Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
654/10.0TBSXL.L1-7
Relator: CARLA CÂMARA
Descritores: PROVA TESTEMUNHAL
DOAÇÃO
NEGÓCIO USURÁRIO
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 07/13/2017
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Texto Parcial: N
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: PROCEDENTE
Sumário: i)Os depoimentos de familiares das partes, não são meios de prova que, em geral e aprioristicamente, sejam menos fiáveis do que outros. Todas as provas têm a sua potencialidade informativa e apenas analisando as características de uma prova produzida no caso concreto, se conseguirá chegar a uma conclusão razoável de que o meio de prova é credível. Caberá ao juiz interpretar todos os sinais que o depoente lhe transmita, mesmo aqueles (inclusive não verbais) que o mesmo pretende ocultar.
ii)A testemunha com interesse (directo ou indirecto) nos factos, familiares, amigos ou dependentes, requer do julgador, conhecedor de um destes vínculos de ligação, que analise objectivamente o depoimento e tome cautelas adicionais para poder aferir desta credibilidade. Este interesse tanto pode ser no êxito da pretensão de uma das partes, como na falta deste, pelo que valem igualmente estas considerações para aqueles que tenham qualquer relação de inimizade, hostilidade ou desavença com um dos litigantes.
iii)Há que valorar objectivamente o depoimento de tais testemunhas, importando analisar se o relato foi coerente, se a testemunha o contextualizou e se o mesmo está corroborado por outras provas.
iv)Cabe procurar no depoimento da testemunha detalhes que confirmem a sua falta de objectividade e, encontrados que sejam, retirar-lhe credibilidade. Se não existirem, não afasta a objectividade e credibilidade a mera circunstância, vista como um critério em si mesmo, de ser familiar ou dependente de uma parte.
v)A Ré, usando da situação de necessidade, dependência e fragilidade emocional de Luís ... modelou a sua vontade no sentido de ser por ele beneficiada. Este, perante a promessa de que teria quem dele cuidasse até à morte mediante a doação de sua casa, vem a fazê-lo, por estar convencido de que a R. assim faria.
vi)O requisito exploração implica necessariamente, a consciência da situação de necessidade, dependência, estado mental ou fraqueza de carácter e outras tipificadas no artigo 282º, nº 2, do CC e a consciência da causalidade entre essas situações e o benefício recebido.
vii)Esta causalidade resulta dos factos provado 21 e 22 ( Luís ... tinha medo que a R. deixasse de lhe prestar serviços e a R. convenceu-o de que cuidaria dele até à morte mediante a doação da fracção.), resultando outrossim das regras da experiência extraídas da situação de debilidade e dependência de quem, com 78 anos, vivendo o desgosto de ter perdido a esposa, necessita de quem dele cuide e a quem, mediante a promessa de que não deixará de fazer, doa a sua casa.
viii)Tal qual se encontra previsto no artigo 282º, nº 1, do CC, o negócio usurário, consubstancia uma limitação ao princípio da liberdade contratual, que encontra, todavia, justificação, em ordem às razões sociais subjacentes e ao princípio da protecção dos mais fracos, redundando, assim, numa manifestação com expressa consagração legal, do carácter social do direito privado.

(Sumário elaborado ao abrigo do disposto no artigo 663º, nº 7, do CPC).
Decisão Texto Parcial:
Decisão Texto Integral: Acordam na 7ª Secção do Tribunal da Relação de Lisboa.


Relatório:


