Decisão Texto Integral: | Acordam, em conferência, os Juízes que compõem a 5ª Secção do Tribunal da Relação de Lisboa:
I.–RELATÓRIO
1.–Vem o presente recurso interposto pelo arguido AA do acórdão proferido em processo comum por tribunal singular, pelo qual foi condenado na pena de 250 (duzentos e cinquenta) dias de multa à taxa diária de €5,00, pela prática de um crime de abuso de poder, previsto e punido pelo disposto no art. 382ºdo Código Penal.
2.–O arguido recorrente peticiona a anulação da audiência de julgamento e dos atos subsequentes por verificação de nulidade nos termos do art. 379°/1, c) do Código de Processo Penal e bem assim a revogação da sentença recorrida, formulando para tanto as seguintes conclusões [transcrição]:
«(…)
a)-tendo o arguido comunicado a alteração da sua morada através de carta remetida para a entidade policial onde foi inquirido, a notificação do mesmo dos diferentes actos processuais, incluindo a data da realização da audiência de julgamento, para a antiga morada, por carta registada, não se mostra apta a legitimar a realização da mesma audiência de julgamento na sua ausência, por não se poder ter o mesmo arguido como regularmente notificado, o que importa, desde logo, a anulação do julgamento e termos subsequentes;
b)-e mesmo que o arguido não tivesse feito a comunicação da nova residência, a realização da audiência de julgamento sem que estivesse assegurado o efectivo conhecimento pelo arguido de tal comunicação, faz ferir de inconstitucionalidade dos arts. 113°, n° 3, 333°, n°s 1 e 2 e 334°, n°s 1 e 2 do Cod. Proc. Civil, se entendidos como viabilizando a realização da audiência de julgamento por mera carta registada, sem evidencia de efectivo recebimento pelo arguido, em face dos princípios de garantia de defesa e da intervenção do arguido, plasmados nos n°s 1 e 7 do art. 32° do Cod. Proc. Penal;
c)-a ausência de fundamentação do despacho que afirma a dispensabilidade da presença do arguido em audiência de julgamento, de onde deveria resultar a excepcionalidade da mesma e o estabelecimento de uma concordância prática entre as garantias de defesa com a realização da justiça penal através dos Tribunais, envolve igual nulidade de acordo com o contido no art. 379°, n° 1, al. c) do Cod. Proc. Penal, implicando a anulação da audiência de julgamento e dos actos subsequentes;
d)-não sendo a contratação da prestação de serviços ou da aquisição de bens pelo Agrupamento de Escolas da competência própria do seu director, nunca poderá o ora recorrente ter cometido o crime que lhe vem imputado de abuso de poder uma vez que este crime constitui um crime de função, um crime próprio, especifico do funcionário que detém determinados poderes funcionais e faz uso de tais poderes para um fim diferente daquele para que a lei os concede, envolvendo um mau uso ou uso desviante de poderes funcionais, por excesso de poderes legais ou por desrespeito de formalidades essenciais.
e)-Da mesma forma que, atenta a tipificação do art. 382° do Cod. Penal, necessário era que tenha existido um benefício ilegítimo, um efectivo enriquecimento sem causa por parte do arguido ou de terceiro, algo a que os autos nem sequer fazem referência, não questionado que os serviços contratados tenham sido prestados, que os bens fornecidos tenham sido efectivamente facultados ao Agrupamento ou que os serviços prestados e os bens fornecidos tivessem um preço ou contrapartida excessiva ou desrazoável;
f)-Tendo em atenção os montantes pagos e a natureza da prestação de serviços e de fornecimento de bens, as formalidades a que a sentença recorrida se refere como “regras de contratação publica” (cf. 2.1.6 dos factos provados), como sejam o “concurso publico” (cf. 2.1.7 dos factos provados)) ou o “parecer do Ministério das Finanças e da Administração Publica” (cf. 1.1.13 dos factos provados) dependem, no primeiro caso, do valor em causa, sendo que, de acordo com o montante referido nos factos provados, estar-se-ia perante uma situação de ajuste directo ou consulta previa e, no segundo caso, de estarem em causa verbas do orçamento escolar ou verbas próprias do Agrupamento, situações que a sentença recorrida não esclarece, carecendo de base mínima a afirmação contida em 2.1.18 de que a contratação foi concretizada “sem se submeter às regras e exigências aplicáveis à contratação pública”;
g)-Caindo pela base as conclusões probatórias contidas nos pontos 2.1.19 e 2.1.30 que, em catadupa, nada mais fazem do que retirar conclusões e extrair ilações de elementos que os autos não revelam ou transmitem, como, aliás, a fundamentação da matéria de facto bem elucida;
h)-Não sendo as regras da experiência elemento de sustentação bastante da serie de considerações conclusivas contidas na sentença recorrida em sede probatória, desde logo porque tal afronta, de forma clara, a ponderação favorável que o princípio in dúbio pro reo impõe;
i)-A sentença recorrida, salvo melhor opinião, violou os comandos e princípios legais supra convocados nas presentes conclusões de recurso.».
3.–O recurso do acórdão condenatório foi admitido a subir nos próprios autos, de imediato e com efeito suspensivo.
4.–Notificado o Ministério Público do requerimento e alegações de recurso, veio em resposta subscrever os fundamentos da decisão recorrida, entendendo dever ser mantida e julgado o recurso improcedente.
5.–Subidos os autos a esta Relação, a Exm.ª Senhora Procuradora-Geral Adjunta emitiu parecer em que, acompanhando a argumentação da resposta ao recurso em primeira instância, pugna pela sua total improcedência.
6.–Foi dado cumprimento ao disposto no art. 417º/2 do Código de Processo Penal, sem que o arguido se pronunciasse.
7.–O processo foi presente à conferência, por o recurso dever ser aí julgado, de harmonia da com o preceituado no art. 419º/3, b) do Código de Processo Penal.
II–FUNDAMENTAÇÃO
1.–QUESTÕES A DECIDIR
Como é jurisprudência pacífica, sem prejuízo das questões de conhecimento oficioso – como sejam a deteção de vícios decisórios ao nível da matéria de facto emergentes da simples leitura do texto da decisão recorrida, por si só ou conjugada com as regras experiência comum, previstos no art. 410º/2 do Código de Processo Penal, e a verificação de nulidades que não devam considerar-se sanadas, nos termos do art. 379º/2 e 410º/3, do mesmo código – é pelas conclusões extraídas pela recorrente na motivação apresentada que se delimita o objeto do recurso e se fixam os limites de cognição do tribunal superior.
Assim, são as seguintes as questões a decidir:
1.ª-Podia o recorrente ter sido julgado na ausência, como foi?
2.ª-Ocorre nulidade da sentença recorrida nos termos do art. 379º/1,c) do Código de Processo Penal?
3.ª-Padece a sentença recorrida de algum dos vícios previstos no art. 410º do Código de Processo Penal, mormente o de erro notório na apreciação da prova e violação do princípio in dubio pro reo?
4.ª-Mostra-se acertada a subsunção jurídico-penal dos factos provados?
2.–APRECIAÇÃO DO RECURSO
- 2.1-DO JULGAMENTO NA AUSÊNCIA
- Entende o recorrente que o julgamento deve ser anulado porquanto não teve conhecimento da sua realização, que ocorreu na sua ausência, tendo assim a audiência de julgamento e demais atos desde a acusação sido realizados sem o seu conhecimento.
- Vejamos se assim foi, elencando para o efeito os atos atinentes do respetivo iter processual.
- Compulsados os autos constata-se então que:
1.–Em 04/08/2020 o recorrente foi constituído na qualidade de arguido pela Polícia Judiciária, prestando então, na mesma data, termo de identidade e residência com a seguinte morada: ..., e o número de telefone ....
2.–Foram remetidas para essa morada as seguintes cartas com prova de depósito:
a.-em 21/04/2021, notificação de proposta de Suspensão Provisória do Processo, vindo a prova de depósito a ser devolvida com indicação de depósito no recetáculo em 23/04/2021;
b.-em 10/09/2021, notificação da acusação deduzida pelo Ministério Público, vindo a prova de depósito a ser devolvida com indicação de depósito no recetáculo em 30/04/2021;
c.-em 17/11/2021, notificação do despacho de declaração de incompetência territorial do Juízo de Instrução Criminal de Sintra, remetendo o processo para o Juízo de Instrução Criminal da Amadora, vindo a prova de depósito a ser devolvida com indicação de depósito no recetáculo em 22/11/2021;
d.-em 21/02/2022, notificação do despacho de abertura de instrução a requerimento dos coarguidos BB e CC e designação de interrogatório dos três arguidos seguido do debate instrutório no dia 14/03/2022, vindo a prova de depósito a ser devolvida com indicação de depósito no recetáculo em 23/02/2022;
e.-em 13/05/2022, notificação do despacho de designação da audiência de julgamento para o dia 29/06/2022, e para comparência na mesma, com prova de depósito a ser devolvida com indicação de depósito no recetáculo em 17/05/2022;
f.-em 25/05/2022 do adiamento do julgamento para 29/09/2022, com prova de depósito devolvida com indicação de depósito no recetáculo em 30/06/2022;
g.-das datas agendadas para julgamento de 18/01/2023 e 25/01/2023, vindo a prova de depósito a ser devolvida com indicação de depósito no recetáculo em 03/09/2022;
3.–Com a acusação foi nomeado ao recorrente Defensor Oficioso, que foi notificado de todos os despachos que foram notificados pessoalmente àquele na morada do termo de identidade e residência e esteve presente nas diligências de interrogatório, debate instrutório, leitura da decisão instrutória, audiência de julgamento e leitura da sentença, para as quais foi convocado.
4.–No decurso da instrução foi requisitada em 11/03/2022 pesquisa na base de dados da Segurança Social, constando aí registada a seguinte morada: ... (referência CITIUS 136233137).
5.–No dia 14/03/2022 o arguido recorrente não compareceu no interrogatório agendado.
6.–No dia 18/03/2022 foi proferida e lida a decisão instrutória de pronúncia do arguido recorrente para julgamento, na presença do defensor do mesmo.
7.–O arguido não compareceu em qualquer das sessões de julgamento agendadas.
