Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
6368/13.1TBALM.L1-2
Relator: JORGE LEAL
Descritores: CONFIANÇA PARA ADOPÇÃO
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 11/05/2015
Votação: MAIORIA COM * DEC VOT E * VOT VENC
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: IMPROCEDENTE
Sumário: Sumário (art.º 663.º n.º 7 do CPC)

I - Do regime legal e convencional em vigor emana a conceção de que o desenvolvimento feliz e harmonioso de uma criança se processa e deve realizar-se no seio da família biológica, tida como a mais capaz de proporcionar à criança o necessário ambiente de amor, aceitação e bem estar; porém, se esta não poder ou não quiser desempenhar esse papel, haverá que, sendo possível, optar pela sua integração numa outra família, através da adoção.
II - Constitui pressuposto da medida de confiança de menor para adoção que “não existam ou se encontrem seriamente comprometidos os vínculos afectivos próprios da filiação” - tal situação será constatada “pela verificação objectiva” de qualquer das situações previstas nas diversas alíneas do n.º 1 do art.º 1978.º do Código Civil (corpo do n.º 1 do art.º 1978.º).
III - Ou seja, a ocorrência de qualquer dessas situações constituirá via necessária para a demonstração da inexistência ou do sério comprometimento do vínculo afetivo entre o progenitor e a criança, para o efeito da confiança da criança para adoção; adicionalmente, porém, haverá que apreciar se essas situações traduzem, em concreto, inexistência ou sério comprometimento dos vínculos afetivos próprios da filiação.
Decisão Texto Parcial:
Decisão Texto Integral:
Acordam os juízes no Tribunal da Relação de Lisboa

RELATÓRIO
Em 06.11.2013 o magistrado do Ministério Público junto do Tribunal de Família e Menores de Almada requereu a abertura de processo judicial de promoção e proteção relativo aos seguintes menores:
A, nascido em 27.8.2002 em Venteira, Amadora;
M, nascido em 25.7.2004, em Pragal, Almada;
B, nascido em 29.7.2007, em Pragal, Almada, e
O, nascido em 02.7.2010, Pragal, Almada,
todos filhos de AB, nascido em Guiné-Bissau, de nacionalidade portuguesa, e de BF, nascida em Guiné-Conakri, de nacionalidade guineense.
O Ministério Público alegou que as aludidas crianças não frequentavam nenhum estabelecimento escolar, por vontade dos pais, e que, tendo sido visitado o domicílio familiar, era notória a falta de higiene, desarrumação, escuridão, constatando-se que as crianças viviam em ambiente que punha em perigo a sua saúde e desenvolvimento integral.
O Ministério Público requereu, consequentemente, que se solicitasse à EMAT (Equipa Multidisciplinar de Assessoria aos Tribunais) a realização de relatório urgente e complementar com elaboração de projeto de vida e, se fosse o caso, fosse aplicada medida urgente.
Os autos prosseguiram os seus termos e em 29.01.2014 foi proferida decisão judicial de aplicação aos menores, a título provisório, da medida de acolhimento em instituição.
Em 26.6.2014 foi determinada a nomeação de patrono da mãe dos menores e também a nomeação de patrono das crianças.
Em 27.10.2014 a equipa da Segurança Social apresentou relatório social, em que propôs que fosse aplicada a medida de confiança das crianças a instituição de acolhimento com vista a futura adoção.
Realizou-se a conferência a que se refere o art.º 112.º da LPCJP, sem sucesso.
O Ministério Público apresentou alegações, pugnando pela aplicação às quatro crianças da medida de proteção de confiança à instituição de acolhimento onde elas então se encontravam, com vista a futura adoção.
Realizou-se debate judicial, em várias sessões, tendo no final da sessão de 29.4.2015 sido proferido despacho em que se determinou a suspensão das visitas e dos contactos telefónicos dos pais aos menores, até ser proferida decisão final (prevista para 06.5.2015), invocando-se para tal o relatório da instituição de acolhimento dos menores, que dava conta de que os contactos e visitas que ultimamente e na sequência do desenrolar do debate judicial, vinham sendo efetuados pelos pais das crianças, tinham tido efeitos regressivos nestas.
Em 06.5.2015 foi proferido acórdão em que o tribunal decidiu aplicar aos menores a medida de promoção e proteção de confiança ao Centro de Acolhimento Temporário (…) (onde se encontravam desde 03.02.2014), com vista a futura adoção, nomeou curadora provisória dos menores a diretora técnica daquela instituição e determinou a exclusão de visitas às crianças por parte da sua família natural.
O pai das crianças, Sr. AB, apelou do acórdão, tendo apresentado alegações em que formulou as seguintes conclusões, que se transcrevem:
I. Relativamente à matéria de fato provada nada haverá a acrescentar.
II. Contudo, o processo de promoção e proteção visa a proteção e a manutenção da família biológica, no seguimento das prioridades estabelecidas pela convenção Europeia dos direitos e liberdades fundamentais, devendo a intervenção ser orientada de modo a que os pais assumam os seus deveres para com a criança devendo-se sempre em primeira linha dar prevalência à família biológica através de medidas que integrem as crianças e jovens na sua família biológica.
III. A adoção só pode surgir depois de esgotadas as possibilidades de integração na família biológica.
IV. E no caso concreto, julga-se que não se mostram esgotadas as possibilidades de integração na família biológica.
V. Pois desde a institucionalização dos menores, não foram tomadas quaisquer outras medidas, tais com apoio junto dos pais, providenciando-lhes alguns meios e conhecimentos para que estes pudessem cuidar dos seus filhos e tê-los consigo.
VI. Não se pode omitir, que estamos perante uma família que é muçulmana cujo cariz familiar tem caraterísticas muitos diferentes dos de uma família com uma cultura ocidental.
VII. Nunca foi encetado em momento alguma sujeição dos progenitores a um regime de prova, através das quais seriam avaliadas as suas competências, concedendo-lhes visitas dos menores em fins-de-semana à casa dos progenitores até se alcançar o período de férias escolares, e num futuro a poder recebê-los e tê-los consigo.
VIII. E só então se poderia avaliar ao fim de algum tempo, se teria havido alguma evolução positiva por parte destes progenitores, e se seria possível a entrega de forma gradual dos menores aos progenitores de forma a se salvaguardar os seus respetivos interesses.
IX. Atualmente os progenitores já dispõem de melhor condições habitacionais, já têm a casa limpa e arrumada, e têm condições de ter os menores consigo e de sustenta-los e providenciar pela sua educação.
X. Em conformidade com o disposto no art° 36° n° 5 e 6 da CRP, os pais têm o direito e o dever de educação e manutenção dos filhos, sendo que estes não podem ser separados dos pais, salvo quando estes não cumpra os seus deveres fundamentais.
