que se traduz a atuação ilícita no crime de tráfico de menor gravidade, que a moldura penal abstrata surge com a amplitude de 1 a 5 anos de prisão, permitindo ao julgador, em face das circunstancias concretas do caso e do agente, encontrar a pena mais proporcional e respeitadora do limite da culpa e, por tal, a mais justa.
III- O princípio da culpa define o limite inultrapassável de todas as exigências preventivas – de prevenção geral positiva de integração, prevenção geral negativa de intimidação, de prevenção especial positiva de socialização, e de prevenção especial negativa de neutralização.
Decisão Texto Parcial:
Decisão Texto Integral: Acordam em conferência os juízes da 9ª secção criminal do Tribunal da Relação de Lisboa

I – Relatório
Nos presentes autos com o n.º 775/22.6PGPDL que corre termos no Tribunal Judicial da Comarca dos Açores, Juízo Local Criminal da Ribeira Grande, em processo comum, com intervenção do tribunal singular, em que é arguido AA, foi este condenado por sentença nos seguintes termos, para o que aqui releva:
«1- Condenar o arguido AA, pela prática, em autoria material e na forma consumada, de um crime de tráfico de Estupefacientes de menor gravidade, p. e p. pelo artigo 25.º a) do Decreto Lei 15/93 de 22 de janeiro, por referência ao artigo 21.º n.º 1 do mesmo diploma, na pena de prisão de 3 (três) anos.»
Não se conformando com tal condenação, o arguido interpôs recurso da sentença, extraindo da motivação as seguintes Conclusões (transcrição):
«1 Os factos dados como provados em 1 e 2 da douta sentença, em função dos depoimentos prestados pelas testemunhas e como tal reconhecidos na motivação devem ser alterados passando a ter a seguinte redacção:
O AA. vendeu estupefaciente à testemunha BB à razão de 5 euros a dose em quantidades não apuradas num período de tempo que se desconhece mas que se situa anteriormente a Janeiro de 2023.
2 O facto 3, adequando à prova produzida, deverá ser corrigido, para: No dia 30 de Janeiro de 2023, foram apreendidos num armário da cozinha da residência do AA.: ..., visto que foi isso o que aconteceu e não que o AA. tinha na sua posse...
3 Consequentemente, na redacção do facto 4 deve ser substituído o produto que detinha por o produto que foi apreendido...
4 A quantidade e qualidade do produto, bem como o valor em dinheiro que foram encontrados e apreendidos na residência do AA., conjugados com a qualidade da prova produzida em audiência, só pode, na pior das hipóteses, concluir-se que se está perante um indivídup que, muito ocasionalmente, pode ter feito essas vendas, mas disso não fazendo o seu comércio.
5 Não tendo sido assin julgado, a douta sentença viola o disposto no art.º 71 do C.Penal, no sentido de que não respeita o grau de culpa e as exigências de prevenção que, conforme se alega, no caso concreto são diminutas.
6 Pugna, por isso, o AA., por que seja tido em atenção o longo tempo de reclusão, que já cumpriu de forma exemplar, sendo reduzida a pena para um total de 2 anos e que o restante seja cumprido em prisão domiciliária, assim se assegurando a sua ressocialização.»
Foi proferido despacho que admitiu o recurso interposto, com subida imediata, nos próprios autos e com efeito suspensivo.
O Magistrado do Ministério Público junto do Tribunal a quo apresentou Resposta ao Recurso, pugnando pela sua improcedência, apresentando as seguintes Conclusões que aqui se transcrevem:
«1- O arguido AA, foi condenado pela prática, em autoria material e na forma consumada, de um crime de tráfico de Estupefacientes de menor gravidade, p. e p. pelo artigo 25.º a) do Decreto Lei 15/93 de 22 de janeiro, por referência ao artigo 21.º n.º 1 do mesmo diploma, na pena de prisão de 3 (três) anos. Por não concordar com tal condenação e achar a pena excessiva, vem dela recorrer.
2- O recorrente não respeitou os requisitos impostos pela disposição legal suprarreferida. Estes requisitos são exigidos pelo Código de Processo Penal sob a cominação de rejeição liminar do recurso (artigo 412.º, n.ºs 1, 2 e 3), o que não tem levantado quaisquer dúvidas à nossa jurisprudência superior, que assim sempre tem entendido.
3- O artigo 412.º, denota o “intuito legislativo de não deixar prosseguir recursos inviáveis ou em que os recorrentes não exponham com clareza o sentido das suas pretensões, indicando mesmo as normas jurídicas que terão sido violadas e a norma jurídica que no entendimento do recorrente deve ser aplicada” (Maia Gonçalves, Código de Processo Penal Anotado, 1994, p. 591), intuito este que resulta claramente do Preâmbulo do Código, no seu ponto III. 7. c);
4- Em consequência, é por demais evidente a manifesta improcedência do recurso interposto, pelo que o mesmo deve ser julgado em conferência e rejeitado – artigos 412.º, n.º 3 e 4, 417.º, n.º 3, alínea c), e n.º 4, alínea b), 419.º, n.º 4, alínea a), e 420.º, n.º 1, todos do Código de Processo Penal 5- Caso assim não se entenda, o presente recurso, terá como único objecto uma questão de direito: a pena que em concreto deve ser aplicada ao arguido.
6- No caso em apreço, o recorrente limita-se a fazer uma interpretação e valoração pessoal dos depoimentos das testemunhas, defendendo que devia ser ter sido dado como provado outro quadro factual, exercício que, no entanto, é irrelevante para a sindicância da forma como o tribunal recorrido valorou a prova.
7- Ora, vigorando no nosso sistema penal o princípio da livre apreciação da prova plasmado no artigo 127º do CPP, que impõe a apreciação da prova segundo as regras da experiência e a livre e a livre convicção do julgador.