José ... ..., João ..., Marino ... ..., Maria ... ... ... da ..., Maria Célia ... ... ... e Maria Margarida ... ..., deduziram a presente acção contra Maria José ... ... ..., pedindo:
-A declaração de que os autores são os únicos herdeiros do falecido Luís ... ...;
-A declaração de nulidade da doação de Luís ... ... à ré, da fracção autónoma designada pela letra F, correspondente ao 2º andar esq. Do prédio urbano em regime de propriedade horizontal, sito na Rua ... ... ... ..., nº 16, Quinta do Brigadeiro, freguesia de ..., concelho do ..., descrito na Conservatória do Registo Predial de ... sob o nº 1002 e inscrito na matriz sob o artigo 1137º, doação outorgada por escritura pública em 11 de Agosto de 2005, exarada no livro 134G, fls. 66-66v. do Cartório Notarial do ..., inválida por ofensa dos bons costumes. Por conseguinte, deverá cancelar-se o registo de aquisição a favor da ré, inscrita pela Ap. nº 57, de 25-01-2006 e condenar-se a ré a restituir a fracção aos autores;
-Subsidiariamente, a declaração de nulidade, ou resolução da mesma doação, com fundamento em usura, indignidade da donatária, ou incapacidade acidental do doador, ordenando-se o cancelamento do registo da aquisição e restituição da fracção, como descrito;
-Subsidiariamente, com fundamento em enriquecimento sem causa, condenar-se a ré a pagar aos autores quantia equivalente ao valor da fracção, a apurar em liquidação de sentença, acrescida de juros à taxa legal;
-Em qualquer caso, condenar-se a ré a restituir aos autores todos os móveis e documentos que integram o recheio da mencionada fracção;
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No curso da audiência de discussão e julgamento, foi requerida e admitida ampliação do pedido nos seguintes termos:
-Condenar-se a ré a restituir aos autores todos os montantes por ela movimentados, das contas bancárias NUC 9-1383772.000.001 e NUC 6-3270225.000.001 do Banco BPI, S. A., desde que passou a ser co-titular das mesmas até ao seu encerramento ou liquidação, acrescida de juros, à taxa legal.
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Foi proferida sentença final que julgou a acção parcialmente procedente e, em consequência:
-Condenou a ré na restituição aos autores dos bens pertencentes a Luís ... ... que, à data da sua morte – 15-01-2010 – constituíam recheio da fracção autónoma designada pela letra "F", correspondente ao 2.° andar esquerdo do prédio urbano em regime de propriedade horizontal sito da Rua ... ... ... ... n.º 16, Quinta do Brigadeiro, freguesia de ..., Concelho do ...;
-Condenou a ré a pagar aos autores a quantia de € 11.295,23 (onze mil duzentos e noventa e cinco euros e vinte e três cêntimos), acrescidos de juros à taxa de 4%, contada desde a citação;
-Absolveu a ré do mais peticionado;
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Não se conformando com a decisão, dela apelaram os  AA. e a R., a qual veio ainda recorrer do despacho que admitiu a ampliação do pedido.
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i) Formularam os AA. as seguintes conclusões:
1.-Luís ... e a apelada celebraram um contrato de doação, ele na posição do doador e ela na posição de donatária, cujo objeto mediato foi a nua propriedade da mencionada fracção predial.
2.-A natureza gratuita do contrato de doação, não exclui que, nos termos do artigo 282º, nº 1, do Código Civil, possa ser qualificado de usurário.
3.-A verificação do vício de usura, envolve três requisitos, designadamente a situação de inferioridade do declarante; a exploração dessa situação de inferioridade pelo declaratário; e a lesão - promessa ou concessão de benefícios excessivos ou injustificados para o declaratário ou para terceiro.
4.-Os fatos provados, diretamente ou por via de presunção baseada nas regras da experiência, revelam a situação de inferioridade do doador devido à sua necessidade e dependência física e psíquica em relação à apelada.
5.-Os fatos provados, diretamente ou por via de presunção baseada nas regras da experiência, revelam a exploração da situação de inferioridade do doador pela apelada, beneficiária do contrato de doação.
6.-Os fatos provados, diretamente ou por via de presunção baseada nas regras da experiência, revelam a concessão à apelada pelo doador de benefício injustificado.
7.-Os fatos provados revelam, outrossim, que o contrato de doação em causa é totalmente desproporcionado, sem qualquer causa que o justifique.
8.-A sentença recorrida, ao decidir que não está provado que, ao tempo da doação, ocorria a situação de necessidade, dependência ou fraqueza por parte do doador integrante do vício da usura, tal como prevista no artigo 282º, nº 1, do Código Civil, violou o disposto naquele normativo.
9.-Em consequência, deve o mencionado segmento da sentença ser revogado e substituído por outro que anule o aludido contrato de doação, ordene o cancelamento no registo predial da aquisição do direito de propriedade sobre a indicada fracção predial e condene a ré a entregá-la aos apelantes.
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ii) Formulou a Ré as seguintes conclusões:
1.-O presente recurso visa a decisão que deferiu a ampliação do pedido formulado pelos apelados, prolatada no dia 11 de Setembro de 2014 (fls. 653 a 656) dos presentes autos e o segmento da sentença de 27 de Junho de 2016 (fls. 1031 a 1050) que condenou a ré a pagar aos autores a quantia de 11 295,23€ (onze mil duzentos e noventa e cinco euros e vinte e três cêntimos), acrescida de juros à taxa legal contados desde a data da citação.
2.-A decisão proferida no dia 11 de Setembro de 2014, já no decurso da audiência de discussão e julgamento, foi a seguinte: “Qualifica-se como alteração do pedido e da causa de pedir o requerimento dos autores, o que se admite por tempestivo, conforme 256º, nº 6, do CPC».
3.-Ora, a apelante não pode conformar-se com esta decisão, designadamente quanto à interpretação que o Tribunal “a quo” faz do art. 265º do CPC, segundo a qual a alteração do pedido e da causa de pedir não exigem “ a superveniência dos factos alegados”.
4.-Pois, com a propositura da acção e dos articulados as partes só podem modificar o pedido e a causa de pedir, após a citação do réu, dado o princípio da estabilidade da instância (art. 260º do CPC), quando haja factos novos, constitutivos do direito dos autores, que têm que ser apresentados em articulado supervenientes nos termos do nº 2, do art. 588º do CPC.
5.-E, segundo o preceituado no art. 265º do CPC, só pode haver modificação simultânea do pedido e da causa de pedir, se isto não implicar a “convolação para relação jurídica diversa da controvertida”
6.-Quando da modificação da causa de pedir e do pedido impliquem factos novos constitutivos do direito do autor, o tribunal só pode atender aos factos supervenientes, em articulado superveniente, sendo este o entendimento da doutrina e a jurisprudência maioritária, v.g. Ac. Rel. do Porto, de 26 de Julho de 2008, relatado por Deolinda Varão e Ac. de Rel. de Coimbra, de 14 de Fevereiro de 2012, relatado por Carlos Gil. In www.dgsi.pt.
7.-Em resumo, mesmo que se considere que os autores podem modificar o pedido e a causa de pedir, até ao encerramento da audiência de discussão da causa, tem sempre que se verificar, se os factos novos alegados podem ou não ser atendidos em articulado superveniente.
8.-No caso dos presentes autos, os recorrentes fundamentaram o seu pedido de ampliação alegando que só através do depoimento da testemunha Salvador da ... e de dois documentos (de fls, 633 e sgs.), datados de 08.03.2006 e 25.03.2010, tiveram conhecimento dos factos aí alegados.
9.-Porém, o doc. de fls, 633 está dirigido aos herdeiros de Susete do Nascimento e de Luís ..., isto é, a todos os recorridos, sendo que a testemunha Salvador da ... é marido da recorrida Maria ... e cunhado e tio de todos os outros, sendo assim o mencionado documento conhecido desde 25.03.2010, data posterior à propositura da acção.
10.-Quanto ao doc. de fls. 635, datado de 08.03.2006, os recorridos não fizeram sequer qualquer prova da data do conhecimento daquele, presumindo-se que apenas tiveram conhecimento na data aposta no documento.
11.-Acontece ainda que não foi feita qualquer prova da superveniência destes documentos.
12.-Nesta conformidade, os factos constantes dos documentos apresentados e a matéria alegada no requerimento de ampliação do pedido, já no decurso da audiência de discussão e julgamento, só poderiam ser admitidos se alegados na petição inicial – 08.03.2006 – ou em articulado superveniente no prazo constante do nº 1, do artigo 588º do C.P.C..
13.-Assim, o requerimento de ampliação do pedido e da causa de pedir, é ilegal por ter ofendido a lei de processo, devendo ter sido indeferido pelo Tribunal “a quo”.
14.-Mas mesmo que assim se não entenda, sempre se dirá que o pedido de condenação da recorrente ao pagamento de € 11.295,23 e os factos que integram a respectiva causa de pedir, configuram uma relação jurídica diversa da indicada e controvertida na petição inicial.
15.-O tribunal “a quo” não tendo indeferido o requerimento dos recorridos visando a ampliação do pedido, violou por errada interpretação e omissão o preceituado nos art.s 5º, 260º, 265º, e 588º do CPC.
Caso assim se não entenda,
16.-A recorrente vem impugnar a decisão da matéria de facto que deu como provados os pontos de facto nºs 41., 48., e parte do ponto 49., da sentença recorrida e os referidos no nº 3, alíneas d), h) e i) da oposição da ré à ampliação do pedido.
17.-O ponto de facto da sentença recorrida nº 41 foi dado como provado com base no depoimento da testemunha Salvador da ... e Luís Patriarca Lúcio (vide fundamentação
dos quesitos 31º, 32º e 33º).
18.-Porém, a testemunha Salvador da ... não presenciou qualquer queda, nem viu Luís ... defecado e urinado, “nem chegou a encontrá-lo caído no chão, com sangue na cara e o corpo gelado”, nem pôde ter verificado que Luís ..., nem ouvia e não reconhecia familiares, conforme declarações de Salvador da ... que quando foi a casa de Luís ... no dia 13 de Janeiro de 2010 e lhe perguntou se tinha dinheiro, Luís ..., ouvindo a pergunta respondeu à testemunha “ Ah não sei, tenho aí parece-me que € 9.000,00 euros (…)” registado sistema de gravação Habilus Media Studio – 326094 – 65147 (1:02:22H)
19.-Ora, se Luís ... nessa data respondeu à testemunha da forma como o fez, significa que ouviu, compreendeu e respondeu de acordo com a pergunta feita, reconhecendo o cunhado/a testemunha.
20.-Quanto ao mais, a testemunha Salvador da ..., a instâncias da mandatária da recorrente, às perguntas sobre como é que teve conhecimento das quedas do Luís ... e deste se encontrar defecado, urinado e ter sofrido nesse período de acidentes vasculares cerebrais, respondeu: “Soube disso porque realmente a D. Maria José é que disse, confessou-me que tinha acontecido” registado sistema de gravação Habilus Media Studio – 326094 – 65147 (51:57m).
21.-Por outro lado, o vizinho Luís P...L... referiu não corresponder à verdade o facto de durante a noite Luís ... ter batido com uma vassoura no tecto e que esta testemunha o vinha ajudar, na sequência desse acto.
22.-A instância da Meritíssima Juiz “a quo”, sobre se Luís ... batia com a vassoura no tecto quando a recorrente não estava durante a noite na sua casa com o objectivo da testemunha o poder ajudar, Luís P...L... respondeu “Não, nunca foi preciso. Nunca me chamou assim fora de hora. Nunca me chamou assim” (…) Não, Não, nunca bateu lá com a vassoura. Quando ele já não estava capaz, ele não tinha capacidade para se pôr em cima da cama (…) ou do sofá e nunca podia chegar ao tecto. Ele nunca fez isso (…)”registado no sistema de gravação Habilus Media Studio ( 29:23h)
23.-Acresce que a prova do acidente vascular cerebral, a incontinência de fezes e o não reconhecimento de familiares exige conhecimentos especiais de medicina, que as testemunhas não demonstraram possuir, sendo, por isso, inidóneas a provar os factos que exigem conhecimentos médicos.
24.-E, não há em todo o processo, nesse período, “fim de 2009, Janeiro de 2010” nenhum documento médico que comprove esses factos, mas há documentos que comprovam que Luís ..., recebeu tratamentos por causa de uma ferida em sua casa desde Novembro de 2009 a Janeiro de 2010, conforme documentos juntos aos autos.
25.-Por outro lado, se considerarmos a matéria constante do ponto 49. dos factos provados, o estado de saúde de Luís ... que, em 10 de Janeiro de 2010, lhe permitiu deslocar-se ao banco, ser atendido por um funcionário, a quem entregou o cheque para receber, como recebeu, a quantia que quis levantar, no caso 800€, como resulta do documento de fls. 987 e 988, não corrobora e até mesmo contraria, segundo as regras da experiência comum, a existência de acidentes vasculares cerebrais, com falta de reconhecimento de familiares e as consequências no impugnado ponto 41. dos factos dados como provados.
26.-Donde, as identificadas declarações de Salvador da ... e de Luís P...L... são manifestamente insuficientes e inidóneas para prova do estado de saúde de Luís ... no período de tempo respeitante a final de 2009 e inicio de 2010, bem como o facto deste ter tido capacidade de apresentar o documento de fls. 987 e 988, tudo visto à luz das regras da experiência comum impõem que o ponto de facto nº 41 seja dado como não provado.
27.-O Tribunal recorrido deu como não provados, os factos alegados pela recorrente, na oposição à ampliação do pedido constantes do nº 3, al. d), e), h) e i) de fls. 651 e 652, porquanto a Senhora Juiz “a quo” não acreditou no depoimento da testemunha ouvida, José M..., porquanto, “ Luís ..., à data mal falava, mal ouvia, tinha dificuldades em reconhecer até os familiares e incontinência de urina e fezes. Dificilmente faria o percurso até à instituição bancária da forma descrita”.
28.-Ora, como consta da informação de fls. 987 e 988, em 11 de Janeiro de 2010 (quatro dias depois de 6 de Janeiro de 2010), Luís deslocou-se ao banco, foi atendido por um funcionário, a quem entregou o cheque para receber, como recebeu, a quantia que quis levantar, no caso 800€.
29.-O mesmo é dizer que, segundo as regras do normal acontecer, se em 11 de Janeiro de 2010, Luís ... estava em condições de se deslocar ao banco, de falar, de ouvir e de reconhecer que estava no banco para levantar dinheiro, com discurso perceptível para com o seu interlocutor perceber que pretendia levantar a quantia de 800€, através de cheque que assinou, também assim o estaria quatro dias antes (dia 6 de Janeiro) data em que acompanhou a recorrente ao banco nos termos descritos pela testemunha.
30.-Inexiste qualquer facto que ateste que, nestes 4 dias, tenha ocorrido evento que o tenha colocado em condições de não ir ao banco na companhia da Ré.
31.-Além de que, a testemunha Salvador da ... confirmou que, no dia 13 de Janeiro de 2010, quando perguntou ao cunhado que dinheiro tinha na conta, este respondeu-lhe “ Ah não sei, tenho aí parece-me que € 9.000,00 euros (…)” registado sistema de gravação Habilus Media Studio – 326094 – 65147 (1:02:22H)
32.-Com esta resposta Luís ... demonstrou saber e disse-o à testemunha, que na conta existiam cerca de 9 000, 00, o que corresponde aos cerca de oito mil euros transferidos para a sua conta no dia 6.1.2010, já descontados os € 800,00 que levantou no dia 11.1.2010, cf. facto dado como provado no ponto 49.
33.-Por outro lado, resulta da informação de fls. 663 que Luís ... declarou: «Autorizo que a Sr.ª. D. Maria José ... ... ..., passe a fazer parte da minha conta….» Com esta declaração, a recorrente ficou autorizada, desde 2003, a proceder ao levantamento das quantias depositadas na conta bancária, segundo o regime das contas solidárias.
34.-Foi vontade de Luís ... em 2010, entregar à recorrente a quantia de € 10.495,23, correspondente à quantia que consta do cheque bancário de fls. 881, subscrito pela ré, tendo sido transferida para a conta nº 9-1383772.000.001, titulada desde a data da abertura, por Luís ... e mulher, a quantia de € 8.991,68, cf. doc. de fls. 880, tendo o saldo no dia 15.10.2010, de € 9.657,40, cf. ponto de facto 43. dado como provado.
35.-Mas ainda que se não acreditasse no depoimento de José M..., nenhuma prova foi feita que a recorrente levantou tal quantia sem conhecimento e autorização, contra a vontade de Luís ...
36.-Pelo contrário, conforme resulta documento de fls. 661, 662 e 663 a recorrente estava autorizada a proceder aos levantamentos que entendesse, sendo que os autores não demonstraram o
contrário, quando o deviam fazer para elidir a presunção da contitularidade das contas solidárias.
37.-Também as declarações de Salvador da ... relativas ao dia 13 de Dezembro de 2009, na parte em que afirma ter perguntado ao cunhado quanto dinheiro tinha e este ter respondido que tinha cerca de € 9.000,00 - sendo esse valor que existia na conta NUC 6- 3270225.000.001, à data da sua morte - (vide depoimento da testemunha Salvador da ... (1:02:21H), demonstram que Luís ... tinha consciência da doação que efectuou à recorrente, no valor de € 10. 495,23.
38.-Desta feita, mesmo que não se acredite na testemunha José M..., quando afirma “ Ele agarra e diz: este cheque que está aqui é para si D. Maria José, porque eu vou para a terra e quero que você me vá lá visitar e se eu não me sentir bem e tiver que me vir embora é para ajudar nas despesas para me trazer (de gravação Habilus Media Studio ( 00.06:04 ) - ainda assim, os autores não demonstraram que a ré se apoderou do dinheiro sem autorização e contra a vontade de Luís ....
39.-Com efeito, os € 10.000,00 constantes do cheque de fls. 881, foram dados à D. Maria José, sem qualquer condição, servindo também esse dinheiro para ela o ir visitar e, caso ele não se sentisse bem lá, serviria também para ajudar nas despesas, para o trazer de volta, e não para a recorrente guardar e usar “em caso de necessidade do seu dono”,tal como a Meritíssima Juiz enuncia na sentença recorrida.
40.-Também os documentos de fls. 333 corroboram que Luís ..., esteve ausente de casa no dia 11 de Janeiro de 2010, por volta das 15 horas, indicando que podia sair de casa, também no dia 6 de Janeiro de 2010, pela forma indicada pela testemunha José M....
41.-Em suma, perante os documentos de fls. 661 a 663, 987 e 988 e 333, conjugados com as declarações da testemunha Salvador da ... e José M..., na parte em que foi credibilizada pelo tribunal, impõem que se tenha como provados os pontos de factos da oposição da ré à ampliação do pedido (fls. 651 e 652 dos autos): nº 3, alíneas d), e), h) e i)., dando-se assim, como provado que o montante de € 10.495,23 foi dado à recorrente pelo Luís ..., não se tendo apoderado aquela do referido montante.
42.-No ponto de facto nº 48, o tribunal recorrido deu como provado, ainda:
“A ré fez seu o valor referido no artigo 6º. (alegações da ré, em contraditório a fls. 652).”
43.-Não obstante não existir nº 6 no contraditório de fls. 652, pode entender-se que o valor a que aqui se alude é o referido no ponto 47., de € 10.495,23, sendo por isso o valor
que se considera nesta parte do recurso.
44.-Em consequência dos argumentos deduzidos para a impugnação dos factos da oposição da ré à ampliação do pedido (fls. 651 e 652 dos autos): nº 3, alíneas d), e), h) e i) deve o ponto de facto nº 48 ser dado como não provado, com o sentido de que a recorrente não se apropriou daquele sem o conhecimento e consentimento de Luís ... ....
45.-O ponto de facto 49, cujo teor é o seguinte:
“ Luís ... fez o levantamento, por cheque, do valor de € 800,00, correspondente à sua pensão de reforma, da Conta NUC 9-1383772.000.001, no dia 11 de Janeiro de 2010, valor que a ré, fez seu.”
46.-Aceitando o primeiro segmento da matéria vertida neste ponto, impugna a recorrente a última parte em que se deu como provado que a ré «fez sua» a quantia de 800 € levantada presencialmente pelo Luís ..., já que a convicção do tribunal baseou-se em ilações e conclusões, sem indicação da prova que, em concreto foi atendida.
47.-Com efeito, nenhuma prova foi produzida no sentido de que foi a recorrente quem acompanhou o Luís ... ao banco no dia 11 de Janeiro de 2010 para proceder ao levantamento da quantia de 800€.
48.-A testemunha José M... não refere em momento algum do seu depoimento que no dia 11 de Janeiro acompanhou o Luís e a recorrente ao banco.
49.-Por outro lado, entre o dia 11 data do levantamento e o dia em que faleceu, passaram-se mais de três dias, em que este foi para casa, depois no dia 14.1.2010 foi para o lar – facto dado como provado 51 e 52), onde, no dia 15.01.2010, acabou por falecer - conforme facto nº 1. dado como provado.
50.-Ora, durante aqueles dias, Luís ... teve visitas de várias pessoas, designadamente de uma enfermeira - conforme doc. nº 331 - do cunhado e da irmã, que o visitaram no dia 13.01.2010 - conforme depoimento de Salvador da ... atrás transcrito em Luís ... lhe respondeu (Ah não sei, tenho aí parece-me que € 9.000,00 euros (…)” (1:02:22) - , bem lhes podendo ter entregue qualquer quantia.
51.-Não é assim manifesto nem decorre de nenhuma regra de experiência comum que a recorrente se tenha apoderado daquela quantia, fazendo-a sua.
52.-Além de que inexistem quaisquer factos indirectos donde se possa retirar o facto conhecido, para que o Tribunal a quo possa
deitar mão de uma presunção, no caso dos presentes autos.
53.-O que impõe que o ponto de facto 49, no segmento “ valor que a ré fez seu” seja dado como não provado.
54.-A doação é um contrato pelo qual uma pessoa por espírito de liberalidade e à custa do seu património, dispõe gratuitamente de uma coisa ou de um direito, ou assume uma obrigação, em benefício de outro contraente (art. 940º do CC).
55.-O contrato de depósito é um contrato pelo qual uma pessoa, denominada depositante, entrega a uma entidade bancária, denominada depositário, uma soma ou montante de dinheiro ou bens móveis de valor, para que, este os guarde e restitua quando o depositário exigir (art. 1185º do CC).
56.-Por outro lado, a doação manual é um contrato pelo qual o doador - podendo ser de forma verbal - entrega um bem móvel ao donatário, que, pela circunstância de receber esse bem e dele tomar posse, revela vontade de aceitar essa liberalidade (947º, nº 2 do CC)
57.-Assim, pode entender-se que a contitularidade de uma conta bancária, colectiva solidária, consubstancia uma doação manual com tradição simbólica, vide (al. b) do art. 1263º do CC.
58.-Quando o doador – Luís ... – autorizou a recorrente a fazer parte da sua conta, podendo movimentá-la como lhe aprouvesse, significou que ele pretendeu dar-lhe, a posse e a propriedade sobre todos os activos monetários que existissem nessa conta.
59.-Pois, se Luís ... chamou a recorrente para titular de uma conta de que era o único titular com disponibilidade monetária exclusiva para que esta tivesse poderes iguais aos seus, queria que esta beneficiasse dos valores aí depositados.
60.-Havia assim, por parte de Luís ... uma clara intenção de doar, através da autorização dada à recorrente de movimentar a sua conta bancária, com os poderes que lhe conferiu (art. 516º do CC).
61.-E, também de acordo com este entendimento da recorrente, nada tem de restituir aos recorridos.
Caso assim se não entenda e sem embargo de se considerar que nada há a restituir, sempre se dirá,
62.-A Meritíssima Juiz “a quo” condenou a recorrente a pagar aos recorridos, também dos juros legais, nos termos do art. 805º do CC, à taxa de 4%, até integral pagamento, contados desde a data da citação.
63.-Ora, salvo o devido respeito por melhor opinião, a serem devidos, os juros devem ser contados desde a data da sentença, pois só foi nessa data que a recorrente tem conhecimento que tem de restituir a quantia a que foi condenada.
64.-Porém e caso também assim se não entenda, devem os juros ser devidos no caso concreto a partir da data da citação da recorrente da questionada ampliação do pedido, caso este não seja considerado ilegal pela apresentação destas alegações, pois foi nesta data que a recorrente teve conhecimento da pretensão dos recorridos.
65.-Ao decidir como decidiu, a Meritíssima Juiz violou, além do mais, as regras de direito probatório, designadamente, o princípio da livre convicção, as do art. 388º do C.C. e .349º do C.C.
66.-Fez, ainda a Meritíssima Juiz, errada interpretação e aplicação o disposto nos artigos 5º, 256º, 260º, 265º, 272º, 273º e 588º do CPC e dos artigos 516º, 805º, 940º, 947º nº 2, al, b) do art. 1263 todos do C.C.
67.-Deverá pois ser dado provimento ao presente recurso, revogando-se o despacho deferindo o requerimento dos recorridos visando a ampliação do pedido, ser substituído por outro indeferindo-o, mas caso assim se não entenda;
68.-Deverá ser dado provimento aos presente recurso revogando-se a sentença recorrida, conforme alegação e conclusões acima expostas.
*

