Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
2674/21.0YRLSB-2
Relator: JORGE LEAL
Descritores: REVISÃO DE SENTENÇA ESTRANGEIRA
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 01/27/2022
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Texto Parcial: N
Meio Processual: REVISÃO DE SENTENÇA ESTRANGEIRA
Decisão: IMPROCEDENTE
Sumário: I– As escrituras notariais podem ser objeto da ação especial de revisão de sentença estrangeira se no país de origem tiverem efeito equivalente ao de uma sentença.

II.– Não podem ser objeto de revisão e confirmação, nos termos da ação especial de revisão de sentença estrangeira, as declarações estatutárias (statute declarations), emitidas em Inglaterra, perante notário (notary public), tendo por conteúdo a afirmação de que os declarantes se encontram a viver numa relação de união de facto.


Sumário (art.º 663.º n.º 7 do CPC
Decisão Texto Parcial:
Decisão Texto Integral: Acordam os juízes no Tribunal da Relação de Lisboa

I.–RELATÓRIO:

1.–Em 11.11.2021 João, português, residente na (…) Road, Londres (…), Grã-Bretanha, e Oliver, britânico, residente na (…) Road, Londres (…), Grã-Bretanha, propuseram conjuntamente a presente ação declarativa com processo especial de revisão de sentença estrangeira.

Os requerentes alegaram, em síntese, que em 28 de julho de 2021 celebraram uma Escritura de Declaração Estatutária de União de Facto no Notário Público (…), em Londres, Reino Unido.

Segundo os requerentes trata-se de um documento legal correspondente a sentença, que confere aos declarantes o estatuto de relação equiparada à dos cônjuges nos termos do direito britânico.

Os requerentes terminaram pedindo que a dita Declaração Estatutária fosse revista e confirmada nos seus precisos termos, confirmando-se a união estável.

2.–Em 16.11.2021 foi proferido o seguinte despacho:

João (…) e Oliver (…) vieram requerer a revisão e confirmação de uma escritura de declaração estatutária de união de facto por eles outorgada em 28.7.2021 perante Notário Público em Londres.

Os requerentes alegam que tal documento corresponde a uma sentença, conferindo aos declarantes o estatuto de relação equiparada à dos cônjuges nos termos do direito britânico.

Temos vindo a admitir a revisão de documentos notariais estrangeiros quando estes produzem efeitos jurídicos no país onde foram emitidos – é o caso das escrituras de declaração de união estável no Brasil (cfr., v.g., acórdão da Relação de Lisboa, de 11.12.2019, processo 1807/19.0YRLSB-7, consultável em www.dgsi.pt).

Haverá, pois, que averiguar se a ora apresentada “declaração estatutária de união de facto” produz efeitos jurídicos relevantes no Reino Unido, nomeadamente se tem a virtualidade de constituir, perante as autoridades desse país, uma relação jurídica relevante equiparável à de união de facto (ou de cônjuges).

O que parece resultar do Civil Partnership Act de 2004, emitido pelo Parlamento do Reino Unido, é que a civil partnership, correspondente à nossa união de facto, se formaliza através de um processo de registo requerido perante um registry office, o qual culmina com a assinatura de um civil partnership document, efetuada perante duas testemunhas na presença de um oficial de registo (cfr. art.º 2.º - “Section 2” - da referida Lei).

De resto, segundo o art.º 75.º da referida lei, um mero “acordo de união de facto” (“civil partnership agreement”) não tem qualquer força jurídica (“does not under the law of England and Wales have effect as a contract giving rise to legal rights”).

Afigura-se, pois, a este Relator, que o documento ora apresentado não reveste natureza jurídica equiparável à de uma sentença, não cabendo, pois, a sua revisão e confirmação.

Ao abrigo dos artigos 3.º n.º 3 e 7.º n.º 2 do CPC concede-se aos requerentes o prazo de 20 dias para virem aos autos prestar os esclarecimentos que a este respeito se lhes afigurar serem relevantes.

3.–Os requerentes apresentaram a seguinte resposta:

1.-Os Requerentes vivem numa relação de União de Facto desde março de 2012.

2.-Por ser verdade, os requerentes celebraram em 28 de julho de 2021 uma Escritura de Declaração Estatutária de União de Facto no Notário Público (…), em Londres, Reino Unido.

3.-Resulta da Escritura de Declaração Estatutária de União de Facto o reconhecimento de que os seus outorgantes estão “numa relação genuína e duradoura” e que têm “toda a intenção de viver permanentemente juntos numa relação.”

4.-Tal declaração deve ser averbada ao assento de nascimento do A. em cumprimento do previsto no art. 7º do Código de Registo Civil, bem como para conferir a necessária proteção contra terceiros.

5.-Salvo melhor opinião, a promoção de decisão nesse sentido tem sido o correto entendimento do Tribunal da Relação de Lisboa, quando confrontado com pedidos em tudo idênticos. Senão vejamos,

6.-No processo nº 2977/19.3YRLSB, que correu termos na 6ª Secção do Tribunal da Relação de Lisboa, instruído com uma declaração em tudo idêntica à que foi apresentada nestes autos, por decisão de 28/06/2021 foi promovida a revisão da referida declaração estatutária, conforme documento nº 1 que se junta.

