Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
2967/18.3T9LSB-A.L1-9
Relator: CRISTINA BRANCO
Descritores: QUEBRA DE SIGILO PROFISSIONAL
ADVOGADO
TESTEMUNHA
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 09/23/2021
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Texto Parcial: N
Meio Processual: QUEBRA DO DEVER DE SIGILO PROFISSIONAL
Decisão: DEFERIDO
Sumário: I O dever de sigilo dos profissionais do foro, mais concretamente dos advogados, está conexamente consagrado como uma das dimensões constitucionais do patrocínio forense, considerado como «um elemento essencial à administração da justiça» (cf. art. 208.º da CRP), sendo que o direito fundamental e constitucional de acesso ao direito (cf. art. 20.º da CRP) implica, para além do mais, o correspondente patrocínio judiciário, com a particular relação de confiança entre o advogado e o seu cliente, a defesa da dignidade, direitos e interesses legítimos do próprio advogado ou do cliente ou seus representantes;

II A decisão sobre a quebra do sigilo profissional impõe uma criteriosa ponderação dos valores em conflito, avaliando, perante as particularidades de cada caso concreto, a diferente natureza e relevância dos bens jurídicos tutelados pelos deveres em confronto, segundo um critério de proporcionalidade na restrição, na medida do necessário, de direitos e interesses constitucionalmente protegidos, em obediência ao que dispõe o art. 18.º, n.º 2, da CRP;

III O depoimento da testemunha (advogado) versando sobre matéria de que só essa testemunha terá conhecimento, por se relacionar com o aconselhamento jurídico que prestou quando exercia as funções de director jurídico da sociedade arguida, e da qual depende a possibilidade de determinar os elementos típicos objectivos e subjectivos dos crimes por que vêm pronunciados.

IV Haverá, pois, que ponderar, para além do interesse tutelado com o estabelecimento do segredo profissional dos advogados, o interesse do Estado na realização da justiça penal e o da defesa do arguido em processo penal, com consagração no art. 32.º da CRP, sendo certo que foram os titulares do interesse protegido – os aqui arguidos – que arrolaram como testemunha a pessoa sujeita a segredo, por entenderem que o seu depoimento é essencial à sua defesa e à descoberta da verdade;

V Tendo em conta o princípio da prevalência do interesse preponderante, sendo o depoimento da referida testemunha essencial para a descoberta da verdade material e a boa decisão da causa, o interesse para a boa administração da justiça penal (que envolve necessariamente o respeito pelas garantias de defesa do arguido) justifica, e impõe, a quebra do segredo profissional no caso vertente.

Decisão Texto Parcial:
Decisão Texto Integral: Acordam, em conferência, na 9.ª Secção Criminal do Tribunal da Relação de Lisboa



I.Relatório


1.No âmbito do Processo n.º 2967/18.3T9LSB foram pronunciados os arguidos “SS…. SA” e AA, ambos identificados nos autos, pela prática,
- a sociedade arguida, em autoria material, de:
a)-Um crime por violação da autonomia sindical p. e p. pelos arts. 405.º, n.ºs 1 e 2, e 407.º, n.º 1, ambos do Código do Trabalho;
b)-Um crime de acto discriminatório p. e p. pelos arts. 406.º, n.º1, al. b), e 407.º, n.º 1, ambos do Código do Trabalho;
c)-Uma contra-ordenação muito grave p. e p. pelos arts. 405.º, n.º 5, do Código de Trabalho e 20.º do RGCOC;
d)-Uma contra-ordenação muito grave p. e p. pelos arts. 406.º, n.º 2, do Código de Trabalho e 20.º do RGCOC;

- o arguido AA, em autoria material, de:
a)-Um crime por violação da autonomia sindical p. e p. pelos arts. 405.º, n.ºs 1 e 2, e 407.º, n.º 2, ambos do Código do Trabalho;
b)-Um crime de acto discriminatório p. e p. pelos arts. 406.º, n.º 1, al. b), e 407.º, n.º 2, ambos do Código do Trabalho, e art. 20.º do RGCOC.