8.–Na sessão de audiência de julgamento de 18/01/2023 foi proferido, sob promoção, o seguinte despacho:
«Uma vez que o arguido AA, apesar de regularmente notificado não se mostra presente, nem indicou as razões da sua ausência vai o mesmo condenado em multa pela falta injustificada, a qual se fixa em 2UC - Art.º 116.º, n.º 1 e 117.º do CPP.
Por não se considerar imprescindível a presença do arguido desde o início da audiência determina-se, ao abrigo do disposto nos artigos 196.º e 333-º do CPP, a realização do julgamento na sua ausência, sendo as declarações e depoimentos documentados, e sendo, o arguido devidamente representado para todos os efeitos possíveis, pelo seu Ilustre Defensor.».
9.–Na sessão de audiência de julgamento realizada na parte da tarde do dia 18/01/2023 foi proferido o seguinte despacho:
«No respeitante ao arguido, dá-se aqui por reproduzido o despacho proferido na audiência de hoje, no decurso da manhã, pelos mesmos motivos e fundamentos, sendo agora o mesmo condenado em multa de 2UC (204€), nos termos e para os efeitos nos arts. nele igualmente invocados.
Notifique.».
10.–Na sessão de audiência de julgamento realizada no dia 09/02/2023 foi proferido o seguinte despacho:
«Uma vez que o arguido AA, apesar de regularmente notificado não se mostra presente, nem indicou as razões da sua ausência vai o mesmo condenado em multa pela falta injustificada, a qual se fixa em 2UC - Art.º 116.º, n.º 1 e 117.º do CPP.».
11.–Em 06/06/2023 a Divisão Policial de … informava quanto à solicitação de notificação pessoal da sentença ao arguido, não ter procedido à mesma em virtude de o mesmo já não residir na morada indicada, desconhecendo o seu atual paradeiro; informou ainda que foi tentado o contacto para o telefone nº ..., que se encontrava desligado.
12.–Após pesquisas efetuadas nas bases de dados disponíveis da ANSR, da Segurança Social e da Autoridade Tributária, em 11/01/2024 foi remetida solicitação de notificação pessoal do arguido ao posto da PSP de ... indicando como morada do mesmo: ... a qual se viria a concretizar no dia 17/01/2024.
13.–Em 24/01/2024 o arguido prestou novo termo de identidade e residência junto do Juízo Local Criminal da Amadora, Juiz 1, onde pendia o presente processo, fornecendo a seguinte morada como sendo a da sua residência: ...
Como decorre à saciedade deste percurso processual, o recorrente foi devida e oportunamente notificado dos despachos de acusação e todos os subsequentes na morada que forneceu no termo de identidade e residência prestado no processo, como se impunha face ao preceituado no art. 113º/1,c) e 3, em conjugação com o disposto no art. 196º/2, ambos do Código de Processo Penal.
Não consta do processo qualquer comunicação da alteração dessa morada, como incumbia ao arguido nos termos do art. 196º/3, b), com as cominações previstas sob as subsequentes alíneas c) e d), de entre as quais
E embora o arguido reclame ter comunicado alteração da sua morada em carta dirigida à Polícia Judiciária, apresenta como prova desse alegado facto uma imagem de um papel manuscrito assinado e datado de 10 de agosto de 2020 (6 dias apenas depois de prestado o termo de identidade e residência) pelo qual supostamente teria comunicado essa alteração à Polícia Judiciária; não indica de que forma o fez chegar àquela entidade nem junta qualquer comprovativo de o ter feito, restando um papel que poderia ter sido produzido em qualquer data; acresce que, como assinala o Ministério Público na sua resposta, o número de processo que indica – 864/16.0JFLSB - não é sequer o correspondente ao deste processo.
Ora, como expressamente determina o art. 196º/3, c) e d), do Código de Processo Penal e constava também expresso no formulário de termo de identidade e residência assinado pelo arguido que consta deste processo, ao prestá-lo, o arguido tomou efetivo conhecimento:
«(…)
c)-De que as posteriores notificações serão feitas por via postal simples para a morada indicada no n.º 2, excepto se o arguido comunicar uma outra, através de requerimento entregue ou remetido por via postal registada à secretaria onde os autos se encontrem a correr nesse momento;
d)-De que o incumprimento do disposto nas alíneas anteriores legitima a sua representação por defensor em todos os actos processuais nos quais tenha o direito ou o dever de estar presente e bem assim a realização da audiência na sua ausência, nos termos do artigo 333.º
(…)» (negrito nosso)
Ora, inexiste qualquer evidência de uma comunicação ao processo válida da alteração de morada do arguido em relação àquela que constava do termo de identidade e residência pelo mesmo prestado em 04/08/2020.
Como resulta da própria argumentação recursiva, o arguido não efetuou a comunicação da alteração de morada nos termos e forma legalmente prescritos ou outra que pudesse ser verificada, em razão do que legitimou desse modo a sua representação por defensor em todos os atos processuais nos quais tinha direito ou dever de estar presente e bem assim a realização da audiência na sua ausência.
*
Advoga ainda o arguido recorrente, diga-se, sem sustentação em qualquer normativo legal, que, apesar do termo de identidade e residência prestado e de as convocatórias para a audiência de julgamento terem seguido para a morada aí indicada, por via postal com prova de depósito nos termos previstos no art. 113º do Código de Processo Penal, teria ainda o Tribunal que se certificar de que estava notificado efetivamente, particularmente se não houvesse evidência de haver tomado conhecimento do conteúdo dessa notificação, o que considera ser violador do princípios de garantia de defesa e da intervenção do arguido, plasmados nos n°s 1 e 7 do art. 32° da Constituição da República Portuguesa [indica certamente por lapso o Código de Processo Penal].
Que dizer?
A seguir a tese do arguido, de que serviria então a prestação de termo de identidade e residência se, de qualquer modo, o Tribunal tinha sempre que assegurar-se haver a carta enviada para a respetiva morada chegado efetivamente ao conhecimento do seu destinatário?
Assim considerar seria um retrocesso e um regresso ao paternalismo processual que, em tempos idos, tantos adiamentos, prescrições e impunidades originou na justiça portuguesa.
Basta ler o preâmbulo do DL 320-C/2000, de 15/12, cujo sumário anuncia «Altera o Código de Processo Penal, estabelecendo medidas de simplificação e combate à morosidade processual», que foi a partir do diagnóstico de que «ainda persistem algumas causas de morosidade processual que comprometem a eficácia do direito penal e o direito do arguido «ser julgado no mais curto prazo compatível com as garantias de defesa», nos termos do n.º 2 do artigo 32.º da Constituição da República Portuguesa, que se instituíram as regras relativas ao termo de identidade e residência e efeitos da notificação por via postal simples na morada aí indicada, permitindo o julgamento do arguido na ausência nos termos previstos no art. 333º/1 e 2 do Código de Processo Penal.
Aí se explicita:
«(…)
Atendendo ao facto de uma das principais causas de morosidade processual residir nos sucessivos adiamentos das audiências de julgamento por falta de comparência do arguido, limitam-se os casos de adiamento da audiência em virtude dessa falta, nomeadamente quando aquele foi regularmente notificado.
Com efeito, a posição do arguido no processo penal é protegida pelo princípio da presunção de inocência, prevista no n.º 2 do artigo 32.º da Constituição, que surge articulado com o tradicional princípio in dubio pro reo, o qual implica a absolvição do arguido no caso de o juiz não ter certeza sobre a prática dos factos que subjazem à acusação.
Se o arguido já beneficia deste regime processual especial, não pode permitir-se a sua total desresponsabilização em relação ao andamento do processo ou ao seu julgamento, razão que possibilita, por um lado, a introdução da modalidade de notificação por via postal simples, nos termos acima expostos, e, por outro, permite que o tribunal pondere a necessidade da presença do arguido na audiência, só a podendo adiar nos casos em que aquele tenha sido regularmente notificado da mesma e a sua presença desde o início da audiência se afigurar absolutamente indispensável para a descoberta da verdade material.
(…)» (negrito nosso).
Neste sentido, se escreve também no acórdão da Relação de Évora de 05/12/2023 relatado por Fernando Pina no processo 16/19.3EASTR.E1[1]:
«I.–A presença do arguido na audiência de julgamento está regulada na lei, começando por ser afirmada no n.º 1 do artigo 332.º CPP: «é obrigatória a presença do arguido na audiência.»
II.–Este princípio de obrigatoriedade de presença prossegue não apenas as exigências de um processo equitativo, assegurando as garantias de defesa do arguido, mas giza também a boa decisão da causa, nomeadamente a descoberta da verdade.
III.–Deste direito/dever de presença do arguido na audiência não pode decorrer a inviabilização da realização da audiência se ele faltar, o que no limite colocaria na sua disponibilidade a realização do julgamento, ou pelo menos permitindo o retardamento intolerável do processo, com o que se vulneraria o artigo 6.º da CEDH, por incumprimento julgamento em «prazo razoável».
IV.–Do atual regime, essencialmente recortado nos artigos 333.º, 334.º, 116.º e 117.º CPP, emerge precisamente a resposta ao problema antigo da morosidade processual decorrente dos adiamentos sucessivos da audiência de julgamento, com fundamento na falta de arguido.».
O arguido sabia ao prestar termo de identidade e residência quais eram as suas obrigações, nomeadamente quanto à comunicação da sua morada; sabia que tinha este processo pendente e aparentemente nunca se preocupou em saber do seu estado, alheando-se por completo do mesmo.
Não tinha o Tribunal recorrido qualquer razão para cogitar não estar o mesmo a tomar conhecimento das cartas que eram dirigidas para a morada que fornecera no termo de identidade e residência, tanto mais que foram sempre depositadas no respetivo recetáculo.
De resto, o facto de nas pesquisas efetuadas na base de dados da Segurança Social vir indicada uma outra morada, não impõe ao Tribunal qualquer dever, nomeadamente de averiguar se é essa, e não a feita constar do termo de identidade e residência, a morada efetiva do arguido.
Na verdade, como resulta expressamente do preceituado no art. 196º/2 do Código de Processo Penal, o arguido não tem que indicar no termo de identidade e residência para efeitos de notificação por via postal simples nos termos do art. 113º/1, c) a sua residência; pode indicar o local de trabalho ou outro domicílio à sua escolha.