7.-No mesmo sentido promoveu o ilustre Magistrado do Ministério Público no processo nº 2046/21.6YRLSB, a correr termos na 6ª Secção do Tribunal da Relação de Lisboa, instruído uma vez mais com uma declaração estatutária em tudo idêntica à que se encontra junta nos presentes autos, conforme documento nº2 que se junta.

8.-Os Requerentes vivem numa relação de União de facto, relação essa que não consubstancia uma Civil Partnership nos termos do Civil Partnership Act de 2004,

9.-nem tão pouco a sua Declaração Estatutária pretende substituir-se a esta ou sequer enquadrar-se na promessa de contratar a que equivale um civil partnership agreement.

10.-A União de Facto dos Requerentes resume-se a um acordo de Living Together/Cohabitation.

11.-Embora não exista uma definição legal de Living Together, esta é geralmente entendida como a circunstância em que duas pessoas vivem juntos como um casal sem estar casados.

12.-Os casais que vivem juntos são também intitulados de parceiros de Common Law.

13.-Esta é apenas outra forma de descrever um casal em situação de Living together/Cohabitation.

14.-A formalização do estatuto de Living Together/Cohabitation, concretiza-se através da elaboração de um acordo legal.

15.-Um acordo de coabitação delineia os direitos e obrigações de cada parceiro em relação um ao outro.

16.-Os acordos de coabitação são juridicamente vinculativos entre casais.

17.-Podem ajudar a esclarecer como pretendem gerir as suas finanças enquanto vivem juntos e proporcionar certeza na divisão de bens após a rutura da relação.

18.-Têm assim a minucia e completude que o casal lhe pretender atribuir.

19.-A coabitação está consagrada na lei inglesa desde o início do moderno Estado-providência em 1948.

20.-O termo "viver juntos como marido e mulher" foi introduzido a partir de 4 de abril de 1977 para significar o mesmo que "coabitar com um homem como sua esposa" que fora usado até essa data.

21.-O termo atualmente em vigor é "viver juntos como um casal casado".

22.-Para serem considerados como a "viver juntos como um casal casado" ou a coabitar, há várias questões a considerar.

23.-A questão da coabitação deve ter em consideração todas as seguintes seis questões, e analisar a relação como um todo:

a)- O casal vive no mesmo agregado familiar?

b)- Trata-se de uma relação estável?

c)- O que acontece com o dinheiro?

d)- É uma relação de cariz sexual?

e)- Há filhos?

f)- O que pensam as outras pessoas?

24.-Os Requerentes cumprem todos os requisitos à exceção de filhos em comum.

25.- Embora a relação de Living Together/Cohabitation não seja um estado civil, de resto à semelhança da União de facto portuguesa, o seu reconhecimento tem alguns efeitos semelhantes aos do casamento.

26.-Uma relação de Living Together/Cohabitation produz efeitos jurídicos e conferem aos membros do casal o direito a prestações sociais e/ou créditos fiscais, conforme Decision Maker’s Guide, Volume 3, Chapter 11 que se junta como documento nº 3.

27.-Posto isto, não restando quaisquer dúvidas sobre a autenticidade do documento junto,

28.-O que se pretende nestes autos é a revisão e confirmação do documento legal estrangeiro apresentado, correspondente a sentença, que confere aos declarantes o estatuto de relação equiparada à dos cônjuges nos termos do direito britânico.

29.-A decisão de uma autoridade administrativa estrangeira sobre direitos privados deve ser considerada como abrangida pela previsão do nº 1 do art.978º do CPC, carecendo de revisão para produzir efeitos em Portugal.

30.-Tal declaração deve ser averbada ao assento de nascimento do A. em cumprimento do previsto no art. 7º do Código de Registo Civil, bem como para conferir a necessária proteção contra terceiros.

31.-O documento correspondente a sentença provém de autoridade estrangeira que é competente, não foi proferida em fraude à lei e não versa sobre matéria da exclusiva competência dos tribunais portugueses.

32.-A correspondente Declaração Estatutária, cuja revisão se requer não é incompatível com os princípios da ordem pública internacional do Estado Português.

Nestes termos e nos melhores de direito, deve a Declaração Estatutária de efeito equivalente a sentença da união estável ser revista e confirmada nos seus precisos termos, confirmando-se a união estável”.

4.–Facultou-se o exame do processo para alegações, nos termos do art.º 982.º n.º 1 do CPC.

4.1.-O Ministério Público formulou a seguinte alegação:

O art.º 978.º, nº 1 do Código de Processo Civil dispõe que «sem prejuízo do que se acha estabelecido em tratados, convenções, regulamentos da União Europeia e leis especiais, nenhuma decisão sobre direitos privados proferida por tribunal estrangeiro tem eficácia em Portugal, seja qual for a nacionalidade das partes, sem estar revista e confirmada».

O processo de revisão de sentença estrangeira encontra-se regulado nos arts. 979.º a 985º do Código de Processo Civil, estando os requisitos cumulativos necessários para confirmação previstos nas alíneas a) a f) do art.º 980.º do Código de Processo Civil.