XI. O princípio constitucional consagrado é que os filhos não podem ser separados dos pais, havendo contudo exceções.
XII. Embora as medidas de proteção visem afastar o perigo em que se encontra a criança, e proporcionar-lhe condições que a possam proteger e promover a sua segurança, saúde e bem- estar geral, contudo só deverá ser promovida a adoção em casos extremos.
XIII. Ao superior interesse da criança está associada a prevalência da família a qualquer medida que seja adotada, devendo com tal ser dada prevalência a medidas que integrem a criança na sua família para que esta possa manter os seus laços afetivos.
XIV. No caso recorrido, julga-se que não terem sido esgotadas todas as medidas de promoção e proteção e não foi dado o apoio necessário a esta família.
XV. Ora tal como resulta do art° 38° A da lei 147/99, a medida com vista à futura adoção é aplicável quando se verifica alguma das situações previstas no art° 1978° do C.C.
XVI. Ou seja, laços afetivos comprometidos;
XVII. Pais incógnitos ou falecidos;
XVIII. Consentimento prévio para adoção;
XIX. Abandono do menor;
XX. Incapacidade mental dos progenitores;
XXI. Desinteresse dos pais pelo menor. E na verificação destas situações o tribunal deverá atender aos interesses do menor, que será entre outros a manutenção dos seus laços familiares.
XXII. Devendo ser dada outra oportunidade aos progenitores para uma não quebra dos laços familiares com os seus filhos, situação essa que não virá a suceder com a medida para adoção decretada.
XXIII. Pois a partir de agora já não mais os pais poderão privar com os seus filhos e os laços acabem por deixar de existir.
O apelante terminou pedindo que o acórdão recorrido fosse revogado e em consequência não fosse decretada a institucionalização dos menores com vista à adoção, devendo os menores permanecer na instituição para que pudessem, de forma gradual, vir a passar os fins-de-semana com os seus progenitores com o acompanhamento mediante uma medida de apoio junto destes nos termos do n.º 1 da alínea a) do art.º 35.º da Lei n.º 147/99, de 01.9, tendo em vista a futura reintegração no seio familiar.
O Ministério Público contra-alegou, questionando a tempestividade do recurso e pugnando pela manutenção da decisão recorrida.
O recurso foi admitido, com subida imediata, nos próprios autos e efeito suspensivo.
O relator considerou o recurso tempestivo e os autos foram aos vistos legais.
FUNDAMENTAÇÃO
A questão suscitada neste recurso é se deve manter-se a medida de confiança dos menores a instituição, para futura adoção.
O tribunal a quo deu como provada e não foi questionada a seguinte
Matéria de facto
1. A nasceu a 27 de agosto de 2002, em Venteira, Amadora, e é filho de AB e de FB.
2. M nasceu a 25 de julho de 2004, no Pragal, Almada, e é filho de AB e de FB.
3. B nasceu a 29 de julho de 2007, no Pragal, Almada, e é filho de AB e de FB.
4. O nasceu a 2 de julho de 2010, no Pragal, Almada, e é filho de AB e de FB.
5. Os quatro menores A, M, B e O encontram-se acolhidos provisoriamente, desde o dia 3 de fevereiro de 2014, no Centro de Acolhimento Temporário (…).
6. Até ao acolhimento institucional, os quatro menores viviam com os dois progenitores, no (…), Almada.
7. No ano letivo 2012/2013, os menores A e M encontravam-se inscritos para frequentar o primeiro ciclo do ensino básico na Escola (…) do Alfeite, do Agrupamento de Escola Professor (…), e o menor B para frequentar o pré-escolar, no mesmo estabelecimento.
8. Nesse ano letivo, os menores A, M e B não frequentaram a escola em nenhum dia.
9. No ano letivo 2013/2014, os menores A, M e B não estavam inscritos em qualquer estabelecimento de ensino ou equipamento de infância.
10. A Comissão de Proteção de Crianças e Jovens de Almada contactou com os progenitores dos menores desde janeiro de 2013.
11. A Comissão de Proteção de Crianças e Jovens de Almada propôs a aplicação aos menores A, M e B de medida de promoção e proteção de apoio junto dos pais, em 15 de janeiro de 2013.
12. A referida medida não foi aplicada em virtude de a mãe dos menores ter recusado a assinatura do acordo de promoção e proteção por "considerar que a escola n.° 1 do Afeite não é boa para os filhos”.
13. A casa acima referida em 6. tem três quartos, um quarto de banho, uma sala e uma cozinha.
14. Os menores A, M e B dormiam no mesmo quarto, enquanto o menor O dormia no quarto, na cama com a progenitora.
15. Em junho de 2013, a referida casa apresentava as seguintes caraterísticas:
a. Pouco mobiliário, sendo que o que havia se encontrava em mau estado;
b. Cozinha desarrumada e suja;
c. Janelas e estores fechados.
16. Em janeiro de 2014, a referida casa apresentava, além das acima referidas, as seguintes caraterísticas:
a. Mobiliário destruído pelas crianças;
b. Falta de higiene na habitação, com cheiro intenso a sujidade acumulada;
c. Alimentos espalhados pelo chão.
17. Em março de 2015, a referida casa apresentava as seguintes caraterísticas:
a. Higiene precária e mobiliário destruído;
b. Cozinha com o mobiliário destruído, louça pelo chão e espalhada pela mesa e bancada, com comida em estado de putrefação;
c. Casa de banho suja e degradada;
d. No quarto da progenitora havia, além da cama, um pequeno fogão a gás, com uma panela em cima;
e. Nos dois outros quartos não era possível entrar ou circular, por estarem repletos de peças de roupa e de objetos na cama e no chão;
f. No hall de entrada encontravam-se colchões e uma banheira de adulto.
18. No dia 3 de fevereiro de 2014, quando chegaram ao Centro de Acolhimento Temporário, os menores apresentavam-se nas seguintes condições:
a. A: vestido com roupa rota e muito suja; unhas dos pés com muita sujidade; cabelo muito sujo; muitas borbulhas pequenas, no peito; cicatrizes de queimadura na omoplata; dificuldade de expressão;
b. M: vestido com roupa muito velha, com mau odor forte, vestido com dois casacos de fato de treino, um sobre o outro, calças de fato de treino rotas, sem meias; apresentava cicatrizes antigas nas costas, junto ao coxis e na perna direita; no banho revelou desconhecer o gel de duche e a sua utilização; manifestou dificuldade em expressar-se e em entender o significado das frases;
c. B: vestido com roupa muito suja, sem roupa interior (cuecas e meias), usava uns calções de ganga rotos e muito sujos, sandálias e um casaco de fato de treino; apresentava um cheiro intenso e desagradável; tinha peladas no couro cabeludo; não falava português, apenas conseguindo pronunciar algumas palavras soltas e incoerentes; expressava-se em fula; procurava e dava manifestações de carinho, como beijinhos e festinhas;
d. O: descalço, vestia uns calções de ganga muito velhos e rotos; apresentava três queimaduras grandes, em carne viva, uma no abdómen, outra no peito, do lado direito, e outra no joelho — a mais profunda, com aguadilha —, e muitas cicatrizes antigas na cabeça e no corpo; revelou medo do banho e da água; não falava português, nem fula; procura constantemente o colo e aconchego de longa duração do adulto.