8- Na determinação da pena aplicável ao caso concreto, o Juiz deve atender a todas as circunstâncias que, não fazendo parte do tipo de crime, depuserem a favor do agente ou contra ele. Contudo, a pena não poderá, em caso algum, ultrapassar a medida da culpa.
9- Da sua leitura e análise da decisão recorrida, resulta para nós que o Tribunal fez uma correcta interpretação e aplicação das circunstâncias do aludido artº 71º, as quais, atendendo ao caso concreto, foram tidas em linha de conta e adequadamente ponderadas na determinação e na medida da pena aplicada ao arguido, sendo, portanto, esta a quarta condenação por crime da mesma natureza.
Tendo presente a moldura penal, a matéria de facto dada como provada e as circunstâncias a que alude o artº 71º do Cód. Penal e a que é feita referência à douta sentença condenatória e ainda o facto de o arguido não mostrar qualquer arrependimento pela sua conduta, consideramos a medida (concreta) da pena aplicada ao arguido adequada, equilibrada e justa, pelo que se pecar, será por defeito.
Assim, entende-se que a pena aplicada, devera ser mantida nos precisos termos.»
Remetidos os autos a este Tribunal da Relação, o Exmº Procurador-Geral Adjunto emitiu Parecer no sentido de não ser concedido provimento ao recurso, pois que a medida concreta da pena se mostra justa, adequada e proporcional, assinalando ser inclusivamente inferior àquela que o arguido já sofreu e cumpriu por factos de idêntica natureza, não devendo, pois, ser alterada.
Dado cumprimento ao estabelecido no artigo 417º, nº 2 do CPP, nada mais foi dito.
Colhidos os vistos, foram os autos à conferência.
Cumpre apreciar e decidir.
***
II- Fundamentação
Do âmbito do recurso e das questões a decidir:
Dispõe o art.º 412º, nº 1, do Código de Processo Penal (doravante, abreviadamente, CPP) que «a motivação enuncia especificamente os fundamentos do recurso e termina pela formulação de conclusões, deduzidas por artigos, em que o recorrente resume as razões do pedido».
O objeto do recurso define-se, pois, pelas conclusões que o recorrente extraiu da motivação, sem prejuízo das questões de conhecimento oficioso - como pacificamente decorre da doutrina (destacando-se os Conselheiros Simas Santos e Leal-Henriques no “Código de Processo Penal Anotado”, 2.ª ed., Vol. II, pág. 801 e Germano Marques da Silva em “Curso de Processo Penal”, Vol. III, 2ª ed., pág. 335) e da jurisprudência fixada pelo acórdão do Plenário da Secção Criminal do STJ n.º 7/95, de 19.10, in D.R. I-A Série de 28.12.1995 e com os acórdãos do STJ de 12.09.2007 no proc. n.º 07P2583 e de 29.01.2015 no proc. n.º 91/14.7YFLSB. S1 ambos em www.dgsi.pt (remetendo-nos sempre, doravante, para esta última fonte citada na indicação de jurisprudência, salvo indicação diversa).
Atentas as conclusões do recorrente, são as seguintes as questões a apreciar:
1- Erro no julgamento da matéria de facto – art.º 412º, n.º 3 do CPP.
2- Dosimetria da medida concreta da pena de prisão;
3- Cumprimento da pena na habitação.
É a seguinte a fundamentação de facto constante da Sentença recorrida com relevo para as questões a conhecer: (transcrição)
«Da prova produzida e discussão da causa resultaram os seguintes:
FACTOS PROVADOS:
1. Desde data não concretamente apurada, mas pelo menos desde o início de 2021, até janeiro de 2023, o arguido AA, dedicou-se à venda de produto estupefaciente, o que fez, a partir da sua residência, sita na ... e nas imediações, da área da sua residência, vendendo a consumidores que o procuravam.
2. Assim durante esse período vendeu a BB e CC a chamada droga sintética, cujo princípio ativo é ALFA-PHP, pela quantia de 5 euros a dose.
3. No dia 30 de janeiro de 2023 tinha na sua posse, no interior da sua residência, sita na ...:
- 4 panfletos de substância, que sujeita a perícia, acusou ser ALFA-PHP, com o peso total de 0.38 g;
- 1 bola de substância que sujeita a perícia, acusou ser ALFA- PHP, com o peso total de 9.41 gr. De acordo com a tabela II-A, anexa ao DL 15/93 de 22-1, alterada pela lei 25/2021 de 11-5, tal substância é considerada produto estupefaciente.
- 48,90 gramas de um produto, que sujeito a perícia, acusou ser Canabis Fls. Sumid. encontrando-se incluída na tabela I-C, anexa ao DL nº 15/93.
De acordo com a tabela relativa ao artigo 9º da Portaria n º 94/96 de 26/03, tal produto seria suficiente para cerca de 10 doses individuais.
- 43.70 euros em moeda e notas;
- 1 balança de precisão com resíduos de ALFA-PHP; - 3 sobrantes de plástico usado para acondicionar substâncias estupefacientes; - 1 telemóvel da marca Redmi; - 1 telemóvel da marca Wiko;
4. O Arguido agiu, sempre, de forma livre, voluntária, deliberada e consciente, nas referidas circunstâncias de tempo, lugar e modo, com perfeito conhecimento de que o produto que detinha, é considerado, pela sua composição, natureza, características e efeitos, substância estupefaciente e que, como tal, que toda a atividade relacionada com ele, designadamente, posse, consumo, oferta ou a cedência a qualquer título a terceiros, levadas a cabo por aqueles, lhe estava vedada porque proibida por lei. Sabia que as suas condutas eram proibidas e punidas por lei.