Ao Tribunal da Relação apenas compete exercer uma sindicância de carácter formal e não um reexame de mérito da decisão revidenda.

A revisão do conteúdo da escritura em causa envolve, assim, unicamente, a verificação da sua regularidade formal ou extrínseca, não pressupondo a apreciação dos fundamentos de facto e de direito da mesma.

Não oferece dúvidas a autenticidade da escritura que contém a declaração a rever e a inteligibilidade - formal e real – do ali declarado (art.º 980. °, al. ª a) do Código de Processo Civil).

Por outro lado, e tendo em conta o estabelecido pelo art.º 984. °, provado não vem e dos autos não decorre que falte algum dos requisitos exigidos nas alíneas b) a e) do referido preceito.

De resto, constata-se que o acto revidendo não contém declaração cujo reconhecimento conduza a um resultado manifestamente incompatível com os princípios da ordem pública internacional do Estado Português (art.º 980.º, al. ª f, do Código de Processo Civil).

Nestes termos e sendo este o Tribunal competente em razão da matéria, da nacionalidade e da hierarquia, sendo as partes legítimas, dotadas de personalidade e capacidade judiciária, nada obsta à pretendida revisão e confirmação.

4.2.–Na sua alegação os requerentes reiteraram a posição expressa no requerimento inicial e na resposta apresentada ao despacho de 16.11.2021.

5.–Foram colhidos os vistos legais.

II.– FUNDAMENTAÇÃO

1.–O tribunal é o competente e não se verificam exceções dilatórias, nulidades ou questões prévias que obstem ao conhecimento da causa.

2.–Está provada a seguinte

Matéria de facto

1.-O requerente João (…) nasceu a 22 de janeiro de 1988, na freguesia de (…), Sintra, e tem a nacionalidade portuguesa.

2.-O requerente Oliver (…) é cidadão britânico.

3.-No dia 28 de julho de 2021, em (…) London (…), Inglaterra, perante o Notário Público (…), os ora requerentes emitiram a seguinte declaração, em língua inglesa, cuja tradução para a língua portuguesa, certificada, reza assim:

Tanto eu, João (…) como eu, Oliver (…), declaramos solene e sinceramente o seguinte:

1.-Eu, João (…), sou cidadão português com passaporte número (…). Confirmo que estou numa relação com Oliver (…).

2.-Eu, Oliver (…), sou um cidadão britânico com o passaporte número (…). Confirmo que estou numa relação com João (…).

3.-Confirmamos que vivemos como um casal casado, uma relação de união de facto, e fazemo-lo desde março de 2012. Atualmente, vivemos juntos em (…) Road, London (…).

4.- Confirmamos que estamos numa relação genuína e duradoura um com o outro. Nós temos toda a intenção de viver permanentemente juntos numa relação.

5.-E Nós FAZEMOS ESTA DECLARAÇÃO acreditando conscienciosamente que esta é verdade.

4.-A dita declaração foi formalizada num documento encimado com o título Statutory declaration (“Declaração estatutária”, na tradução certificada para a língua portuguesa), e foi assinada pelos ora requerentes e pelo Notário Público, com a menção de que a declaração foi efetuada perante este, com indicação da data e local, e contém o selo vermelho notarial.

3.–O Direito

O art.º 978.º do CPC estipula o seguinte:

Necessidade da revisão

1-Sem prejuízo do que se ache estabelecido em tratados, convenções, regulamentos da União Europeia e leis especiais, nenhuma decisão sobre direitos privados, proferida por tribunal estrangeiro, tem eficácia em Portugal, seja qual for a nacionalidade das partes, sem estar revista e confirmada.

2- Não é necessária a revisão quando a decisão seja invocada em processo pendente nos tribunais portugueses, como simples meio de prova sujeito à apreciação de quem haja de julgar a causa”.

A confirmação de sentença estrangeira reconhece-lhe, na ordem interna do Estado do foro, os efeitos que lhe cabem no Estado de origem, como ato jurisdicional, segundo a lei desse mesmo Estado. Esses efeitos são o caso julgado e o título executivo.

O reconhecimento é essencial para a continuidade e estabilidade das situações jurídicas, em especial na área do estatuto pessoal.

Na definição do regime de tal reconhecimento há que levar em consideração, como se enuncia logo no início do n.º 1 do art.º 978.º, o direito supra estadual pertinente, o qual poderá determinar um procedimento confirmatório distinto, e até dispensá-lo. É o caso (para além de diversas convenções internacionais), do direito comunitário europeu, que integra diversos regulamentos que visam precisamente facilitar a circulação no espaço comunitário de decisões judiciais na área dos direitos privados.