2.Distribuídos os autos ao Juízo Local Criminal de Lisboa – Juiz 11 e designadas datas para audiência de julgamento, vieram os arguidos apresentar contestação à acusação pública na qual, para além do mais, arrolaram testemunhas a inquirir, entre as quais figura BB, aí identificado como «Secretário da Sociedade e Diretor Jurídico da SS….SA».
3.Chamada a depor na sessão da audiência de julgamento de 09-07-2021, e tendo-lhe sido dado conhecimento do teor do parecer solicitado ao Conselho Regional da Ordem dos Advogados (no qual se conclui pela legitimidade da escusa), na sequência de questão suscitada pelos assistentes/demandantes[1], a referida testemunha pediu escusa do seu depoimento.

4.De seguida foi proferido o seguinte despacho:
«Tendo presente o parecer remetido pelo Conselho Regional da Ordem dos Advogados, a questão suscitada pelos assistentes/demandantes e após averiguações, nos termos do art.° 135° n° 2 do C.P.Penal, a escusa agora invocada pela testemunha parece ter fundamento.
Uma vez que a testemunha terá acompanhado o arguido, entendemos, no entanto, que tal depoimento sendo importante, não é absolutamente essencial à descoberta da verdade material e boa decisão da causa.
Pelo que e na perspetiva do Tribunal e perante informação prestada pelo Conselho Regional da Ordem dos Advogados, junto aos autos, o Tribunal na sua perspectiva, considera que será de prescindir do depoimento desta testemunha.
Notifique-se.»

5.Dele notificados, o MP e os assistentes/demandantes declararam nada terem a opor ou a requerer, tendo a defesa dos arguidos apresentado requerimento do seguinte teor:
«"A defesa entende o despacho que acaba de ser prolatado, mas sendo fundada a escusa da testemunha na jurisprudência unanime da Ordem dos Advogados, não podemos deixar de atender àquilo que é a jurisprudência unanime recente dos Tribunais superiores portugueses.
Citando a mero exemplo o acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa de 3 de Março do corrente ano no processo 761/13.7TACBL:
"I - O segredo profissional não é um segredo absoluto, sem qualquer possibilidade de afastamento, mas as razões da sua existência impõem que, só excepcionalmente, possa ter lugar a quebra de tal segredo.
II - A imprescindibilidade do depoimento da testemunha sujeita a segredo profissional é elemento essencial na decisão sobre a quebra do segredo.
III - Estando em causa crimes de elevada gravidade (insolvência dolosa e falsificação de documento autêntico) e revelando-se o depoimento da Exma. advogada essencial para a descoberta da verdade material, deve ser reconhecido como preponderante o interesse da realização da justiça, que visa a protecção dos bens jurídicos e a descoberta da verdade material, interesse que deve assim ser acautelado, ficando secundarizados os interesses relativos à reserva profissional e que subjazem ao sigilo profissional.
IV - Impõe-se, pois, e legitimamente, a quebra do segredo profissional, já que a testemunha se encontra em situação privilegiada para contribuir para o cabal esclarecimento dos factos e boa decisão da causa, justificando-se assim que cesse o dever de segredo profissional da Ilustre Advogada e se abra caminho à sua colaboração na realização da Justiça, mediante a prestação do depoimento pretendido ) - fim de citação.
O que há-de a defesa significar a V.ª Ex.ª, que sendo fundada a escusa do Dr. BB, põe-se uma questão de legitimidade dessa mesma escusa, ou seja, o Sr. Dr. arrima-se à posição da augusta Ordem dos Advogados, o que me parece legitimamente possível e admissível mas, na ponderação do interesse preponderante e estando nós a falar de factos que constituíam efectivamente conselho jurídico da testemunha aos arguidos, mas factos de que depende a possibilidade de determinar elementos objetivos e subjetivos dos tipos penais em questão.
Entende-se, mui respeitosamente a V.ª Ex.ª que melhor decidiria se ordenasse a quebra do segredo e, não acontecendo isso não havendo inversão deste depoimento, requer-se ao Tribunal que perante o Tribunal superior se dirima esta questão na medida em que como referi, tendo a defesa centrado a sua "power force " nesta mesma testemunha, prescindindo da maioria delas, não vê outra possibilidade de poder fazer prova perante este Tribunal, perante V.ª Ex.ª, de circunstâncias concretas de facto a que só a testemunha esteve presente, mais nenhuma testemunha esteve presente, mais ninguém esteve presente, factos que ouviu diretamente dos arguidos que só a testemunha ouviu, mais ninguém ouviu.
E, principalmente e mais importante de tudo a "ratio decidendi" do arguido pessoa singular e da arguida pessoa colectiva que se baseou precisamente no facto de só a testemunha ter conhecimento que foi o aconselhamento jurídico que a própria prestou.
Assim, sumariamente a para poder deixar de existir qualquer dúvida sobre o preenchimento do elemento subjectivo do tipo, o depoimento desta testemunha é fundamental e daí a preponderância de poder levar à quebra do respectivo segredo, nos estritos limites necessários à determinação do que acabo de circunscrever.
Por isso peço deferimento a este requerimento.".»