Veio a Ré interpor recurso subordinado, formulando as seguintes conclusões:
1.-Concordando a recorrente com o segmento da douta sentença que decidiu “ …que não ficou provado que ao tempo da doação no ano de 2005, ocorresse situação de necessidade, dependência ou fraqueza por parte do doador que integre, sequer remotamente, a condição de usura, tal como previsto no artigo 282º do Código Civil” pretende a recorrente com o presente recurso, impugnar os pontos de facto, 9., 21., 22., 29., 30., 36., 38 e 41. que no seu entendimento foram incorrectamente julgados com os quais os recorridos pretendem fundamentar o seu recurso para prova da condição de usura, vem, nesta conformidade interpor o presente recurso subordinado, para ser reapreciada essa prova, nos termos dos artigos 640º e 662º, nº 1, do CPC, aditando-se ainda um outro ponto à matéria de facto.
2.-O douto Tribunal “ a quo” deu como provado sob o nº 9 “Antes do falecimento da sua esposa, foi colocado um pacemaker a Luís ..., que sofreu ainda, pelo menos três acidentes vasculares cerebrais, que foram diminuindo a sua mobilidade e causando-lhe, a nível cognitivo, confusão.” com base nos depoimentos de Salvador da ... e Teresa da ... e ainda com base na documentação clínica constante dos autos.
3.-Acontece que as testemunhas Salvador da ... e Teresa da ..., não têm conhecimentos especiais de medicina e por isso são inidóneas para prova desse facto e segundo a documentação clínica constante dos autos, designadamente o Auto de Perícia médica de fls. 539 e do confronto com a declaração médica de fls. 590 dos autos com data de 2006 (mais de quatro anos após a morte da mulher) em que refere que Luís ... naquela data mantinha “integras as suas capacidades cognitivas”, o ponto 9., não poderia ser dado esse ponto como provado com essa redacção.
4.-Assim e como consta da documentação clínica Luís ... sofreu três acidentes vasculares cerebrais durante toda a sua vida: em 27.09.1997, um AVC hemorrágico, que resultou diminuição da força no hemicorpo esquerdo, com marcha possível; outro em Novembro de 1997, com alteração na fala de que recuperou totalmente; e o terceiro e último em Março de 1998, isquémico, diagnosticando-se posteriormente arritmia cardíaca paroxística e por esse motivo foi intervencionado e colocado um pacemaker em 13.05.1999.
5.-Não consta do processo nenhum elemento clínico que refira que
Luís ... em consequência dos acidentes vasculares sofridos ficou confuso, a nível cognitivo, constando sim de fls. 279, que em 1997, estava consciente, orientado e colaborante.
6.-Assim deve o ponto 9. ser dado como provado com a seguinte redacção: Luís ... antes de 2002, teve três acidentes vasculares cerebrais, um em 1997, hemorrágico que resultou diminuição da força no hemicorpo esquerdo, com marcha possível, outro em Novembro de 1997, com alteração na fala de que recuperou totalmente e outro em Março de 1998, isquémico, diagnosticando-se como arritmia cardíaca paroxísitca tendo sido colocado um pacemaker em 1999 que foi substituído no ano de 2009.
7.-O Venerando Tribunal “ a quo” deu também como provado o ponto 21. “ Luís ... tinha medo que a ré deixasse de lhe prestar os seus serviços.” socorrendo-se dos depoimentos das testemunhas Salvador da ..., Vítor B..., Ermelinda B... S... e Teresa da ... (vide fundamentação do quesitos 16º a 19º).
8.-Porém, do depoimento destas testemunhas, não poderia o tribunal “a quo” ter dado como provado este ponto 21., nem directamente, nem por via de presunção baseada nas regras de experiência.
9.-Baseou-se o Tribunal para prova deste facto no depoimento de Salvador da ... que relatou ao Tribunal uma situação ocorrida, em 12 de Julho de 2003 no casamento de uma sobrinha, em que Luís ... sujou o casaco, pediu à irmã que o mandasse limpar para a recorrente não saber que o tinha sujado e pelo facto de Luís ... não querer desgostar a recorrente e ainda por este pedir à testemunha para trazer produtos.
10.-Ora o pedido de Luís ... à irmã podia ter sido feito por qualquer outra razão, vg. por a recorrente não saber limpar o casaco, ou por não querer que ela o estragasse, ou qualquer outra razão e se Luís ... era amigo da recorrente e marido (ponto de facto nº 19. e 20. dados como provados) era normal que quisesse oferecer-lhes presentes, sem ser para, por medo que a recorrente lhe deixasse de prestar os serviços.
11.-Acresce ainda que a data que a testemunha referiu é muito próxima da do período em que a recorrente começou a trabalhar para Luís ... – meses depois da sua mulher falecer – e, por isso não decorre das regras da experiência que ao fim de poucos meses, aquele tivesse receio que a empregada deixasse de trabalhar para ele.
12.-Do depoimento de Vítor B... também não se pode retirar que Luís ... tinha receio que a recorrente deixasse de trabalhar para ele pois referiu, conforme fundamentação da Meritíssima Juiz “a quo” que Luís ... tinha respeito pela recorrente e medo de falar dela, ora, este depoimento é em si mesmo contraditório e contra as regras da experiência, pois quem tem um grande respeito por outra pessoa, não tem medo dela.
13.-E o facto de Luís ... não dizer o nome da recorrente mas empregar o pronome “ela”, só pode querer dizer que era assim que este senhor se referia a Maria José, como se pode inferir do testemunho de Salvador da ... quando relata a circunstância do casaco “para ela não saber”.
14.-E da circunstância relatada dos €50,00 emprestados também, não se pode concluir nem à luz das regras da experiência, nem por presunção que Luís ... não queria que a recorrente soubesse desse facto por ter medo que ela não trabalhasse mais para ele, podendo ser por variadíssimas razões, além de não ter concretizado se esta situação foi antes ou depois da doação.
15.-Quanto à testemunha Ermelinda que referiu que se algo não corresse bem Luís ... fazia o pedido para que a recorrente nada soubesse, não foi concretizado nem as circunstâncias, nem o tempo em que esse pedido ocorreu, não podendo assim fundamentar o facto dado como provado.
16.-E contrariamente, esta testemunha Ermelinda a instâncias da mandatária da recorrente referiu expressamente que a circunstância de que parecia que Luís ... tinha medo de Maria José foi depois da doação, depois de 2005, pois referiu que “ era agora, ultimamente, ultimamente” (403164402 -39:05m a 39:11m).
17.-Quanto à testemunha Teresa da ..., esta também não situou no tempo os acontecimentos que relatou: o vestuário descosido; o temor reverencial; e o facto de Luís ... não querer que a família percebesse que as coisas não estavam bem, não podendo
assim concluir-se que estes factos aconteceram antes da doação.
18.-Mas facilmente se presume, que esses acontecimentos a terem acontecido, foram-no depois da doação, no ano de 2005, pois só assim se pode compreender a expressão, de acordo com a narrativa que consta da p.i. “não querer que a família percebesse que as coisas não estavam bem”.
19.-De salientar, também, que as testemunhas Salvador da ... e Teresa da ..., têm um interesse directo no desfecho da acção: são marido e filha da irmã de Luís ..., ... ..., logo seus herdeiros e por via desse parentesco revelam interesse directo na causa, conforme o declarou em audiência, Salvador da ... quando disse: “Eu até irei fazer tudo para que isto, se o desfecho for a nosso favor, que vá reverter para a sobrinha Paula, se toda a gente estiver de acordo com isso” (registado no sistema de gravação Habilus Media Studio 19:20).
20.-Por outro lado, estas testemunhas, assim como ..., mulher da testemunha Salvador da ..., mãe de Teresa da ... e irmã de Luís ..., não tinham um bom relacionamento, como se pode comprovar pelo que Salvador da ... relatou, sobre a relação de sua mulher com a recorrente “ Não era um relacionamento de ódio. Talvez de indiferença ou qualquer coisa que o valha (…) registado no sistema (18:03m).
21.-Face ao exposto, a Meritíssima Juiz “a quo”, não poderia ter dado como provado este ponto de facto, pois da análise crítica de todos os depoimentos atrás referidos, a sua insuficiência, inconsistência, bem como da sua falta de fundamentação e concretização sobre se essas situações ocorreram antes ou depois da doação, não podia retirar-se essa conclusão, devendo assim, ser alterada essa matéria de facto, dando-se como não provada.
22.-Deu ainda como provado o Tribunal “a quo” o ponto nº 22 “Luís ... estava convicto, por a ré lho ter assegurado, que mediante a doação da casa referida no artigo 3º, a ré cuidaria dele até à morte”, baseando no depoimento de Salvador da ... que referiu que após a doação à recorrente e interrogando-o sobre a razão desta, Luís ... ... respondeu que tanto ela como o marido prometeram que se lhe deixasse a casa tratariam dele até à morte, que ele acreditava que ela ia cumprir e que o marido lhe tinha pedido para cuidar dela e ainda que Luís ... acreditava que ainda podia casar com ela; e de Teresa da ... que relatou que o tio se tinha afeiçoado a Maria José e até tinha a fantasia de se casar com ela; e no depoimento de Ermelinda B... S... que relatou que ele gostava da Maria José com outras intenções, estava muito envolvido emocionalmente e tinha esperança de casar com ela e que esta testemunha declarou que ouviu Luís ... dizer à Maria José que se ela o tratasse bem até ao fim ficava com a casa.
23.-Porém, dos testemunhos de Salvador da ... e Teresa da ... não podia o referido ponto ser dado como provado, pois além destes testemunhos não fazerem qualquer sentido, contrariam as regras de experiência comum como até a contrariam, não se adequam, sendo até infundamentadas e gratuitas, conforme se comprova pelas razões explanadas na parte expositiva destas alegações e das transcrições das passagens do depoimento de Salvador da ... – (…) porque é que fizeste aquilo? Porque fizeste aquilo? Porque é que desgraçaste a tua vida. Qual foi a ideia? Então ele disse-me que a Maria José e o marido lhe prometeram que se lhe deixasse a casa, ou os bens, não sei qual foi a expressão, que tratariam dele até à morte (min. 19:33m) (…) (Eu confrontei-o: Mas porque é que fizeste isso? Tu tens segurança que ele vai tratar de ti até ao fim? Ninguém tem essa segurança.(…) E ele disse assim: Eu acho que ela vai mas até casar comigo, diz-me ele. Casar contigo? Mas depois disse-lhe assim: Mas mesmo que ela case contigo agora, ora achas que ela, mesmo casando contigo ela te vai tratar de ti, no estado em que tu estás? (registado no sistema de gravação Habilus Media Studio 625102641 - 23:18m a 24:05m) (…) “Mas o certo é que ele diz-me, quando eu vou começar a confrontá-lo com o erro que tinha cometido, ele diz-me que a D. Maria José é boa pessoa e vai tratar de mim. Mas até ainda nem excluí a ideia de
ela casar comigo. E eu digo assim, estás muito enganado. Quer ela case contigo, quer não case – eu fui duro para ele - quer case contigo, quer não case, ela não vai tratar de ti! (registado no sistema de gravação Habilus Media Studio 625102641 - 26:47m a 27:00m).
24.-Acontece ainda a declaração da testemunha Ermelinda da C... S... que “ouviu o Luís ... dizer à Maria José “se você me tratar bem até ao fim fica com a casa” foi prestada no âmbito de um inquérito criminal, não em audiência de julgamento, não tendo havido contraditório e nunca essa testemunha em julgamento referiu nos presentes autos, essa materialidade, desconhecendo-se em que circunstâncias de tempo, se foi antes ou depois da doação, local e contexto, a referida testemunha pretensamente ouviu essa afirmação, não constando do seu depoimento gravado, não podendo assim fundamentar a matéria de facto do ponto 22., por violação do disposto no art. 421º do Cod. Proc. Civil.
25.-Por outro lado os depoimentos das testemunhas Salvador da ..., Teresa ... e Ermelinda Silva, que serviram de base para a fundamentação da Meritíssima Juiz “a quo” do impugnado ponto 22. estão em contradição com os depoimentos das testemunhas António L..., Felizarda L... e S... ..., que não foram tidos em conta pelo Tribunal, mas sem nunca terem sido descredibilizados.
26.-Todas estas três testemunhas, testemunharam no sentido que Luís ..., homem determinado e que ninguém lhe impunha qualquer decisão, doou a casa a Maria José, não porque esta lhe tenha prometido alguma coisa, designadamente que trataria dele até à morte se lhe deixasse a casa, mas sim, porque quis, porque esta o tratava bem, gostava dela, os familiares após a morte da mulher não o iam ver, não o ajudavam e porque a recorrente e marido “foram a família dele”
27.-Atente-se nas passagens transcritas nas partes expositivas deste recurso: no depoimento de António L... – 7:40m, 08:08m, 8:12m - no depoimento de Felizarda L... – 10:28m, 11:24m, 39:48m, 40:10m – e, ainda, no depoimento de Silvina R... – 9:41m a 11:32m, que constam da parte expositiva deste recurso.
28.-Em suma, também da análise crítica de todos estes depoimentos – de pessoas que conviviam quase diariamente com Luís ... - marido e mulher vizinhos há mais de 30 anos e que sempre o ajudaram e estimaram e uma pessoa que trabalhou na sua casa, durante mais de quatro anos – conclui-se, também, que o ponto nº 22, devia ser dado como não provado.
29.-O Tribunal deu como provado o ponto de facto 29., “Luís ... tinha consultas periódicas no Hospital ... de Orta, em Almada, por carecer de assistência médica constante em virtude dos acidentes vasculares cerebrais” baseando-se nos depoimentos de Salvador da ... e Teresa ..., além da documentação clínica constante do processo.
30.-Porém, esta matéria não poderia ser dada como provada pois tanto Salvador da
... como Teresa da ... não têm conhecimento de medicina e por isso são inidóneas para prova dos factos que exigem esses conhecimentos e ainda por estas testemunhas terem interesse directo no desfecho dos presentes autos.
31.-Por outro lado, da documentação clínica junta aos autos, mormente o que consta de fls. 269 a 289 e 269 a 343 e ainda do AUTO DE PERÍCIA MÉDICA de fls. 539, conforme impugnação do ponto 9. deste recurso, Luís ... teve o último dos acidentes vasculares cerebrais no mês de Março de ano de 1998, antes da esposa falecer, “.Não tendo sido descritos então mais AVC.”
32.-E de acordo com os mencionados documentos clínicos e os autos de perícia identificado, as consultas no Hospital ... de Orta, em que Luís ..., após o ano de 1999, esteve presente, foram: - em 2004, por causa de cálculos renais; em Abril de 2007 esteve internado por causa de uma infecção no pé direito (cf. fls. 512 dos autos) e em 31 de
Julho de 2009, em que lhe foi substituído pacemaker, ao fim de dez anos (fls. 286 dos autos).
33.-Assim, como consequência óbvia, a matéria dada como provada, deveria ter a seguinte redacção:
Ponto 29. - Após 1999, Luís ... teve consultas de Urologia no Hospital ... de Orta, em Abril de 2007 e em 2009, foi submetido à substituição do pacemaker e posteriormente esteve internado, nesse hospital, de 24 a 30 de Abril de 2007, por causa de uma infecção no pé direito (eripsela e abcesso) e no dia 31 de Julho de 2009, foi submetido à substituição do pacemaker, 10 anos depois de ter sido colocado pela 1ª vez.
34.-O Tribunal “a quo” deu também como provado o ponto 30. “ A ré não levava o autor à consulta no Hospital ... de Orta, ou ao Centro de saúde”.
35.-No entanto a Meritíssima Juiz “a quo” na fundamentação a este ponto de facto,
referiu expressamente que tanto a testemunha Ermelinda S..., como a testemunha Teresa
da ... relataram ao Tribunal que a recorrente telefonava aos familiares para este levarem
Luís ... às consultas (vide fundamentação do quesito 22, a fls. 1039).
36.-Ora da conjugação desses dois depoimentos, conforme fundamentação do Tribunal, resulta que o ponto de facto 30. dado como provado, deve ser complementado com a apostilha “ mas telefonava aos familiares para o levarem”, devendo o ponto de facto ficar com a seguinte redacção:
Ponto 30. A ré não levava Luís ... à consulta no Hospital ... de Orta ou ao centro de saúde, mas telefonava aos familiares para o levarem.
37.-Foi ainda dado como provado o ponto de facto nº 36 “A R. não ministrava a medicação a Luís ..., apesar de saber que não podia deixar de tomá-los, nem ficava lá em casa durante a noite”, tendo por base a Meritíssima Juiz “a quo” o depoimento de Salvador da ....
38.-Porém do depoimento de Salvador da ... não se pode concluir este facto de forma positiva, mas sim de forma negativa, conforme se pode verificar pela transcrição da passagem do seu depoimento na parte expositiva desta alegação – 41:49m a 41:22m - A minha mulher pergunta à D. Maria José, então mas… perguntou-lhe se ela, realmente, ela lhe dava os medicamentos e se ele os tomava e ela respondeu que sim que ele os tomava. (…) E a minha mulher disse, então que ele não estava em condições, ele não está em condições de escolher e de tomar os comprimidos. E ela respondeu-lhe assim: ponha-los à frente a ver se ele não os toma. E saiu para a cozinha”, pois a resposta dada por Maria José à mulher da testemunha, ... ..., segundo a lógica e à luz das regras da experiência é que Luís ... tinha capacidade de conhecer os medicamentos e ela dava-lhos e ele tomava-os.
39.-E ao interpretar-se a resposta da recorrente à mulher de Salvador da ..., ... ..., deve ter-se em atenção a circunstância de como referiu esta testemunha, a relação entre essas senhoras não era uma boa relação, vg. o seu depoimento neste sentido “ A partir daí não sei se o relacionamento … quer dizer não era um relacionamento de ódio. Talvez de indiferença ou qualquer coisa que o valha …” (17:20m a 17:23m).
40.-Por outro lado, tanto o testemunho de Salvador da ..., quando referiu que ao perguntar a Luís ..., dias antes da morte –
– 13.1.2010 – quanto dinheiro possuía e este lhe respondeu assertivamente (Ah não sei, tenho aí parece-me que € 9.000,00 euros (…) 1:02.22h), como o testemunho de António Lúcio “De cabeça estava lúcido, de memória, de respostas. Ele esteve sempre lúcido” (20:50m), que referiu que Luís ... esteve até aos últimos dias lúcidos, relevam segundo as regras de experiência e da presunção significa que ele tinha capacidade para tomar ou pedir que lhe dessem esses medicamentos.
41.-Quanto à expressão constante do ponto de facto nº 36 “…nem ficava lá em casa durante a noite”, a Meritíssima Juiz “a quo” não a fundamentou.
42.-Porém, esta parte do facto foi contrariado, tanto pelo depoimento da testemunha Salvador da ... que relatou que foi lá “à noitinha” (14:17m) e a D. Maria José estava lá no dia 13.1.2010, bem como do depoimento da testemunha António L... que referiu textualmente que “ Claro que naquela fase dele estar pior dos problemas de saúde é que ela ficou lá algumas noites” (33.43m) e ainda do testemunho de Felizarda L... que corroborou esta circunstância conforme transcrição que consta do seu depoimento “Ela vinha, ela dormia lá algumas noites (…) Como é que sei? ela dava notícia e ela dizia esta noite fico lá (…) chamava e ela ia e às vezes chamava o meu marido, às vezes duas horas da noite e foi chamar o meu marido, ajudem-me lá a levá-lo à casa de banho” (16:18m).
43.-Face ao exposto, o ponto 36. deve ser como provado com a redacção: Ponto 36. A R. nos últimos dias de vida de Luís ... ministrou-lhe a medicação e ficou lá em casa durante a noite.
44.-Foi também dado como provado o ponto 37. “Luís ... pernoitava sozinho”, fundamentado com base no testemunho de Vítor S... que relatou que Luís ... ficava sozinho à noite.
45.-De facto todas as testemunhas depuseram no sentido de Luís ... pernoitar sozinho até dias antes de falecer. Mas, relativamente a este facto, veja-se o depoimento da testemunha Vítor S... que quando se perguntou se ele sabia se à noite ficava sozinho, e a testemunha respondeu: “Creio que sim” e depois da pergunta sobre se tinha a certeza disso
referiu “Eu não estava lá para saber” e posteriormente quando lhe foi perguntado se a recorrente ficava lá à noite ele respondeu “ Não. A Maria José não ficava” e se sabia quantas
horas a D. Maria José ficava lá durante o dia, respondeu “Não sei.” (20140403161757 – 326094 – 65147 – (13:39).
46.-Ora, deste testemunho não pode retirar-se que a testemunha soubesse que a recorrente não ficava lá em casa de Luís ... à noite nos seus últimos dias de vida, pois o seu testemunho foi contraditório, sem qualquer razão de ciência, demonstrando não ter conhecimento desses factos.
47.-De resto, o depoimento desta testemunha foi sempre pautado por uma grande agressividade e raiva relativamente à recorrente, mostrando-se agastado com as perguntas que lhe eram feitas, vg. quando referiu que “Não digo, mais além … não vou senão levanto-me e vou-me embora” (16:56m).
48.-Acontece ainda que as únicas testemunhas que todos os dias estavam tanto com Maria José como com Luís ..., eram os vizinhos, que inclusivamente tinham a chave de casa de Luís ... e conforme os argumentos deduzidos relativamente ao ponto nº 36, designadamente o da testemunha Salvador da ... que referiu que dias antes de Luís ... falecer foi lá à noitinha e a recorrente estava lá e conjugando com os testemunhos de António e Felizarda L..., deve o ponto de facto nº 37 ser dado provado, mas com a seguinte redacção:
Ponto 37. Luís ..., nos dias anteriores ao seu falecimento não pernoitou sozinho, tendo a ré ficado lá em casa algumas noites.
49.-Foi ainda dado como provado o ponto 41 “No final do ano de 2009 e inicio de Janeiro de 2010, Luís ..., sozinho em casa, sofreu acidente vascular cerebral, quedas, deixou de conter as fezes e de ouvir e reconhecer familiares”
50.-O ponto de facto da sentença recorrida nº 41 foi dado como provado com base no depoimento da testemunha Salvador da ... e Luís P...L... (vide fundamentação dos quesitos 31º, 32º e 33º).
51.-Porém, a testemunha Salvador da ... não presenciou qualquer queda, nem viu Luís ... defecado e urinado, “nem chegou a encontrá-lo caído no chão, com sangue na cara e o corpo gelado”, nem pôde ter verificado que Luís ..., nem ouvia e não reconhecia familiares, conforme declarações de Salvador da ... que quando foi a casa de Luís ... no dia 13 de Janeiro de 2010 e lhe perguntou se tinha dinheiro, Luís ..., ouvindo a pergunta respondeu à testemunha “ Ah não sei, tenho aí parece-me que € 9.000,00 euros (…)” registado sistema de gravação Habilus Media Studio – 326094 – 65147 (1:02:22H)
52.-Ora, se Luís ... nessa data respondeu à testemunha da forma como o fez, significa que ouviu, compreendeu e respondeu de acordo com a pergunta feita, reconhecendo o cunhado/a testemunha.
53.-Quanto ao mais, a testemunha Salvador da ..., a instâncias da mandatária da recorrente, às perguntas sobre como é que teve conhecimento das quedas do Luís ... e
deste se encontrar defecado, urinado e ter sofrido nesse período de acidentes vasculares cerebrais, respondeu: “Soube disso porque realmente a D. Maria José é que disse, confessou-me que tinha acontecido” registado sistema de gravação Habilus Media Studio – 326094 – 65147 (51:57m).
54.-Por outro lado, o vizinho Luís P...L... referiu não corresponder à verdade o facto de durante a noite Luís ... ter batido com uma vassoura no tecto e que esta testemunha o vinha ajudar, na sequência desse acto.
55.-A instância da Meritíssima Juiz “a quo”, sobre se Luís ... batia com a vassoura no tecto quando a recorrente não estava durante a noite na sua casa com o objectivo da testemunha o poder ajudar, Luís P...L... respondeu “Não, nunca foi preciso. Nunca me chamou assim fora de hora. Nunca me chamou assim” (…) Não, Não, nunca bateu lá com a vassoura. Quando ele já não estava capaz, ele não tinha capacidade para se pôr em cima da cama (…) ou do sofá e nunca podia chegar ao tecto. Ele nunca fez isso (…)” registado no sistema de gravação Habilus Media Studio ( 29:23h)
56.-Acresce que a prova do acidente vascular cerebral, a incontinência de fezes e o não reconhecimento de familiares exige conhecimentos especiais de medicina, que as testemunhas não demonstraram possuir, sendo, por isso, inidóneas a provar os factos que exigem conhecimentos médicos.
57.-E, não há em todo o processo, nesse período, “fim de 2009, Janeiro de 2010” nenhum documento médico que comprove esses factos, mas há documentos que comprovam que Luís ... recebeu tratamentos por causa de uma ferida em sua casa desde Novembro de 2009 a Janeiro de 2010, conforme documentos juntos aos autos.
58.-Por outro lado, se considerarmos a matéria constante do ponto 49. dos factos provados, o estado de saúde de Luís ... que, em 10 de Janeiro de 2010, lhe permitiu deslocar-se ao banco, ser atendido por um funcionário, a quem entregou o cheque para receber, como recebeu, a quantia que quis levantar, no caso 800€, como resulta do documento de fls. 987 e 988, não corrobora e até mesmo contraria, segundo as regras da experiência comum, a existência de acidentes vasculares cerebrais, com falta de reconhecimento de familiares e as consequências no impugnado ponto 41. dos factos dados como provados.
59.-Donde, as identificadas declarações de Salvador da ... e de Luís P...L... são manifestamente insuficientes e inidóneas para prova do estado de saúde de Luís ... no período de tempo respeitante a final de 2009 e início de 2010, bem como o facto de este ter tido capacidade de apresentar o documento de fls. 987 e 988, tudo visto à luz das regras da experiência comum impõem que o ponto de facto nº 41 seja dado como não provado.
60.-Acontece ainda que conforme fundamentação do quesito 20. a Meritíssima Juiz “a quo” referiu que pela Declaração Médica emitida pela Dr.ª Esmeralda A... (fls. 540) no dia 24.4.2006, bem como pelo depoimento desta médica em audiência de julgamento, Luís ..., de 79 anos de idade, “ se encontra na posse das suas capacidades cognitivas”.
61.-Ora, nesta conformidade, ficou provado tanto pelo documento constante do processo, como pelo depoimento daquela médica, devendo, assim, ser aditado um outro ponto de facto, como provado, com a seguinte redacção:
“Luís ... no ano de 2006, à data com 79 anos, mantinha íntegras as suas faculdades cognitivas”
62.-Em resumo, a Meritíssima Juiz “a quo”, no modesto entendimento da recorrente, incorreu em erro de julgamento no que concerne aos pontos de facto 9, 21,22, 29, 30, 36, 38 e 41, bem como a não inclusão da matéria referida no nº 61, destas conclusões, violando assim, o principio da livre apreciação da prova, plasmado no nº 5, do art. 607º do C.P.C., erro esse que se requer sejam corrigidos, com a modificação da decisão sobre a matéria de facto nos termos concretamente impugnados.
63.-Alterada a decisão sobre a matéria de facto, reforçada fica a falta de razão dos recorrentes do recurso principal, no que toca à revogação do segmento da sentença recorrida que absolveu a ré do pedido subsidiário, da anulação do contrato de doação, com base no vício de usura previsto no artigo 282º, nº 2, do C.C..
64.-Considera a recorrente, que apesar da alteração da matéria de facto aqui requerida deve manter-se aquele segmento da decisão que concluiu pela validade da doação da nua propriedade do imóvel à ora recorrente, improcedendo, além do mais, o pedido subsidiário, com base no vício de usura preceituado no art. 282º, nº 1, do C.C., uma vez que a alteração agora reclamada e caso venha a ser reconhecida não tem como consequência a alteração daquele segmento da sentença, impedindo, sim, a apreciação do recurso dos autores.
*