19. Aquando da chegada ao Centro de Acolhimento Temporário, em 3 de fevereiro de 2014, os menores evidenciaram grande agitação motora, demonstrando espanto quando lhes foi apresentada a casa e viram os brinquedos, a televisão e o espaço.
20. Nesse momento, o menor A procurava afirmar-se na fratria; o menor M não atuava sem a aprovação daquele; B não demonstrou necessidade de proximidade daqueles; O demonstrava necessitar de visualizar os irmãos.
21. No Centro de Acolhimento Temporário, o menor A referiu que a mãe lhe batia muitas vezes com um pau nas costas, afirmando igualmente que batia, ainda mais, no seu irmão O.
22. No Centro de Acolhimento Temporário, o menor M referiu que a mãe batia muito no A, com um pau nas costas, e também no O.
23. Em maio de 2014, perante as técnicas do Centro de Acolhimento Temporário, os menores apresentavam as seguintes caraterísticas:
a. A: criança sisuda, com dificuldade em descontrair, sendo raras as vezes em que sorri; pouco conversador, mantém distância; recusa participar em atividades como cantar, dançar, aulas de ginástica, aulas de expressão plástica, ler livros; na relação com adultos, seleciona com quem fala e ignora os demais; recusa a autoridade do adulto; não é recetivo a trocas de afeto; na relação com os pares não tem grupo preferencial;
b. M: criança bem disposta, sorridente, amável, conversador e sociável; revela evolução na afetividade; procura o adulto para conversar, para troca de afeto, para solicitar ajuda ou orientação; na relação com os pares tem grupo preferencial;
c. B: criança extrovertida, afectuosa, conversadora, recorre com frequência ao toque físico; procura constantemente o adulto; gosta de brincar sozinho;
d. O: não fala; criança obstinada, com nível de frustração baixo, recorrendo frequentemente à birra silenciosa e ao amuo; procura constantemente o colo, não gerindo a partilha de atenção com outros menores; não gosta de partilhar brincadeiras com os pares e, frequentemente, estraga as brincadeiras dos outros.
24. Em outubro de 2014, perante as técnicas do Centro de Acolhimento Temporário, os menores apresentavam as seguintes caraterísticas:
a. A: criança introvertida, com elevada falta de espontaneidade; revela dificuldade de integração; relação cordial com os adultos; na relação com os pares, prefere atividades que não envolvam o grande grupo;
b. M: criança tímida, afectuosa, carente, sensível; esforça-se por corresponder ao que lhe é solicitado; procura constantemente o adulto, tanto para partilha, como para afeto; tem grupo de pares preferencial;
c. B: criança curiosa e bem disposta, bastante conversadora, revelando uma afetividade cada vez maior; recorre constante ao adulto, para conversar; gosta de brincar sozinho, ou partilhando com pequenos pares;
d. O: criança carente, que procura o afeto; revela elevados níveis de ansiedade; afectuoso para com adultos, procurando o contacto e estabelecendo facilmente relação; revela evolução na partilha de brincadeiras e na cooperação com os pares;
25. Em fevereiro de 2015, as técnicas do Centro de Acolhimento Temporário emitiram a seguinte informação: “Ao longo de um ano de institucionalização é evidente a evolução dos menores nas mais diferentes áreas de desenvolvimento. Ao nível da comunicação, principalmente no que concerne à aprendizagem da língua portuguesa, ao nível de desenvolvimento pessoal, nomeadamente nos hábitos de higiene pessoal, nas competências sociais, do saber estar, aprender a estar sentado, a esperar, deixando de grunhir e abordando as pessoas de forma adequada. No desenvolvimento afetivo, as crianças aprenderam a expressar sentimentos, a identificar emoções, dizendo o que querem, o que não querem, assim como o que gostam e o que não gostam e a gerir a troca de afetos. Bem como aprenderam a ser crianças, permitindo-se brincar livremente participando nas atividades lúdicas, situação que não acontecia no início da institucionalização devido à censura paterna e tendo-se alcançado esta evolução desde a diminuição dos contactos telefónicos dos progenitores."
26. Quando ingressaram no Centro de Acolhimento Temporário, os menores foram colocados em estabelecimentos de ensino e equipamentos de infância, revelando o seguinte:
a. A: frequência do 3.° ano de escolaridade; revela dificuldades de aprendizagem; atitude obstinada de recusa de participar em atividades dentro da sala de aula e extracurriculares;
b. M: frequência do 2.° ano de escolaridade, com conteúdos ao nível do 1.° ano; revela muitas dificuldades; aluno empenhado, interessado e participativo;
c. B: frequência do 1.° ano de escolaridade, com conteúdos ao nível do pré-escolar (cores, esquema corporal, grafismos, ...);
d. O: frequência de jardim infantil (sala dos três anos), não participando nas atividades orientadas que exigem concentração.
27. Em outubro de 2014, no que se refere ao aproveitamento escolar, revelavam o seguinte:
a. A: frequência do 3.° ano; aluno empenhado e atento, que procura ultrapassar as suas dificuldades; tem acompanhamento;
a. M: frequência do 2.° ano; aluno empenhado, com plano de acompanhamento pedagógico individual;
b. B: frequência do 1.° ano, mantendo trabalho na aquisição de conteúdos do pré-escolar;
c. O: frequência de jardim infantil (sala dos quatro anos); integrado, participa nas atividades orientadas.
28. No Centro de Acolhimento Temporário, o M e o B partilham o quarto.
29. Logo após a institucionalização dos menores, no mês de fevereiro de 2014, os progenitores manifestaram vontade de ficar com os filhos e sofrimento com a ausência daqueles, embora reconhecendo a dificuldade da situação em que se encontravam e a intervenção efetuada pelos serviços sociais.
30. Em 26 de fevereiro de 2014, a progenitora solicitou a transferência dos menores para local mais próximo da sua residência, invocando não conseguir meio de transporte para os visitar.