Estando em causa, na presente ação, um instrumento jurídico alegadamente equivalente a uma decisão judicial proferida no Reino Unido (com data de 28.7.2021), cabe notar que a saída do Reino Unido da União Europeia, formalizada no Acordo sobre a saída do Reino Unido da Grã-Bretanha e da Irlanda do Norte da União Europeia e da Comunidade Europeia da Energia Atómica (publicado no Jornal Oficial com o número 2019/C 384 I/01), que se efetivou (a saída) em 31.01.2020 (cfr. Decisão do Conselho Europeu, de 28.10.2019, tomada com o acordo do Reino Unido, de prorrogação do prazo previsto no art.º 50.º n.º 3 do TUE), a que se seguiu um período de transição que terminou em 31.12.2020 (art.º 126.º do Acordo), fez cessar a aplicação àquele país dos aludidos regulamentos, ficando excluídas do seu âmbito, nos termos do art.º 67.º do Acordo de Saída, as decisões proferidas no âmbito de processos judiciais iniciados após a data da cessação do período de transição (31.12.2020).

Os referidos regulamentos da União Europeia não são, pois, aplicáveis ao instrumento jurídico ora trazido a juízo (deixando agora de lado a questão da sua equiparação a sentença), uma vez que aquele data de 28.7.2021, não tendo sido antecedido, que se saiba, de qualquer procedimento prévio relevante, iniciado ainda durante o referido período de transição (que decorreu de 01.02.2020 a 31.12.2020).

No mais, não se vislumbram convenções internacionais que possam ser aplicáveis ao documento notarial trazido a este tribunal, para os efeitos previstos no art.º 978.º n.º 1 do CPC.

Nos termos do disposto no art.º 980.º do Código de Processo Civil, para que a sentença estrangeira seja confirmada é necessário que:

a)-Não haja dúvidas sobre a autenticidade do documento de que conste a sentença nem sobre a inteligência da decisão;

b)-A sentença tenha transitado em julgado segundo a lei do país em que foi proferida;

c)-A sentença provenha de tribunal estrangeiro cuja competência não tenha sido provocada em fraude à lei e não verse sobre matéria da exclusiva competência dos tribunais portugueses;

d)-Não possa invocar-se a exceção de litispendência ou de caso julgado com fundamento em causa afeta a tribunal português, exceto se foi o tribunal estrangeiro que preveniu a jurisdição;

e)-O réu tenha sido regularmente citado para a ação, nos termos da lei do país do tribunal de origem, e no processo hajam sido observados os princípios do contraditório e da igualdade das partes;

f)-A sentença revidenda não contenha decisão cujo reconhecimento conduza a um resultado manifestamente incompatível com os princípios da ordem pública internacional do Estado Português.

O art.º 984.º do Código de Processo Civil estipula que o tribunal deve verificar oficiosamente se concorrem as condições indicadas nas alíneas a) e f) supracitadas; quanto às restantes condições, o tribunal deve negar a confirmação quando, pelo exame do processo ou por conhecimento derivado do exercício das suas funções, apure que falta algum ou alguns desses requisitos.

Cumpre averiguar, em primeiro lugar, se o documento cuja revisão e confirmação ora é requerida pode ser equiparado, para esse efeito, a uma sentença ou decisão jurisdicional.

Atalhando razões, dir-se-á que se tem entendido, quanto ao reconhecimento de dissoluções de matrimónio pelo divórcio, que a circunstância de o ato revidendo não provir de um tribunal, mas de uma autoridade administrativa, nomeadamente de um serviço notarial, não obsta à revisão, uma vez que, como é sabido, existem países, entre os quais Portugal, em que a competência para a atuação na dissolução do casamento por divórcio é outorgada, em certas condições, a outras autoridades que não tribunais, devendo tais atuações ser revistas nos termos previstos no art.º 978.º e seguintes (cfr., neste sentido, v.g., acórdão do STJ, de 12.7.2005, processo n.º 05B1880 e acórdão do STJ, de 25.6.2013, processo n.º 623/12.5YRLSB.S1, ambos publicados, assim como os adiante citados, em www.dgsi.pt). É o que se passa no Brasil, onde o divórcio consensual pode ser formalizado por escritura pública, conforme atualmente está previsto no art.º 733.º do CPC brasileiro. A circunstância de a autoridade administrativa não emitir uma vontade de produção de efeitos jurídicos de regulação do interesse privado em questão não retirará ao ato em causa a natureza de decisão, para os efeitos da pretendida revisão. O que releva é que essa intervenção constitua requisito e fonte da produção dos desejados efeitos jurídicos no ordenamento jurídico estrangeiro, o que se pretende que ocorra também no ordenamento jurídico português.

Embora sem isenção de controvérsia, tem-se entendido que tal princípio deverá estender-se às escrituras de união estável oriundas do Brasil.

Com efeito, a união estável é expressamente reconhecida na Constituição da República Federativa do Brasil, no § 3.º do art.º 266.º (“Para efeito da proteção do Estado, é reconhecida a união estável entre o homem e a mulher como entidade familiar, devendo a lei facilitar sua conversão em casamento”) e o Código Civil brasileiro contém todo um título III (artigos 1723.º a 1727.º) regulando a união estável (definida no art.º 1723.º como “união estável entre o homem e a mulher, configurada na convivência pública, contínua e duradoura e estabelecida com o objetivo de constituição de família”), prevendo os respetivos impedimentos, direitos e deveres.