5. O arguido encontra-se com medida de coação de coação de OPH, desde 31.01.2023.
6. Tem o 6.º ano de escolaridade.
7. Reside sozinho.
8. Tem 6 filhos, 1 menor de idade.
9. Aufere, a título de RSI, pelo menos, o montante mensal de 209,00 euros.
10. Tem os seguintes antecedentes criminais registados:
a. em 04/01/2010 pela prática em 09/02/2009, de 1 crime de tráfico de quantidades diminutas e de menor gravidade, na pena de 1 ano de prisão, suspensa na sua execução por igual período de tempo, já declarada extinta (PS 46/09.3PEPDL, do extinto 4.º juízo do Tribunal Judicial de Ponta Delgada);
b. em 27/04/2010, pela prática em 06/04/2010 de 1 crime de desobediência qualificada, na pena de 60 dias de multa, já declarada extinta (PS 3/10.7FCPDL, do extinto 2.º juízo do Tribunal Judicial de Ponta Delgada);
c. em 16/02/2011 pela prática em 12/03/2010 de 1 crime de desobediência qualificada, na pena de 70 dias de multa, substituída por 70 horas de prestação de trabalho a favor da comunidade, já declarada extinta (PS 4/10.5FCPDLL, do extinto 3.º juízo do Tribunal Judicial de Ponta Delgada);
d. em 04/10/2012 pela prática em 03/01/2011 de 1 crime de furto qualificado, na pena de I ano e 6 meses de prisão, suspensa na sua execução por igual período de tempo sujeita a regime de prova, já declarada extinta (PCC 242/09.3PBRGR, do extinto 2.º juízo do Tribunal Judicial de Ponta Delgada);
e. em 17/06/2013 pela prática em 18/11/2011, de 1 crime de recetação, na pena de 200 dias de multa, tendo sido convertida em 133 dias de prisão subsidiária, já declarada extinta (PS 266/10.8PEPDL, do extinto 1.º juízo do Tribunal Judicial da Ribeira Grande);
f. em 15/07/2013, pela prática em 21/11/2010 de I crime de tráfico de quantidades diminutas e de menor gravidade, na pena de 2 anos e I mês de prisão, declarada extinta pelo cumprimento efetivo no dia 15.07.2016 (PCC 551/10.9PARGR, do extinto 2.º juízo do Tribunal Judicial de Ponta Delgada);
g. em 05/07/2018, pela prática em 28/06/2017 de 1 crime de tráfico de quantidades diminutas e de menor gravidade, na pena de 3 anos e 6 meses de prisão, declarada extinta pelo cumprimento efetivo no dia 12.04.2020;
FACTOS NÃO PROVADOS
Não resultaram factos não provados para a boa decisão da causa.
*
Não se fixam quaisquer outros factos, por irrelevantes, jurídicos ou meramente conclusivos.
*
MOTIVAÇÃO:
A convicção do Tribunal adveio da ponderação crítica do conjunto da prova produzida e analisada em audiência de discussão e julgamento.
Assim:
Desde logo se diga que foi pretensão do arguido prestar declarações. O mesmo assumiu o circunstancialismo que envolve a deteção com a posse das substâncias, objetos, e quantias monetárias apreendidas nos autos. O que sucede é que, segundo o arguido, à exceção dos panfletos referidos em 3, todo o restante material não lhe pertencia, sendo propriedade de DD, consumidor de estupefaciente e pessoa que, em momentos anteriores à busca domiciliária realizada, residia consigo. Ademais, nunca vendeu qualquer tipo de estupefaciente a ninguém.
Ora o exposto, permite, sem margem para qualquer dúvida, comprovar a factualidade referida no ponto 3, tanto que, é a mesma iluminada pelos autos de busca e apreensão e pela prova pericial presente no processo.
Analisemos, primeiramente, as declarações do arguido, unicamente quanto ao seu teor, ainda sem o amparo de qualquer outra prova analisada. No imediato, ressalta um considerável conjunto de incongruências se vistas as coisas à lupa das regras da experiência comum.
Desde logo, assinala-se a relativamente considerável quantidade de produto estupefaciente indicado no ponto 3 da matéria provada, com o acréscimo de se tratarem de produtos de natureza diversa. Grande demais, sob o ponto de vista da normalidade, para que um consumidor (neste caso, do ponto de vista do arguido, seria DD), deixasse em casa alheia, quando abandona a habitação em causa. Realmente não é uma conduta compreensível, quando a lógica impõe que um consumidor de estupefacientes (na condição social que o arguido apontou, quanto a DD – que ficou sem habitação, residindo consigo, fazendo trabalhos ocasionais), vive para o consumo de estupefacientes e para a angariação de fundos que permita sustentar o vício, não sendo tal compatível com, primeiro, não consumir a droga disponível e, segundo, deixá-la numa habitação onde já não reside sequer.
Além do exposto, é de nota a excecional coincidência e infelicidade do arguido. Desde logo, inexplicavelmente, DD, deixou todo aquele produto, na habitação do arguido, sem, sequer, o seu conhecimento. De seguida, nunca o arguido teve o acaso de encontrar os produtos em causa, na sua própria habitação, porquanto, segundo disse, não utilizava o móvel onde as coisas estavam acondicionadas (note-se, um móvel situado na cozinha). Por fim, dá-se o acaso de DD ter abandonado a casa do arguido (sem o material em causa), em momento anterior das diligências policiais efetuadas.
Acresce o óbvio: detinha o arguido objetos de presença quase obrigatória em situações de tráfico de estupefacientes, como balança de precisão, recortes/sobrantes de plástico, telemóveis e quantias monetárias (ainda que, aqui, admite-se, em quantias diminutas e irrelevantes).
Indo para além da posse dos produtos e objetos em causa, aditou o arguido que não só não vendeu produto estupefaciente aos consumidores indicados na acusação, como nem sequer os conhece. Todavia, pouco depois, referiu que, afinal, conhece tais consumidores, mas apenas de vista. Sucede que, mais adiante, justifica a presente acusação, nomeadamente porquanto as pessoas indicadas na acusação, que segundo o arguido, primeiro não conhecia e depois conhecia apenas de vista, queriam vingar-se porque o arguido recusava-se a vender lhes droga. Efetivamente, afiguram-se sem nexo ou coerência as informações prestadas pelo arguido.