31. Os contactos dos progenitores com os menores, durante o período de institucionalização, foram os seguintes:
2014:
a. 5 de fevereiro: contacto telefónico do progenitor, com as técnicas o Centro de Acolhimento Temporário;
b. Fevereiro e março: telefonema diário do progenitor, falando apenas com o menor A, desligando o telefone quando são outros filhos a falar e retomando depois o contacto, solicitando para falar com o filho mais velho;
c. 11 e 15 de fevereiro: contacto telefónico da progenitora, falando apenas com o A;
d. Março e abril: dois contactos telefónicos no mês de março e um no mês de abril, pela progenitora, falando com o A e o M;
e. Entre julho e outubro, não foram contactados pelos progenitores;
f. 1, 6, 8, 21 e 23 de novembro, 1, 4, 6, 7 e 26 de dezembro: contacto telefónico do progenitor, com o A, o M e o B; em todos os contactos o pai manifestou vontade de falar apenas com o A;
g. 12 de novembro: agendada visita pelo progenitor, que não chegou a concretizar-se, por aquele apenas ter conseguido chegar à instituição cerca das 19h20, por se ter perdido;
h. 11 de dezembro: visita do progenitor. Quando os menores viram o pai chegar, ficaram apáticos, não tendo o O reconhecido o pai. Nenhum dos menores cumprimentou o pai, nem este cumprimentou os menores. Já na sala das vistas, o pai cumprimentou cada um dos filhos com um aperto de mão, após estes estarem sentados. Durante a visita os três irmãos mais novos estiveram a brincar, no chão, sem interacção com o pai, que abordou apenas o A. A visita teve a duração de 45 minutos, sendo o pai a terminar a mesma, tendo-se despedido com um aperto de mão.
2015:
i. 13 de janeiro, 15 e 16 de fevereiro: contacto telefónico do progenitor, com o A, o M e o B; em todos os contactos o pai manifestou vontade de falar apenas com o A;
j. 7 de março: contacto telefónico do progenitor, que falou com B e M e contacto, uma hora depois, da progenitora, que falou com A e O;
k. 8 e 12 de abril: contacto telefónico da progenitora, com os três irmãos mais velhos;
l. 12, 16, 18, 20 e 21 de abril: contacto telefónico do progenitor, com os três irmãos mais velhos;
m. 17 de abril: visita de ambos os progenitores. Nesta, o menor O permaneceu de olhar baixo, contraído, não olhando nem respondendo aos pais. Os outros menores, quando chegaram à sala da visita, mantiveram uma postura hirta, de olhar baixo. Os progenitores levaram bolachas e doces para os menores, que estes comeram. A visita durou uma hora.
32. Após os contactos acima referidos, os menores evidenciavam ansiedade e desestabilização, bem como tristeza e frustração dos três irmãos mais novos perante a recusa do pai em falar com eles.
33. O progenitor é carpinteiro, trabalhando na construção civil.
34. A progenitora não trabalha.
35. O casal não tem familiares em Portugal.
36. A progenitora deu entrada no serviço de psiquiatria do Hospital Garcia de Orta, no dia 16 de dezembro de 2014, após ter pegado fogo a um sofá que estava em casa, e com ideias delirantes persecutórias relativas a uma vizinha, apresentando delírio de autorreferenciação (achando que estava grávida), com alucinações cenestéticas (sentindo o bebé na barriga), falsa identificação delirante, não reconhecendo o marido, e não revelando crítica para a doença.
37. No início do internamento apresentava-se agitada, tendo evoluído para uma postura calma e colaborante.
38. Teve alta no dia 23 de janeiro de 2015, apresentando-se calma, colaborante e com humor neutro; não revela alterações de perceção, embora mantendo ideação delirante de estar grávida; reconhece o marido.
39. Aquando da alta, encontrava-se medicada com Olanzapina 10 mg, Risperidona 4 mg e Valproato de sódio 500 mg, tendo sido encaminhada para consulta externa.
40. A progenitora tinha uma consulta agendada para 9 de março de 2015, à qual não compareceu.
O Direito
A lei protege a família, nomeadamente a família natural. O art.º 67.º n.º 1 da Constituição da República Portuguesa declara que “a família, como elemento fundamental da sociedade, tem direito à protecção da sociedade e do Estado e à efectivação de todas as condições que permitam a realização pessoal dos seus membros.” O art.º 68.º da Lei Fundamental acrescenta que “a maternidade e a paternidade constituem valores sociais eminentes” (n.º 2) e “os pais e as mães têm direito à protecção da sociedade e do Estado na realização da sua insubstituível acção em relação aos filhos, nomeadamente quanto à sua educação, com garantia de realização profissional e de participação na vida cívica do país” (n.º 1). O art.º 36.º da Constituição da República Portuguesa, sob a epígrafe “família, casamento e filiação”, proclama que “os pais têm o direito e o dever de educação e manutenção dos filhos” (n.º 5) e que “os filhos não podem ser separados dos pais”, mas logo acrescenta: “salvo quando estes não cumpram os seus deveres fundamentais para com eles e sempre mediante decisão judicial” (n.º 6). Também a adoção merece consagração constitucional, enquanto fonte de laços familiares, estipulando o n.º 7 do art.º 36.º da Constituição da República Portuguesa que “a adopção é regulada e protegida nos termos da lei, a qual deve estabelecer formas céleres para a respectiva tramitação”.
A Convenção Europeia dos Direitos Humanos, a que Portugal aderiu (aprovada para ratificação pela Lei n.º 65/75, de 13 de Outubro), declara, no n.º 1 do seu art.º 8.º, sob a epígrafe “direito ao respeito pela vida privada e familiar”, que “qualquer pessoa tem direito ao respeito da sua vida privada e familiar (…)”, acrescentando, no n.º 2 do mesmo artigo, que “não pode haver ingerência da autoridade pública no exercício deste direito senão quando esta ingerência estiver prevista na lei e constituir uma providência que, numa sociedade democrática, seja necessária para (…) a protecção da saúde ou da moral, ou a protecção dos direitos e das liberdades de terceiros”.
Mas a proteção da família não sobreleva a proteção da criança.
O art.º 69.º da Constituição da República Portuguesa, consagrado à infância, declara que “as crianças têm direito à protecção da sociedade e do Estado, com vista ao seu desenvolvimento integral, especialmente contra todas as formas de abandono, de discriminação e de opressão e contra o exercício abusivo da autoridade na família e nas demais instituições” (n.º 1) e acrescenta que “o Estado assegura especial protecção às crianças órfãs, abandonadas ou por qualquer forma privadas de um ambiente familiar normal” (n.º 2).
A Convenção Sobre os Direitos da Criança, aprovada em Nova Iorque em 20 de Novembro de 1989, aprovada por Portugal e publicada no D.R., I série, de 12.9.1990, estabelece que todas as decisões relativas a crianças, adotadas por instituições públicas ou privadas de proteção social, por tribunais, autoridades administrativas ou órgãos legislativos, terão primacialmente em conta o interesse superior da criança (art.º 3.º n.º 1). Nos termos do n.º 1 do art.º 9.º da Convenção, a criança não será separada dos seus pais contra a vontade destes, a menos que a separação se mostre necessária, “no interesse superior da criança”. Tal decisão pode mostrar-se necessária no caso de, “por exemplo, os pais maltratarem ou negligenciarem a criança” (n.º 1, segundo período, do art.º 9.º). O art.º 20.º da Convenção prevê a situação de crianças que, “no seu interesse superior”, não possam ser deixadas no seu ambiente familiar, reconhecendo-lhes o direito a proteção alternativa, que pode incluir a adoção. O art.º 21.º da Convenção determina que o interesse superior da criança será a consideração primordial no domínio da adoção.