6. Sobre este requerimento foi proferido despacho nos seguintes termos:
«Considerando a posição da defesa e o ora requerido pela mesma, sendo que este Tribunal já tomou posição quanto à situação referente a este testemunha, que aqui reiteramos, de acordo com o disposto no art.º 135º nº 3 e 4 do C.P.Penal , consideramos que terá que ser o Tribunal Superior, designadamente o Tribunal da Relação de Lisboa a tomar posição quanto à questão suscitada sobre a quebra de sigilo e por referência ao depoimento da testemunha .......
Assim sendo, determina-se que seja extraída certidão nos moldes já anteriormente determinados e que acompanhou o pedido de parecer junto da Ordem dos Advogados, acrescido da certidão do parecer emitido pelo Conselho Regional da Ordem dos Advogados e da presente acta de audiência de julgamento, onde deve constar o requerimento integralmente formulado pela defesa, e que tal certidão seja remetida ao Tribunal Superior para o efeito referenciado.
Atento o exposto, fica inviabilizada a continuação da audiência nesta data e bem assim como na data posteriormente designada, dada a sua proximidade e, atento igualmente a proximidade do período de férias judiciais, sendo que os presentes autos não revelam natureza urgente, pelo que importa interromper a sessão de julgamento. (…)»

7.Remetidos os autos a este Tribunal, o Senhor Procurador-Geral Adjunto após o seu Visto.

8.Realizada a conferência, cumpre apreciar e decidir.

*

II.Fundamentação

A única questão que nos autos se suscita é a de apreciar se, no caso concreto, deve ou não ser determinada a quebra do sigilo profissional do Sr. Dr. BB, a fim de o mesmo ser ouvido como testemunha.

Estabelece o n.º 1 do art. 135.º do CPP que «os ministros de religião ou de confissão religiosa e os advogados, médicos, jornalistas, membros de instituições de crédito e as demais pessoas a quem a lei permitir ou impuser que guardem segredo podem escusar-se a depor sobre os factos por ele abrangidos».