Foram apresentadas contra-alegações.
*

Questões a decidir:
Sendo o objecto do recurso balizado pelas conclusões do apelante, nos termos preceituados pelos artigos 635º, nº 4, e 639º, nº 1, do CPC, as questões a decidir são:

i)-No recurso da sentença interposto pelos AA.: importa aferir se o contrato de doação é um negócio usurário.

ii)-Recurso interposto pela R.:
a) Da decisão de 11.09.2014 que deferiu a ampliação do pedido: a falta de verificação dos pressupostos para a ampliação.

b) Da sentença no segmento em que condenou a R.: Impugnação da matéria de facto ( factos 41º, 48º e o segmento final do facto 49; nº 3, d), e), h) e i) da oposição da Ré à ampliação); O mérito da decisão, designadamente desde quanto são devidos os juros de mora.

iii)-Recurso subordinado interposto pela R.
a) Impugnação da matéria de facto: 9º, 21º, 22º, 29º, 30º, 36º, 38º, 41º
b) Aditamento de um facto.
*

Considerando que o recurso subordinado contém impugnação da matéria de facto, inexistindo obstáculos ao conhecimento do recurso principal, começar-se-á pela questão posta pelo recurso subordinado.
De facto, o conhecimento dos factos apurados, em que assenta o recurso principal (que não impugna a matéria de facto) carecem de sedimentação.[1]
Por identidade de razões, que se prendem com a necessidade de fixar a matéria factual, conhecer-se-á com precedência, do recurso interposto pela R. do segmento da sentença que lhe foi desfavorável.
*

FUNDAMENTAÇÃO DE FACTO
A SENTENÇA RECORRIDA CONSIDEROU COMO PROVADA A SEGUINTE FACTUALIDADE:

1.-Luís ... ... faleceu no dia 15 de Janeiro de 2010, com 83 anos de idade, no estado civil de viúvo de Susete D... do N... ..., com quem foi casado.
2.-Luís ... ..., natural da freguesia de Meda de Mouros, concelho de Tábua, faleceu sem descendentes, sendo José ... ..., João ..., Marino ... ..., Maria ... ... ... ..., e Maria Célia ... ... ..., irmãos dele, e Maria Margarida ... ..., única filha da falecida irmã dele, Albertina ... de Jesus, os únicos herdeiros de Luís ... ... - doc. de fls.26 e segs..
3.-A propriedade da fracção autónoma designada pela letra "F", correspondente ao 2.° andar esquerdo do prédio urbano em regime de propriedade horizontal sito da Rua ... ... ... ... n.º 16, Quinta do Brigadeiro, freguesia de ..., Concelho do ..., descrito na Conservatória do Registo Predial de ... sob o n.º1002 e inscrito na respectiva matriz sob o artigo 1137.°, encontra-se registada pela Ap.57 de 2006/01/25 a favor da R., sendo a causa da aquisição Doação e constando do registo predial como sujeito passivo Luís ... ..., a favor do qual está registado usufruto, pela Ap.57 de 2006/01/25, sendo a causa Reserva em doação - doe. de fls.55 e segs..
4.-A identificada fracção autónoma é constituída por um apartamento com quatro casas assoalhadas, uma cozinha, uma casa de banho, e duas varandas fechadas (mesmo documento).
5.-O recheio da referida fracção predial é constituído por: A) MÓVEIS DE COZINHA (1.Um frigorífico; 2.Uma máquina de lavar roupa. 3.Uma mesa de cozinha; 4. Um fogão; 5. Um esquentador; 6. Louças de cozinha; 7. Objectos de adorno; 8. Uma televisão); B) MÓVEIS NA SALA DE JANTAR (9. Mesa rectangular; 10. Serviço de jantar; 11. Serviço de café; 12. Serviço de chá; 13. Várias louças e vidros; 14. Colecção de taças de louça chinesa tipo bago de arroz; 15. Seis cadeiras; 16. Um louceiro; 17. Um candeeiro de tecto; 18.Dois castiçais; 19.Carro de chá; 20. Uma garrafa de whisky de 4.5l de marca “Dew Hard”; 21. Várias garrafas de whisky; 22. Várias garrafas de licores); C) MÓVEIS NO HALL DE ENTRADA (23.Um guarda-roupas de casa; 24. Uma sapateira grande; 25. Um solitário tipo antigo; 26.Um candeeiro. 27. Uma colecção de jarras chinesas.) D) MÓVEIS DE QUARTO (28.Uma cama de casal de madeira; 29. Um roupeiro; 30.Uma cómoda.; 31. Duas mesinhas de cabeceira; 32. Dois candeeiros de mesinha de cabeceira; 33. Um receptor de rádio de cabeceira.); E) MÓVEIS DO SEGUNDO QUARTO (34.Cama de ferro individual. 35.Estante com livros; 36.Arca de roupa de madeira. 37.Duas malas de viagem.); F) MÓVEIS DA SALA DE ESTAR (38.Dois maples individuais; 39.Um maple colectivo; 40.Uma mesa de televisão. 41.Uma mesa de centro; 42.Uma televisão; 43. Um aquecedor a óleo.); G) MOVEL DE VARANDA (44. Uma máquina de costura; 45.Um ferro eléctrico de passar); H) DOCUMENTOS E VALORES (46. Cheques; 48. Fotografias avulsas; 49. Álbum de fotografias; 50. Objectos pessoais; 51. Roupas e calçado; 52. Documentos relativos aos contratos de fornecimento de água, gás, energia eléctrica, do serviço telefónico e da televisão; 53. Documentos clínicos; 54. Medicamentos.
6.-Luís ... ... foi durante vários anos funcionário de uma companhia de navegação portuguesa, exercendo as funções de conferente de bordo, a bordo de vários navios, nomeadamente no "Príncipe Perfeito".
7.-Reformado na sequência da extinção da companhia de navegação de que era empregado, Luís ... ... foi trabalhar para uma fábrica de óleo de soja, em Alhandra, onde desempenhou a função de fiel de armazém.
8.-O casal Luís e Susete mantinha com o casal ... e Salvador Nunes da ..., uma relação de muita amizade.
9.-Antes do falecimento da sua esposa, foi colocado um pacemaker a Luís ..., que sofreu ainda, pelo menos três acidentes vasculares cerebrais, que foram sucessivamente diminuindo a sua mobilidade e causando-lhe, a nível cognitivo, confusão.
10.-Susete ... faleceu a 24 de Junho de 2002.
11.-A morte da mulher Susete provocou em Luís ... ... um enorme desgosto, chorando frequentemente.
12.-Após a morte da mulher de Luís ..., ..., Albertina, João, Maria Célia e Marino ofereceram-se para cuidarem de Luís ... ..., como ele entendesse, sem contrapartida, incluindo que podia ir para o lar da Santa Casa da Misericórdia de Arganil.
13.-O que Luís ... ... recusou, afirmando que podia continuar na própria casa, pagando a uma mulher a dia que lhe fizesse os trabalhos referidos no artigo 14º.
14.-João T..., amigo íntimo e colega de trabalho de Luís ... ..., comprometeu-se a arranjar-lhe uma mulher-a-dias, para lhe fazer a comida, lavar a loiça, tratar da roupa e limpar a casa.
15.-João T... falou com a R. para ir trabalhar para casa de Luís ... ..., o que aquela aceitou, nomeadamente para lhe fazer a comida, lavar a loiça, tratar da roupa e limpar a casa por €250,00 mensais, acrescidos de subsídios de férias e de Natal.
16.-Luís ... e a ré acordaram, que as tarefas referidas no artigo 11º eram desempenhadas durante duas horas por dia, de segunda a sábado e que a ré deixava a Luís ... a comida feita para o jantar, só voltando no dia seguinte, por volta das 11h00.
17.-Pelo menos até Agosto de 2005, Luís ... ... instalava-se durante o mês de Agosto em Meda de Mouros, em casa do irmão João, tomando lá com ele as refeições, e tratando-lhe aquele da roupa, sem qualquer contrapartida.
18.-Habitualmente, antes do regresso à ..., Luís ... ... pedia para o levarem a Arganil para comprar queijos, partes de presuntos e outros produtos, para oferecer à R. e ao marido José Manuel da C... ....
19.-A R. e o marido ofereciam-se por vezes para levarem Luís ... ... a passear de carro a vários sítios, incluindo à aldeia natal.
20.-A R. e o marido nutriam amizade para com Luís ... ....
21.-Luís ... ... tinha medo que a R. deixasse de lhe prestar os seus serviços.
22.-Luís ... estava convicto, por a ré lho ter assegurado, que mediante a doação da casa referida no artigo 3º, a ré cuidaria dele até à morte.
23.-No dia 11 de Agosto de 2005, Luís ... ... outorgou com a requerida, no Cartório Notarial do ..., a escritura de doação da sua propriedade da fracção predial referida no artigo 3º - doc. fls. 69 e segs., cujo teor se dá por reproduzido.
24.-Luís ... ... ia mensalmente da ... à Cruz de Pau, ao Banco, para receber a pensão de reforma, por vezes ia em transportes públicos onde não conseguia subir sozinho.
25.-A pensão de Luís ... ... era de cerca de €750,00, sendo à data do seu falecimento de € 800,00.
26.-Luís ... ... tinha dificuldade em descer e subir as escadas do prédio onde morava, no 2° andar, em consequência da idade e do agravamento de doença.
27.-Luís ... tinha dificuldade em deslocar-se, arrastava a perna, tinha dores e incontinência urinária e fazia, ainda assim, pelo menos parte das suas compras.
28.-Luís ... ... estava afectado de uma hérnia inguinal, com grande volume, e tinha que tomar diariamente três tipos de comprimidos, designadamente para a circulação do sangue, diurético e outro para controlar o inchaço da perna.
29.-Luís ... ... tinha consultas periódicas no Hospital ... de Orta, em Almada, por carecer de assistência médica constante em virtude dos acidentes vasculares cerebrais.
30.-A ré não levava o autor à consulta no Hospital ... de Orta, ou ao Centro de Saúde de ....
31.-Em data não concretamente apurada, a ré convenceu Luís ... a ficar num lar durante 1 mês e 3 semanas, para tratar uma úlcera numa perna.
32.-Posteriormente, ainda no decurso do ano de 2008, ao fim da tarde e a pedido de Luís ... ..., a irmã ... levou-o ao hospital, e quando a pedido dos médicos ele se despiu, verificou que ele estava todo urinado, tinha enormes unhas das mãos, usava umas cuecas presas com um alfinete.
33.-Luís ... ... ficou internado no hospital durante oito dias.
34.-Quando Luís ... ... teve alta, a irmã ... levou-o para casa e a R. não foi vê-lo nessa altura.
35.-A R. nunca telefonou a ... para saber do estado de saúde de Luís ... ....
36.-A R. não ministrava a medicação a Luís ... ..., apesar de saber que não podia deixar de tomá-los, nem ficava lá em casa durante a noite.
37.-A R. disse à irmã ... que Luís ... ... sempre tomara os Medicamentos.
38.-Luís ... ... pernoitava sozinho.
39.-No fim do ano de 2009, a R. comunicou por telefone a Salvador N... da ... que Luís ... ... já não poderia estar sozinho, e que ela não podia tomar conta dele, que a pensão dele não chegava para pagar o lar do genro dela (António ... Soares), e que ela já tinha convencido Luís ... ... a ir para o lar de Arganil.
40.-Uns dias depois do dia de Natal de 2009, quando a R. chegou a casa de Luís ... ... pela manhã, deparou com ele caído no chão, já frio, com baba e sangue na cara.
41.-No final do ano de 2009 e início de Janeiro de 2010, Luís ..., sozinho em casa, sofreu acidente vascular cerebral, quedas, deixou de conter as fezes e de ouvir e reconhecer os familiares.
42.-Luís ... ... era titular das contas bancárias de NUC 9-1383772.000.001 e NUC 6-3270225.000.001, no Banco BPI, S. A., balcão da .... (Ofício do BPI a fls. 633)
43.-No dia 15-01-2010, a conta de NUC 9-1383772.000.001 tinha o saldo de € 9.657,40 e a conta de NUC 6-3270225.000.001 tinha o saldo de € 0,00. (Ofício do BPI a fls. 633)
44.-A conta NUC 9-1383772.000.001 foi titulada desde a data de abertura, por Luís ... e Susete D...N... .... (ofício do Banco BPI a fls. 661 e ficha de abertura de conta a fls. 664, 665)
45.-A conta NUC 6-3270225.000.001 foi titulada por Luís ... e após 18-12-2003, também por Maria José ... ... ..., com condições de movimentação solidária, na sequência de autorização do primeiro titular. (ofício do Banco BPI a fls. 661 e formulário de alteração de contrato a fls. 662, 663)
46.-Pelo menos após 8 de Março de 2006, a correspondência relativa à conta de NUC 6-3270225.000.001 era remetida para Maria José ... ... ..., Rua D. B... Saraiva C..., nº ..., ...º Esq., 2845-000 .... (extracto do BPI datado de 8 de Março de 2006, a fls. 635)
47.-No dia 6 de Janeiro de 2010, Maria José ... ... ... procedeu ao levantamento de € 10.495,23 da conta de NUC 6-3270225.000.001, por cheque bancário emitido por ordem da própria. (cheque bancário a fls. 881, subscrito pela ré).
48.-A ré fez seu o valor referido no artigo 6º. (alegações da ré, em contraditório, a fls. 652)
49.-Luís ... fez o levantamento, por cheque, do valor de € 800,00, correspondente à sua pensão de reforma, da conta de NUC 9-1383772.000.001, no dia 11 de Janeiro de 2010, valor que a ré fez seu.
50.-... e Salvador da ... inscreveram Luís ... ... para entrar no lar da Santa Casa da Misericórdia de Arganil, com urgência, tendo surgido uma vaga, para entrar no dia 18 de Janeiro de 2010.
51.-Por volta das 09 horas do dia 14 de Janeiro de 2010, Salvador da ... telefonou à R. para saber como Luís ... ... estava, informando a R. que do lar de Arganil tinham posto reticências à entrada imediata, dado o estado de absoluta dependência de outrem em que ele se encontrava, e dizendo-lhe para o levar para o hospital.
52.-Cerca das onze horas desse dia, Salvador da ... voltou a ligar para a R., altura em que ela informou que Luís ... ... já se encontrava internado no lar do genro dela (a testemunha António ... Soares).
53.-No dia seguinte, cerca das nove horas, do referido lar comunicaram para casa da irmã ... que Luís ... ... tinha falecido de noite no lar.
54.-... ... contratou o funeral com a agência Centro Sul para o cemitério de Meda de Mouros, que se realizou em 16 de Janeiro de 2010, tendo aquela efectuado o pagamento das respectivas despesas à agência.
55. A R. não foi ao funeral de Luís ... ....
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FUNDAMENTAÇÃO DE DIREITO

i) Recurso subordinado interposto pela R.
a)Impugnação da matéria de facto: 9º, 21º, 22º, 29º, 30º, 36º, 38º, 41º

Nos termos do Artigo 640º, nº 1, do Código de Processo Civil, quando seja impugnada a decisão sobre a matéria de facto, deve o recorrente obrigatoriamente especificar, sob pena de rejeição: a) Os concretos pontos de facto que considera incorrectamente julgados; b) Os concretos meios probatórios, constantes do processo ou de registo ou gravação nele realizada, que impunham decisão sobre os pontos da matéria de facto impugnados diversa da recorrida; c) A decisão que, no seu entender, deve ser proferida sobre as questões de facto impugnadas.
Quanto à especificação dos meios probatórios, «Quando os meios probatórios invocados tenham sido gravados, incumbe ao recorrente, sob pena de imediata rejeição do recurso na respetiva parte, indicar com exatidão as passagens da gravação em que se funda o seu recurso, sem prejuízo de poder proceder à transcrição dos excertos que considere relevantes» (Artigo 640º, nº 2, al. a) do Código de Processo Civil).
Partindo daqui, importa referir que não é cumprido este ónus sempre que o recorrente refere genericamente o depoimento das testemunhas. De facto, o ónus a que alude a al. b) do nº1 do Artigo 640º do Código de Processo Civil não se satisfaz com a simples afirmação de que a decisão devia ser diversa. Ao invés, exige que o recorrente afirme e especifique qual a resposta que cabia dar em concreto a cada um dos factos, na medida em que apenas desta forma se coloca ao tribunal de recurso uma concreta e objectiva questão para apreciar.
Da mesma forma, não cumpre o ónus do artigo 640º, nº1, o recorrente que faz uma transcrição integral dos depoimentos que culmina com uma alegação genérica de erro na decisão da matéria de facto.
Vejamos, assim, se assiste fundamento para a impugnação da matéria de facto.
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Pretende a recorrente que seja dada nova redacção ao facto 9. «Antes do falecimento da sua esposa, foi colocado um pacemaker a Luís ..., que sofreu ainda, pelo menos três acidentes vasculares cerebrais, que foram diminuindo a sua mobilidade e causando-lhe, a nível cognitivo, confusão.”
Pretende a recorrente dever tal facto ter nova redacção que enuncia: «Luís ... antes de 2002, teve três acidentes vasculares cerebrais, um em 1997, hemorrágico que resultou diminuição da força no hemicorpo esquerdo, com marcha possível, outro em Novembro de 1997, com alteração na fala de que recuperou totalmente e outro em Março de 1998, isquémico, diagnosticando-se como arritmia cardíaca paroxísitca tendo sido colocado um pacemaker em 1999 que foi substituído no ano de 2009.»