Mais: já depois de proferida a sentença, feitas pesquisas na base de dados da Autoridade Nacional de Segurança Rodoviária (ANSR), a morada que constava do respetivo Registo Individual de Condutor era precisamente aquela que constava do termo de identidade e residência, e não a agora fornecida (referência CITIUS 24794025).
Rematando, como se escreveu sumariando o acórdão da Relação do Porto de 04/07/2012, relatado por Joaquim Gomes no processo 765/09.4PRPRT-A.P1[2]:
«I-A dispensa de presença do arguido à audiência de julgamento tem sempre um carácter excepcional e visa essencialmente estabelecer uma concordância prática entre as garantias de defesa, no caso a comparência do arguido na audiência de julgamento, com a realização da justiça penal através dos Tribunais.
II-A prestação de TIR regula um específico processo comunicacional entre arguido e tribunal, como seja a possibilidade de notificação por via postal simples [196°, n.º 3, al. c)], cabendo ao arguido indicar uma residência para essa notificações e o dever de comunicar a subsequente mudança de residência, ficando o mesmo em auto, descrevendo-se aí as operações praticadas, fazendo este fé em juízo [99°, n.º l, n.º 3, al. a), c) e d)].
III- Do estatuto jurídico do arguido e tomando como referência os seus deveres específicos e complementares, sobressai um seu dever geral de diligência, não na perspectiva de um dever de colaboração, mas antes de dar funcionalidade àquele seu estatuto, que não é compatível com um posicionamento de alheamento processual e muito menos de violação dos seus deveres processuais.».
Termos em que se conclui que se o arguido foi julgado na ausência, apenas a si próprio e à sua falta de diligência e incúria o deve.
Nada há, pois, a censurar ao Tribunal recorrido ao proceder nestas circunstâncias ao julgamento do arguido na ausência.
*
2.2–DA NULIDADE DA SENTENÇA
Mas o arguido recorrente entende ainda verificar-se nulidade da sentença de acordo com o art. 379°/1, c) do Código de Processo Penal, que implica a anulação da audiência de julgamento e dos atos subsequentes por não conseguir:
«(…) de forma mínima, reconstituir a motivação subjacente à dispensabilidade da presença do arguido em audiência de julgamento, tal como consignado no despacho proferido no início da mesma, consideração que reveste um caracter excepcional e que visa estabelecer uma concordância prática entre as garantias de defesa com a realização da justiça penal através dos Tribunais (assim, Acórdão do Tribunal da Relação de Évora de 10.01.2017, no proc. n° 330/13.1TASLV.E1) […]».
Ora, o recurso tem por objeto a sentença recorrida, não qualquer outro despacho nomeadamente o proferido em ata quanto às consequências atribuídas à falta do arguido aí verificada.
O despacho que assim se pretende questionar é o proferido em 18/01/2023, com o seguinte teor:
«Uma vez que o arguido AA, apesar de regularmente notificado não se mostra presente, nem indicou as razões da sua ausência vai o mesmo condenado em multa pela falta injustificada, a qual se fixa em 2UC - Art.º 116.º, n.º 1 e 117.º do CPP.
Por não se considerar imprescindível a presença do arguido desde o início da audiência determina-se, ao abrigo do disposto nos artigos 196.º e 333.º do CPP, a realização do julgamento na sua ausência, sendo as declarações e depoimentos documentados, e sendo, o arguido devidamente representado para todos os efeitos possíveis, pelo seu Ilustre Defensor.».
Ora, este despacho é prévio, autónomo e não se confunde com a sentença proferida a final, sendo que o disposto no art. 379º do Código de Processo Penal expressamente rege sobre as causas de nulidade da sentença, e não de qualquer outro despacho judicial.
É certo que não estava o Tribunal isento do dever de fundamentação constituindo este uma garantia integrante do próprio Estado de direito democrático, com inerente consagração constitucional no art. 205º/1 da Constituição, nos termos do qual «As decisões dos tribunais que não sejam de mero expediente são fundamentadas na forma prevista na lei.».
Ainda na lei ordinária, emana do art. 97º do Código de Processo Penal que qualquer decisão judicial, exceção feita às «de mero expediente», terá sempre de permitir o conhecimento das razões que motivam a sua prolação.
Trata-se de garantir o direito a um processo justo e equitativo, dando a conhecer de forma transparente aos visados/afetados pela decisão a ponderação efetuada em ordem a alcançar o inciso decisório; só desse modo se possibilitará a sindicância da legalidade e bondade de tal juízo e, do mesmo passo, o pleno exercício do direito de defesa.
Todavia, não sendo cominada a nulidade para a omissão ou vício relativo à sua fundamentação, como é no caso da sentença, por aplicação do princípio da tipicidade das nulidades previsto pelo art. 118º/1 do Código de Processo Penal, temos que sempre se verificaria mera irregularidade a invocar no próprio ato ou nos três dias seguintes a contar daquele em que o interessado tiver sido notificado para qualquer termo do processo ou intervindo em algum ato nele praticado, nos termos do art. 123º/1 do Código de Processo Penal.
Ora, o despacho em causa foi proferido oralmente e exarado em ata na presença do Defensor do ora recorrente, sem que pelo mesmo haja sido invocada a sua irregularidade; por seu lado, o arguido interveio pessoalmente no processo com a prestação de termo de identidade e residência junto do juízo onde o mesmo pendia, com notificação da sentença recorrida, em 24/01/2024, interpondo o presente recurso, e como já dito, apenas da sentença, em 14/02/2024.
Assim, na ausência de impugnação tempestiva de tal despacho, transitou o mesmo em julgado; termos em que a audiência de julgamento foi realizada na sua ausência a coberto do mesmo. [3]
Por último e ainda que assim pudesse não se entender, não cremos padecer o despacho em causa de falta de fundamentação, considerando que pelo mesmo foi exercida a faculdade conferida por lei de dar início à audiência de julgamento sem a presença do arguido reunidos que sejam certos pressupostos aí estabelecidos.
Assim, nos termos do preceituado no art. 332º/1 do Código de Processo Penal «É obrigatória a presença do arguido na audiência, sem prejuízo do disposto nos n.os 1 e 2 do artigo 333.º e nos n.os 1 e 2 do artigo 334.º».
Estabelece o art. 333º/1 e 2, do Código de Processo Penal, o seguinte:
«1–Se o arguido regularmente notificado não estiver presente na hora designada para o início da audiência, o presidente toma as medidas necessárias e legalmente admissíveis para obter a sua comparência e a audiência só é adiada se o tribunal considerar que é absolutamente indispensável para a descoberta da verdade material a sua presença desde o início da audiência.
2–Se o tribunal considerar que a audiência pode começar sem a presença do arguido, ou se a falta de arguido tiver como causa os impedimentos enunciados nos n.os 2 a 4 do artigo 117.º, a audiência não é adiada, sendo inquiridas ou ouvidas as pessoas presentes pela ordem referida nas alíneas b) e c) do artigo 341.º, sem prejuízo da alteração que seja necessária efectuar no rol apresentado, e as suas declarações documentadas, aplicando-se sempre que necessário o disposto no n.º 6 do artigo 117.º».
O art. 334º do Código de Processo Penal rege já em matéria de audiência na ausência do arguido em casos especiais e de notificação edital.
Ora, o nº 1 do art. 333º do Código de Processo Penal confere ao Tribunal o poder de dar início à audiência de julgamento fora da presença física do arguido, se considerar que esta não é indispensável à descoberta da verdade material, e, no limite, de a concluir sem essa presença; ponto é que notifique o arguido da designação de data e hora para a realização de qualquer sessão de julgamento suplementar, não prevista inicialmente, caso venha ter lugar, tanto mais que o arguido, nos termos do nº 3 do mesmo normativo, conserva o direito de prestar declarações, se assim o entender, até ao final da audiência e de estar presente na leitura pública da sentença.[4]
E foi o que sucedeu in casu.
Encontrando-se o arguido regularmente notificado da data agendada para a realização da audiência de julgamento, como verificámos já, e não estando presente na hora designada para o início da audiência, sem que o tivesse justificado, estavam reunidos todos os pressupostos para que o Tribunal desse início a essa audiência fora da sua presença, seguindo a regra instituída naquele preceito legal.
Trata-se, pois, de dar prevalência ao interesse da celeridade processual, eficiência da justiça criminal e boa administração da Justiça, na sua concordância prática com as garantias de defesa do arguido, as quais são asseguradas por via de uma sua regular notificação das decisões que pessoalmente o afetem, como é o caso da que designa a data para realização da audiência de julgamento, nos termos permitidos pelas normas conjugadas do art. 196º do Código de Processo Penal relativo ao termo de identidade e residência e do art. 113º do Código de Processo Penal atinente à forma das notificações.
O que significa que, estando o adiamento da audiência reservado a situações excecionais, em que «o tribunal considerar que é absolutamente indispensável para a descoberta da verdade material a sua presença desde o início da audiência», e sendo a regra a do início da audiência na ausência do arguido regulamente notificado que não comparece nem justifica a sua ausência, a afirmação expressa na decisão da verificação de tais pressupostos, traz implícita a ponderação da não indispensabilidade da presença do arguido desde o início do julgamento, não carecendo de mais extensa fundamentação além desta constatação e verificação.
Neste pressuposto e consonância, o acórdão do STJ de 08/03/2012, relatado no processo 245/07.2GGLSB.L1-A.S1 (AFJ 9/2012)[5], fixou a seguinte jurisprudência: «Notificado o arguido da audiência de julgamento por forma regular, e faltando injustificadamente à mesma, se o tribunal considerar que a sua presença não é necessária para a descoberta da verdade, nos termos do nº 1 do art. 333º do CPP, deverá dar início ao julgamento, sem tomar quaisquer medidas para assegurar a presença do arguido, e poderá encerrar a audiência na primeira data designada, na ausência do arguido, a não ser que o seu defensor requeira que ele seja ouvido na segunda data marcada, nos termos do nº 3 do mesmo artigo.».
Como se sumariou ainda no acórdão desta Relação de Lisboa de 03/03/2009, relatado por Nuno Gomes da Silva no processo 406/08.7GTCSC-5 [6]:
«1–Se o arguido falta está legitimada [cfr. art. 196°, n° 3, al. d) e art. 385°, n° 3, al. a)] a possibilidade de julgamento na sua ausência mas apenas e só se ele não justificou essa falta da forma a que estava obrigado nos termos do art. 117°, n° 2. Nessa altura, sim, é correcto admitir que se desresponsabiliza do andamento do processo, como se dizia na exposição de motivos do Dec. Lei n° 320-C/2000, e perante esse comportamento omissivo é então justificado que em nome da celeridade se avance para o julgamento na sua ausência.