O Supremo Tribunal Federal do Brasil tem emitido acórdãos que equiparam a união estável ao casamento, além de incluir (como não podia deixar de ser) na união estável a união entre casais do mesmo sexo (cfr., por todos, o acórdão de 10.5.2017, proferido no recurso extraordinário 646.721 RIO GRANDE DO SUL Supremo Tribunal Federal STF - RECURSO EXTRAORDINÁRIO : RE 646721 RS - RIO GRANDE DO SUL (jusbrasil.com.br)).

Por outro lado, a escritura pública de união estável é reconhecida, ao lado da sentença judicial, como instrumento de formalização do distrate da união estável (cfr. artigos 732.º e 733.º do CPC brasileiro). E também o é como instrumento de formalização do reconhecimento da existência da união estável, podendo ser alvo de registo, como expressamente estipulado em 07.7.2014 pelo Provimento n.º 37 do Conselho Nacional de Justiça provimento_37_07072014_11072014155005.pdf (cnj.jus.br), órgão a quem compete o controle da atuação administrativa do Poder Judiciário, a fiscalização dos serviços notariais e de registo e a regulamentação das atividades dos serviços notariais e dos registos (cfr. artigos 103.º-B, § 4.º, I, II e III da Constituição Federal Brasileira).

Pese embora existam decisões contrárias, (cfr. acórdãos do STJ, de 28.02.2019, processo 106/18.0YRCBR.S; 21.3.2019, processo 559/18.6YRLSB.S1; 10.12.2019, processo 249/18.0YPRT.S2), outras têm sido proferidas no sentido ora propugnado (acórdão do STJ, de 29.01.2019, processo 896/18.0YRLSB.S1; acórdão da Relação de Lisboa, de 24.10.2019, processo 2403/19.8YRLSB.L1-2; acórdão da Relação de Lisboa, de 21.11.2019, processo 1899/19.2YRLSB-6; acórdão da Relação de Lisboa, de 11.12.2019, processo 1535/19.7YRLSB; acórdão do STJ, de 08.9.2020, processo 1884/19.4YRLSB.S1; acórdão do STJ, de 13.10.2020, processo 47/20.0YRGMR.S1; acórdão da Relação de Lisboa, 09.9.2021, processo 1473/21.3YRLSB-6; acórdão da Relação de Lisboa, de 28.9.2021, processo 1274/21.9YRLSB-7).

Nesses acórdãos tem-se defendido, e com isso concordamos, que basta, para a aplicação da presente ação especial, que se esteja perante intervenção de oficial público que produza efeitos jurídicos relevantes segundo o ordenamento jurídico do Estado de origem, como se fora um tribunal. Nesse sentido a intervenção do oficial público terá uma repercussão performativa na ordem jurídica onde está prevista e onde foi praticada, significando essa intervenção mais do que o mero reforço da força probatória de uma determinada situação. O plus dessa intervenção não poderá residir na mera força probatória acrescida atribuída às declarações presenciadas pelo oficial público (cfr. o acórdão da Relação de Lisboa, de 21.11.2019, acima citado). É o que se passa, conforme acima descrito, com a celebração de escritura de união estável no Brasil.

Analisemos agora o caso destes autos.

Os requerentes documentaram no processo uma alegação do Ministério Público formulada ao abrigo do art.º 982.º n.º 1 do CPC e uma decisão sumária proferida numa outra secção deste Tribunal, emitidas sobre casos idênticos ao destes autos, nas quais se concluiu pela pretendida revisão e confirmação.

Vejamos o teor da alegação do Ministério Público, proferida no processo 2046/21.6YRLSB da 6.ª secção:

Os autores vieram pedir a revisão e a confirmação de «Escritura de Declaração Estatutária de União de Facto» outorgada no Reino Unido pelos ora Requerentes, ao abrigo do Statutory Declarations Act 1835.

Trata-se de uma declaração feita perante um notário, que apresenta semelhança com a “Escritura Pública de União Estável” celebrada de acordo com o direito brasileiro.

Relativamente a esta última tem-se suscitado a questão de saber se o pedido de revisão e confirmação de uma escritura pública celebrada no Brasil em que, sem qualquer acto decisório formal da autoridade pública desde país, as partes declaram viver em união estável, pode ser apreciado e deferido.

Muito recentemente, em 09-09-2021, foi proferido o acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa, no processo 1473/21.3YRLSB (inédito) com o seguinte sumário:

1.- A escritura pública de união estável prevista no ordenamento jurídico brasileiro como forma de constituição de uma relação familiar, pelos efeitos que tem nesse ordenamento, deve ser equiparada a uma sentença que, em acção especial intentada com essa finalidade, declare a união estável, para efeitos do disposto no artigo 978.º do Código de Processo Civil.

2.- Tal escritura pública de união estável carece de revisão e confirmação pelos tribunais portugueses para produzir efeitos em Portugal. “

Idêntico entendimento foi expresso na Decisão Sumária de 15-09-2021, proferida no p. 1564/21.0YRLSB, onde se assinala, para além do mais, que “(…) encontra-se consolidada a jurisprudência no sentido de que as escrituras de divórcio consensual são assimiláveis a decisão estrangeira susceptível de revisão, com a menção incidental de que, nessas escrituras, o agente público homologa as declarações das partes.”