Por seu turno, dispõe o art. 92.º do Estatuto da Ordem dos Advogados, aprovado pela Lei n.º 145/2015, de 09-09, sob a epígrafe “Segredo profissional”:
«1O advogado é obrigado a guardar segredo profissional no que respeita a todos os factos cujo conhecimento lhe advenha do exercício das suas funções ou da prestação dos seus serviços, designadamente:
a)-A factos referentes a assuntos profissionais conhecidos, exclusivamente, por revelação do cliente ou revelados por ordem deste;
b)-A factos de que tenha tido conhecimento em virtude de cargo desempenhado na Ordem dos Advogados;
c)-A factos referentes a assuntos profissionais comunicados por colega com o qual esteja associado ou ao qual preste colaboração;
d)-A factos comunicados por co-autor, co-réu ou co-interessado do seu constituinte ou pelo respectivo representante;
e)-A factos de que a parte contrária do cliente ou respectivos representantes lhe tenham dado conhecimento durante negociações para acordo que vise pôr termo ao diferendo ou litígio;
f)-A factos de que tenha tido conhecimento no âmbito de quaisquer negociações malogradas, orais ou escritas, em que tenha intervindo.

2A obrigação do segredo profissional existe quer o serviço solicitado ou cometido ao advogado envolva ou não representação judicial ou extrajudicial, quer deva ou não ser remunerado, quer o advogado haja ou não chegado a aceitar e a desempenhar a representação ou serviço, o mesmo acontecendo para todos os advogados que, directa ou indirectamente, tenham qualquer intervenção no serviço.
3O segredo profissional abrange ainda documentos ou outras coisas que se relacionem, directa ou indirectamente, com os factos sujeitos a sigilo.
4O advogado pode revelar factos abrangidos pelo segredo profissional, desde que tal seja absolutamente necessário para a defesa da dignidade, direitos e interesses legítimos do próprio advogado ou do cliente ou seus representantes, mediante prévia autorização do presidente do conselho distrital respectivo, com recurso para o bastonário, nos termos previstos no respectivo regulamento.
5–Os actos praticados pelo advogado com violação de segredo profissional não podem fazer prova em juízo.
6–Ainda que dispensado nos termos do disposto no nº 4, o advogado pode manter o segredo profissional.
7–O dever de guardar sigilo quanto aos factos descritos no nº 1 é extensivo a todas as pessoas que colaborem com o advogado no exercício da sua actividade profissional, com a cominação prevista no nº 5.
8–O advogado deve exigir das pessoas referidas no número anterior, nos termos de declaração escrita lavrada para o efeito, o cumprimento do dever aí previsto em momento anterior ao início da colaboração, consistindo infracção disciplinar a violação daquele dever.»

Seguindo de perto o que já escrevemos noutros lugares[2], diremos que deste preceito decorre que estão abrangidos pelo segredo profissional do advogado os factos que resultem do desempenho desta actividade profissional, podendo advir da violação desse dever de reserva, para além de responsabilidade criminal e civil, também consequências no plano estatutário e no plano processual: no âmbito do primeiro, a ofensa do dever de sigilo faz incorrer o advogado infractor em responsabilidade disciplinar (cf. art. 115.º do EOA); no domínio processual, os actos praticados com violação daquele dever redundam numa proibição de prova (cf. art. 92.º, n.º 5, do citado EOA e 126.º, n.º 3 do CPP).

Explica Costa Andrade[3] que o art. 135.º do CPP «outorga a um círculo de profissões, em nome do sigilo profissional, um direito de recusa de depoimento, isto é, um direito ao silêncio. Na medida em que este direito subsiste, a lei processual penal comete à disponibilidade dos membros das profissões a decisão sobre o sentido do seu exercício concreto. A livre decisão, por exemplo, do médico bastará para, só por si – independentemente de assentimento ou oposição do titular do segredo – para introduzir um meio de prova processualmente admissível. O quadro poderá ser outro do lado do direito penal substantivo», em que a falta de «consentimento» converterá a revelação do segredo em conduta típica, uma vez que a lei penal sanciona, no seu art. 195.º, «Quem, sem consentimento revelar segredo alheio de que tenha tomado conhecimento em razão do seu estado, ofício, emprego, profissão ou arte.»