2–O actual regime legal interpretado sem cedências escusadas no que toca à salvaguarda do efectivo direito de defesa permite concluir que o legislador relativizou, de certo modo, o direito de presença do arguido na audiência mas apenas em circunstâncias muito concretas e acautelando, mesmo assim, esse direito.».
Assim, estando em causa a regra estabelecida no art. 333º/1 do Código de Processo Penal de início da audiência de julgamento na ausência do arguido que se mostra regularmente notificado para comparência e não comunica nem justifica a sua ausência, basta-se a fundamentação desse despacho com a afirmação da verificação dos pressupostos que nos termos aí previstos a permitem acionar no caso, pois que esses são «os motivos de facto e de direito da decisão» assim tomada, como prescrito pelo disposto no art. 97º/5 do Código de Processo Penal.
De resto, nem o arguido recorrente opõe a tal verificação e decisão qualquer óbice, apontando nomeadamente razões que contrariem o seu bem fundado; a verdade é que o julgamento se iniciou e concluiu sem a presença do arguido, não tendo o Tribunal recorrido tido necessidade dessa presença para a descoberta da verdade material e proferir sentença.
*
Em suma: inexiste qualquer nulidade da sentença, nomeadamente a prevista no art. 379º/1,c) do Código de Processo Penal, não sendo tal normativo aplicável aos despachos judiciais prévios e autónomos em relação a esta; não tendo sido invocada em tempo qualquer irregularidade quanto à fundamentação do despacho pelo qual se considerou ser dispensável a presença do arguido desde o início da audiência, que resultou assim sanada, tão pouco se havendo dele interposto recurso, transitou o mesmo em julgado.
De todo o modo, mostra-se suficiente a fundamentação apresentada nesse despacho, por permitir ao arguido conhecer os seus fundamentos de facto e de direito, salvaguardando o seu direito de defesa mediante impugnação do mesmo, que não operou em termos processualmente válidos.
Improcede, portanto, em toda a linha o recurso nesta parte.
*
2.3–DA IMPUGNAÇÃO DA MATÉRIA DE FACTO
É do seguinte teor a sentença recorrida na parte relevante [transcrição]:
«(…)
II–Fundamentação:
2.1.–Matéria de facto provada:
Da discussão da causa resultaram provados os seguintes factos:
2.1.1.-O Agrupamento de Escolas ... (doravante designado apenas por ...) foi fundado em ....
2.1.2.-Durante o período temporal dos fatos que infra se passarão a descrever, o arguido AA assumiu as funções de Diretor e de Presidente do BB do referido Agrupamento de Escolas.
2.1.3.-BB é filha do arguido AA.
2.1.4.-CC, à data dos fatos que infra se passarão a descrever, era casado com BB.
2.1.5.-A sociedade comercial denominada “...”, com o NIPC ..., tem como objeto social o comércio, importação e exportação, o comércio por grosso e a retalho de têxteis e brindes publicitários, prestação de serviços de brindes publicitários e sua divulgação; comercialização de equipamentos informáticos; assistência técnica, construção, montagem e reparação de material informático; criação, edição e comercialização de programas informáticos; desenvolvimento de formação e outras atividades conexas à informática.
2.1.6.-Existindo a necessidade de prestação de serviços de apoio informático e elétrico às escolas J.I e 1° ciclo ... e ..., incluídos no ..., o arguido AA, BB e CC engendraram um plano que tinha como objetivo a contratação da sociedade “...” para prestar esses serviços no âmbito da sua atividade social, mas sem que essa contratação ficasse dependente do cumprimento das regras de contratação pública que se impunham para esse efeito.
2.1.7.-Efetivamente, o arguido AA e BB e CC, sabiam que o primeiro, por força das funções assumidas no referido ..., estava em posição de diligenciar pelo procedimento de contratação pública de sociedades comerciais para prestação de serviços de interesse público àquele Agrupamento de Escolas, e que para isso era necessário abrir processo de concurso público, no âmbito do qual, juntamente com outras sociedades de natureza idêntica, seria preciso apresentar a sua candidatura,
2.1.8.-Que seguindo os seus ulteriores trâmites, seria contratada a sociedade que apresentasse as melhores condições e sujeita ao escrutínio imparcial e isento de um concurso público.
2.1.9.-A fim de permitir que a sociedade “...” fosse contratada sem necessidade de sujeição a tal concurso, o arguido AA e BB e CC delinearam um plano a que todos aderiram de apresentar a mesma à contratação sem que houvesse abertura de concurso público para o efeito.
2.1.10.-Na concretização do plano assim delineado pelo arguido AA e BB e CC, aquele primeiro, atuando na qualidade de Diretor e de Presidente do Conselho de Administração do Agrupamento de Escolas referido, em ... e por um período de 4 (quatro) anos, contratou com a sociedade ..., a prestação de serviços de apoio informático e elétrico às escolas e jardins que integram o agrupamento, com um custo fixo mensal de 500,00 euros, acrescido de IVA à taxa legal em vigor,
2.1.11.-Assim, em …2012, entre o ... e a sociedade ..., foi celebrado o referido contrato para a prestação de serviços de apoio informático e elétrico às escolas J.I. e 1° ciclo ... e ..., pelo prazo e pelo valor anteriormente referidos.
2.1.12.-Contrato celebrado e assinado pelo arguido AA, na qualidade de Diretor do ... e BB, na qualidade de gerente daquela sociedade comercial.
2.1.13.-A celebração desse contrato de prestação de serviços, não foi precedida de parecer vinculativo do Ministério das Finanças e da Administração Pública, como imposto pelo art.° 26.° da Lei n.° 64-B/2011, de 30/12, que aprovou o Orçamento de Estado para o ano de 2012.
2.1.14.- O contrato teve início em ... de ... de 2012 com duração até ... de ... de 2016, sem prejuízo de ser renovado se ambas as partes assim o desejassem.
2.1.15.-Mais, em .../.../2014, .../.../2014, .../.../2014, .../.../2014, .../.../2015, .../.../2015 e .../.../2015, o Agrupamento de Escolas em apreço, através do seu Diretor e Presidente do Conselho de Administração à data, o aqui arguido AA adquiriu à referida sociedade comercial diversos bens,
2.1.16.-Aquisição de tais bens ascenderam aos valores de € 1.234, € 1.495, € 612,54, € 1.367,50, € 1.579,50, € 435 e € 585, respetivamente, acrescidos de IVA, no valor total de € 8.989,52.
2.1.17.-Em suma, no período temporal compreendido entre .../.../2012 e .../.../2016, foram emitidas pela sociedade ... ao ... faturas no montante total de € 24.480,37 (vinte e quatro mil, quatrocentos e oitenta euros e trinta e sete cêntimos) referentes à prestação de serviços de apoio informático e elétrico às escolas do ... e à aquisição de produtos diversos a essa sociedade.
2.1.18.-Com a sua atuação, o arguido AA permitiu que a sociedade ... estabelecesse relações comerciais com uma entidade pública, sem se submeter às regras e exigências aplicáveis à contratação pública, faturando no período em apreço o montante apurado de € 24.480,37.
2.1.19.-O arguido AA e BB e CC agiram, em comunhão de esforços e intentos, com o intuito concretizado de tirarem proveito dos contratos assim celebrados e de obter benefícios financeiros em proveito próprio que poderiam não obter de outra forma se sujeitos às regras de transparência e de concorrência leal em contratação pública com outras sociedade comerciais do mesmo ramo de atividade.
2.1.20.-De fato o arguido AA, enquanto Diretor e Presidente do Conselho de Administração do Agrupamento de Escolas ..., ao celebrar o aludido contrato de prestação de serviços e os de aquisição de bens e equipamentos informáticos, fê-lo atenta a relação de proximidade e de interesse entre todos,
2.1.21.-Atuando em claro benefício de BB e CC, e em claro desrespeito das obrigações e deveres inerentes às funções por si desempenhadas na qualidade de Diretor e Presidente do Conselho de Administração do ..., não acautelando o interesse público que lhe cabia cumprir,
2.1.22.-Ao atuar do modo anteriormente descrito, beneficiando indevida e patrimonialmente BB e CC, o arguido AA violou os deveres de legalidade, isenção e prossecução do interesse público a que se encontrava adstrito, assim como o de proteção dos interesses financeiros e patrimoniais do Agrupamento de Escolas referido, que lhe incumbia administrar, fiscalizar e defender.
2.1.23.-Ao celebrar os referidos contratos de prestação de serviços e de aquisição de bens e equipamentos informáticos, o arguido AA bem sabia que atuava em violação dos seus deveres funcionais e inerentes às suas funções enquanto Diretor e Presidente do Conselho de Administração do ... e que atuava com intenção de obter para si e para BB e CC um beneficio ilegítimo.
2.1.24.-Agiu o arguido AA e BB e CC sempre, com a intenção consumada que se protelou no tempo de, assim obterem beneficio patrimonial indevido, querendo ficar na posse dos valores anteriormente discriminados e nunca inferiores a € 24.480,37 (vinte e quatro mil, quatrocentos e oitenta euros e trinta e sete cêntimos),
2.1.25.-O que foi conseguido pela atuação do arguido AA enquanto Diretor e Presidente do Conselho de Administração, o que conseguiram, conscientes que a atuação deste violava, como violou, os seus deveres funcionais e profissionais de Diretor e Presidente do Conselho de Administrativo de um Agrupamento de Escolas (a saber ...), e que punha, como pôs, em causa a credibilidade e fé pública associada à instituição em apreço e aos atos dos seus funcionários em exercício de funções, sabendo que só celebrava tais contratos nos termos e moldes anteriormente descritos por força das funções que ali exercia.
2.1.26.- Ao atuar nos moldes anteriormente descritos, arguido AA atuou com grave abuso da função e violação dos deveres que incumbem aos funcionários de escolas estatais, revelando indignidade no exercício das funções que lhes estão confiadas e a perda da confiança necessária ao exercício das suas funções.