Por se afigurar pertinente e convincente a fundamentação explanada nos referidos arestos, acompanha-se este entendimento jurisprudencial.

Não oferece dúvidas a autenticidade da escritura pública que contém a declaração a rever e a inteligibilidade do ali declarado - al. a) do art.° 980° do Código de Processo Civil (CPC).

Por outro lado, e tendo em conta o estabelecido pelo art. 984°, não decorre dos autos que falte algum dos requisitos contidos nas alíneas b) a e) daquele preceito legal.

Acresce que, o ato revidendo não contem declaração cujo reconhecimento conduza a um resultado manifestamente incompatível com os princípios da ordem pública internacional do Estado Português - alínea b) do referido art.º 980º do CPC.

Nestes termos, e sendo este Tribunal competente em razão da nacionalidade, da matéria e da hierarquia, sendo as partes legítimas, dotadas de personalidade e capacidade judiciária, nada obsta à revisão e confirmação da «Escritura de Declaração Estatutária de União de Facto», nos seus precisos termos, pelo que se deverá atender a pretensão”.

Por sua vez a decisão sumária documentada nos autos pelos requerentes, proferida em 28.6.2021 pela 6.ª Secção desta Relação no processo n.º 2977/19.3YRLSB (inédita) tem a seguinte redação (transcreve-se a parte relevante):

Não se suscitam dúvidas sobre a autenticidade do documento de onde consta a sentença revidenda, sobre a sua inteligibilidade e sobre o trânsito em julgado da respectiva decisão.

Não se mostra ofendida qualquer das regras de competência internacional previstas no art. 62 do CPC.

O nosso sistema de reconhecimento de sentenças estrangeiras é informado pelo princípio da revisão predominantemente formal, pelo controlo da regularidade formal ou extrínseca da sentença estrangeira, que dispensa a apreciação dos seus fundamentos de facto e de direito, devendo tornar-se em linha de conta a decisão contida na sentença estrangeira .

O reconhecimento de uma sentença estrangeira radica na necessidade de “assegurar a continuidade e estabilidade das situações da vida jurídica internacional, a fim de que os direitos adquiridos e as expectativas dos interessados não sejam ofendidos”.

Ferrer Correia (Lições de Direito Internacional Privado, Almedina, pag 454) diz que reconhecer uma sentença estrangeira é atribuir-lhe no Estado do Foro (Estado Requerido, Estado ad quem) os efeitos que lhe competem segundo a lei do Estado onde foi proferida (Estado de origem, Estado a quo) ou pelo menos alguns desses efeitos. Diz também que “ os efeitos próprios da sentença considerada como tal- os que derivam da sua natureza de acto de jurisdição, são o efeito do caso julgado e o efeito executivo”.

Luís de Lima Pinheiro em Direito Internacional Privado, Volume III, Almedina, 2002, pág.240, diz que por decisão entende-se qualquer acto público que segundo a ordem jurídica do estado de origem tenha força de caso julgado. Há que aferir perante o Direito do Estado de origem se a decisão foi proferida por um órgão público e se tem a força de caso julgado.

O Tribunal português competente para a revisão e cumprimento deve verificar se a sentença estrangeira satisfaz certos requisitos de forma, não conhecendo do fundo ou mérito, não procedendo a um novo julgamento da causa.

O processo e revisão de sentença estrangeira previsto no art. 978 e segs do CPC é aplicável também a actos relativos a direitos privados resultantes de um procedimento da ordem jurídica estrangeira em que esteja prevista a intervenção de uma autoridade não jurisdicional.

O que interessa é o conteúdo do acto administrativo e o efeito que provenha de uma autoridade administrativa que lhe é conferido na jurisdição estrangeira.

Deve ser um acto caucionado administrativo pela ordem jurídica em que foi produzido.

Se a legislação do país de origem atribui a um acto equivalência a uma sentença deve proceder-se à revisão se estiverem preenchidos os restantes requisitos.

A decisão não ofende os princípios de ordem pública do direito português.

Assim, estão verificados os requisitos legais previstos no art. 980 do CPC.

Pelo exposto, considera-se revista e confirma-se declaração estatutária de relação de união de facto, efectuada em 26.10.2019., em Islington, Londres, Inglaterra, entre Susana (…) e Ahmed (…), na ordem jurídica portuguesa, para produzir os seus efeitos”.

Como se vê, nestas duas peças processuais acolhe-se entendimento idêntico ao acima propugnado quanto ao tratamento a dar a documentos emanados de autoridades públicas a que o ordenamento jurídico respetivo atribua valor equivalente ao de uma sentença. E, aplicando esse entendimento, nessas peças processuais chegou-se a conclusão idêntica à que vem maioritariamente sido acolhida nos casos de reconhecimento das escrituras de união estável celebradas no Brasil (que, pelo menos de forma expressa no caso da alegação do Ministério Público na 6.ª secção, se equiparou ao caso das invocadas statutory declarations de relação de união de facto).

Pelo mesmo caminho seguiu o ilustre magistrado do Ministério Público na alegação que proferiu nestes autos, acima transcrita em I. 4.1.

Porém, com o devido respeito por opinião contrária, cremos que o regime jurídico do Reino Unido determina solução diversa.