«Tanto o dever de sigilo que a lei substantiva prescreve como o direito ao sigilo que o direito processual reconhece, visam salvaguardar simultaneamente bens jurídicos de duas ordens distintas. A par dos interesses individuais da preservação do segredo sobre determinados factos, protegem-se igualmente valores ou interesses de índole supra-individual e institucional que, por razões de economia, poderemos reconduzir à confiança sobre que deve assentar o exercício de certas profissões.»[4]
Presentemente, é clara a prevalência da tutela da privacidade, bem jurídico pessoal, face ao bem jurídico supra-individual institucional, perante a previsão do art. 195.º do CP, sem prejuízo de os valores supra-individuais, que se «identificam com o prestígio e confiança em determinadas profissões e serviços, como condição do seu eficaz desempenho», aparecerem sempre incindivelmente associados à punição da violação do sigilo profissional, embora «com o estatuto de interesses (apenas) reflexa e mediatamente protegidos»[5].

O dever de sigilo dos profissionais do foro, mais concretamente dos advogados, está conexamente consagrado como uma das dimensões constitucionais do patrocínio forense, considerado como «um elemento essencial à administração da justiça» (cf. art. 208.º da CRP), sendo que o direito fundamental e constitucional de acesso ao direito (cf. art. 20.º da CRP) implica, para além do mais, o correspondente patrocínio judiciário, com a particular relação de confiança entre o advogado e o seu cliente, a defesa da dignidade, direitos e interesses legítimos do próprio advogado ou do cliente ou seus representantes.
No entanto, contrariamente ao que sucede, por exemplo, com o segredo religioso, o dever de sigilo que vincula o advogado não tem um carácter absoluto, cedendo desde que tal seja absolutamente necessário para a defesa da dignidade, direitos e interesses legítimos do próprio advogado ou do cliente ou seus representantes (cf. n.º 4, 1.ª parte, do citado art. 92.º do EOA).
Essa quebra do dever de sigilo só é admissível desde que obtida a prévia autorização do presidente do conselho distrital respectivo (cf. art. 92.º, n.º 4 do EOA). E, mesmo no caso de ter sido devidamente autorizado pelo seu conselho, o advogado pode escusar-se à revelação (art. 92.º, n.º 6 do EOA).
Se o presidente não autorizar a quebra, o advogado deve escusar-se a depor com base no segredo, cabendo ao tribunal decidir da legitimidade dessa escusa e ao tribunal a superior decidir da respectiva justificação, mediante o incidente processual a que se refere o n.º 3 do art. 135.º do CPP.
Neste incidente o Tribunal «pode decidir a prestação do testemunho com quebra do segredo profissional sempre que esta se mostre justificada, segundo o princípio da prevalência do interesse preponderante, nomeadamente tendo em conta a imprescindibilidade do depoimento para a descoberta da verdade, a gravidade do crime e a necessidade de protecção de bens jurídicos».

Segundo refere Costa Andrade[6], este critério material do princípio da relevância do interesse preponderante projecta-se «em quatro implicações normativas fundamentais:
a)-Em primeiro lugar e por mais óbvia, avulta a intencionalidade normativa de vincular o julgador a padrões objectivos e controláveis, não cometendo a decisão à sua livre apreciação;
b)-Em segundo lugar, resulta líquido o propósito de afastar qualquer uma de duas soluções extremadas: tanto a tese de que o dever de segredo prevalece invariavelmente sobre o dever de colaborar com a justiça penal (...) como a tese inversa de que a prestação de testemunho perante o tribunal (penal) configura só por si e sem mais, justificação bastante da violação do segredo profissional (…);
c)-Em terceiro lugar, o apelo ao princípio da ponderação de interesses significa o afastamento deliberado da justificação, neste contexto, a título de prossecução de interesses legítimos. Isto é: a realização da justiça penal, só por si e sem mais (despida do peso específico dos crimes a perseguir) não figura como interesse legítimo bastante para justificar a imposição da quebra do segredo. E isto sem prejuízo da pertinência e validade reconhecidas a esta derimente no regime geral da violação de segredo (…);
d)-Em quarto lugar, com o regime do artigo 135º do CPP, o legislador português reconheceu à dimensão repressiva da justiça penal a idoneidade para ser levada à balança da ponderação com a violação do segredo: tudo dependerá da gravidade dos crimes a perseguir.»