Reconhecemos, todavia, que não é ao arguido que incumbe a produção de prova. Assim, vejamos o que foi produzido, já se viu, para além da prova pericial e documental junta aos autos, a que já nos referimos:
E adiantamos já, que a prova testemunhal foi demolidora quanto às declarações do arguido, suportando de modo inequívoco o que a acusação adiantava.
Não olvidamos que a testemunha CC, assumindo-se consumidor, tenha referido que conhece o arguido, mas que nunca lhe comprou produto estupefaciente. Todavia, a testemunha em causa, “disparou” tal informação sem sequer ter sido ainda questionado quanto a tal assunto, complementando, mais tarde, que nunca viu movimentações típicas de compra e venda de droga na habitação do arguido, circunstâncias que retiram forte credibilidade ao seu testemunho.
Por outro lado, DD negou liminarmente alguma vez ter sido o proprietário dos bens indicados na acusação que o arguido indicara serem seus. Efetivamente, a testemunha apontou um pormenor que as regras da experiência comum já indiciavam: referiu que, como consumidor, tudo o que tivesse para consumir, fazia-o no imediato e na integra, pelo que jamais poderia deixar qualquer estupefaciente na habitação do arguido.
No mesmo sentido, foram absolutamente credíveis as declarações de CC. Inicialmente, a testemunha titubeou no sentido de suas declarações, acabando por referir que, efetivamente comprara estupefaciente ao arguido, recordando-se até do tipo de estupefaciente que comprou (heroína e sintética) e do preço que pagou (5,00 euros, cada dose). A própria hesitação da testemunha, absolutamente comum num consumidor que preste testemunho em Tribunal “contra” um vendedor de drogas, atesta a sua credibilidade. Acresce ainda que esta testemunha forneceu um pormenor de grande importância: indicou que se deslocava à habitação do arguido para comprar estupefaciente porque soube através de outros consumidores que a tal, se dedicava o arguido, referindo “a palavra roda” (sic), isto é, era já o arguido conhecido como vendedor de estupefacientes, daqui se concluindo que venderia a diversos consumidores. Aliás, explicou ainda a testemunha que, aquando de sua aquisição, via lá outros consumidores, que identificou, nomeadamente, como EE e FF. Ora, todas as declarações a que nos referimos, o seu teor, a sua correlação entre si e entre os elementos periciais e documentais juntos aos autos, tudo com arrimo das regras da experiência comum, associado, e ainda, à inverosimilidade das declarações do arguido, comprovam, com clareza, os mencionados factos 1 a 3.
Os factos de natureza subjetiva enunciados 4, decorrem também já do exposto, sendo extraídos e inerentes à factualidade objetiva já dada como provada. Não podia, pois, o arguido desconhecer as características dos produtos que detinha (sem prejuízo de o mesmo ter assumido tal conhecimento), nem saber que lhe estava vedada, por lei a sua conduta, tanto que, disso são espelho as suas declarações, procurando, ainda que com implausibilidade, justificá-la.
Os factos referentes às condições sociais, pessoais e económicas do arguido (pontos 5 a 9), resultaram das informações pelo mesmo prestadas, associadas à consulta dos autos e ao contacto direto com o arguido, tido em audiência.
Teve o Tribunal ainda em consideração o CRC junto aos autos.»
(fim de transcrição)
Importa agora apreciar das questões suscitas pelo recorrente.
1- Erro no julgamento da matéria de facto – art.º 412º, n.º 3 do CPP.
O arguido pugna, na sua motivação e conclusões recursórias pela existência de uma errada apreciação da prova, defendendo que os factos dados como provados em 1 e 2 da sentença sindicada, «em função dos depoimentos prestados pelas testemunhas e como tal reconhecidos na motivação devem ser alterados passando a ter a seguinte redacção:
1. O AA. vendeu estupefaciente à testemunha BB à razão de 5 euros a dose em quantidades não apuradas num período de tempo que se desconhece mas que se situa anteriormente a Janeiro de 2023.
2. O facto 3, adequando à prova produzida, deverá ser corrigido, para: No dia 30 de Janeiro de 2023, foram apreendidos num armário da cozinha da residência do AA.: ..., visto que foi isso o que aconteceu e não que o AA. tinha na sua posse...
3. Consequentemente, na redacção do facto 4 deve ser substituído o produto que detinha por o produto que foi apreendido...» (sic)
Vejamos.
A impugnação ampla da matéria de facto funda-se na noção de erro de julgamento na apreciação da prova relativa aos factos em questão nos autos.
Todavia, para que os Tribunais da Relação possam conhecer de facto (artigo 428º do CPP), a reapreciação probatória encontra-se submetida a requisitos muito estritos impondo o ónus de impugnação especificada, nos termos definidos no nº 3 do artigo 412º do CPP, que o recorrente cumpra com os seguintes deveres, aquando da motivação e das conclusões de recurso:
1. A especificação dos concretos pontos de facto que considere incorrectamente julgados e como concretamente deveriam ser modificados, apresentando a respectiva versão factual;
2. A especificação das concretas provas que imponham decisão diversa relativamente a cada um dos respectivos factos impugnados da decisão recorrida e com indicação concreta e individualizada das particulares passagens/excertos da gravação da audiência nas quais ficaram as frases (dos depoimentos e/ou das declarações) que se referem ao respectivo facto impugnado e em que alicerçe a divergência ( não bastando a mera referência às rotações correspondentes ao início e ao fim da respectiva gravação consignada em acta), apresentando não só a sua versão probatória factual, como também o conteúdo específico de cada meio de prova transcrito na parte que imponha decisão diversa da recorrida, correlacionando comparativamente com o facto individualizado que considere erradamente julgado;
3. Se for caso disso, a especificação de provas que devam ser renovadas e com indicação concreta das passagens da gravação da audiência por referência ao consignado na acta. (cfr. Paulo Pinto de Albuquerque em “Comentário do Código de Processo Penal”, 4ª edição, pág. 1144, e Paulo Saragoça da Mata em “A Livre Apreciação da prova e o Dever de Fundamentação da Sentença” nas Jornadas de Direito Processual Penal e Direitos Fundamentais”, edição Almedina Coimbra 2004, pág. 253; e ainda os acórdãos do Tribunal Constitucional nºs 59/2006 e 312/2012, acórdão de uniformização de jurisprudência nº 10/2005 de 20/10/2005 em Diário da República I-A de 7-12-2005, e acórdão do STJ de 3/2012, de fixação de jurisprudência, de 8/3/2012 em Diário da República 1ª série, nº 77 de 18/4/2012).