2.1.27.-O arguido agiu na convicção de que as suas atuações estavam a ser bem-sucedidas e que não seriam detetadas, o que motivou a instalação de um ambiente favorável à sua reiteração na prática descrita que levaram a cabo, homogeneamente, ao longo do período de tempo referido.
2.1.28.-Agiu o arguido de forma livre, deliberada e consciente, sempre bem sabendo que as suas condutas eram proibidas e punidas por lei e, ainda assim, não se absteve de as praticar.
2.1.29.- Os factos acima descritos foram praticados com grave abuso da função e violação dos deveres que incumbem aos membros de Agrupamento de Escolas Estatais e revelam indignidade no exercício das funções que lhes estão incumbidas, conduzindo à perda de confiança necessária para o exercício daquelas funções.
2.1.30.-De fato, a atuação do arguido AA, na qualidade de funcionário, valendo-se do seu cargo, para a satisfação de interesses de natureza meramente privada, em grave violação dos deveres inerentes às suas funções, quebrou a confiança que nele foi depositada para o adequado exercício das suas funções.
O arguido tem antecedentes criminais tendo já sido condenado em pena de multa e pena de prisão substituída por multa, no âmbito do processo n.°5964/15.7T9AMD, pela prática dos crimes de ofensa à integridade física qualificada a 11.11.2015, e de difamação agravada a 23.11.2015, por sentença de 15.07.2019, transitada em julgado a 30.09.2019.
*
2.2.–Matéria de facto não provada:
Não existem factos não provados.
*
2.3.– Motivaçao da decisão de facto:
A convicção deste tribunal sobre a matéria de facto provada formou-se com base na avaliação e ponderação de todos os meios de prova produzidos ou analisados em audiência de julgamento, nomeadamente:
- No depoimento da testemunha DD, ... na escola supra referida.
Esta testemunha referiu que naquela ocasião fez depósitos em numerário para a conta da filha do arguido, não sabendo, no entanto, a que é que estes se deviam.
- No depoimento da testemunha EE, ... da escola supra referida.
Esta testemunha disse que o arguido tinha que exercer as funções de Director da Escola em exclusividade, o que não acontecia, sendo que este através dos serviços prestado à escola por empresas a que ele estava ligado, também ganhava dinheiro.
Esclareceu que para haver contratação a escola tem sempre que pedir três orçamentos diferentes.
- No depoimento da testemunha FF, ... da escola.
Esta testemunha não tinha qualquer conhecimento dos factos.
- No depoimento da testemunha GG, ...da escola.
Esta testemunha não tinha conhecimento dos factos, afirmando apenas que por vezes levava o arguido ao Banco, mas não sabe qual o motivo.
- No depoimento da testemunha HH, ... da escola.
Esta testemunha referiu que o arguido apenas lhe comunicava posteriormente que tinha contratado e adjudicado um determinado serviço, sendo que não havia concurso nem apreciação de propostas.
Mais referiu não ter conhecimento da empresa supra descrita.
- No depoimento da testemunha II, ....
Esta testemunha era sub director e vice presidente do BB na altura, referiu que o arguido não fazia reuniões, nem abria concursos, pelo que não eram apresentadas quaisquer propostas.
Sendo o arguido quem decidia todo o processo e a adjudicação.
Mais referiu não ter conhecimento da empresa.
- No depoimento da testemunha JJ, ...
Esta testemunha foi colocado a exercer as funções do arguido, após a exoneração deste.
Disse que quando tomou conhecimento denotou várias irregularidades.
Esclareceu que antes de haver um ajuste directo ou adjudicação tem sempre que haver uma reunião da direcção do conselho administrativo que deliberam acerca de qual a proposta a aceitar e contratar.
Refere que sem deliberação não pode haver contratação.
Sendo que na altura em que o arguido era Director tal não sucedia.
Teve-se ainda em conta:
- Documentos de fls. 9-18,
- Parecer da Inspeção-Geral da Educação e Ciência de fls. 55 e ss.;
- Relatório proferido pela Inspeção-Geral da Educação e Ciência proferido no inquérito n.° 10.06/000093/SC/15 a fls. 65 a 179;
- Certidão permanente de teor da matrícula da sociedade “...”;
- Documentos de fls. 1048 a 1057, 1163 e ss.;
- Faturas de 1073 a 1084, 1988 a 2032;
- Contrato de prestação de serviços de fls. 1085 a 1086,1983 a 1984;
- Orçamentos de fls. 1087,1985;
- Informação de fls. 2033 e 2034.
- Relatório final de fls. 2055 e ss.;
- Nas pesquisas efectuadas nas bases de dados quanto às condições económicas do arguido.
- No Certificado de Registo Criminal, junto aos autos no que concerne aos antecedentes criminais do arguido.
- Assim, face à prova produzida dúvidas não existem em como o arguido praticou os factos que lhe eram imputados.
- Antes de mais tal resulta demonstrado com base nos vários documentos juntos nos autos.
- Ou seja, das faturas de 1073 a 1084, resulta que a sociedade ... cobrava à escola €500 mensais acrescidos de IVA.
- Por sua vez das facturas de fls. 1993, 1995, 1996, 1999, 2001, ..., 2009, 2015, 2017, 2018, 2019, 2022 e 2026 resulta que o arguido em nome da escola adquiriu diversos bens à sociedade ...;
- Mais do contrato de fls.1085 a 1086, 1983 e 1984 resulta que foi acordada uma prestação de serviços entre a sociedade e a escola representada pelo arguido, em que aquela se comprometia a dar apoio informático a esta;
- Por outro lado, temos o depoimento das três ultimas testemunhas que de forma expressa e convincente explicaram como é que o arguido fazia a adjudicação dos contratos, referindo claramente que era este quem decidia tudo, não havendo abertura de concurso, apresentação de propostas nem deliberação sobre as mesmas.
Por sua vez, o elemento subjectivo resultou provado com base nas regras de experiência, uma vez que é notório que o arguido sabia, e não podia ignorar que lhe era vedado, celebrar contractos, neste caso com familiar directo, sem se submeter às regras e exigências aplicáveis à contratação pública, as quais conhecia, ainda assim querendo e prosseguindo com tal contratação, que sabia ser ilegítima, querendo a obtenção das quantias mencionadas na acusação, durante um largo período de tempo.
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III–Enquadramento Jurídico:
3.1.–Crime de Abuso de Poder
Dispõe o artigo 382.° do CP o seguinte:
“O funcionário que, fora dos casos previstos nos artigos anteriores, abusar de poderes ou violar deveres inerentes às suas funções, com intenção de obter, para si ou para terceiro, benefício ilegítimo ou causar prejuízo a outra pessoa, é punido com pena de prisão até 3 anos ou com pena de multa, se pena mais grave lhe não couber por força de outra disposição legal”
O bem jurídico tutelado por esta incriminação legal é a integridade do exercício das funções públicas pelo funcionário e, acessoriamente, os interesses patrimoniais ou não patrimoniais de outras pessoas.
O tipo objectivo consiste no abuso de poderes ou na violação dos deveres inerentes às funções do funcionário.
Trata-se, assim, de um crime de função e, por isso, um crime próprio: o funcionário que detém determinados poderes funcionais faz uso dos mesmos para um fim diferente daquele para o qual a lei os concede.
Por abuso de poderes deve entender-se a instrumentalização de poderes - inerentes às funções - para finalidades estranhas ou contrárias às permitidas, ou seja, para finalidades ilegítimas (ex: violação de lei, incompetência relativa, desvio de poder).
Já a violação de deveres compreende a violação de deveres funcionais (quer genéricos, quer específicos), ou seja, deveres que estão relacionados com o exercício da função, só subsistindo quando o funcionário se encontrar em atividade.
No que concerne ao elemento poderes inerentes à sua função, deve entender-se como prática de um acto, por parte do funcionário, que seja idóneo a produzir efeitos jurídicos enquanto manifestação da vontade do Estado.
Acresce que o agente, entendido como funcionário nos termos descritos no art.° 386° do Código Penal, terá de ter intenção, através da sua ação ou omissão, de obter, para si ou para terceiro, benefício ilegítimo ou causar prejuízo a outra pessoa.
Ou seja, o crime de abuso de poder pressupõe que o agente, investido de poderes públicos, actue com violação dos deveres funcionais que sobre si impendem, sacrificando o interesse público para satisfação de finalidades ou interesses particulares que se venham a traduzir num benefício ilegítimo para si ou para terceiro ou num prejuízo para outra pessoa.
O primeiro limite do perímetro da tipicidade, é constituído pelo mau uso ou uso desviante de poderes funcionais, ou por excesso de poderes legais ou por desrespeito de formalidades essenciais.
A violação dos deveres funcionais é já tutelada por outros tipos legais, nomeadamente, a violação do dever de sigilo, do dever de isenção, do dever de obediência e do dever de zelo. Neste tipo apenas se incluem as violações de outros deveres funcionais que não estejam incriminados por outras normas.
A violação pelo funcionário dos deveres inerentes às funções em que está investido (tenha aqui o significado que tiver) constitui o campo de delimitação da tipicidade. A estrutura do crime no primeiro momento de configuração da acção típica fica integrada pela actuação contrária aos deveres da função.
Por fim, por benefício deve entender-se toda a vantagem que o sujeito ativo pretende retirar da sua atuação. Tal benefício deve ser ilegítimo, de modo a que um tal abuso de poder se manifeste exteriormente através da lesão do bom andamento e imparcialidade da administração.
O agente poderá, também, atuar com intenção de causar prejuízo a outra pessoa.
Quanto ao elemento subjectivo, o tipo admite qualquer modalidade de dolo.
O tipo inclui ainda um elemento subjectivo adicional: o mau uso dos poderes não pode resultar de erro ou de mau conhecimento dos deveres da função, tem de ser determinado por uma intenção específica que enquanto fim ou motivo faz parte do próprio tipo legal.
Doutrinalmente chamados crimes de intenção ou de resultado cortado, esta espécie de crimes supõe para além do dolo de tipo a intenção de produção de um resultado que não faz parte do tipo legal (cfr. Jorge de Figueiredo Dias, “Direito Penal, Parte Geral”, Tomo I, págs. 329-330).
O crime de abuso de poder constitui um dos exemplos desta categoria dogmática.