A situação jurídica trazida a estes autos não é análoga à união estável reconhecida no Brasil.

O instituto jurídico britânico equivalente à união estável brasileira, previsto e regulado no Reino Unido, é a civil partnership.

O regime da civil partnership foi aprovado pelo Civil Partnership Act 2004 (consultável, bem como todos os diplomas legais britânicos adiante citados, no site do governo britânico www.legislation.gov.uk, que contêm, salvo indicação em contrário, as respetivas atualizações).

O Civil Partnership Act 2004 destinou-se a atribuir aos casais formados por pessoas do mesmo sexo direitos e deveres idênticos aos do casamento, obviando ao facto de essas pessoas não poderem contrair matrimónio. Esse obstáculo (impossibilidade de os casais do mesmo sexo contraírem matrimónio), de resto, foi arredado pelo Marriage (Same Sex Couples) Act 2013. E atualmente, na sequência do Civil Partnerships, Marriages and Deaths (Registration etc) Act 2019 (desencadeado por um acórdão do Supreme Court, proferido em 27.6.2018 - Steinfeld v Secretary of State for International Development [2018] UKSC 32 - que considerou que o Civil Partnership Act 2004 violava a Convenção Europeia dos Direitos Humanos ao não conceder aos casais heterossexuais a possibilidade de constituírem uma civil partnership), os casais heterossexuais também podem constituir uma civil partnership.

A civil partnership formaliza-se através de um processo de registo requerido perante um registry office, o qual culmina com a assinatura de um civil partnership document, efetuada perante duas testemunhas na presença de um oficial de registo (cfr. art.º 2.º - “Section 2” - da referida Lei). Os seus membros (sujeitos aos impedimentos previstos na lei) têm direitos e deveres em muitas áreas idênticos aos decorrentes do casamento, tanto do ponto de vista pessoal como patrimonial, incluindo o regime sucessório (cfr. Inheritance and Trustees`Powers Act 2014).

Como se disse, a constituição do civil partnership está sujeita a registo.

Trata-se, pois, de um instituto jurídico que se aproxima da união estável brasileira e vai muito para além do regime jurídico português: com efeito, em Portugal a jurisdicidade da situação de união de facto traduz-se tão só na proteção que o legislador lhe confere em aspetos parcelares, que a Lei n.º 7/2001, de 11.5 (republicada pela Lei n.º 23/2010, de 30.8) sintetiza nos artigos 3.º a 6.º. E em Portugal a união de facto não está sujeita a registo (cfr. art.º 1.º do Código de Registo Civil; neste sentido, v.g., acórdão da Relação de Lisboa, de 26.10.2006, processo 7509/2006-2 e Rossana Martingo Cruz, União de facto versus casamento, questões pessoais e patrimoniais, Gestlegal, 2019, pp. 215).

A fim de se proteger os interesses de nacionais e estrangeiros que tenham constituído no estrangeiro uniões comparáveis à civil partnership, a Civil Partnership Act 2004 contém uma lista de institutos jurídicos previstos nos outros países que se considera serem equivalentes à civil partnership. Nessa lista (Schedule 20), no que diz respeito a Portugal, apenas se equipara à civil partnership o casamento (“marriage”). Já no que diz respeito ao Brasil, enunciam-se o casamento (“marriage”) e a união estável.

É certo que, como referem os requerentes, no Reino Unido as pessoas que vivem juntas como um casal, sem terem contraído matrimónio ou uma civil partnership, beneficiam de alguma proteção, nomeadamente ao nível da Segurança Social.

Para esse efeito encontram-se definições de casal (couple) como as que constam no artigo (“section”) 137 (1) do Social Security Contributions and Benefits Act 1992:

(a) two people who are married to, or civil partners of, each other and are members of the same household; or

(b) two people who are not married to, or civil partners of, each other but are living together as a married couple otherwise than in prescribed circumstances

Ou no artigo 39 do Welfare Reform Act 2012:

a) two people who are married to, or civil partners of, each other and are members of the same household; or

(b)two people who are not married to, or civil partners of, each other but are living together as if they were a married couple or civil partners”.

Isto é, duas pessoas que vivem juntas como se estivessem casadas entre si ou fossem parceiras civis.

Em certos casos também se usa, para a mesma realidade, o conceito “cohabitation” e “cohabitants” (v.g., artigo 62 parágrafo 1 alínea a) da Family Law Act 1996, que prevê medidas de proteção quanto à utilização da casa de morada de família: “cohabitants” are two persons who are neither married to each other nor civil partners of each other but are living together as if they were a married couple or civil partners”).

Essas situações, porém, não estão sujeitas a registo e não existe qualquer norma no ordenamento jurídico britânico que estipule acerca da sua formalização ou dissolução, contrariamente ao que ocorre no Brasil para a união estável e no Reino Unido para a civil partnership.