Tal formalismo assenta no pressuposto de que o julgamento da matéria de facto em primeira instância obedece a princípios estabelecidos na lei que visam a descoberta da verdade histórica a partir dos meios de prova que a representam. Entre esses princípios avulta o da imediação na recolha da prova, que visa assegurar que existe uma relação de contacto pessoal e directo entre o julgador e a prova que terá de ser avaliada.
Em segunda instância a reapreciação da matéria de facto faz-se, em regra, sem imediação, com a audição e visualização das provas registadas, cuja análise tenha sido sugerida no recurso, estando dependente do impulso dos sujeitos processuais a renovação da prova – artigos 412º nºs 3 a 6 e 417º nº 7 al. b) do CPP.
Por isso, e em regra, a avaliação da prova em primeira instância, feita de forma directa, oral e imediata, obedece a uma forma de procedimento que coloca o juiz do julgamento em melhores condições para a decisão da matéria de facto do que a avaliação feita com base na audição ou visualização do registo, meramente parcial (porque despido de expressões faciais e comportamentos físicos), de provas de produção pretérita.
Assim, a reapreciação da prova em recurso não pode, nem deve equivaler a um segundo julgamento. O duplo grau de jurisdição não assegura a sujeição da acusação a dois julgamentos em tribunais diferentes, mas apenas garante que o interessado pode obter do tribunal superior a fiscalização e controlo de eventuais erros da decisão da matéria de facto, através do reexame parcial da prova.
Por outro lado, o julgamento da matéria de facto está sujeito ao princípio da livre apreciação estabelecido no artigo 127º do CPP, princípio válido para o julgamento em primeira instância como para a verificação de eventuais erros de julgamento na Relação, de acordo com o exame crítico da prova, que não deixa de estar vinculado a critérios objectivos jurídico-racionais e às regras da lógica, da ciência e da experiência comum.
O referido princípio, relativo à prova, permite ao julgador apreciar os meios de prova na base da sua livre valoração e da sua convicção pessoal, por contraste ao sistema de prova legal, onde a apreciação da prova tem lugar com base em regras legais predeterminadas.
Concluindo, só haverá erro de julgamento da matéria de facto, susceptível de ser modificado em sede de recurso, naquelas situações em que o recorrente consiga demonstrar que a convicção do tribunal de primeira instância sobre a veracidade de certo facto é inadmissível (não é sustentada em dados objectivos), ou que existem outras hipóteses dadas pelas provas mais plausíveis do que aquela adoptada pelo tribunal recorrido.
Neste sentido, o acórdão do STJ de 19 de Maio de 2010, processo nº 696/05.7TAVCD.S1: «O uso pela Relação dos poderes de alteração da decisão da 1.ª instância sobre matéria de facto deve restringir-se aos casos de flagrante desconformidade entre os elementos de prova disponíveis e aquela decisão, nos concretos pontos questionados».
E ainda o acórdão do STJ de 11-10-2006, proc. n.º 06P2264, relator o Senhor Conselheiro Oliveira Mendes: «O duplo grau de jurisdição em matéria de facto não visa a repetição do julgamento na 2.ª instância, dirigindo-se somente ao reexame dos erros de procedimento ou de julgamento que tenham sido referidos em recurso e às provas que impõem decisão diversa, indicadas pelo recorrente, e não a todas as provas produzidas na audiência.
IX - Por isso, o recurso da matéria de facto não visa a prolação de uma segunda decisão de facto, antes e tão-só a sindicação da já proferida, sendo certo que, no exercício dessa tarefa, o tribunal de recurso apenas está obrigado a verificar se o tribunal recorrido valorou e apreciou correctamente as provas, pelo que, se entender que a valoração e apreciação feitas se mostram correctas, se pode limitar a aderir ao exame crítico das provas efectuado pelo tribunal recorrido
No caso concreto dos autos, e ponderando o teor da motivação e das conclusões do recurso em apreciação, afigura-se ser patente que o recorrente não cumpre os requisitos exigidos pelo artigo 412º, n.ºs 1, 3 e 4 do CPP, para a apreciação por este tribunal de recurso da pretendida impugnação ampla da matéria de facto, inviabilizando a reavaliação da prova por parte deste tribunal ad quem e, em consequência, a reapreciação da matéria de facto impugnada.
Diga-se, ainda, por último, o que é entendimento unânime e pacífico na nossa doutrina e jurisprudência, que faltando no corpo da motivação do recurso, e nas conclusões, o cumprimento do triplo ónus de especificação previsto no art.º 412º, n.º 3, a), b) e c) do CPP), o que ocorre no caso concreto, está também vedado a este Tribunal a possibilidade de efectuar convite ao aperfeiçoamento nos termos do art.º 417º, n.º 3 do CPP, uma vez que o mesmo sempre importaria uma modificação estrutural dos fundamentos do recurso, ou seja, um novo recurso, violando-se o prazo peremptório de apresentação do recurso.
