Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
408-F/2001.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: SÍLVIA PIRES
Descritores: INSTÂNCIA
MODIFICAÇÃO OBJECTIVA
Data do Acordão: 09/11/2012
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: TRIBUNAL JUDICIAL DE TRANCOSO
Texto Integral: S
Meio Processual: AGRAVO
Legislação Nacional: ARTºS 273º E 506º, Nº 1 DO CPC
Sumário: I – O art.º 273º do C. P. Civil, que regula a possibilidade de serem introduzi­das modificações objectivas da instância, na falta de acordo das partes, numa excep­ção ao princípio da estabilidade processual, admite que a causa de pedir seja alterada ou ampliada na réplica, se o processo a admitir, a não ser que a alteração ou amplia­ção seja consequência de confissão feita pelo Réu e aceite pelo Autor – n.º 1.
II - Mas essa alteração ou ampliação também pode resultar da apresentação de articulado superveniente, em que o Autor venha alegar factos que ocorreram, ou dos quais ele só teve conhecimento em data posterior à da propositura da acção, nos termos permitidos pelo art.º 506º, n.º 1 do C. P. Civil.
III - Independentemente das dúvidas conceptuais que possa suscitar a utilização neste último preceito da expressão “factos constitutivos do direito” e da estranheza do seu afastamento sistemático dos artigos que regem a admissibilidade da alteração e ampliação da causa de pedir, o princípio da economia processual não pode deixar de exigir que, nessas circunstâncias, se admita tais modificações, pelo que o artigo 506º, n.º 1 do C. P. Civil deve ser lido como permitindo-as.
IV - O n.º 6 do art.º 273º do CPC veio permitir expressamente a modifica­ção simultânea do pedido e da causa de pedir, desde que tal não implique a convola­ção para relação jurídica diversa da controvertida.
Decisão Texto Integral: Acordam na 3ª secção cível do Tribunal da Relação de Coimbra

Os Autores intentaram contra os Réus acção com processo ordinário, pedindo:
1. reconhecer que os autores são comproprietários do prédio controvertido na propor­ção de:
a) M…, viúva, e herdeiros de J… – 1/5;
b) A… e esposa M… - 1/5;
c) N… e esposa  J… - 1/5;
d) Herdeiros de J… – 1/5:
…;
2. reconhecer que os 1ºs Réus apenas são comproprietários de 1/5 do prédio controver­tido.
e ainda
3. Declarar-se nulo o contracto de compra e venda celebrado entre os primeiros Réus e a segunda Ré relativo ao prédio terra de mato e pastagem sita no Rio Mouro, limite da Freguesia de Carapito, desta comarca, a confrontar do nascente e norte com …, poente com … e sul com limite da freguesia de Penaverde, inscrita na matriz sob o artigo…, com valor matricial de 3.125$00;
4. declararem-se nulos e sem efeito todos os registos supra referidos em nome de J…, N… e T…, Limitada e os demais actos praticados na sequência dos mesmos, nomeadamente:
5. serem cancelados todos os registos do referido prédio;
6. serem condenados todos os Réus a pagar uma indemnização aos Autores pelos pre­juízos morais e patrimoniais causados aos autores, nomeadamente gastos com viagens, documentos, tempo perdido, custos do âmbito jurídico e administrativos nomeadamente com Tribunais, Conser­vatórias e Cartórios Notariais, prejuízo referente aos blocos de granito que a segunda ré retirou do prédio controvertido, rendimentos que os Autores não puderam retirar da exploração da pedreira, assim como enormes preocupações e aborrecimentos, tudo a liquidar em execução de sentença
7. e serem condenados os RR no pagamento de custas e procuradoria condigna e demais encargos legais.”
Para fundamentar a sua pretensão alegaram, em síntese:
Ø        São donos do seguinte prédio: terra de mato e pastagem, sito ao Rio Mouro, limite da freguesia de Carapito, Trancoso, …, inscrito na matriz sob o art.º …
Ø        Adquiriram esse prédio por adjudicação que lhes foi feita na acção especial de divisão de coisa comum…em 26.10.1970, data desde a qual o têm possuído como coisa própria…
Ø        Em 2001 os Autores tiveram conhecimento que aquele prédio tinha sido registado em nome de J…, servindo de base a esse registo uma escritura de habilitação de herdeiros por morte da sua cônjuge, M…, em nome de quem nunca tinha sido registado;
Ø        Posteriormente, por morte de J…, aquele prédio foi transmitido a seu filho N...
Ø        A Ré T… comprou o prédio aos Réus, sabendo que os seus proprietários eram os Autores.