De todo o modo, sempre se dirá que desde há anos existem movimentações no Parlamento Britânico tendo em vista reforçar a proteção dos casais que não formalizaram a sua relação numa das duas formas hoje legalmente previstas (marriage e civil partnership). Nessa senda se tem evidenciado, na Câmara dos Lordes, Lorde Marks of Henley-on-Thames, que nesse sentido já patrocinou diversos projetos de lei (Bills), até agora sempre gorados, sendo o mais recente o Cohabitation Rights Bill (nome abreviado do título completo “A Bill to provide certain protections for persons who live together or have lived together as a couple; to make provision about the property of deceased persons survived by a cohabitant; and for connected purposesCohabitation Rights Bill [HL] (HL Bill 97) (parliament.uk)).

Analisemos agora o documento cuja revisão foi pedida pelos requerentes.

As statutory declarations estão previstas no Statutory Declaration Act 1835.

A statury declaration é uma declaração solene, proferida por escrito perante um terceiro para tal legalmente autorizado, mediante a qual o declarante declara factos, que assegura serem verdadeiros, tanto quanto é do seu conhecimento. A falta consciente à verdade aquando da prestação dessa declaração é considerada perjúrio, sendo punida com prisão até 2 anos e/ou multa (cfr. Perjury Act 1911, artigo 5 (a)).

Tal documento terá força probatória acrescida quanto à realização da declaração, com as formalidades nele documentadas, valendo como se a declaração tivesse sido prestada perante quem o documento vier a ser apresentado, nomeadamente em tribunal (cfr. artigo 15 do Statutory Declaration Act 1835).

A sua realização poderá ser imposta por lei ou ser voluntariamente efetuada, perante um justice of the peace, notary public ou outro funcionário (officer) legalmente autorizado a receber declarações ajuramentadas (artigo 18 da Statutory Declaration Act 1835).

Para valer como statutory declaration a declaração deverá necessariamente conter as seguintes fórmulas:

I (nome) do solemnly and sincerely declare, that and I make this solemn declaration conscientiously believing the same to be true”.

Dúvidas não há que o documento junto pelos requerentes contém a suprarreferida declaração solene. E dúvidas não há que a mesma foi produzida perante entidade para tal autorizada, provida, pois, do respetivo poder público.

Porém, esse documento não produz, na ordem jurídica britânica, efeitos jurídicos que vão além da mera força probatória da declaração. Dela não nasce a relevância jurídica de uma relação de união de facto. A referida declaração formal é apenas um elemento acrescido que a autoridade que tiver de decidir acerca da concessão de uma pretensão dependente da relação de união de facto considerará para decidir, ou não, favoravelmente ao requerente. Nas guidelines que devem ser seguidas pelos DM (decision makers) na área da Segurança Social inglesa, juntas pelos requerentes, apenas se diz, quanto à prova da situação de living together as a married couple, no ponto n.º 11107, que os DM deverão recolher e levar em consideração toda a prova admissível, podendo aceitar “a signed statement or letter from the claimant saying that they are LTAMC [living together as a married couple], as voluntary evidence of LTAMCDMG volume 3 chapter 11: Living together as a married couple (publishing.service.gov.uk) .

Estamos, assim, perante um mero documento probatório.

Note-se, de resto, que contrariamente ao que ocorre no Brasil, onde o casamento e a união estável podem ser dissolvidos mediante escritura notarial, no Reino Unido o divórcio e a dissolução da civil partnership carecem da intervenção de um tribunal (quanto ao divórcio, cfr. Matrimonial Causes Act 1973; quanto à dissolução da civil partnership, cfr. Civil Partnership Act 2004, artigo 37).

O documento ora junto aos autos não constitui ou define direitos em termos idênticos aos de uma sentença, na medida em que no Reino Unido o notário público não tem poderes para tal – nem foi esse, seguramente, o fim tido em visto pelo notário que nele interveio.

Também é certo que os unidos de facto podem celebrar acordos onde definem os respetivos direitos e deveres, nomeadamente do ponto de vista da titularidade e destino do respetivo património, alimentos, etc. Aliás tal é vivamente aconselhado pelos juristas britânicos, dadas as incertezas e custos inerentes à necessária resolução judicial dos conflitos que de outro modo surjam, em que os juízes terão muitas vezes de recorrer ao case law e às regras de equity, de resultados sempre incertos.

Mas esses acordos não constituem sentenças ou atos a eles equiparados, mas meros instrumentos contratuais, que como tal são encarados no Reino Unido (a não ser que sejam alvo de homologação judicial).

De resto, no caso destes autos os requerentes nada estipularam a respeito das suas mútuas obrigações e direitos.

A “declaração estatutária” ou “statutory declaration” apresentada pelos requerentes não equivale, no Reino Unido (nem em Portugal) a uma sentença ou decisão judicial, não produzindo os respetivos efeitos.

Não se mostra, assim, preenchido o pressuposto de revisão a que aludem os artigos 978.º n.º 1 e 980.º alínea a) do CPC.

A pretensão dos requerentes deve, pois, improceder.

III.–DECISÃO

Pelo exposto, julga-se improcedente a pretensão de revisão da invocada “escritura de declaração estatutária de união de facto”, indeferindo-se a mesma.

Custas pelos requerentes.

Valor da causa: € 30 000,01 (art.º 303.º do C.P.C.)

Lisboa, 27.01.2022

Jorge Leal

Nelson Borges Carneiro

Paulo Fernandes da Silva