A relação entre o agente, o resultado, e identificação de benefícios próprios ou a consideração intersubjectiva sobre os antecedentes e a natureza das relações entre o agente e um terceiro constituem índices pelos quais se poderá apreender a manifestação da atitude interna.
Não é necessário que o benefício patrimonial ou não patrimonial tenha sido alcançado, nem que o prejuízo se tenha verificado basta que o funcionário os tenha querido.
Neste sentido veja-se o acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra de 27-11-2013, relatado pela Des. Brízida Martins, no proc° n° 98/07.0 JALRA.C3, disponível em www.dgsi.pt “O crime de abuso de poder constitui um crime de função e, por isso, um crime próprio, o funcionário que detém determinados poderes funcionais faz uso de tais poderes para um fim diferente daquele para que a lei os concede.
O crime é integrado, no primeiro limite do perímetro da tipicidade, pelo mau uso ou uso desviante de poderes funcionais, ou por excesso de poderes legais ou por desrespeito de formalidades essenciais.
Mas, com um elemento nuclear: o mau uso dos poderes não resulta de erro ou de mau conhecimento dos deveres da função, mas tem de ser determinado por uma intenção específica que enquanto fim ou motivo faz parte do próprio tipo legal”.
Sobre esta matéria também se debruçou o acórdão da Relação de Lisboa de 21-2-2018, relatado pela Veneranda Desembargadora Maria da Graça Santos Silva, no proc° n° 5972/08.4TDLSB-L1-3, disponível em www.dgsi.pt. de acordo com o qual “Para se verificar a comissão do crime de abuso de poder, o benefício ilegítimo não tem que se substanciar em vantagem patrimonial bastando a sua ilegitimidade. Está abrangido na intenção da norma o simples favoritismo ou compadrio. Ora, nitidamente há um favoritismo quando se entrega uma obra a alguém, sem o necessário concurso (...)”.
Vejamos, então, se dos factos provados resulta que o arguido praticou o crime de abuso de poder, pelo qual veio acusado.
Ora resultou demonstrado que o arguido celebrou, enquanto director e Presidente do Conselho de Administração do A.E.A.N., com a empresa da sua filha, um contrato de prestação de serviços e aquisição de diversos bens, sem se submeter às regras e exigências aplicáveis à contratação pública.
Assim, antes de mais resulta que o cargo que o arguido ocupava integra a definição de funcionário.
Mais, resultou que o arguido, sem se submeter às regras e exigências aplicáveis à contratação pública, contratou directamente com a empresa da sua filha, violando de forma grosseira os deveres inerentes á sua função, de modo a obter, para si e para a empresa da sua filha, benefício ilegítimo.
Daqui resulta desde já que os elementos objectivos deste tipo de crime estão preenchidos.
Ou seja, o arguido com a sua conduta abusou dos seus poderes de forma a obter um beneficio próprio e a terceiro.
Mais resultou provado que o arguido sabia, e não podia ignorar que lhe era vedado, celebrar contractos, neste caso com familiar directo, sem se submeter às regras e exigências aplicáveis à contratação pública, as quais conhecia, ainda assim querendo e prosseguindo com tal contratação, que sabia ser ilegítima, querendo a obtenção das quantias mencionadas na acusação, durante um largo período de tempo.
O que significa que também está preenchido o elemento subjectivo deste tipo de crime.
Motivo porque deve o arguido ser condenado pela prática do crime de abuso de poder, p. e p. pelo artigo 382.° do CP.
(…)».
Num arrazoado de difícil compreensão, com uma argumentação em que mistura factos e direito, começando por elencar os elementos típicos do crime que lhe vem imputado, de abuso de poder, defende o recorrente que não pode pelo mesmo ser condenado.
Isto porque, segundo argumenta:
1.º-«não sendo a contratação da prestação de serviços ou da aquisição de bens pelo Agrupamento de Escolas da competência própria do seu diretor, nunca poderá ter cometido o crime que lhe vem imputado de abuso de poder uma vez que este crime constitui um crime de função, um crime próprio, especifico do funcionário que detém determinados poderes funcionais e faz uso de tais poderes para um fim diferente daquele para que a lei os concede, envolvendo um mau uso ou uso desviante de poderes funcionais, por excesso de poderes legais ou por desrespeito de formalidades essenciais» (conclusão d)];
2.º-«atenta a tipificação do art. 382° do Código Penal, necessário é que tenha existido um benefício ilegítimo, um efectivo enriquecimento sem causa por parte do arguido ou de terceiro, algo a que os autos nem sequer fazem referência, não questionando que os serviços contratados tenham sido prestados, que os bens fornecidos tenham sido efectivamente facultados ao Agrupamento ou que os serviços prestados e os bens fornecidos tivessem um preço ou contrapartida excessiva ou desrazoável» (conclusão e)];
3.º-«carece de base mínima a afirmação contida em 2.1.18 de que a contratação foi concretizada “sem se submeter às regras e exigências aplicáveis à contratação pública”, porquanto os montantes pagos e a natureza da prestação de serviços e de fornecimento de bens, as formalidades a que a sentença recorrida refere como “regras de contratação publica” (cf. 2.1.6 dos factos provados), como sejam o “concurso publico” (cf. 2.1.7 dos factos provados) ou o “parecer do Ministério das Finanças e da Administração Publica” (cf. 1.1.13 dos factos provados) dependem, no primeiro caso, do valor em causa, sendo que, de acordo com o montante referido nos factos provados, estar-se-ia perante uma situação de ajuste directo ou consulta prévia e, no segundo caso, de estarem em causa verbas do orçamento escolar ou verbas próprias do Agrupamento, situações que a sentença recorrida não esclarece» (conclusão f)];
4.º-«caem pela base as conclusões probatórias contidas nos pontos 2.1.19 e 2.1.30 que nada mais fazem do que retirar conclusões e extrair ilações de elementos que os autos não revelam ou transmitem, como a fundamentação da matéria de facto bem elucida, não tendo sustentação nas regras da experiência e afrontando o princípio in dúbio pro reo» [conclusão g)].
Quid iuris?
O recorrente não invoca em momento algum erro de julgamento, muito menos dá observância ao preceituado sob o art. 412º/3, 4 e 6 do Código de Processo Penal para uma válida impugnação ampla da matéria de facto.
Nos termos previstos no art. 412º/3, 4 e 6, do Código de Processo Penal:
«(…)
3–Quando impugne a decisão proferida sobre matéria de facto, o recorrente deve especificar:
a)-Os concretos pontos de facto que considera incorretamente julgados;
b)-As concretas provas que impõem decisão diversa da recorrida;
c)-As provas que devem ser renovadas.
4–Quando as provas tenham sido gravadas, as especificações previstas nas alíneas b) e c) do número anterior fazem-se por referência ao consignado na ata, nos termos do disposto no n.º 3 do artigo 364.º, devendo o recorrente indicar concretamente as passagens em que se funda a impugnação.
(…)
6–No caso previsto no n.º 4, o tribunal procede à audição ou visualização das passagens indicadas e de outras que considere relevantes para a descoberta da verdade e a boa decisão da causa.».
Nesta forma de impugnação ampla, os poderes de cognição do tribunal de recurso não se restringem ao texto da decisão recorrida, como sucede com os vícios previstos no art. 410º/2 do Código de Processo Penal, alargando-se à apreciação do que contém e se pode extrair da prova produzida em audiência, nomeadamente por via da análise da documentação dessa prova e/ou da audição da gravação, no caso da prova por declarações e testemunhal; essa análise e audição é, no entanto, sempre delimitada e guiada pela especificação que onera o recorrente, como previsto nos n.ºs 3 e 4 do art. 412º do Código de Processo Penal.
Ou seja, serão uma análise e audição cingidas aos concretos pontos de facto que o recorrente considera incorretamente julgados, às concretas provas que, na sua perspetiva, impõem decisão diversa da recorrida, sendo que, quando gravadas, mediante audição das passagens em que se funda a impugnação que forem especificamente indicadas.
Na prática, o que se visa é uma reapreciação autónoma sobre a razoabilidade da decisão do tribunal a quo quanto aos pontos de facto que o recorrente especifique como incorretamente julgados, através da avaliação das provas que, em seu entender, imponham decisão diversa da recorrida, como postulado pelo disposto no art. 412º/3,b) do Código de Processo Penal, garantindo-se um efetivo duplo grau de jurisdição em matéria de facto, como previsto nos arts. 428º e 431º/1, b), do Código de Processo Penal.
Ora, o recorrente não indica factos concretos dados como provados incorretamente julgados, tão pouco transcreve a prova que imporia decisão diferente da tomada quanto a dar-se tais factos como provados, para que este Tribunal de recurso pudesse formular o seu próprio juízo no confronto com o realizado na decisão recorrida.
É, por isso, liminarmente de afastar qualquer apreciação da matéria de facto provada à luz do disposto no art. 412º/3 do Código de Processo Penal e de uma impugnação ampla.
*
Da mesma argumentação resulta, porém, além do questionamento quanto à subsunção jurídico-penal realizada com referência ao crime de abuso de poder previsto e punido pelo art. 382º do Código Penal – 1.º e 2.º -, a tratar em seguida, a invocação de vícios da decisão recorrida com possível enquadramento no art. 410º/2 do Código de Processo Penal – 3.º e 4.º -, vícios que, de resto, como referido supra, são de conhecimento oficioso.
Vejamos melhor.
Nos termos do disposto no art. 410º/2 do Código de Processo Penal:
«Mesmo nos casos em que a lei restrinja a cognição do tribunal de recurso a matéria de direito, o recurso pode ter como fundamento, desde que o vício resulte do texto da decisão recorrida, por si só ou conjugada com as regras da experiência comum:
a)-A insuficiência para a decisão da matéria de facto provada.
b)-A contradição insanável da fundamentação ou entre a fundamentação e a decisão.
c)-Erro notório na apreciação da prova.
(…)» (sublinhado e negrito nossos).
Tratando-se de vícios intrínsecos da sentença, reportam um defeito estrutural da decisão que resulta do respetivo texto, na sua globalidade, por si só ou em conjugação com as regras da experiência comum.