A Convenção Europeia em Matéria de Adopção de Crianças, aprovada para ratificação pela Resolução da Assembleia da República n.º 4/90 e ratificada por Decreto do Presidente da República publicado no D.R., I série, de 30.5.1990, estipula que “a autoridade competente não decreta uma adopção sem adquirir a convicção de que a adopção assegura os interesses do menor” (art.º 8.º, n.º 1), devendo atribuir-se “particular importância a que a adopção proporcione ao menor um lar estável e harmonioso” (art.º 8.º, n.º 2).
No que concerne ao conteúdo do anteriormente designado “poder paternal”, actualmente substituído, sugestivamente, pelo conceito de “responsabilidades parentais”, o Código Civil evidencia que “compete aos pais, no interesse dos filhos, velar pela segurança e saúde destes, prover ao seu sustento, dirigir a sua educação (…)” (art.º 1878.º, n.º 1). Em desenvolvimento desta matéria, o art.º 1885.º declara que “cabe aos pais, de acordo com as suas possibilidades, promover o desenvolvimento físico, intelectual e moral dos filhos”.
Nos termos do art.º 1915.º n.º 1 do Código Civil, “quando qualquer dos pais infringir culposamente os deveres para com os filhos, com grave prejuízo destes, ou quando, por inexperiência, enfermidade, ausência ou outras razões se não mostre em condições de cumprir aqueles deveres”, pode o tribunal decretar a inibição do exercício das responsabilidades parentais. O art.º 1918.º do Código Civil estipula que “quando a segurança, a saúde, a formação moral ou a educação de um menor se encontre em perigo e não seja caso de inibição do exercício do poder paternal”, o tribunal pode “decretar as providências adequadas, designadamente confiá-lo a terceira pessoa ou a estabelecimento de educação ou assistência”.
O diploma fundamental em sede de proteção de crianças e jovens em perigo é a Lei de Proteção de Crianças e Jovens em Perigo (LPCJP) aprovada pela Lei n.º 147/99, de 01 de setembro, alterada pela Lei n.º 31/2003, de 22.8 e pela Lei n.º 142/2015, de 8.9 (uma vez que não existe in casu norma em contrário, as alterações introduzidas por este último diploma à LPCJP são de aplicação imediata às situações pendentes, sem prejuízo dos efeitos já produzidos, tudo nos termos do disposto no art.º 12.º do Código Civil, sendo certo que essas alterações entraram em vigor em 01.10.2015).
Tal lei regula a intervenção do Estado para promoção dos direitos e proteção da criança e do jovem em perigo, a qual tem lugar “quando os pais, o representante legal ou quem tenha a guarda de facto ponham em perigo a sua segurança, saúde, formação, educação ou desenvolvimento, ou quando esse perigo resulte de acção ou omissão de terceiros ou da própria criança ou do jovem a que aqueles não se oponham de modo adequado a removê-lo” (art.º 3.º n.º 1). Nos termos do n.º 2 do citado artigo, considera-se que a criança ou o jovem está em perigo quando, designadamente, “está abandonada ou vive entregue a si própria” (alínea a), “sofre maus tratos físicos ou psíquicos ou é vítima de abusos sexuais (alínea b), “não recebe os cuidados ou a afeição adequados à sua idade e situação pessoal” (alínea c), “está sujeita, de forma directa ou indirecta, a comportamentos que afectem gravemente a sua segurança ou o seu equilíbrio emocional” (alínea f). O art.º 4.º da LPCJP enuncia os princípios pelos quais se deve reger a intervenção para a promoção dos direitos e proteção da criança e do jovem em perigo, entre os quais o do interesse superior da criança e do jovem (“a intervenção deve atender prioritariamente aos interesses e direitos da criança e do jovem, nomeadamente à continuidade de relações de afeto de qualidade e significativas, sem prejuízo da consideração que for devida a outros interesses legítimos no âmbito da pluralidade dos interesses presentes no caso concreto”), o da intervenção precoce (“a intervenção deve ser efetuada logo que a situação de perigo seja conhecida”), o da intervenção mínima (“a intervenção deve ser exercida exclusivamente pelas entidades e instituições cuja ação seja indispensável à efetiva promoção dos direitos e à proteção da criança e do jovem em perigo”), o da proporcionalidade e atualidade (“a intervenção deve ser a necessária e a adequada à situação de perigo em que a criança ou o jovem se encontram no momento em que a decisão é tomada e só pode interferir na sua vida e na da sua família na medida do que for estritamente necessário a essa finalidade”), o da responsabilidade parental (“a intervenção deve ser efetuada de modo que os pais assumam os seus deveres para com a criança e o jovem”), o do primado da continuidade das relações psicológicas profundas (“a intervenção deve respeitar o direito da criança à preservação das relações afetivas estruturantes de grande significado e de referência para o seu saudável e harmónico desenvolvimento, devendo prevalecer as medidas que garantam a continuidade de uma vinculação securizante”) o da prevalência da família (“na promoção dos direitos e na proteção da criança e do jovem deve ser dada prevalência às medidas que os integrem em família, quer na sua família biológica, quer promovendo a sua adoção ou outra forma de integração familiar estável”).
As medidas em causa têm as seguintes finalidades, enunciadas no art.º 34.º da LPCJP:
a) Afastar o perigo em que a criança e o jovem se encontrem;
b) Proporcionar-lhes as condições que permitam proteger e promover a sua segurança, saúde, formação, educação, bem-estar e desenvolvimento integral;
c) Garantir a recuperação física e psicológica das crianças e jovens vítimas de qualquer forma de exploração ou abuso.
As medidas a aplicar são as seguintes (art.º 35º da LPCJP, redação introduzida pela Lei n.º 142/2015, de 8.9):
a) Apoio junto dos pais;
b) Apoio junto de outro familiar;
c) Confiança a pessoa idónea;
d) Apoio para a autonomia de vida;
e) Acolhimento familiar;
f) Acolhimento residencial;
g) Confiança a pessoa selecionada para a adoção, a família de acolhimento ou a instituição com vista à adoção.
As medidas referidas nas alíneas a) a d) consideram-se medidas a executar “no meio natural de vida” e as medidas referidas nas alíneas e) e f) consideram-se “medidas de colocação”; quanto à medida prevista na alínea g), é considerada a executar no meio natural de vida no primeiro caso e de colocação no segundo e terceiro casos (n.º 3 do art.º 35.º da LPCJP).