Neste sentido, exemplificativamente, o acórdão desta Relação de 8-08-2023, processo n.º 16/19.6PILRS.L1-9, Relatora a Senhora Desembargadora Filipa Costa Lourenço: «I-Quando o recorrente expõe consistentemente as razões concretas da sua discordância na motivação do seu recurso, mas depois, por lapso, não as assinala devidamente nas conclusões existem razões que se fundamentam na proibição de excesso, no princípio da proporcionalidade constitucionalmente consagrado no art.º 18º nº 2 da CRP que justificam o convite e a consequente possibilidade de correção;
II- No entanto, o mesmo já não sucede quando o recorrente no corpo da motivação do recurso não enunciou as especificações legais, pelo que o convite à correcção já não se justifica, porque para se obter a harmonização entre as conclusões, o corpo da motivação e a obrigação legal de especificação seria necessária uma reformulação substancial das motivações e das conclusões, o que significaria a concessão da possibilidade da dedução de um novo recurso, com novas conclusões e inovação da motivação, precludindo assim a peremptoriedade de prazo de apresentação do recurso.»
De onde, se a deficiência ou imperfeição se manifestar na motivação e nas conclusões, como, sem margem para dúvidas, sucede no caso dos autos, já não poderá haver lugar ao convite ao aperfeiçoamento.
Pelo exposto, nada mais nos resta do que julgar, assim, fixada e intocável a matéria factual dada por provada constante da sentença recorrida, sendo então que a apreciação a efectuar por este Tribunal de recurso está cingida, única e exclusivamente, ao texto da decisão sindicada.
Rejeita-se, assim, o recurso, no tocante à impugnação da matéria de facto.
2- Dosimetria da medida concreta da pena de prisão;
Como fundamento da pretensão de ver a concreta pena de prisão reduzida para dois anos, invoca conclusivamente o recorrente que « A quantidade e qualidade do produto, bem como o valor em dinheiro que foram encontrados e apreendidos na residência do AA., conjugados com a qualidade da prova produzida em audiência, só pode, na pior das hipóteses, concluir-se que se está perante um indivíduo que, muito ocasionalmente, pode ter feito essas vendas, mas disso não fazendo o seu comércio.
5 Não tendo sido assim julgado, a douta sentença viola o disposto no art.º 71 do C.Penal, no sentido de que não respeita o grau de culpa e as exigências de prevenção que, conforme se alega, no caso concreto são diminutas.
6 Pugna, por isso, o AA., por que seja tido em atenção o longo tempo de reclusão, que já cumpriu de forma exemplar, sendo reduzida a pena para um total de 2 anos e que o restante seja cumprido em prisão domiciliária, assim se assegurando a sua ressocialização.»
Podemos desde já adiantar que não assiste qualquer razão ao recorrente.
Se não, vejamos.
Colhendo quer os ensinamentos doutrinais de Figueiredo Dias (em “Direito Penal – Parte Geral”, Tomo I, 2.ª Edição, Coimbra Editora, pág. 78-85 e em “Direito Penal – Questões fundamentais – A doutrina geral do crime”, Universidade de Coimbra – Faculdade de Direito, 1996, págs. 84-121), quer os ensinamentos jurisprudenciais do STJ (entre outros, o acórdão do STJ de 16-01-2008, no processo n.º 4565/07 e o acórdão do STJ de 25/5/2016, no processo nº 101/14.8GBALD.C1.S1, ambos em dgsi.pt):
. As penas como instrumentos de prevenção geral são instrumentos político-criminais destinados a actuar (psiquicamente) sobre a globalidade dos membros da comunidade, afastando-os da prática de crimes, através das ameaças penais estatuídas pela lei, da realidade da aplicação judicial das penas e da efectividade da sua execução =» desempenhando uma função de prevenção geral negativa.
. Também tendo uma função de prevenção geral positiva ou de integração =» como forma de que o Estado se serve para manter e reforçar a confiança da comunidade na validade e na força da vigência das suas normas de tutela de bens jurídicos e, assim, no ordenamento jurídico-penal. E como instrumento por excelência destinado a revelar, perante a comunidade, a inquebrantabilidade da ordem jurídica, pese embora todas as suas violações que tenham tido lugar. Sendo este o ponto de partida como a finalidade primária das penas: o restabelecimento da paz jurídica comunitária posta em causa pelo comportamento criminal de um arguido.
. O ponto de chegada das penas está nas exigências de prevenção especial, mais concretamente =» da prevenção especial positiva -ressocialização de um arguido- e da prevenção especial negativa (neutralização daquele tipo de conduta criminosa).
. Tudo isto, sempre, sem olvidar o princípio da culpa inerente ao nosso Estado de Direito Democrático: em caso algum pode haver pena sem culpa ou acima da culpa =» a pena não pode ultrapassar a medida da culpa.
Significando isto que a concepção retributiva da pena não pode nunca atentar contra o princípio da inviolabilidade da dignidade da pessoa humana do arguido e de garantia do livre desenvolvimento da sua personalidade. A culpa é condição necessária, mas não suficiente, da aplicação da pena e, assim se obtendo uma correcta incidência da ideia de prevenção especial positiva ou de socialização.
Assim, o princípio da culpa no nosso sistema penal serve como incondicional proibição de excesso, como limite inultrapassável de todas e quaisquer considerações ou exigências preventivas – quer sejam de prevenção geral positiva de integração e/ou de prevenção geral negativa de intimidação, quer sejam de prevenção especial positiva de socialização e/ou de prevenção especial negativa de segurança ou de neutralização.
Deste modo e perante cada caso concreto, a pena deve ser encontrada pelo Juiz dentro de uma moldura de prevenção geral positiva e negativa (que são, respectivamente, o limite máximo e o limite mínimo desta “moldura” de pena – pois a natureza e o grau de ilicitude do facto impõe maior ou menor conteúdo de prevenção geral, conforme tenham provocado maior ou menor sentimento comunitário de afectação dos valores –) e ponderando as circunstâncias do caso concreto, bem como o nível e premência das necessidades especiais que se lhe apresentem de prevenção especial positiva e negativa (que são, respectivamente, a ressocialização do arguido e a prevenção da sua reincidência – tais como as circunstâncias pessoais do agente, a idade, a confissão, o arrependimento, os seus antecedentes criminais), ao mesmo tempo que também estas lhe transmitem indicações externas e objectivas para apreciar e avaliar a culpa do agente (sem ultrapassar a medida da culpa concreta), o Julgador fixará o “quantum” da pena.