Está, por isso, vedado o recurso a elementos estranhos a esse texto para fundamentar a sua verificação, nomeadamente, quaisquer dados existentes nos autos, ainda que provenientes do próprio julgamento. [7]
Isto porque dizem respeito a erros de lógica ao nível da decisão sobre a matéria de facto, que fazem com que a mesma resulte destituída de racionalidade lógica; a sua apreciação prescinde, assim, da análise da prova produzida, ao contrário do que sucede em caso de impugnação ampla nos termos do art. 412º/3 do Código de Processo Penal.
Aqui, o Tribunal de recurso limita-se a detetar os vícios evidenciados pela decisão recorrida, atendo-se a esta, e, não podendo saná-los, a determinar o reenvio do processo para novo julgamento.
Não constitui, pois, fundamento da invocação de qualquer destes vícios, a divergência entre a convicção pessoal do recorrente sobre a prova produzida em audiência e a convicção que o tribunal firmou acerca dos factos, questão do âmbito da livre apreciação da prova, desde que esta convicção se mostre devidamente fundamentada e não contrarie as regras da lógica e da experiência comum.
No recurso não se nomeiam os vícios de que padecerá a decisão recorrida.
Todavia, alude-se a desconformidade com as regras da experiência e violação do princípio in dubio pro reo, quando se alega que «caem pela base as conclusões probatórias contidas nos pontos 2.1.19 e 2.1.30 que nada mais fazem do que retirar conclusões e extrair ilações de elementos que os autos não revelam ou transmitem, como a fundamentação da matéria de facto bem elucida, não tendo sustentação nas regras da experiência e afrontando o princípio in dúbio pro reo» [conclusão g)].
O que deverá ser apreciado à luz do vício de erro notório na apreciação da prova, com previsão na alínea c) do nº 2 do art. 410º do Código de Processo Penal.
Além disso, quando no recurso se afirma carecer de base mínima a afirmação contida em 2.1.18 de que a contratação foi concretizada «sem se submeter às regras e exigências aplicáveis à contratação pública», porquanto os montantes pagos e a natureza da prestação de serviços e de fornecimento de bens, as formalidades a que a sentença recorrida refere como «regras de contratação pública» (2.1.6 dos factos provados), como sejam o «concurso público» (2.1.7 dos factos provados) ou o «parecer do Ministério das Finanças e da Administração Pública» (1.1.13 dos factos provados) dependem, no primeiro caso, do valor em causa, sendo que, de acordo com o montante referido nos factos provados, estar-se-ia perante uma situação de ajuste direto ou consulta prévia e, no segundo caso, de estarem em causa verbas do orçamento escolar ou verbas próprias do Agrupamento, situações que a sentença recorrida não esclarece» [conclusão f)], somos remetidos para eventual vício de insuficiência para a decisão da matéria de facto provada, com previsão sob a alínea a) do nº2 do art. 410º do Código de Processo Penal.
Vejamos então se pode estar verificado algum desses vícios.
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Entende o recorrente que carece de base mínima a afirmação contida em 2.1.18 de que a contratação foi concretizada «sem se submeter às regras e exigências aplicáveis à contratação pública», porquanto os montantes pagos e a natureza da prestação de serviços e de fornecimento de bens, as formalidades a que a sentença recorrida refere como «regras de contratação pública» (2.1.6 dos factos provados), como sejam o «concurso público» (2.1.7 dos factos provados) ou o «parecer do Ministério das Finanças e da Administração Pública» (1.1.13 dos factos provados) dependem, no primeiro caso, do valor em causa, sendo que, de acordo com o montante referido nos factos provados, estar-se-ia perante uma situação de ajuste direto ou consulta prévia e, no segundo caso, de estarem em causa verbas do orçamento escolar ou verbas próprias do Agrupamento, situações que a sentença recorrida não esclarece.
Existirá uma insuficiência para a decisão da matéria de facto provada, como parece decorrer desta alegação?
Vejamos.
Como recorrentemente tem sido decidido pelo Supremo Tribunal de Justiça[8], o conceito de insuficiência da matéria de facto provada significa que os factos apurados e constantes da decisão recorrida são insuficientes para a decisão de direito, do ponto de vista das várias soluções que se perfilem, isto porque o tribunal deixou de apurar ou de se pronunciar sobre factos relevantes alegados pela acusação ou pela defesa ou resultantes da discussão da causa, ou ainda porque não investigou factos que deviam ter sido apurados na audiência, dada a sua importância para a decisão.
O vício consiste, pois, numa carência de factos que suportem uma decisão de direito dentro do quadro das soluções plausíveis da causa, conduzindo à impossibilidade de ser proferida uma decisão segura de direito sobre a mesma [9].
Na prática, censura-se o tribunal por não ter indagado e conhecido os factos que podia e devia, tendo em vista a decisão justa a proferir de harmonia com o objeto do processo.
Ora, considerando que os factos dados como provados foram os constantes da acusação e da pronúncia, nada tendo sido alegado em sede de contestação na fase de julgamento, se bem compreendemos a tese do recorrente, caberia ao Tribunal recorrido apurar e esclarecer o valor em causa nos contratos celebrados, sendo que, de acordo com o montante referido nos factos provados, estar-se-ia perante uma situação de ajuste direto ou consulta prévia, e ainda se estavam em causa verbas do orçamento escolar ou verbas próprias do Agrupamento.
Diga-se que os valores envolvidos nesta contratação constam já dos factos provados em 2.1.10, 2.1.15 e 2.1.16.
Seja como for, qual a concreta relevância do apuramento de tais factos para a subsunção jurídico-penal?
Não indica.
Note-se que o que está imputado ao arguido é o facto de, na qualidade de Diretor do Agrupamento de Escolas ... ter firmado contratos de prestação de serviços e de aquisição de bens com sociedade comercial que tinha como sócios a filha e o genro, e gerente a sua filha, e de o ter feito sem observar qualquer procedimento de entre os disponíveis no código dos contratos públicos.
Como se impunha que fizesse.
Isto porque dúvidas não restam de que os Agrupamentos de Escolas, sob tutela do Ministério da Educação, são hoje entes públicos dotados de órgãos próprios de gestão, com autonomia para contratar, como decorre do regime de autonomia, administração e gestão dos estabelecimentos públicos da educação pré-escolar e dos ensinos básico e secundário, aprovado pelo D.L. 75/2008, de 22/04, e em particular dos respetivos arts. 8º/1 e 9º/1, d) e 2, a) e b) [10].
E como pode, aliás, constatar-se mediante simples consulta do Portal dos Contratos Públicos [11], onde se encontram publicados milhares de contratos públicos que têm como entidade adjudicante um Agrupamento de Escolas, sempre representado pelo seu Diretor.
Essa contratação, precisamente por ser entidade adjudicante um contraente que é ente público, inserido na Administração desconcentrada do Estado, obedece ao regime legal da contratação pública aprovado pelo DL 18/2008, de 29/01, encontrando-se abarcado no respetivo âmbito de aplicação – cfr. arts. 1º/2 e 2º/1, a) e 2.
Importa ainda notar que os factos objeto dos presentes autos situam-se temporalmente entre .../.../2012 e .../.../2016 – 2.1.10, 2.1.14, 2.1.15 -, o que significa que estava então em vigor o Código dos Contratos Públicos aprovado pelo D.L. 18/2008, de 29/01, na versão introduzida pela L. 64-B/2011, de 30/12, quanto à prestação de serviços, e na subsequente versão, introduzida pelo D.L. 149/2012, de 12/07, em vigor a partir de 12/08/2012 (30 dias após a publicação, conforme o seu art. 5º/1) quanto às aquisições de bens, que foram todas posteriores a essa data.[12]
O objeto contratual aqui em causa, de prestação de serviços e fornecimento de bens a um agrupamento escolar, não se mostra excluído da sujeição a este Código dos Contratos Públicos, seja qual for a versão do Código dos Contratos Públicos aplicável – cfr. arts. 4º a 6º.
Nessa medida, dúvidas não restam de que se impunha ao arguido seguir os procedimentos legais previstos no Código dos Contratos Públicos em vista da aquisição para o agrupamento escolar que dirigia, quer da prestação de serviços, quer da aquisição de bens, a esse agrupamento destinados.
Ora, o contrato público não pode deixar de considerar-se como resultado de um procedimento administrativo, surgindo como o ato principal de um conjunto ou série de atos funcionalmente ligados, que se sucedem segundo uma certa ordem, com vista à formação, conclusão e produção de plena eficácia jurídica de um contrato público, que se designa de procedimento contratual .[13]
Esse procedimento de formação dos contratos públicos mostra-se formalmente regulado no Código dos Contratos Públicos, ali se estabelecendo a sua tramitação por forma a garantir a imparcialidade, a igualdade de acesso e de tratamento, limitando o informalismo e a intervenção do princípio da adequação procedimental, previsto no art. 56º do Código de Procedimento administrativo.
A ilustrar essa legalidade procedimental, na fase de formação do contrato, ou pré-contratual, é estabelecido no art. 16º/1 do Código dos Contratos Públicos um princípio de tipificação taxativa dos procedimentos de adjudicação, cuja violação determina a ilegalidade da decisão com comunicação ao ato final do procedimento de adjudicação, à decisão de adjudicação e ao próprio contrato que venha a ser celebrado (invalidade subsequente).
Em suma: se o arguido enquanto diretor de um agrupamento de escolas pretendia contratar uma prestação de serviços e um fornecimento de bens destinados ao agrupamento, tinha que o fazer seguindo os procedimentos legais previstos no Código dos Contratos Públicos, seguindo pari passu tais procedimentos, sob pena de atuar fora da lei.
Isto, independentemente da proveniência das verbas utilizadas para o efeito e ainda que adotasse o procedimento mais simples, de ajuste direto, que sempre implicaria a prática de um conjunto de atos e desenvolvimento de peças procedimentais, como o convite à apresentação de propostas e o caderno de encargos, e um limite trienal à contratação da mesma entidade – cfr. os art. 40º/1,a) e 113º e sgs., do DL 18/2008, de 29/01, na versão aplicável à data da prática dos factos.
Diga-se que o procedimento de consulta prévia, a que o recorrente se refere en passant, com previsão sob os arts. 16º/1, b) e 112º, do Código dos Contratos Públicos, foi introduzido por via da alteração decorrente do D.L. 111-B/2017, de 31/08, a qual não é aplicável aos contratos objeto dos autos, como vimos supra, sendo que, de todo o modo, o seu regime sempre assemelha ao procedimento de ajuste direto, obrigando embora ao convite a três ou mais entidades.