Estas medidas podem ser decididas a título cautelar, nas situações de emergência ou enquanto se procede ao diagnóstico da situação da criança e à definição do seu encaminhamento subsequente, não podendo a sua duração, nesse caso, exceder seis meses (art.º 35.º n.º 2 e 37.º da LPCJP). As medidas previstas nas alíneas a) a d) não poderão ter duração superior a um ano, podendo tão só ser prorrogadas até 18 meses (art.º 60.º da LPCJP). As medidas previstas nas alíneas e) e f) terão a duração estabelecida no acordo ou na decisão judicial (art.º 61.º). Excecionalmente, a medida prevista na alínea d) do n.º 1 do art.º 35.º (“apoio para a autonomia de vida”) pode ser prorrogada até que a criança ou o jovem perfaça os 21 anos de idade. Em todo o caso, as medidas aplicadas serão revistas pelo menos de seis em seis meses (art.º 62.º n.º 1).
Acresce o apadrinhamento civil, instituto cujo regime está previsto na Lei n.º 103/2009, de 11 de setembro (com as alterações introduzidas pela Lei n.º 141/2015, de 08.9), regulamentada pelo Dec.-Lei n.º 121/2010, de 27.10, e que se assume como uma medida tutelar cível com características próprias, tendencialmente de caráter permanente e que cede perante a adoção, pois não pode aplicar-se quando se verifiquem os pressupostos da confiança com vista à adoção.
Quanto à medida de confiança de menor a outrem com vista a adoção.
O art.º 1974.º do Código Civil, com a redação introduzida pela Lei nº 31/2003, de 22.8, enuncia os requisitos gerais da adoção: “a adopção visa realizar o superior interesse da criança e será decretada quando apresente reais vantagens para o adoptando, se funde em motivos legítimos, não envolva sacrifício injusto para os outros filhos do adoptante e seja razoável supor que entre o adoptante e o adoptando se estabelecerá um vínculo semelhante ao da filiação.”
O art.º 38.º-A da LPCJP, aditado pela Lei n.º 31/2003, de 22.8.2003 e alterado pela Lei n.º 142/2015, de 08.9, prevê a medida de confiança da criança ou do jovem a pessoa selecionada para a adoção, a família de acolhimento ou a instituição com vista a futura adoção, que, nos termos do artigo, será aplicável “quando se verifique alguma das situações previstas no art.º 1978.º do Código Civil.”
O art.º 1978.º do Código Civil, com a redação introduzida pela Lei nº 31/2003, de 22.8, regula a confiança de menor a casal, a pessoa singular ou a instituição, com vista a futura adoção (na redação introduzida pela Lei n.º 143/2015, de 08.9, que entrará em vigor em 07.12.2015, elimina-se a explícita referência a que a confiança é feita a casal, a pessoa singular ou a instituição, e em vez de “menor”, utiliza-se o substantivo “criança”). Tal ocorrerá quando “não existam ou se encontrem seriamente comprometidos os vínculos afectivos próprios da filiação, pela verificação objectiva de qualquer das seguintes situações:” (corpo do nº 1 do art.º 1978.º)
a) Se o menor for filho de pais incógnitos ou falecidos;
b) Se tiver havido consentimento prévio para a adopção;
c) Se os pais tiverem abandonado o menor;
d) Se os pais, por acção ou omissão, mesmo que por manifesta incapacidade devida a razões de doença mental, puserem em perigo grave a segurança, a saúde, a formação, a educação ou o desenvolvimento do menor;
e) Se os pais do menor acolhido por um particular ou por uma instituição tiverem revelado manifesto desinteresse pelo filho, em termos de comprometer seriamente a qualidade e a continuidade daqueles vínculos, durante, pelo menos, os três meses que precederam o pedido de confiança.”
Na verificação dessas situações o tribunal “deve atender prioritariamente aos direitos e interesses do menor” (n.º 2 do art.º 1978.º). Quanto à constatação da ocorrência de perigo, mencionada na alínea d) (e que foi invocada na decisão recorrida) o Código estatui que “considera-se que o menor se encontra em perigo quando se verificar alguma das situações assim qualificadas pela legislação relativa à protecção e à promoção dos direitos dos menores” (n.º 3 do art.º 1978.º).
A confiança com fundamento nas situações previstas nas alíneas a), c), d) e e) não pode, porém, ser decidida, se o menor se encontrar a viver com ascendente, colateral até ao 3.º grau ou tutor e a seu cargo, salvo se aquelas pessoas “puserem em perigo, de forma grave, a segurança, a saúde, a formação moral ou a educação do menor”, ou “se o tribunal concluir que a situação não é adequada a assegurar suficientemente o interesse do menor.” (n.º 2 do art.º 1978.º).
A atual redação do art.º 1978.º (referimo-nos à introduzida pela Lei n.º 31/2003, que continua a ser referencial) emerge da Proposta de Lei n.º 57/IX 3618 (D.A.R., II Série A - Número 088, 26 de Abril de 2003, pág. 3618 e seguintes), em cuja exposição de motivos se lê o seguinte:
A adopção constitui o instituto que visa proporcionar às crianças desprovidas de meio familiar o desenvolvimento pleno e harmonioso da sua personalidade num ambiente de amor e compreensão, através da sua integração numa nova família. Quando a família biológica é ausente ou apresenta disfuncionalidades que comprometem o estabelecimento de uma relação afectiva gratificante e securizante com a criança, impõe a Constituição que se salvaguarde o superior interesse da criança, particularmente através da adopção. Esta concepção da adopção corresponde àquela que está plasmada em importantes instrumentos jurídicos internacionais como a Convenção sobre os Direitos da Criança e a Convenção Europeia em Matéria de Adopção de Crianças. Trata-se, por outro lado, de uma intervenção que se reclama urgente, porquanto a personalidade da criança se constrói nos primeiros tempos de vida, revelando-se imprescindível para que a criança seja feliz e saudável que quem exerce as funções parentais lhe preste os adequados cuidados e afecto. E se, atento o primado da família biológica, há efectivamente que apoiar as famílias disfuncionais, quando se vislumbra a possibilidade destas reencontrarem o equilíbrio, situações há em que tal não é viável, ou pelo menos não o é em tempo útil para a criança, devendo em tais situações encetar-se firme e atempadamente o caminho da adopção. (…) Há hoje cerca de onze mil e trezentas crianças acolhidas em instituições e famílias idóneas, cujo projecto de vida deve ser urgentemente definido, sendo certo que a institucionalização não pode ser considerada uma solução, mas tão somente uma medida de protecção. (…). Assim, passa a ser expressamente mencionado o superior interesse da criança como critério fundamental para ser decidida a adopção, o qual constitui, aliás, o conceito de referência nesta matéria. São desenvolvidos os conceitos de colocação do menor em perigo e de manifesto desinteresse pelo filho, pressupostos do decretamento da confiança judicial, clarificando-se que neste segundo conceito está essencialmente em causa a qualidade e a continuidade dos vínculos próprios da filiação. Reduz-se para três meses o período relevante para aferição do desinteresse, sendo certo que este prazo é suficiente para esse efeito e, simultaneamente, permite acelerar o processo.