Assim, a decisão sobre a quebra do sigilo profissional impõe uma criteriosa ponderação dos valores em conflito, avaliando, perante as particularidades de cada caso concreto, a diferente natureza e relevância dos bens jurídicos tutelados pelos deveres em confronto, segundo um critério de proporcionalidade na restrição, na medida do necessário, de direitos e interesses constitucionalmente protegidos, em obediência ao que dispõe o art. 18.º, n.º 2, da CRP.

No caso concreto, segundo o alegado pelos arguidos no requerimento que formularam na audiência e que acima transcrevemos, o depoimento da testemunha em causa versará sobre matéria de que só essa testemunha terá conhecimento, por se relacionar com o aconselhamento jurídico que prestou quando exercia as funções de director jurídico da sociedade arguida, e da qual depende a possibilidade de determinar os elementos típicos objectivos e subjectivos dos crimes por que vêm pronunciados, de violação da autonomia sindical e de acto discriminatório.
Haverá, pois, que ponderar, para além do interesse tutelado com o estabelecimento do segredo profissional dos advogados, o interesse do Estado na realização da justiça penal e o da defesa do arguido em processo penal, com consagração no art. 32.º da CRP, sendo certo que foram os titulares do interesse protegido – os aqui arguidos – que arrolaram como testemunha a pessoa sujeita a segredo, por entenderem que o seu depoimento é essencial à sua defesa e à descoberta da verdade.
E efectuada essa ponderação, de acordo com o mencionado princípio da prevalência do interesse preponderante, afigura-se-nos que sendo o depoimento da referida testemunha essencial para a descoberta da verdade material e a boa decisão da causa, o interesse para a boa administração da justiça penal (que envolve necessariamente o respeito pelas garantias de defesa do arguido) justifica, e até impõe, a quebra do segredo profissional no caso vertente.

Na verdade, como se lê no acórdão da Relação de Évora de 17-06-2014, proferido no Proc. n.º 66/08.5IDSTR-B.E1[7]:
«(…) a quebra de segredo nos termos do art. 135º nº3 do CPP não exige que o depoimento seja imprescindível para a descoberta da verdade. A imprescindibilidade do depoimento da testemunha não constitui um requisito obrigatório da quebra de segredo, mas antes um dos fatores que, exemplificativamente, podem fundamentar o juízo de prevalência dos interesses conflituantes com os protegidos pelo segredo profissional. Isto é, a quebra do segredo terá lugar, em princípio, quando o depoimento se apresente como imprescindível, mas nada impede que a quebra seja determinada em hipóteses de menor relevância para a descoberta da verdade (v.g. depoimento necessário, determinante, muito importante), em atenção à sua conjugação com outros fatores, como sejam a relevância jurídico penal concreta do depoimento, ou mesmo a gravidade do crime ou a importância relativa dos bens jurídicos a proteger.

Por outro lado, sempre se impõe ponderar se o depoimento a prestar por advogado se apresenta como essencial à condenação da pessoas ou pessoas cujo interesse pessoal é direta ou reflexamente protegido pelo segredo, ou relevará antes para a exclusão ou diminuição da responsabilidade criminal dessas mesmas pessoas, hipótese em que os interesses pessoais, individuais, protegidos pelo segredo, não são verdadeiramente postos em causa pelo depoimento, podendo questionar-se antes, com os arguidos requerentes B e C, se não estaremos mesmo perante dever do advogado a depor com quebra do segredo, pelo menos quando esteja em causa o seu cliente.