Assenta a recorrente a pretensão de diferente redacção deste facto, na documentação clínica que pretende capaz de fazer prova deste facto, tal qual pretende seja considerado, não sendo, alega ainda, as testemunhas que sobre tal depuseram dotadas de conhecimentos especiais de medicina, pelo que os seus depoimentos são inidóneos para apurar tais factos.

Ora, por isto mesmo que refere a recorrente - não serem estes depoimentos periciais- é que o tribunal recorrido alicerçou a sua convicção nos documentos clínicos constantes dos autos de onde se extrai que Luís ... padeceu acidentes vasculares cerebrais, o que a recorrente aceita.

No mais, designadamente as sequelas dali advenientes, são apreensíveis por quem convive regularmente com o doente acometido por tais Avc’s; São apreensíveis pelos conhecimentos gerais, do homem médio; A prolação de expressões ocasionais sem sentido, a fraca mobilidade fina e outras sequelas são claramente apreensíveis por quem convivia com Luís ..., o que acontecia com as identificadas testemunhas.

A prova documental sem força probatória plena, como é o caso, está sujeita à livre apreciação do julgador.

Esta livre apreciação a cargo do juiz implica que se afira a coerência do documento pela análise global de todo ele, com a coerência em relação aos demais elementos que dele constam e esta coerência não depende apenas do documento mas também da interpretação que dele se faça, à luz da informação prévia que se possua e dos demais elementos de prova produzidos.

Para valorar a prova documental é fundamental analisar da contextualização do documento.

De facto, todo o documento é elaborado num ambiente, num espaço e num tempo e o conhecimento destes elementos permite melhor percepcionar as condutas dos seus autores/destinatários, averiguando o que consta do documento e o que dele não consta mas dele se infere. Interpretar o conteúdo de um documento, não prescinde da sua contextualização.

Ora, os documentos referidos pela recorrente foram analisados à luz desta contextualização e à luz dos demais meios de prova, elencados na decisão recorrida, que se sufraga.

Assim, a redacção do facto pretendida pela recorrente assente tão só nos relatórios clínicos, descontextualizados de outra prova, que não indica, não permite que se dê atendimento à pretensão que formula.
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Relativamente ao facto 21. «Luís ... tinha medo que a ré deixasse de lhe prestar os seus serviços.»

Refere a tal propósito a recorrente não poder ter sido dado como provado tal facto,  pois da análise crítica de todos os depoimentos referidos, a sua insuficiência, inconsistência, bem como da sua falta de fundamentação e concretização sobre se essas situações ocorreram antes ou depois da doação, não podia retirar-se essa conclusão, devendo assim, ser alterada essa matéria de facto, dando-se como não provada.

Ocorre que, a recorrente para impugnar tal facto, que pretende seja considerado não provado, limita-se a sumariar os depoimentos das testemunhas em que a decisão recorrida fundamentou o apuramento deste facto, manifestando a sua discordância com a convicção formada.

Ora, neste tocante, não deu cumprimento ao disposto no artigo 640º, nº 1, b) e nº 2, a) do CPC, pelo que se rejeita nesta parte tal impugnação.

O segmentos que identifica, por referência ao que consta da decisão que fundamenta os factos provados e de que identifica a passagem da gravação (testemunha Vítor, Ermelinda, Salvador da ...) não permitem por si mesmos decidir diferentemente do que fez a decisão recorrida, porquanto se mostram desenquadrados da demais prova produzida que, ouvida, permite concluir como faz a decisão recorrida que se sufraga.

De facto, os segmentos extractados e identificados, em nada afastam a convicção criada à luz da prova produzida, dos depoimentos a tal prestados, analisados na sua coerência interna e na sua contextualização e corroborados pelos demais meios de prova.

Improcede, consequentemente, a pretensão da recorrente.
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Quanto ao facto 22, pretende a recorrente que o mesmo seja considerado não provado: « Luís ... estava convicto, por a ré lho ter assegurado, que mediante a doação da casa referida no artigo 3º, a ré cuidaria dele até à morte».

Assentou a decisão recorrida a sua convicção nos depoimentos de Salvador da ..., Teresa e Ermelinda sendo que, na alegação da recorrente, devem aqueles ser desconsiderados por terem interesse directo na causa.

Ora, os depoimentos de familiares das partes, não são meios de prova que, em geral e aprioristicamente, sejam menos fiáveis do que outros.

Todas as provas têm a sua potencialidade informativa e apenas analisando as características de uma prova produzida no caso concreto, se conseguirá chegar a uma conclusão razoável de que o meio de prova é credível.

Neste ponto, caberá ao juiz interpretar todos os sinais que o depoente lhe transmita, mesmo aqueles (inclusive não verbais) que o mesmo pretende ocultar.

A testemunha com interesse (directo ou indirecto) nos factos, familiares, amigos ou dependentes, requer do julgador, conhecedor de um destes vínculos de ligação, que analise objectivamente o depoimento e tome cautelas adicionais para poder aferir desta credibilidade.

Este interesse tanto pode ser no êxito da pretensão de uma das partes, como na falta deste, pelo que valem igualmente estas considerações para aqueles que tenham qualquer relação de inimizade, hostilidade ou desavença com um dos litigantes.

Todavia, há que valorar objectivamente o depoimento da testemunha; importando analisar se o relato foi coerente, se a testemunha o contextualizou e se o mesmo está corroborado por outras provas.

Cabe procurar no depoimento da testemunha detalhes que confirmem a sua falta de objectividade e, encontrados que sejam, retirar-lhe credibilidade. Se não existirem, não afasta a objectividade e credibilidade a mera circunstância, vista como um critério em si mesmo, de ser familiar ou dependente de uma parte.
Dito isto, refere-se que, quanto ao depoimento da testemunha Teresa, a recorrente não fundamentou porque forma ou em que segmento do seu depoimento a mesma se revelou um depoimento interessado ou parcial. Nenhuma identificação é efectuada da passagem da gravação em que tal tenha ocorrido.

Por seu turno, a testemunha Salvador da ..., ouvida, não apenas no segmento identificado mas em todo o seu depoimento revelou coerência de relato, circunstanciou o conhecimento que tinha dos factos, descreveu-os serena e objectivamente e nada permite desconsiderar a credibilidade do seu depoimento.

Ao que não sabia, respondeu não saber (quanto aos cuidados de enfermagem, por exemplo), fez rectificações quando detectou lapsos (data de falecimento) e quando respondeu afirmativamente fê-lo irrepreensivelmente.

Aliás, a recorrente limita-se a referir que a conversa descrita pela testemunha contraria as regras da experiência, sem que nada mais adiante quanto a que regras serão estas que o Tribunal não alcança. A conversa descrita é perfeitamente adequada no contexto de relações familiares próximas entre a testemunha e Luís ..., ambos da mesma aldeia, cunhados, que se acompanhavam, homens da mesma geração, como relatado pela identificada testemunha. E a verdade é que, quanto à circunstância de Luís ... ter a fantasia de vir a casar com a R., em nada é afastada pela circunstância de à data esta ser casada, uma vez que como relatou a testemunha Salvador, Luís ... lhe relatara que o marido da R. lhe pedira para cuidar dela ( da R.).

Quanto ao depoimento da testemunha Ermelinda, afilhada de casamento de Luís ..., o depoimento que foi considerado foi o prestado em audiência e não qualquer outro, pelo que carece de fundamento a alegação que faz a recorrente do artigo 421º do CC. O medo que esta testemunha relatou que Luís ... tinha relativamente à R., a dependência psicológica relativamente àquela, a esperança que tinha de casar com ela, foi relatado neste processo e não perante qualquer autoridade policial.

O relato da testemunha António L... não permite abalar a convicção que os depoimentos das acima identificadas testemunhas criou, tanto mais que o que relata não tem correspondência nos demais meios de prova e, designadamente, nos factos apurados.

De facto, este relato de António L... do que lhe dissera Luís ..., não é consistente com a prova produzida de onde resulta que o referido Luís ... tinha acompanhamento da família, era a irmã que ia buscar Luís ... ao hospital, que ia buscá-lo aos domingos para almoçar.

A afilhada Ermelinda deu conta dos acompanhamentos hospitalares que lhe fez e relatou com exactidão os problemas de saúde que tinha, o mesmo tendo feito a testemunha Salvador da ... e Teresa, que relataram ocasiões em que acompanhavam Luís ....
O depoimento da testemunha Felizarda igualmente não permitiu afastar tal convicção. Sendo vizinha de Luís ..., apressou-se a descrever que a R. não foi contratada para ir ao sábado e ainda assim ia, e às vezes ao domingo, que nenhuma mulher mandaria nele, sempre foi assim, o que não é compatível com o estado de degradação física e psicológica em que se encontrava, como se o conhecimento desta testemunha tivesse ficado nos tempos de vigor físico e mental que comprovadamente Luís ... não tinha após os acidentes vasculares cerebrais. Muito vaga no seu depoimento, desconhecia que doenças padecia o referido Luís ..., insistindo que de cabeça estava muito bem. O depoimento foi impreciso, vago e incoerente.

Quanto ao depoimento da testemunha Silvina (amiga da R.., que substituía a R. quando esta estava de férias ou doente e que também chegava a lá ir auxiliá-la), o mesmo revelou-se igualmente parcial e incoerente, sendo o seu relato não circunstanciado e contrariado pelo depoimento da testemunha Ermelinda, pelo que dele nada se aporta que contrarie a convicção formada pelo depoimento em que o Tribunal recorrido alicerçou a prova destes factos.

Mantém-se assim o facto 22, nos exactos termos que constam enunciados.
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Relativamente ao facto 29: «Luís ... tinha consultas periódicas no Hospital ... de Orta, em Almada, por carecer de assistência médica constante em virtude dos acidentes vasculares cerebrais.»
Pretende a recorrente que este facto tenha a seguinte redacção: «Ponto 29. - Após 1999, Luís ... teve consultas de Urologia no Hospital ... de Orta, em Abril de 2007 e em 2009, foi submetido à substituição do pacemaker e posteriormente esteve internado, nesse hospital, de 24 a 30 de Abril de 2007, por causa de uma infecção no pé direito (eripsela e abcesso) e no dia 31 de Julho de 2009, foi submetido à substituição do pacemaker, 10 anos depois de ter sido colocado pela 1ª vez.»

Fundamenta esta pretensão nos mesmos termos em que fundamentou a impugnação do facto provado 9, pelo que não nos resta senão reiterar o que acima se referiu a tal propósito, a que acresce que o facto relevante é aquele que resultou provado e não outro, como bem se alcança, designadamente do facto 30.
Improcede a pretensão deduzida.
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Quanto ao facto 30: «A ré não levava o autor à consulta no Hospital ... de Orta, ou ao Centro de saúde».
Pretende a R. que a redacção deste factos seja alterada para «A ré não levava Luís ... à consulta no Hospital ... de Orta ou ao centro de saúde, mas telefonava aos familiares para o levarem.»
A recorrente não deu cumprimento ao disposto no artigo 640º, nº 2, a) do CPC, que não se mostra cumprido pela referência que faz ao que na fundamentação da matéria de facto foi mencionado na decisão recorrida, pelo que se rejeita, nesta parte, a impugnação da matéria de facto.
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Vejamos o facto 36: «A R. não ministrava a medicação a Luís ..., apesar de saber que não podia deixar de tomá-los, nem ficava lá em casa durante a noite».
Pretende a R. que a redacção deste artigo seja alterada nos seguintes termos: «A R. nos últimos dias de vida de Luís ... ministrou-lhe a medicação e ficou lá em casa durante a noite».
Do depoimento da testemunha Salvador da ... resulta a prova do facto enunciado em 36 o que a R. discorda, sem que concretize que meios de prova permitem decidir diversamente. Ao invés, não foi produzida prova que permita apurar a redacção pretendida pela R..
A lucidez relatada pela testemunha Lúcio, que mora na fracção por cima da casa de Luís ..., mesmo que tivesse sido - e não foi - corroborada por outros meios de prova consistentes, não significa capacidade para discernir a medicação exacta a tomar.
Por seu turno, ter encontrado numa ocasião a R. em casa de Luís ... à noitinha, como depôs Salvador da ..., é diferente de pernoita.
O depoimento de António Lúcio foi incoerente e impreciso, revelando hesitações e imprecisões. Referiu que, tendo as chaves de casa, ia lá à noite para ver se ele estava bem, sem que deste relato constasse a referência à presença da R. e, como depôs, era por Luís ... estar sozinho que ia ver se estava tudo bem como ele. Depois disto e tendo-lhe sido feita uma pergunta enunciando-se na pergunta que a R. lá pernoitava, respondeu afirmativamente. A incoerência do relato impede que se considere credível o depoimento neste segmento.
A testemunha Felizarda depôs igualmente de forma incoerente e imprecisa e, neste segmento, a assertividade manifestada não encontrou qualquer contextualização nem corroboração que permitisse aferir a credibilidade deste depoimento.
Improcede a alteração pretendida pela R..
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Quanto ao facto 38 (que a R. identifica por lapso como 37 mas cuja redacção corresponde ao facto 38): «Luís ... pernoitava sozinho».

Pretende a R. que o mesmo tenha a seguinte redacção: «Luís ..., nos dias anteriores ao seu falecimento não pernoitou sozinho, tendo a ré ficado lá em casa algumas noites.»

Assenta a recorrente esta pretensão na circunstância de a decisão recorrida se ter baseado «primeiramente no testemunho de Vítor S...» quando deste depoimento tal não resultava.

Ora, como bem resulta da decisão recorrida que fundamentou o apuramento deste facto, esta testemunha que era quem levava e trazia Luís ..., quando ia ao Hospital, teve um relato que foi conjugado com os demais meios de prova produzidos, perfeitamente identificados naquela decisão, a qual não merece censura.

Ademais, os demais meios de prova em que a recorrente alicerça o apuramento do facto nos termos em que pretende seja considerado, não podem ser considerados, por falta de cumprimento pela recorrente do ónus a que alude o artigo 640º, nº 2, a), do CPC, tendo-se a R. limitado a referir as testemunhas concluindo que relataram no sentido que pretende seja provado.
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Relativamente ao facto 41. «No final do ano de 2009 e início de Janeiro de 2010, Luís ..., sozinho em casa, sofreu acidente vascular cerebral, quedas, deixou de conter as fezes e de ouvir e reconhecer familiares».

Pretende a recorrente que os depoimentos em que o Tribunal recorrido alicerçou a prova deste facto são insuficientes.

Da decisão recorrida resulta que tal prova se fundou nos depoimentos de Salvador da ... e Luís P...L....

Insurge-se a recorrente com o apuramento de tal facto por Salvador da ... não o ter presenciado. Daqui não resulta que o seu relato, do que como refere lhe foi dito pela R., não pudesse ser considerado.