Após a elaboração do despacho saneador, vieram os Autores, alegando terem tido conhecimento que a Ré T… vendeu o prédio a terceiros, estando essa aquisição registada desde 15.3.2011, alterar o pedido formulado nos seguintes termos:
1. os AA foram comproprietários do prédio controvertido até 15/03/2011, na proporção de:
…;
2. os 1ºs Réus apenas foram comproprietários de 1/5 do prédio controvertido até 15/03/2011.
e ainda
3. Declarar-se nulo o contrato de compra e venda celebrado entre os primeiros Réus e a segunda Ré relativo ao prédio controvertido nestes autos;
4. declararem-se nulos e sem efeito todos os registos supra referidos em nome de J…, N… e T…, Limitada;
5. serem condenados todos os Réus a pagar aos AA, na proporção referida no nº 1 do pedido, uma quantia correspondente a 4/5 do valor do prédio em causa nestes autos, valor este a liquidar em execução de sentença, uma vez que os AA ficarem impossibilitados de reaverem para si o prédio em causa nestes autos, tendo em conta que o mesmo já foi entretanto vendido a terceiros, no âmbito dum processo de execução movido contra a 2ª R;
6. serem condenados todos os Réus a pagar uma indemnização aos Autores pelos pre­juízos morais e patrimoniais causados aos autores, nomeadamente gastos com viagens, documentos, tempo perdido, custos do âmbito jurídico e administrativos nomeadamente com Tribunais, Conser­vatórias e Cartórios Notariais, prejuízo referente aos blocos de granito que a segunda ré retirou do prédio controvertido, rendimentos que os Autores não puderam retirar da exploração da pedreira, assim como enormes preocupações e aborrecimentos, tudo a liquidar em execução de sentença
7. e serem condenados os RR no pagamento de custas e procuradoria condigna e demais encargos legais.”

A Ré T…, L.da pronunciou-se, defendendo a inadmissibilidade da alteração da causa de pedir, requer a sua absolvição e/ou extinção da instância por inutilidade superveniente da lide, alegando já não ser proprietária do prédio.
Por sua vez os restantes Réus também se pronunciaram pela inadmissibili­dade do requerido pelos Autores.

Foi proferido despacho que admitiu as alterações em causa.

Inconformados com esta decisão, os Réus interpuseram recurso, formu­lando as seguintes conclusões:

Os Autores apresentaram, relativamente aos dois recursos interpostos, contra-alegações, defendendo a confirmação da decisão recorrida.

1. Do objecto dos recursos
Os Autores propuseram a presente acção em que, alegando que os 1.ºs Réus, sendo apenas comproprietários, na proporção de 1/5, de um prédio, o venderam à 2.ª Ré, formularam os seguintes pedidos:

No decurso da acção, após a elaboração do despacho saneador, os Autores na sequência da informação que o prédio em causa já havia sido vendido a terceiros em processo executivo, vieram apresentar articulado superveniente em que, alegando esse facto, vieram reformular as pretensões inicialmente indicadas, formulando agora os seguintes pedidos:

  Do exposto resulta que os Autores com a apresentação de um articulado superveniente ampliaram a causa de pedir e alteraram os pedidos inicialmente formulados.
Será que processualmente esta alteração simultânea da causa de pedir e do pedido é possível?
É este o objecto dos recursos interpostos pelos Réus.