Do regime legal e convencional supra referido emana a conceção de que o desenvolvimento feliz e harmonioso de uma criança se processa e deve realizar-se no seio da família biológica, tida como a mais capaz de proporcionar à criança o necessário ambiente de amor, aceitação e bem estar. Porém, se esta não poder ou não quiser desempenhar esse papel, haverá que, sendo possível, optar decididamente e rapidamente pela sua integração numa outra família, através da adoção (cfr, v.g., Helena Bolieiro e Paulo Guerra, “A Criança e a Família – uma Questão de Direito(s)”, Coimbra Editora, 2.ª edição, 2014, páginas 39, 71 e 72, 389 a 394; Tomé d´Almeida Ramião, “Lei de Proteção da Crianças e Jovens em Perigo, Anotada e Comentada”, Quid Juris, 7.ª edição, 2014, pág. 36; Beatriz Marques Borges, “Protecção de Crianças e Jovens em Perigo”, Almedina, 2011, 2.ª edição, páginas 18, 53 a 55, 143, 144, 228; acórdão da Relação de Lisboa, de 02.7.2015, 1603/08.0TBTVD.L2-6; acórdão da Relação do Porto, de 11.11.2014, processo 2026/12.2TMPRT; acórdão da Relação de Coimbra, de 25.10.2011, 559/05.6 TMCBR-A.C1; acórdão da Relação de Guimarães, 17.9.2015, 322/14.3TBVLN.G1, www.dgsi.pt; cfr. também o preâmbulo do Dec.-Lei n.º 185/93, de 22 de Maio, que aprovou o regime jurídico da adoção).
Constitui pressuposto desta medida (confiança para adoção) que “não existam ou se encontrem seriamente comprometidos os vínculos afectivos próprios da filiação”. Tal situação será constatada “pela verificação objectiva” de qualquer das situações previstas nas diversas alíneas do n.º 1 do art.º 1978.º do Código Civil (corpo do n.º 1 do art.º 1978.º).
Ou seja, a ocorrência de qualquer dessas situações constituirá via necessária para a demonstração da inexistência ou do sério comprometimento do vínculo afetivo entre o progenitor e a criança, para o efeito da confiança da criança para adoção. Adicionalmente, porém, haverá que apreciar se essas situações traduzem, em concreto, inexistência ou sério comprometimento dos vínculos afetivos próprios da filiação (cfr., v.g., Helena Bolieiro e Paulo Guerra, obra citada, páginas 365 e 366; Maria Clara Sottomayor, “A nova lei da adopção”, in Direito e Justiça, vol. XVIII, tomo II, 2004, páginas 244 a 247; Francisco Pereira Coelho e Guilherme de Oliveira, “Curso de Direito da Família, volume II, Direito da Filiação, Tomo I, Estabelecimento da filiação; adopção”, Coimbra Editora, 2006, pág. 278; Tomé de Almeida Ramião, obra citada, páginas 76 e 77; acórdão da Relação do Porto, de 27.5.2014, processo 3354/07.4TBVNG.P1; acórdão da Relação de Coimbra, 10.7.2013, processo 493/10.8TBMGL-A.C1; acórdão da Relação de Lisboa, 15.10.2009, 388/07.2TMFUN.L1-6; em sentido diverso, considerando que a ocorrência de qualquer das referidas situações configura presunção da inexistência ou comprometimento dos aludidos vínculos, Beatriz Borges, obra citada, páginas 148, 171, 172 e, ainda, in Julgar, n.º 24, set/dez 2014, páginas 170 a 172).
Sendo certo que os vínculos afetivos que obstam à aplicação da medida sob análise são os “próprios da filiação”: não basta que haja relação afetiva entre pais e filhos, é necessário que esta assuma a natureza de verdadeira relação pai/mãe – filho, com a inerente auto-responsabilização do progenitor pelo cuidar do filho, por lhe dar orientação, estimulá-lo, valorizá-lo, amá-lo e demonstrar esse amor de forma objetiva e constante, de molde que a própria criança encare o progenitor como referência com as referidas caraterísticas. Pais são aqueles que cuidam dos filhos no dia a dia, são aqueles que cuidam da segurança, da saúde física e do bem estar emocional das crianças, assumindo na íntegra essa responsabilidade.
Havendo até quem defenda (não é a nossa opinião) que sempre que um tribunal protege uma criança da sua família de origem, essa proteção deve ser, tendencialmente, definitiva, maxime se a medida de proteção durar previsivelmente mais de seis meses, caso em que fica comprometido, de forma irreparável, o desenvolvimento subsequente da criança, a qual deverá ser encaminhada para um processo de adoção (Eduardo Sá, “O poder paternal”, in “Volume comemorativo dos 10 anos do Curso de Pós-Graduação “Protecção de Menores – Prof. Doutor F. M. Pereira Coelho””, 12, Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra, Centro de Direito da Família, Coimbra Editora, 2008, pág. 87).
É à luz destes princípios que deverá ser ponderado o teor do art.º 8.º da Convenção Europeia dos Direitos Humanos, que, como já apontado supra, consagra o direito ao respeito pela vida privada e familiar e se opõe à ingerência da autoridade pública no exercício desse direito, a não ser quando esteja prevista na lei e constitua uma providência que, no enquadramento de uma sociedade democrática, se mostre necessária à “proteção da saúde ou da moral”, ou dos “direitos e das liberdades de terceiros”. Sendo certo que o Tribunal Europeu dos Direitos Humanos tem realçado que nesta matéria há que procurar o justo equilíbrio entre os interesses concorrentes: “os da criança, os dos pais e os da ordem pública”, mas tendo em consideração que o interesse superior da criança é a razão determinante, podendo, consoante a natureza do caso e a sua gravidade, suplantar o interesse dos pais (por todos, cfr. o acórdão do TEDH, de 10.4.2012, queixa n.º 19554/09, Pontes contra Portugal, parágrafo 75). O TEDH salienta que, sendo do interesse da criança a manutenção dos seus laços familiares, que constituem as suas raízes, só circunstâncias excecionais, em que a família se mostrou particularmente “indigna”, podem conduzir à rutura do laço familiar (acórdão citado, parágrafo 79).
Analisemos o caso destes autos.