Os testemunhos com conhecimento indirecto dos factos, não viram os factos sobre que declaram, mas o conhecimento que têm deles é de os terem ouvido a outros. Estes relatos são, assim, insusceptíveis de contextualização, salvo no que se refere às circunstâncias em que foram descritos os factos pela testemunha directa nos mesmos. Esta testemunha, por regra, não esteve no local da sua ocorrência, pelo menos no momento da mesma, pelo que também aqui o critério da contextualização não é susceptível de ser aplicado, com vista a aferir a sua credibilidade.

Ainda assim, tal depoimento foi considerado – e bem -, em conjugação com o depoimento da testemunha Luís P...L..., sendo que a recorrente não explicita que meios de prova contrariam a convicção do tribunal e levariam a solução diversa.
Sempre se dirá ainda que a incontinência de fezes e o não reconhecimento de familiares não é susceptível apenas de apuramento pericial, como refere a recorrente. Está no domínio do conhecimento da generalidade das pessoas, é observável por quem convivia com Luís .... Do mesmo modo, o diagnóstico do acidente vascular cerebral é feito pelos médicos, mas daqui não decorre que a apreensão do episódio sofrido seja de prova apenas por relato médico. O mais que a recorrente refere são considerações não alicerçadas em concretos meios de prova que, aliás, não identifica.

Improcede a pretensão deduzida.
***

b) Aditamento de um facto.

Pretende a R. que seja aditado o seguinte facto: «Luís ... no ano de 2006, à data com 79 anos, mantinha íntegras as suas faculdades cognitivas».

Fundamenta tal pretensão na declaração médica que menciona ( a fls 382 dos autos ) e no depoimento da médica que o subscreveu.
Ora, o documento por si só não permite provar tal facto, remetendo-se aqui para o que referimos a propósito da impugnação do facto 9.

Por outro lado, quanto ao depoimento da médica que subscreveu tal declaração, a recorrente não deu cumprimento ao disposto no artigo 640º, nº 2, a) do CPC, pelo que se rejeita a impugnação da matéria de facto neste tocante.
Improcede, consequentemente, o pretendido aditamento.
*

Mantendo-se inalterada a matéria de facto, o conhecimento do mérito far-se-á quando se conhecer o recurso independente interposto pelos AA..
******

ii) Recurso interposto pela R.:

a) Da decisão de 11.09.2014 que deferiu a ampliação do pedido: a falta de verificação dos pressupostos para a ampliação.
Insurge-se a R. contra a decisão que interpretou o artigo 265º no sentido de que a alteração do pedido e da causa de pedir não exigem a superveniência dos factos alegados. Mais refere que, quando da modificação do pedido e da causa de pedir impliquem factos novos constitutivos do direito do A., o tribunal só pode atender aos factos supervenientes, em articulado superveniente.
Apreciemos.
Foi apresentado requerimento pelos AA., que veio  a ser admitido em audiência final, em que aqueles vêm requerer a ampliação do pedido, ao abrigo do artigo 265º, nºs 2 e 6, do CPC, pedindo a condenação da R. a restituir os montantes por ela movimentados, das contas que identificam, desde o momento em que passou a ser co-titular das mesmas e até ao seu encerramento ou liquidação, acrescida de juros de mora.
Alegam para tanto, ter resultado do depoimento da testemunha Salvador da ... a existência de uma conta conjunta ou solidária de Luís ... e a R., que terá tido como valor máximo € 70.000,00 dos quais só existiam € 9.000,00 à data da morte, de que a R. se apoderou.
O despacho proferido que admitiu a referida ampliação considerou que:
A « situação se subsume ao artigo 265º, nº 6, do CPC. (…)
Os autores, arrogando-se a qualidade de herdeiros de Luís ... ..., pedem que seja conhecida a invalidade da disposição patrimonial de Luís ..., a favor da Ré, feita no período de vida daquele.
Alicerçam tal pretensão, factualmente, em situações que entende subsumíveis a ofensa dos bons costumes, usura, indignidade da donatária e/ou incapacidade acidental do doador.
Com este requerimento os autores alegam outra disposição patrimonial de que pedem a restituição alicerçando-se tal pedido entenda-se nas situações já alegadas na petição inicial.
Entende-se, portanto, que o pedido tem o mesmo sentido do inicialmente formulado, o qual seja conseguir a restituição aos herdeiros de disposições patrimoniais feitas em vida de Luís ... a favor da Ré.
Modificam a causa de pedir apenas os factos subjacentes à própria disposição patrimonial aproveitando tudo o mais alegado na petição inicial.
Entende-se portanto que o pedido ora formulado apenas desenvolve, no mesmo exacto sentido, o pedido da petição inicial e que a causa de pedir é alterada apenas incidentalmente, tratando-se, no essencial das razões de facto e de direito alegadas para a acção da mesma relação jurídica. (…)
Qualifica-se como alteração do pedido e da causa de pedir o requerimento dos autores, o que se admite por tempestivo conforme 265º, nº 6 do CPC (…)».

Vejamos.

É permitido alterar, em simultâneo, o pedido e a causa de pedir, desde que tal não implique convolação para relação jurídica diversa da controvertida (artigo 265.º, n.º 6 do CPC), possibilitando-se assim um desvio à regra geral da estabilidade da instância a que alude o artigo 260º do CPC.

Com efeito, com a citação, ficam estabilizados os elementos essenciais da instância. Daqui não decorre, todavia, que esses elementos fiquem permanentemente inalteráveis a partir desse momento, podendo ocorrer alterações ao pedido e causa de pedir, após a citação, nos termos dos artigos 264º e 265º do CPC.

Detendo-nos no artigo 265º, nº 6, do CPC, importa aferir se no caso ocorre convolação para relação jurídica diversa da controvertida, por forma a que se considere inadmissível dal modificação.

Esta modificação é permitida desde que «não acarretasse a transição para uma relação jurídica distinta, ou de não se substituir ou alterar a relação material litigada».[2]

Por um lado, aquele preceito não alude a causa de pedir, mas a relação jurídica controvertida, o que tem uma maior amplitude; Por outro, causa de pedir não os factos concretos geradores do direito invocado, mas a relação jurídica material ou relações jurídicas que legitimam a pretensão.

«Tendo novamente em atenção o princípio da economia processual, não devem ser consideradas relações jurídicas diversas aquelas que sejam relações dependentes, conexas ou sucedâneas da relação inicialmente alegada. Entre estas não deixa de existir um nexo que permite perfeitamente o aproveitamento do processo já iniciado, sem necessidade de instauração de nova acção, desde se mostre assegurado o direito ao contraditório face à nova configuração das pretensões deduzidas.»[3]

Ora, sufragamos a decisão recorrida: «Com este requerimento os autores alegam outra disposição patrimonial de que pedem a restituição alicerçando-se tal pedido entenda-se nas situações já alegadas na petição inicial. Entende-se, portanto, que o pedido tem o mesmo sentido do inicialmente formulado, o qual seja conseguir a restituição aos herdeiros de disposições patrimoniais feitas em vida de Luís ... a favor da Ré. Modificam a causa de pedir apenas os factos subjacentes à própria disposição patrimonial aproveitando tudo o mais alegado na petição inicial.»

Não comporta a alteração do pedido e da causa de pedir convolação para relação jurídica diversa, não exigindo o identificado normativo qualquer prova da superveniência dos factos, pelo que tem que improceder o recurso nesta parte.
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b) Da sentença no segmento em que condenou a R.: Impugnação da matéria de facto ( factos 41º, 48º e o segmento final do facto 49; nº 3, d), e), h) e i) da oposição da Ré à ampliação); O mérito da decisão, designadamente desde quanto são devidos os juros de mora.

A impugnação da matéria de facto, apreciada pela ordem porque foram impugnados os factos:

Facto 41: «No final do ano de 2009 e início do ano de 2010, Luís ..., sozinho em casa, sofreu acidente vascular cerebral, quedas, deixou de conter as fezes e de ouvir e reconhecer os familiares.»
Reitera-se o que acima se referiu quanto à improcedência da impugnação deste facto: a circunstância de o facto não ter sido presenciado não afasta que se considere o depoimento por ter ouvido dizer à R.; Não requer conhecimentos médicos a aferição do mesmo; O facto 49 não é incompatível ( a data deste está definida mas a do facto 41 não está, podendo ter ocorrido depois); A narração de que Luís ... não batia com a vassoura no tecto é completamente irrelevante.
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Factos da Oposição da ampliação do pedido nº3, al. d), e), h) e i):
O Tribunal recorrido deu como não provados, os factos alegados pela recorrente, na oposição à ampliação do pedido, a saber:

Nº 3, alínea d): «E, quando teve conhecimento que ia para o Lar da Santa Casa da Misericórdia, no mês de Janeiro de 2010, o Sr. Luís ... pediu à Ré para esta o acompanhar até ao Banco BPI na Cruz de Pau, a fim de liquidar a conta que estava a prazo e dar à Ré a quantia de € 10.495,23 (dez mil quatrocentos e noventa e cinco euros e vinte e três cêntimos)»
Nº 3, al. e): «Assim, nesse dia a Ré acompanhou o Sr. Luís ... ao banco e por ordem deste senhor, foi feita a mobilização dos depósitos nºs. 6-3270225.160.04, 6-3270225-160.003 e 6-3270225.160.002 da conta a prazo nºs 6.3270225.000.001 e posteriormente transferido para a conta nº 9-1383772.000.001, a quantia de € 8.991,68, tendo sido emitido um cheque a favor da Ré no valor de € 10.495,23, quantia a que atrás se fez referência»
Nº 3, al. h): «Assim, a Ré não levantou, não movimentou e não liquidou qualquer conta sem o consentimento e autorização do Sr. Luís ...».
Nº 3, al. i): «Não se tendo apoderado contra a vontade do Sr. Luís ... ... de qualquer quantia.»

Insurge-se a recorrente com a circunstância «a Senhora Juiz “a quo” não acreditou no depoimento da testemunha ouvida, José M..., porquanto, “ Luís ..., à data mal falava, mal ouvia, tinha dificuldades em reconhecer até os familiares e incontinência de urina e fezes. Dificilmente faria o percurso até à instituição bancária da forma descrita».

Alicerça a sua discordância ainda no documento de fls 987 e 988.
O documento referido de fls 987 é um ofício da direcção jurídica do BPI onde se exarou que o cheque, cuja cópia está a fls 988, foi pago «directamente por caixa ao apresentante/beneficiário do mesmo». Daqui não resulta mais do que deste documento consta, que o banco assim declarou, nada permitindo mais apurar.

O depoimento de José M..., primo da R.., ouvido, não encontrou corroboração em qualquer outro meio de prova e é, por si só, incapaz de permitir apurar tal facto. Os pormenores que deu (designadamente a conversas circunstancias relativas à compra de bolo rei) e a preocupação em «situar» a data num relato que efectuou de forma sincopada e pouco espontânea, onde sobressaiu a narração de uma «história» que não encontra corroboração, não permite que se considere. A circunstância de estar exarado no documento de fls 333 que não foi feito penso a Luís ... por ninguém ter atendido em casa, não resulta nem que ele não lá estivesse, nem que, se lá não estava, estivesse com a testemunha José M....

Refere ainda o cheque de fls 881, dele não se extraindo mais do que o cheque permite apurar.

O depoimento da testemunha Salvador identificado, em nada aporta ao apuramento destes factos, nem a recorrente identificou em que medida a pergunta que o mesmo fez a Luís ... e a resposta que dele obteve sobre a quantia que dispunha na conta bancária, permitem considerar diversamente.

A mencionada autorização concedida à R. para movimentar conta bancária, datada de 18.12.2003, a fs 662, também nada aporta que permita considerar para a prova dos factos aludidos.

Improcede, consequentemente, a impugnação da matéria de facto em apreço.
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Facto 48: «A ré fez seu o valor referido no artigo 6º. (alegações da ré, em contraditório a fls. 652).»
Na fundamentação da impugnação deste facto, remete a recorrente para os argumentos deduzidos para a impugnação dos factos da oposição da R. acima referidos pelo que não nos resta, senão, igualmente, remeter para o que acima se referiu e, assim, julgar improcedente a impugnação.
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Facto 49: «Luís ... fez o levantamento, por cheque, do valor de € 800,00, correspondente à sua pensão de reforma, da Conta NUC 9-1383772.000.001, no dia 11 de Janeiro de 2010, valor que a ré, fez seu.»

Impugna a R. o segmento final deste facto e, assim, que tenha feito sua tal quantia.
Pretende a recorrente não ter sido efectuada prova de tal facto, por não se ter provado que acompanhou Luís ... ao banco para proceder a tal levantamento. Ora, este facto relativo à falta de acompanhamento pela R., em nada afasta o apuramento daquela apropriação que, contrariamente ao que refere a recorrente, se encontra fundamentada, designadamente na motivação dos factos 1º a 8º relativos à ampliação do pedido.
Improcede, consequentemente, a impugnação da matéria de facto.
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O mérito da decisão:
Recorreu a R. do segmento da sentença que a condenou no pagamento da quantia de € 11.295,23 acrescida de juros à taxa legal desde a citação.
Mantendo-se inalterada a factualidade provada, necessariamente se tem de manter o enquadramento jurídico feito pelo tribunal recorrido, que se sufraga, assentando o apelante a sua discordância na peticionada alteração da factualidade provada, que, como acabado de referir, improcedeu.
Relativamente aos juros de mora, considerando a data em que o pedido foi formulado, os mesmos deverão ser contabilizados desde o conhecimento de tal pedido pela R., e não desde a citação, assistindo-lhe razão neste tocante.           
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iii) Recurso da sentença interposto pelos AA.: importa aferir se o contrato de doação é um negócio usurário.
Pretendem os recorrentes, que não impugnaram a matéria de facto, que esta  permite concluir que o negócio aludido em 23) é um negócio usurário, determinado pela circunstância de Luís ... estar convicto de que mediante a doação, a R. dele cuidaria até à morte ( facto 22), convicção que se formou quando aquele já não tinha verdadeira vontade, em consequência  dos acidentes vasculares cerebrais que lhe diminuíram a mobilidade e lhe causaram, a nível cognitivo, confusão ( facto 9), o que ocorreu antes do falecimento de sua esposa, em 2002 ( facto 10), facto que lhe determinou enorme desgosto, chorando frequentemente ( facto 11).
O referido Luís ... tinha dificuldades em subir e descer escadas do prédio onde morava ( facto 26), em deslocar-se, arrastava a perna, tinha  dores e incontinência urinária e fazia, ainda assim, parte das suas compras ( facto 27); Estava afectado de uma hérnia inguinal, com grande volume, e tinha que tomar diariamente três tipos de comprimidos, designadamente para a circulação do sangue, diurético e outro para controlar o inchaço da perna ( facto 28); Tinha consultas periódicas no Hospital ... de Orta, em Almada, por carecer de assistência médica constante em virtude dos acidentes vasculares cerebrais ( facto 29).