No caso dos autos, a conduta do recorrente foi juridicamente enquadrada no tipo legal de crime consagrado no artigo 25º, al. a) do Dec. Lei n.º 15/93, de 22 de janeiro por referência ao artigo 21.º n.º 1 do mesmo diploma, tendo sido condenado pelo tribunal de 1ª instância na pena de 3 (três) anos de prisão, numa moldura penal que tem como limite mínimo 1 (um) ano e como limite máximo 5 (cinco) anos de prisão.
Na determinação da medida concreta da pena aplicada ao recorrente, verificamos que o Tribunal a quo ponderou todos os parâmetros legais que se lhe impunham, reflectindo-os, a nosso ver, de forma ajustada e proporcional, na respectiva aplicação ao caso concreto.
Na verdade, como emerge dos factos provados, verifica-se que pelo menos desde o inicio de 2021 e até janeiro de 2023, ou seja, durante dois anos, o arguido AA dedicou-se à venda de produto estupefaciente, o que fez a partir da sua residência e nas imediações da mesma, vendendo a consumidores que o procuravam, nomeadamente a BB e a CC a quem vendeu a denominada droga sintética, cujo principio ativo é ALFA-PHP, pela quantia de 5 euros a dose.
No dia 30 de janeiro de 2023 tinha na sua posse, no interior da sua residência: - 4 panfletos de substância, que sujeita a perícia, acusou ser ALFA-PHP, com o peso total de 0.38 g;
- 1 bola de substância que sujeita a perícia, acusou ser ALFA- PHP, com o peso total de 9,41 gr;
- 48,90 gramas de um produto, que sujeito a perícia, acusou ser Canabis;
- 43,70 euros em moeda e notas;
- 1 balança de precisão com resíduos de ALFA-PHP; e 3 sobrantes de plástico usado para acondicionar substâncias estupefacientes;
- 1 telemóvel da marca Redmi; e 1 telemóvel da marca Wiko.
Ora, se é certo que as quantidades e natureza de produto estupefaciente apreendido são pouco expressivas, as 48,90 gramas de “Canabis” é vulgarmente denominada de «droga leve», e o tribunal recorrido considerou que o arguido actuou sozinho, sendo «um pequeno traficante de rua», e por isso mesmo enquadrando, e bem, a sua conduta ao ilícito de menor gravidade p.p. pelo artigo 25º, al. a) do Dec. Lei n.º 15/93 de 22.01, não podemos defender, como parece pretender o recorrente, ser a sua actuação irrelevante ou de significado diminuto, quer no que tange ao grau de violação do bem jurídico tutelado pela norma, quer às exigências comunitárias de reposição da validade da norma violada que se fazem sentir e, por tal, reflectir esses factores na medida concreta da pena.
É pela razão de se poderem revelar diversos e distintos os quadros fácticos em que se traduz a actuação ilícita de cada “mero traficante de rua”, que a moldura penal abstracta surge com a amplitude de 1 a 5 anos de prisão, permitindo ao julgador, em face das circunstancias concretas do caso e do agente, encontrar a pena mais proporcional e respeitadora do limite da culpa e, por tal, a mais justa.
No caso concreto, não podemos deixar de evidenciar as exigências de prevenção especial que se fazem sentir, as quais consideramos, como bem fez o tribunal a quo, muito elevadas.
Na verdade, o recorrente, conforme resulta do seu Certificado de Registo Criminal que acima transcrevemos e que nos abstemos de aqui repetir, foi já condenado três vezes pela prática do mesmo ilícito penal em causa nestes autos, por factos de fevereiro de 2009 na pena de um ano de prisão suspensa por igual período; por factos de 21-11-2010 na pena de dois anos e um mês de prisão que cumpriu; e por factos de 28-06-2017 na pena de três anos e seis meses de prisão que igualmente cumpriu, sendo esta pena declarada extinta pelo cumprimento efectivo a 12 de abril de 2020.
E volvidos escassos meses, no início do ano de 2021 e até janeiro de 2023, durante mais dois anos, voltou o arguido recorrente a dedicar-se à detenção e venda de produto estupefaciente, revelando uma total ausência de interiorização do desvalor da sua conduta, e uma manifesta indiferença pelas condenações já sofridas.
Por assim ser, aderimos inteiramente ao expendido na sentença sindicada quando salienta que:
«(...)É de reafirmar e repetir que, tal qual vem sendo indicado pelo STJ, o crime de tráfico de estupefacientes postula elevadíssimas necessidades de prevenção geral, face à frequência do fenómeno e das suas trágicas consequências que se disseminam em diversos campos e levam à prática de diversos crimes. A comarca onde nos encontramos é pródiga nesse campo, em que o exacerbado consumo de drogas sintéticas está na base da esmagadora maioria dos crimes cometidos e julgados – a nível diário – por este Tribunal. Efetivamente, superabundam as audiências referentes à prática de crimes de violência doméstica, furto, ameaça, ofensa à integridade física, resistência e coação sobre funcionário, desobediência, condução sem habilitação, entre outras, que, na inequívoca maioria esmagadora, têm como pano de fundo e origem, o consumo de estupefacientes, com efeitos demolidores, quer nos consumidores, quer nas famílias dos mesmos, quer no sentimento geral de (in)justiça que atinge a sociedade.