2. Do mérito dos recursos
O art.º 273º do C. P. Civil, que regula a possibilidade de serem introduzi­das modificações objectivas da instância, na falta de acordo das partes, numa excep­ção ao princípio da estabilidade processual, admite que a causa de pedir seja alterada ou ampliada na réplica, se o processo a admitir, a não ser que a alteração ou amplia­ção seja consequência de confissão feita pelo Réu e aceite pelo Autor – n.º 1.
Mas essa alteração ou ampliação também pode resultar da apresentação de articulado superveniente, em que o Autor venha alegar factos que ocorreram, ou dos quais ele só teve conhecimento em data posterior à da propositura da acção, nos termos permitidos pelo art.º 506º, n.º 1, do C. P. Civil.
Independentemente das dúvidas conceptuais que possa suscitar a utilização neste último preceito da expressão “factos constitutivos do direito” e da estranheza do seu afastamento sistemático dos artigos que regem a admissibilidade da alteração e ampliação da causa de pedir, o princípio da economia processual não pode deixar de exigir que, nessas circunstâncias, se admita tais modificações, pelo que o artigo 506º, n.º 1, do C. P. Civil, deve ser lido como permitindo-as [1].
Por esta razão nada obsta a que seja considerada a ampliação da causa de pedir requerida pelos Autores através da dedução de articulado superveniente, em que aleguem a ocorrência de novos factos com interesse para a decisão da causa.
Mas nesse articulado, os Autores também aproveitaram para modificar os pedidos que haviam inicialmente formulado, face ao conteúdo da ampliação da causa de pedir. Essa modificação consistiu numa redução do pedido de reconhecimento do direito de propriedade, uma vez que esse reconhecimento no passado passou apenas a desempenhar o papel de fundamento ou pressuposto dos subsequentes pedidos de declaração de nulidade e de pagamento de indemnizações, e na ampliação de um novo pedido indemnizatório.
A redução dos pedidos formulados é sempre admissível, no âmbito dos direitos disponíveis, face à liberdade de desistência dos mesmos – art.º 293º do C. P. Civil.
E o n.º 2 do art.º 273º do C. P. Civil permite a alteração ou ampliação dos pedidos iniciais após a apresentação da réplica e até ao encerramento da discus­são em 1.ª instância, desde que eles se apresentem como o desenvolvimento ou a consequência do pedido primitivo.
Ora, o aditamento de um novo pedido indemnizatório a acrescer ao ini­cialmente formulado, tendo também como fundamento a já invocada nulidade de venda de coisa alheia, acrescida do facto supervenientemente alegado, não pode deixar de ser considerado um desenvolvimento dos pedidos já formulados, cuja necessidade de dedução resultou da realidade entretanto ocorrida, pelo que tal ampliação também se mostra admissível pelo disposto no art.º 273º, n.º 2 do C. P. Civil.
Resta agora a questão se é admissível a alteração simultânea da causa de pedir e do pedido.
Após alguma polémica anteriormente à revisão do Código de Processo Civil de 1995/96 [2], o n.º 6 do seu art.º 273º veio permitir expressamente a modifica­ção simultânea do pedido e da causa de pedir, desde que tal não implique a convola­ção para relação jurídica diversa da controvertida.
Tendo novamente em atenção o princípio da economia processual, não devem ser consideradas relações jurídicas diversas aquelas que sejam relações dependentes, conexas ou sucedâneas da relação inicialmente alegada [3]. Entre estas não deixa de existir um nexo que permite perfeitamente o aproveitamento do pro­cesso já iniciado, sem necessidade de instauração de nova acção, desde se mostre assegurado o direito ao contraditório face à nova configuração das pretensões deduzidas.
Neste caso, os Autores que, invocando a nulidade de venda de um imóvel, além da declaração dessa nulidade, pediam que lhes fosse reconhecido o direito de compropriedade sobre esse imóvel, tendo alegado a sua alienação posterior a terceiros em processo executivo, passaram a pedir que, em vez de ser reconhecido esse direito de propriedade, os Réus fossem condenados a pagarem-lhes uma indemnização equivalente ao valor do seu direito de compropriedade.
Apesar da nova pretensão não corresponder à mesma relação jurídica que fundamentava o pedido inicial de reconhecimento do direito de compropriedade, ela é, no entanto, um seu sucedâneo, uma vez que a relação obrigacional indemnizatória que agora se invoca surge como compensatória da perda daquele direito, superve­nientemente apurada.
Não estamos, pois, perante uma relação jurídica completamente estranha àquela que os Autores inicialmente configuraram como fundamento do seu direito, apresentando-se antes como substitutiva da primeira, perante a verificação de um evento superveniente que impossibilitou o seu reconhecimento, não havendo qualquer razão que justifique a exigência da propositura de uma nova acção para que se aprecie a relação jurídica invocada em substituição da inicial.
Por estes motivos, não há razões para que não se admita a alteração do pedido e da causa de pedir deduzidas pelos Autores.
Questão diferente desta e que não influi na admissibilidade da modificação objectiva da acção é a da procedência dos pedidos formulados que não cumpre agora nem aqui apreciar, uma vez que essa admissibilidade não comporta qualquer juízo sobre o seu mérito.
Perante a reformulação das pretensões deduzidas pelos Autores a venda do prédio em causa em processo executivo evitou uma eventual inutilidade do prosse­guimento da presente acção, pelo que revela-se acertado o indeferimento do requeri­mento para ser declarada extinta a instância com esse fundamento.

Decisão
Pelo exposto, julgam-se improcedentes os recursos interpostos pelos Réus, confirmando-se a decisão recorrida.

Custas dos recursos pelos Recorrentes.

Coimbra, 11 de Setembro de 2012.


[1]  Neste sentido, José de Sousa Brito, em Identidade e variação do objecto em processo declarativo, pág. 29, do B.M.J., n.º 148, Anselmo de Castro, em Direito processual civil declaratório, vol. I, pág. 209, ed. 1981, Almedina, Lebre de Freitas, em Introdução ao processo civil, pág. 170, ed. de 1996, Coimbra Editora, Miguel Teixeira de Sousa, em Estudos sobre o novo Código de Processo Civil, pág. 299, 2.ª ed, Lex, e Mariana França Gouveia, em A causa de pedir na acção declarativa, pág. 275-277, ed.  2004, Almedina.
[2] Ver um relato sobre esta querela em António Montalvão Machado, em O dispositivo e os poderes do tribunal à luz do novo Código de Processo Civil, pág. 216 e seg., 2.ª ed., Almedina, e as pronúncias anteriores a esta revisão legislativa de Castro Mendes, em Direito processual civil, vol. II, pág. 428, ed. 1987, da AAFDL, Miguel Teixeira de Sousa, em As partes, o objecto e a prova na acção declarativa, pág. 189, ed. 1995, Lex, Antunes Varela/Miguel Bezerra/Sampaio e Nora, em Manual de processo civil, pág. 282, da 2.ª ed., Coimbra Editora.

[3] Neste sentido, Lebre de Freitas, na ob. cit, pág. 171/172.