Apreciemos.
Nos termos do artigo 282.º do CC «1 - É anulável, por usura, o negócio jurídico, quando alguém, explorando a situação de necessidade, inexperiência, ligeireza, dependência, estado mental ou fraqueza de carácter de outrem, obtiver deste, para si ou para terceiro, a promessa ou a concessão de benefícios excessivos ou injustificados.»
Por via deste preceito pretende-se a protecção de pessoas em situações de fraqueza, vulnerabilidade e inferioridade, contra quem se pretende aproveitar deste estado obtendo benefícios excessivos ou injustificados.
Para que esteja verificado o vício de vontade a que este artigo se reporta, importa que se verifique: a) Existência de uma situação de inferioridade do declarante; b) Exploração da situação de inferioridade pelo usurário; c) Lesão, isto é, promessa ou concessão de benefícios excessivos ou injustificados para o usurário ou terceiro.
«(…) as relações entre a usura e os outros vícios na formação da vontade só podem compreender-se nos seguintes termos. Se existe erro, medo ou incapacidade acidental relevante, o negócio é anulável pela simples verificação dos requisitos de qualquer desses vícios. Se, como tais, eles não forem relevantes, não deixa de se verificar, contudo, uma situação de inferioridade do declarante, para os efeitos do art. 282º; contudo, esta só será atendível, se tiver havido o aproveitamento da inferioridade do declarante para alguém obter um benefício injusto ou excessivo. Por outras palavras, o vício da usura vem dar relevância a vícios da vontade que não são, por si sós, invalidantes».[4]
Tratando-se de uma doação, que o artigo 940.º do CC define como «1. (…) o contrato pelo qual uma pessoa, por espírito de liberalidade e à custa do seu património, dispõe gratuitamente de uma coisa ou de um direito, ou assume uma obrigação, em benefício do outro contraente.» e, assim, de um negócio gratuitos, ainda assim, as vantagens atribuídas ao beneficiário podem ser «excessivas» e não ter, total ou parcialmente, justificação.
«A existência de benefícios excessivos ou injustificados não é excluída mesmo nos negócios gratuitos em que exista um verdadeiro espírito de liberalidade ou ‘animus donandi’. Tomemos um exemplo concreto: A pretende fazer uma doação a B, seu familiar. B, aproveitando-se de um dia de particular euforia de A, consegue que o montante doado seja muito superior àquele previsto inicialmente por A. Este contrato é uma verdadeira doação, embora usurária.”»[5]

Vejamos os pressupostos da usura.

Existência de uma situação de necessidade e dependência de Luís ...:
Traduz-se esta nas suas limitações físicas e cognitivas em consequência da colocação de um pacemaker e do padecimento de 3 acidentes vasculares cerebrais – mobilidade diminuída e confusão a nível cognitivo – ( facto 9), debilidade psicológica em razão da sua viuvez, ocorrida 3 antes da doação ( factos 10 e 11), fragilidade inerente à idade de 78 anos à data do negócio ( facto 1), dependência da R. para a realização das tarefas domésticas ( como resulta do facto 21, Luís ... tinha medo que a R. deixasse de lhe prestar os seus serviços).
Veja-se que quando Luís ... se instalava em casa de seu irmão no mês que passava em Meda, era este quem lhe cuidava da roupa, o que é bem elucidativo de que a realização dos afazeres atinentes à vida corrente estavam a cargo de terceiro. A situação de dependência de Luís ... é notória e resulta dos factos provados, não apenas relativamente às tarefas domésticas, mas também às deslocações hospitalares e lúdicas ( factos 18, 19, 30, 32, 34).
Atenda-se, ainda a que, após a morte de sua esposa, no estado em que se encontrava Luís ..., carecendo de cuidados (3 acidentes vasculares cerebrais que foram sucessivamente diminuindo a sua mobilidade e causaram-lhe a nível cognitivo, confusão, desgosto de que padecia, chorando frequentemente), os irmãos ofereceram-se para dele cuidar ( facto 12).

Quanto ao segundo requisito.
Exploração da situação de inferioridade pelo usurário:
A doação foi efectuada depois de a R. estar incumbida de diariamente e mediante a contrapartida de € 250, fazer comida, lavar a loiça, tratar da roupa e limpar a casa ( facto 15), estando diariamente em casa de Luís ..., à excepção de domingo ( facto 16). Apenas a R. prestava cuidados e assistência a Luís ..., com excepção do mês de Agosto quando se alojava em casa de seu irmão. A R. e seu marido ofereciam-se para o levam a passear (facto 19).
É neste contexto de necessidade e dependência de Luís ..., mobilidade diminuída e confusão a nível cognitivo e debilidade psicológica, que ocorre a doação à R., que conhecia a situação daquele e que, prestando-lhe, a troco de contrapartida económica serviços diários, assegura a Luís ..., que disso se convence, que mediante a doação da casa cuidaria dele até à morte (facto 22).
Daqui decorre que a Ré, usando da situação de necessidade, dependência e fragilidade emocional de Luís ... modelou a sua vontade no sentido de ser por ele beneficiada.
Luís ... tinha ao seu serviço uma empregada doméstica, a R., a quem pagava € 250 por 2 horas/dia, de segunda a sábado e, padecendo de debilidade motora e psíquica, pretendendo manter-se em sua casa e não ir para casa dos seus irmãos ou para um lar, perante a promessa de que teria quem dele cuidasse até à morte mediante a doação de sua casa, vem a fazê-lo, por estar convencido de que a R. assim faria.
O requisito exploração implica necessariamente, a consciência da situação de necessidade, dependência, estado mental ou fraqueza de carácter e outras tipificadas no artigo 282º, nº 2, do CC e a consciência da causalidade entre essas situações e o benefício recebido.
Esta causalidade resulta à evidência dos factos provado 21 e 22 ( Luís ... tinha medo que a R. deixasse de lhe prestar serviços e a R. convenceu-o de que cuidaria dele até à morte mediante a doação da fracção.), resultando outrossim das regras da experiência extraídas da situação de debilidade e dependência de quem, com 78 anos, vivendo o desgosto de ter perdido a esposa, necessita de quem dele cuide e a quem, mediante a promessa de que não deixará de fazer, doa a sua casa. 
E não esqueçamos que a R. passou igualmente a movimentar a conta de Luís ..., assumindo assim uma disponibilidade do património, sem que se encontre causa para tanto, que no elenco dos factos apurados, não é despicienda para a aferição dos contornos do contrato dos autos, por constituir, também esta, um indício da dependência que Luís ... tinha da R. ao ponto de lhe conceder autorização, com condições de movimentação solidária ( facto 45), pouco mais de um ano depois de ter passado a ser empregada doméstica de Luís ... e sem que se encontre apurada razão para tanto, sendo que a correspondência relativa a esta conta era endereçada para a morada da R. ( facto 46), que a movimenta ( facto 47).
O controlo do património constituído pelo depósito bancário de Luís ... constitui, também ela, facto que consubstancia a relação de controlo e domínio da R. sobre Luís ..., que vem a culminar com a doação. Não obstante a relação de amizade que a R. e seu marido nutriam por Luís ..., certo é que esta é recente, à data em que a R. passa a movimentar a conta de referido Luís ..., e advém da relação de empregada doméstica da R., sem que qualquer outro vínculo ou afinidade se lhes conheça.
É legítimo concluir, de todos estes factos, que a R. tinha a expectativa de vir a ser beneficiada pelos serviços prestados a Luís ..., para além da remuneração acordada, assim explorando a situação de necessidade e dependência daquele.
Dos factos provados resulta que, não obstante ter convencido Luís ... de que mediante a doação de sua casa cuidaria dele, certo é que não veio a fazê-lo, não obstante a promessa que fizera e ter logrado que a doação se concretizasse, vindo, como se provou, a negligenciá-lo: Por vezes Luís ... ia receber a pensão de reforma, em transportes públicos onde não conseguia subir sozinho, uma vez que tinha dificuldade em descer e subir as escadas do prédio onde morava, no 2° andar, em consequência da idade e do agravamento de doença; Tinha dificuldade em deslocar-se, arrastava a perna, tinha dores e incontinência urinária e fazia, ainda assim, pelo menos parte das suas compras; Estava afectado de uma hérnia inguinal, com grande volume, e tinha que tomar diariamente três tipos de comprimidos, designadamente para a circulação do sangue, diurético e outro para controlar o inchaço da perna, precisando de assistência médica constante em virtude dos acidentes vasculares cerebrais, sendo que a ré não o levava à consulta no Hospital ... de Orta, ou ao Centro de Saúde de ...; A R. convenceu  Luís ... a ficar num lar durante 1 mês e 3 semanas, para tratar uma úlcera numa perna; Numa determinada ida ao médico, levado por sua irmã, apresentou-se todo urinado, tinha enormes unhas das mãos, usava umas cuecas presas com um alfinete, tendo ficado internado no hospital durante oito dias; Quando Luís ... ... teve alta, a irmã ... levou-o para casa e a R. não foi vê-lo nessa altura; A R. nunca telefonou a ... para saber do estado de saúde de Luís ... .... A R. não ministrava a medicação a Luís ... ..., apesar de saber que não podia deixar de tomá-los, nem ficava lá em casa durante a noite, pernoitando este sozinho; A R. comunicou por telefone a Salvador N... da ... que Luís ... ... já não poderia estar sozinho, e que ela não podia tomar conta dele, que a pensão dele não chegava para pagar o lar do genro dela (António ... Soares), e que ela já tinha convencido Luís ... ... a ir para o lar de Arganil; Uns dias depois do dia de Natal de 2009, quando a R. chegou a casa de Luís ... ... pela manhã, deparou com ele caído no chão, já frio, com baba e sangue na cara; Estando sozinho em casa Luís ... sofreu acidente vascular cerebral, quedas, deixou de conter as fezes e de ouvir e reconhecer os familiares; Foi a irmã de Luís ... quem contratou o seu funeral, ao qual a R. não compareceu.
A debilidade física e pessoal de que anteriormente padecia Luís ... agravou-se e se antes já estava grandemente dependente da R. para os actos da vida diária, esta dependência agravou-se, sem que esta correspondesse aos cuidados de que ele carecia, muito pelo contrário.
Finalmente, quanto ao requisito objectivo.
Promessa ou concessão de benefícios excessivos ou injustificados para o usurário o terceiro:
A doação da de uma fracção, com as características definidas em 3. e 4. dos factos provados é manifestamente injustificado.
A R. recebia contrapartida pelos serviços domésticos que realizava, não encontrando justificação o ingresso no seu património da fracção de Luís ....

A doação constituía contrapartida da prestação de cuidados ao doador até ao fim da sua vida. Foi neste convencimento que o mesmo doou. E a circunstância de tal não ter sido fixado como encargo da doação, não afasta a aplicação do artigo 282º do CC.
 «a usura é fundamentalmente um vício de conteúdo do negócio jurídico, por desequilíbrio e injustiça, mas não o é exclusivamente: essa injustiça é qualificada com deficiência de discernimento e liberdade do lesado, e com a imoralidade da exploração dessa deficiência pelo usurário»[6]

A fragilidade da vontade de Luís ..., motivada pela situação de necessidade, dependência e fragilidade emocional determina a aplicação do regime aludido no artigo 282º do CC, que pretende proteger as pessoas em situações de fraqueza contra quem se pretende aproveitar delas e pressupõe um estado de inferioridade de um dos contraentes e a obtenção consciente de benefícios excessivos ou injustificados para o outro ou para terceiro.

Tal qual se encontra previsto no artigo 282º, nº 1, do CC, o negócio usurário, consubstancia uma limitação ao princípio da liberdade contratual, que encontra, todavia, justificação, em ordem às razões sociais subjacentes e ao princípio da protecção dos mais fracos, redundando, assim, numa manifestação com expressa consagração legal, do carácter social do direito privado.
Considerado o elenco das situações enunciadas no aludido preceito, o que dele se extrai, à luz do preâmbulo do DL n.º 262/83, de 16 de Junho que lhe deu a actual redacção, foi a pretensão de « (…) alargar o âmbito do conceito fornecido pelo Código Civil, demasiado restrito para as variadas situações carecidas de tutela jurídica com que a vida real nos confronta. ».
Concluindo se dirá que estando Luís ... em situação de necessidade e dependência, tanto física como psíquica, em relação a terceiros; Tendo a R. explorado essa situação de inferioridade para conformar a vontade de Luís ... com vista à doação; Com isso obtendo para si um benefício injustificado; Não resta senão concluir estarmos perante um negócio usurário.
Do exposto entendem-se verificados todos os requisitos da usura, o que determina a anulação do negócio de doação outorgada por Luís ... com a consequente restituição do mesmo ao acervo hereditário daquele.
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DECISÃO

Em face do exposto, acorda-se em:
A) Julgar procedente o recurso da sentença interposto pelos AA., a 1081 e segs, em consequência do que se declara a anulação do negócio de doação outorgada por Luís ... com a consequente restituição do objecto da doação ao acervo hereditário daquele, ordenando-se o cancelamento do registo da aquisição e restituição da identificada fracção.
B) Julgar improcedente o recurso subordinado da sentença deduzido pela R..
C) Julgar improcedentes os recursos interpostos pela R. da decisão de 11.09.2014 e da sentença, excepto no que se refere aos juros de mora que são devidos desde a notificação à R. da ampliação do pedido.

Custas dos recursos interpostos pela R..
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Lisboa,13.07.2017                                                                                                       

(Carla Câmara)
(Maria do Rosário Morgado)
(Rosa Maria Ribeiro)



[1]Refere Francisco Manuel Lucas Ferreira de Almeida «Depois de o Tribunal se assegurar da inexistência de obstáculos ao conhecimento do objecto do recurso principal, poderá começar por julgar (conhecer) que questão posta no recurso subordinado, se o conhecimento desta preceder o da questão a dirimir no recurso principal ( cfr. O nº 1 do arttº 608º).», in Direito Processual Civil, Vol. II, 2015, pag. 425
[2]ANSELMO DE CASTRO, Direito Processual Civil Declaratório, 1981, Vol. I, 168; ANTUNES VARELA, Manual de Processo Civil, 2ª ed., 281-282 e 359.
[3]Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra, Processo: 408-F/2001.C1, Relator: SÍLVIA ..., Data do Acordão: 11-09-2012, in http://www.dgsi.pt/jtrc.nsf/c3fb530030ea1c61802568d9005cd5bb/94444e53b0808fd080257aa00051ec6a?OpenDocument
[4]Carvalho ..., in Teoria Geral do Direito Civil, II, 2010, págs. 249 e seg.
[5]Pedro Eiró, Negócio usurário, 1990, pág. 70 e segs
[6]PEDRO PAIS VASCONCELOS Teoria Geral do Direito ivil,
7ª edição, Coimbra, Almedina, 2014, pag. 535