Já se viu que, no juízo de prognose deverá o Tribunal atender, no momento da elaboração da sentença, à personalidade do agente (designadamente ao seu carácter e inteligência), às condições da sua vida, à sua conduta anterior e posterior ao crime, bem como, no que respeita à conduta posterior ao crime, designadamente, à confissão aberta e relevante, ao seu arrependimento, à reparação do dano ou à prática de atos que obstem ao cometimento futuro do crime em causa) e às circunstâncias do crime (como as motivações e fins que levam o arguido a agir). – Ac. TRC, 29.11.2017, proc.º 202/16.8PBCVL.C1.
E, neste particular, nos presentes autos, soma-se aos seus antecedentes criminais que o arguido não assume consciência do desvalor de suas condutas. É quase com estupefação que se observa que o arguido foi condenado em duas penas de prisão efetiva pela prática dos dois últimos crimes – precisamente iguais aos que aqui se aprecia -, e volta a cometer o mesmíssimo crime, não muito tempo após a extinção da pena que o privou da liberdade. E note-se, adianta o CRC que ao arguido foi declarado perdoado o remanescente da pena de prisão efetiva anterior. Mas nem assim. O arguido desbarata todas as oportunidades, todos os esforços das instituições que o querem reintegrar e todas as circunstâncias que o restituem à liberdade. Fica claro que, há vários anos a esta parte que o arguido, quando em liberdade, subsiste à custa de venda de estupefacientes, degradando os seus compradores, quem com aqueles se relaciona e a sociedade no seu todo.
A tudo se acrescenta que o arguido não apresenta arrependimento, negando tudo o que lhe é imputado, mesmo perante evidências inequívocas.
Quer isto dizer que o juízo possível de elaborar quanto às necessidades de prevenção especial, porque altíssimas, não se sobrepõe positivamente – pelo contrário – às elevadas exigências de prevenção geral que o tipo de crime acarreta e que é manifesto no dia a dia desta comarca.
Conclui-se, inevitavelmente, que a ameaça de cumprimento de pena de prisão, não é seguramente suficiente para que se cumpram as finalidades da punição, designadamente para que o arguido se abstenha de praticar ilícitos criminais no futuro, necessitando o mesmo de uma pena de prisão efetiva para que se consiga ressocializar e adotar um comportamento cívico e lícito.(...)».
Conclui-se, do exposto, não se verificar qualquer violação dos critérios legais (nomeadamente do art.º 71º do CP invocado pelo recorrente) de determinação concreta da pena por parte do tribunal a quo, afigurando-se antes inteiramente justa, equilibrada e proporcional a pena concreta de três anos de prisão aplicada, cuja não suspensão da sua execução mereceu a aceitação do arguido, pois que não a colocou em causa no presente recurso.
Assim sendo, e relembrando o princípio geral de que as penas apuradas em primeira instância são apenas passíveis de alteração quando se mostre que foram desrespeitados os princípios gerais e as operações de determinação impostas por lei, a indicação ou a consideração dos fatores de medida da pena (cfr. Acs. do STJ de 14.10.2015, 12.07.2018 e 19.05.2021, relatados por Pires da Graça, Raul Borges e Ana Barata Brito, in www.dgsi.pt), concluímos pela manutenção da pena de três anos de prisão aplicada ao recorrente.
3. Do cumprimento da pena na habitação
O recorrente pugna pelo cumprimento da pena na sua residência, aduzindo para o efeito o tempo em que já se encontra sujeito à medida de coação de Obrigação de Permanência na Habitação, desde 31-01-2023.
Como é sabido, a aplicação da generalidade das penas de substituição ocorre quando as mesmas realizem de forma adequada e suficiente as finalidades da punição.
Na ponderação da aplicação das penas de substituição, dentro do quadro das finalidades da punição, o tribunal deve atender à personalidade do agente, às condições da sua vida, à sua conduta anterior e posterior ao crime e às circunstâncias deste.
É sabido que a lei penal dá prevalência às penas de substituição não detentivas: substituição da prisão por multa (art.º 45º do CP), suspensão da execução da pena de prisão (art.º 50º) e substituição da prisão por trabalho a favor da comunidade (art.º 58º do CP).
Segue-se a ponderação da execução da pena de prisão em regime de permanência na habitação (art.º 43º do CP), sendo esta também uma pena de substituição detentiva.
Ora, se considerarmos que estão, como vimos, afastados os pressupostos para a aplicação da suspensão da execução da pena de prisão, por não ser possível extrairmos qualquer juízo de prognose favorável de que o arguido recorrente não volte a praticar crimes, em particular da mesma natureza do que aqui está em causa, e bem assim, se ponderarmos que durante dois anos o arguido praticou os factos em causa nos autos no interior da sua residência, e nas imediações desta, a única conclusão possível é a de que não estão reunidos os pressupostos legais para que se possa deferir a sua pretensão, neste especifico segmento.
Na verdade, a este propósito, fazemos nossas as considerações do tribunal a quo, quando salienta que «o arguido desbarata todas as oportunidades, todos os esforços das instituições que o querem reintegrar e todas as circunstâncias que o restituem à liberdade. Fica claro que, há vários anos a esta parte que o arguido, quando em liberdade, subsiste à custa de venda de estupefacientes, degradando os seus compradores, quem com aqueles se relaciona e a sociedade no seu todo.
A tudo se acrescenta que o arguido não apresenta arrependimento, negando tudo o que lhe é imputado, mesmo perante evidências inequívocas».
Improcede assim, na sua totalidade, o recurso.
Decisão
Face ao exposto, acordam as Juízes desta 9ª Secção Criminal do Tribunal da Relação de Lisboa em:
1. Não conhecer da impugnação da matéria de facto;
2. Negar provimento ao recurso, confirmando na íntegra a sentença recorrida.
Custas a cargo do arguido recorrente, fixando-se a taxa de justiça em 4 UC’s.
***
Lisboa, 7 de Março de 2024
(texto elaborado pela primeira signatária, revisto e assinado digitalmente por todos os subscritores – artigo 94º, n.º 2 do CPP)
Paula Sofia Albuquerque
Maria João Lopes
Carla Carecho