Inicialmente tratava-se de três crianças, duas em idade escolar e uma em idade de frequência do ensino pré-escolar, que foram sinalizadas por se ter constatado que, apesar de estarem inscritas num estabelecimento de ensino, aí não compareciam. Apesar da intervenção da Comissão de Proteção de Crianças e Jovens de Almada, iniciada em janeiro de 2013, os menores continuaram sem ir à escola, não tendo sequer sido inscritos para o ano letivo de 2013/2014 (n.º s 7 a 9 da matéria de facto). Foi proposta a aplicação da medida de promoção e apoio junto dos pais, mas não foi aplicada, por recusa da mãe (n.ºs 11 e 12 da matéria de facto). Em janeiro de 2014 foi decidido aplicar provisoriamente a medida de acolhimento institucional dessas três crianças e bem assim do seu irmão mais novo, na altura com três anos de idade, por se entender, conforme consta da decisão a fls 177 a 179 dos autos, que se encontravam em situação de perigo para a sua integridade física, saúde e desenvolvimento.
E, realmente, os factos provados sob os n.ºs 18 a 22 e 26 mostram quatro crianças a quem não eram prestados os cuidados básicos de higiene, vestidas com andrajos, com cicatrizes no corpo, tendo até o mais novo três grandes queimaduras em carne viva, e que eram sujeitos a castigos corporais violentos, incluindo o mais novo.
Sendo certo que não se evidenciavam condições de vida que tal explicassem, pois o pai dos menores trabalhava e trabalha (n.º 33 da matéria de facto) e moravam em casa adequada (n.º 13 da matéria de facto), embora muito mal cuidada (n.ºs 15, 16 e 17).
Embora os pais tivessem verbalizado interesse pelos menores (vide 29 e 30 da matéria de facto) e tivessem, em especial o pai, mantido o contacto com eles - apesar de ter existido um interregno de quase quatro meses, entre julho e outubro de 2014 – (n.º 31 da matéria de facto), esses contactos, que aliás praticamente se resumiram a telefonemas para o mais velho, com quase total recusa de conversas com os restantes, não se mostravam minimamente gratificantes para as crianças, sendo, pelo contrário, causa de ansiedade e desestabilização (vide n.º 31, alíneas h) e m) e n.º 32).
A negligência e os maus tratos a que as crianças foram sujeitas tiveram e têm consequências no seu desenvolvimento, pese embora a evidente evolução positiva registada desde o seu ingresso no CAT (n.ºs 23, 24, 25, 26 e 27 da matéria de facto).
O acervo factual exposto preenche a previsão do art.º 1978.º do Código Civil, por verificação objetiva da alínea d) do seu n.º 1, acompanhada da constatação de que entre as crianças em causa e os seus pais biológicos não existiam nem existem os vínculos afetivos próprios da filiação. Os menores não encaram os pais como fonte de proteção e segurança, de estímulo e progresso, de alegria e esperança, mas de ansiedade e medo.
O apelante, sem pôr em questão o factualismo provado, defende, contudo, que não foi feito tudo o que era possível para preservar os laços dos menores com a família biológica. Segundo o recorrente, após a institucionalização dos menores não foram tomadas quaisquer outras medidas, tais como apoio junto dos pais, providenciando-lhes alguns meios e conhecimentos para que estes pudessem cuidar dos filhos e tê-los consigo, não se podendo omitir que se está perante uma família muçulmana, cujo cariz familiar tem características muito diferentes dos de uma família com uma cultura ocidental.
Afigura-se-nos que o tipo de comportamento parental descrito nos autos não pode ser imputado, no essencial, a particularidades inerentes à cultura muçulmana. Quanto ao apoio à família, foi proporcionado desde o início da intervenção da Comissão de Proteção de Crianças e Jovens, mas recusado, o que levou à remessa do processo para tribunal, perante o qual se manteve uma postura de recusa da intervenção das autoridades, por parte da mãe (vide declarações prestadas na conferência realizada em 10.4.2014, documentada a fls 235 a 240), seguindo-se meses de ausência da parte de ambos os progenitores. Na fundamentação do acórdão recorrido, subscrito pela Exm.ª juíza de direito e pelas duas Exm.ªs juízas sociais, escreveu-se, nos seus três últimos parágrafos, o seguinte:
Esta família não demonstra, assim, ter condições para que os menores A, M, B e O aí retornem. A situação de perigo manter-se-ia, e, perante a sua dimensão, e face à atitude de negação que os progenitores revelaram, não se mostra viável que esta família pudesse, num horizonte temporal razoável, ser trabalhada de forma a poder acolher novamente os menores, depois de um eventual novo período de institucionalização. Acresce que estas crianças trazem já consigo a história de quinze meses de institucionalização, após vários anos de falta de cuidados e de proteção. É, pois, urgente que seja definido um novo projeto de vida para estas crianças que, não passando pelo regresso à família de origem, não poderá, pois, passar pela institucionalização.
Na verdade, e como se assinalou na exposição de motivos da Lei n.° 31/2003, de 22 de agosto, que alterou o Regime Jurídico da Adoção, se perante o "primado da família biológica, há que apoiar as famílias disfuncionais quando se vislumbra a possibilidade destas reecontrarem o equilíbrio, mas situações há em que tal não é viável, ou pelo menos, não o é em tempo útil para a criança, devendo em tais situações encetar-se firme e atempadamente o caminho da adopção.”
Não sendo viável o regresso à família biológica, o desenvolvimento pessoal, afetivo e formativo do A, do M, do B e do O não pode ficar indefinidamente à espera. Urge definir um projeto de vida para estas crianças, que passará, necessariamente, pela adoção, como única medida capaz de acautelar o futuro destes menores.”
Face aos elementos constantes dos autos, não vê esta Relação motivo para dissentir do juízo formulado pela primeira instância.
A apelação é, assim, improcedente.
DECISÃO
Pelo exposto, julga-se a apelação improcedente e consequentemente mantém-se a decisão recorrida.
Sem custas, por isenção (art.º 4.º n.º 2 alínea f) do RCP).
Lisboa, 05.11.2015

Jorge Leal

Ondina Carmo Alves

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Olindo dos Santos Geraldes (vencido, conforme declaração de voto junta em anexo)

DECLARAÇÃO DE VOTO

I – Perante o acerbo factual provado, não pode concluir-se no caso, com inteira segurança, que se encontrem seriamente comprometidos os vínculos afetivos próprios da filiação, conforme disposto no art. 1978.º, n.º 1, alínea d), do Código Civil.
Admitindo embora o afrouxamento desses vínculos afetivos e até alguma incapacidade dos pais, tal não representa, contudo, um inequívoco comprometimento das relações afetivas entre os pais e os filhos.
Entende-se, por isso, não se encontrar verificada a condição normativa prevista no art. 1978.º, n.º 1, alínea d), do Código Civil, não se justificando, com o fundamento especificado no acórdão, o encaminhamento dos menores para uma futura adoção.

II – Assim, votei no sentido de conceder provimento ao recurso, revogando a decisão recorrida e substituindo-a por outra, que se limitasse à aplicação da medida de acolhimento em instituição.

Lisboa, 5 de novembro de 2015


(Olindo dos Santos Geraldes)