Em todo o caso, sempre há a considerar o entendimento seguido e referido pelo Ac do STJ de 15.04.2004 (relator Quirino Soares), igualmente citado por aqueles mesmos arguidos, de acordo com o qual a parte beneficiária do segredo pode dispensá-lo, o que constituirá entendimento antigo e persistentemente uniforme do Supremo Tribunal, citando a propósito os acórdãos: de 02.12.69, no BMJ 192º/197; de 16.11.71, no BMJ 211º/269; de 31.01.89, processo 76 661, na base de dados do ITIJ, com o nº076661; de 26.05.92, processo nº81 993, na base de dados do ITIJ, com o nº081993; de 22.11.95, processo nº87 169, na base de dados do ITIJ, com o nº087169).

Conclui o citado Ac STJ de 15.04.2004 que “Não é incongruente, tal entendimento, com as razões de ordem pública que explicam o dever de sigilo, porque, em todo o caso, é sempre o interesse do cliente, ou o da parte contrária, do co-autor, do co-réu, ou do co-interessado, que, em cada situação concreta, estão em crise, e esse interesse é, em princípio, disponível (sublinhado nosso)

À luz (também) destas considerações, que subscrevemos, não poderemos, pois, deixar de concluir que, ao abrigo do disposto no art. 135.º, n.ºs 3 e 4, do CPP, deverá ser determinada a quebra do segredo profissional de advogado no presente incidente.

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III.Decisão
Em face do exposto, acordam os Juízes da 9.ª Secção Criminal do Tribunal da Relação de Lisboa em determinar a quebra do segredo profissional de advogado para que a testemunha BB preste depoimento nos presentes autos.
Sem tributação.

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(Certifica-se, para os efeitos do disposto no art. 94.º, n.º 2, do CPP, que o presente acórdão foi elaborado e revisto pela relatora, a primeira signatária)

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Lisboa, 23-09-2021



Cristina Branco - (assinatura digital)
Filipa Costa Lourenço - (assinatura digital)
Cristina Luísa da Encarnação Santana - (assinatura digital)



[1]Tanto quanto se alcança da única acta que consta dos presentes autos de recurso em separado, uma vez que a da sessão em que a questão foi suscitada não foi remetida a este Tribunal.
[2]Concretamente nos acórdãos proferidos nos Procs. n.ºs 2042/09.1IDLSB-A.L1-9, de 07-03-2013, e 1130/14.7TDLSB-C.L1-9, de 23-02-2017, ambos in www.dgsi.pt.
[3]Sobre as proibições de prova em processo penal, Coimbra Editora, 2006, pág. 54.
[4]Ob. cit., pág. 53.
[5]Assim, Costa Andrade, in Comentário Conimbricense do Código Penal, págs. 773-777: «No que concerne ao direito penal português vigente, tudo se conjuga no sentido da prevalência ou primado da dimensão pessoal-individual, isto é, da elevação da privacidade à categoria de bem jurídico típico do crime do art. 195º. Independentemente da sua pertinência e correcção à luz da versão de 1982, a que expressamente se reportava, hoje não poderia subscrever-se a resposta então dada por RODRIGO SANTIAGO. Que se pronunciava pelo primado da dimensão comunitária, não reservando à dimensão pessoal mais do que uma tutela “meramente consequencial” ou “mediata” (Do crime de Violação de Segredo Profissional 1992 104 ss). Resumidamente, a tese do bem jurídico pessoal é hoje sustentada tanto pela força hermenêutica e não despicienda do elemento sistemático, como pelas sugestões convergentes dos argumentos literal e histórico. Não podendo neste contexto subvalorizar-se a lição decorrente de duas das já assinaladas inovações introduzidas pelo legislador e cujo alcance heurístico e hermenêutico já tivemos oportunidade de enfatizar (supra § 10): a mudança operada a nível da rubrica e a conversão da infracção em crime semi-público
[6]In Comentário Conimbricense do Código Penal, tomo I, Coimbra Editora, 1999, págs. 795-796.
[7] In www.dgsi.pt.