Neste quadro, e em face dos factos provados, não vemos qualquer plausibilidade nas objeções do recorrente quanto à necessidade de averiguar outros factos além dos já considerados para efeitos da decisão recorrida.
Antes se enreda o mesmo em questões de pendor administrativo que não contendem com os factos e crime que lhe estão imputados.
Assim quando deixa no ar, de forma inconsequente, a diferenciação entre as verbas pertencentes ao Agrupamento por si dirigido com origem no respetivo orçamento, e as geradas pelo próprio Agrupamento.
O que releva isso na factualidade provada e na integração do crime imputado?
Parece pretender o recorrente que tal interferirá com a necessidade de parecer do Ministério das Finanças e da Administração Pública, mas não o explica.
Atentando no disposto no normativo indicado a este propósito, quer na decisão recorrida, quer no recurso, o art. 26º da L. 64-B/2011, de 30/12, Lei do Orçamento de Estado para 2012, ficamos na mesma.
Realça-se que no nº 4 deste art. 26º, prescreve-se efetivamente que: «Carece de parecer prévio vinculativo do membro do Governo responsável pela área das finanças, excepto no caso das instituições do ensino superior, nos termos e segundo a tramitação a regular por portaria do referido membro do Governo, a celebração ou a renovação de contratos de aquisição de serviços por órgãos e serviços abrangidos pelo âmbito de aplicação da Lei n.º 12-A/2008, de 27 de Fevereiro, alterada pelas Leis n.os 64-A/2008, de 31 de Dezembro, 3-B/2010, de 28 de Abril, 34/2010, de 2 de Setembro, e 55-A/2010, de 31 de Dezembro, e pela presente lei, independentemente da natureza da contraparte, designadamente no que respeita a: a) Contratos de prestação de serviços nas modalidades de tarefa e de avença; (…)».
O que tem a ver com isto a proveniência das verbas utilizadas nos pagamentos?
Não se vislumbra.
Na verdade, como vimos, independentemente da proveniência das verbas usadas no pagamento das quantias devidas por força da contratação descrita, o próprio recorrente aceita que se tratava de verbas do Agrupamento de Escolas onde exercia as funções de Diretor, portanto de verbas públicas a usar para prosseguir os fins de interesse público da entidade pública por si dirigida.
O mesmo quanto a ser o responsável pela contabilidade do Agrupamento o competente para a qualificação e cabimentação de tais despesas e a pessoa com capacidade para realizar o pagamento das mesmas.
Em que é que a sua responsabilidade como Diretor do agrupamento escolar em relação aos atos que concretamente lhe estão aqui atribuídos, resulta afetada por este facto?
Nada consta e nada se divisa.
Mais.
O Diretor do agrupamento «é o órgão de administração e gestão do agrupamento de escolas ou escola não agrupada nas áreas pedagógica, cultural, administrativa, financeira e patrimonial.» - art. 18º do DL 75/2008, de 22/04.
Ao abrigo do art. 20º do DL 75/2008, «4-Sem prejuízo das competências que lhe sejam cometidas por lei ou regulamento interno, no plano da gestão pedagógica, cultural, administrativa, financeira e patrimonial, compete ao diretor, em especial:
(…)
b)-Elaborar o projeto de orçamento, em conformidade com as linhas orientadoras definidas pelo conselho geral;
(…)
h)-Gerir as instalações, espaços e equipamentos, bem como os outros recursos educativos;
(…)
l)-Dirigir superiormente os serviços administrativos, técnicos e técnico-pedagógicos.
5–Compete ainda ao diretor:
a)-Representar a escola;
6–O diretor exerce ainda as competências que lhe forem delegadas pela administração educativa e pela câmara municipal.».
O Diretor preside ainda ao BB, o órgão deliberativo em matéria administrativo-financeira do agrupamento de escolas, composto apenas por si, pelo subdiretor e pelo chefe dos serviços administrativos, com competência, entre o mais, para aprovar o projeto de orçamento anual, elaborar o relatório de contas de gerência e autorizar a realização de despesas e o respetivo pagamento, fiscalizar a cobrança de receitas e verificar a legalidade da gestão financeira – arts. 36º, 37º/b) e 38º, do DL 75/2008.
Como se vê, estava no âmbito das competências do arguido como Diretor do agrupamento de escolas e presidente do BB a celebração, em representação daquele agrupamento, de contratos com entidades externas com vista à prossecução das finalidades públicas do agrupamento, mesmo que por via da delegação de competências da administração educativa ou da Câmara Municipal; além disso, os serviços administrativos operavam também sob a sua direção.
Ao pressupor todas estas considerações, que são em boa verdade de Direito, e os factos acessórios a elas subjacentes, a decisão recorrida veio a dar como provados os factos necessários à tomada de decisão quanto ao preenchimento do tipo legal de crime de abuso de poder pelo qual o arguido vinha pronunciado, como infra melhor se detalhará.
Pelo que, resulta encontrar-se provada toda a matéria de facto necessária à decisão, sendo de rejeitar a verificação do vício previsto no art. 410º/2, a) do Código de Processo Penal.
*
Aduz ainda o recorrente, de modo genérico, que caem pela base as conclusões probatórias contidas nos pontos 2.1.19 e 2.1.30 que nada mais fazem do que retirar conclusões e extrair ilações de elementos que os autos não revelam ou transmitem, como a fundamentação da matéria de facto bem elucida, não tendo sustentação nas regras da experiência e afrontando o princípio in dúbio pro reo [conclusão g)].
Pretende deste modo, como concluímos já, invocar o vício de erro notório na apreciação da prova, previsto pelo art. 410º/2,c) do Código de Processo Penal.
Todavia, também aqui absolutamente sem razão.
O erro notório na apreciação da prova, bastamente invocado com apelo ao princípio in dubio pro reo, não pode ser, como é frequentemente, invocado para procurar sobrepor a própria convicção do recorrente acerca da leitura da prova produzida, àquela que foi a convicção do Tribunal estribada na fundamentação da decisão relativa aos factos.
Para que se verifique este erro é, pois, necessário muito mais do que uma simples divergência de apreciação da prova.
Terá, pois, o Tribunal que ter dado como provado ou não provado determinado facto, quando a conclusão deveria manifestamente ter sido a contrária, já por força de uma incongruência lógica, já por ofender princípios ou leis formulados cientificamente, nomeadamente das ciências da natureza e das ciências físicas, ou contrariar princípios gerais da experiência comum das pessoas, já por se ter violado ou postergado um princípio ou regra fundamental em matéria de prova.
Ocorre erro notório na apreciação da prova quando se violam as regras sobre prova vinculada ou das legis artis, mas também quando um homem médio, perante o teor da decisão recorrida, por si só ou conjugada com o senso comum, facilmente percebe que o tribunal violou as regras da experiência ou efetuou uma apreciação manifestamente incorreta, desadequada, baseada em juízos ilógicos, arbitrários ou mesmo contraditórios.
Em suma: estamos perante o vício de erro notório na apreciação da prova sempre que o Tribunal valore a prova contra critérios legalmente fixados e/ou contra as regras da experiência comum, e o faça de forma grosseira e ostensiva, não passando o erro despercebido ao cidadão comum, muito menos ao juiz normal colocado no lugar do julgador, dotado da cultura e experiência que deve existir em quem exerce a função de julgar; tem, pois, que tratar-se de erro percetível pelo homem médio, que é uma outra forma de dizer que o erro tem de ser manifesto ou notório, como expressamente comanda a lei.[14]
Em todo o caso, como começamos por referir, a análise a fazer para assim concluir tem por base exclusivamente o texto da decisão recorrida e a prova aí considerada para fundamentação da convicção do tribunal.
Daí que na aferição da verificação (ou não) de erro notório na apreciação da prova, se questiona, não o conteúdo da prova em si, nomeadamente do que foi dito no depoimento ou nas declarações prestadas, cujo teor se aceita, mas a utilização que foi dada à referida prova, no sentido de a mesma suportar a demonstração de um determinado facto, na medida em que o Tribunal a tenha valorado contra as regras da experiência comum ou contra critérios legalmente fixados.
Ora, olhando à decisão recorrida, verificamos que se apresenta estruturada e fundamentada com uma análise crítica da prova produzida, numa ligação aos factos provados elencados, segundo um princípio de livre apreciação e sem evidenciar a inobservância de quaisquer princípios ou regras, mormente os que decorrem da lógica e da experiência.
Em particular, no que toca ao segmento indicado a este propósito, de que as conclusões probatórias contidas nos pontos 2.1.19 e 2.1.30 nada mais fazem do que retirar conclusões e extrair ilações de elementos que os autos não revelam ou transmitem, sem sustentação nas regras da experiência e afrontando o princípio in dúbio pro reo, diremos: bem pelo contrário.
As «conclusões probatórias» a que o recorrente se reporta, mais não são do que a densificação fáctica do elemento subjetivo típico do crime de abuso de poder e da comparticipação criminosa na sua prática, atribuída aos três arguidos que foram primitivamente acusados (os outros dois beneficiariam da suspensão provisória do processos na fase de instrução), e encontra-se respaldada num conjunto de circunstâncias também aí detalhadamente descritas.
Por isso, como se escreveu na motivação da decisão de facto sob recurso:
«Por sua vez, o elemento subjectivo resultou provado com base nas regras de experiência, uma vez que é notório que o arguido sabia, e não podia ignorar que lhe era vedado, celebrar contratos, neste caso com familiar directo, sem se submeter às regras e exigências aplicáveis à contratação pública, as quais conhecia, ainda assim querendo e prosseguindo com tal contratação, que sabia ser ilegítima, querendo a obtenção das quantias mencionadas na acusação, durante um largo período de tempo.».
Assim, ao contrário do pressuposto no recurso, não é apenas (o que já é muito) pelo facto de haver laços familiares diretos a ligar o recorrente aos representantes da sociedade contratada, que se conclui pela existência de uma atitude premeditada de favor e um regime de benefício ilegítimo; a esse circunstancialismo junta-se o não menos relevante facto de se ter passado literalmente por cima das regras legais em matéria de contratação pública nos exatos termos bem explicitados na factualidade dada como provada.
De tal forma que, do conjunto dos factos objetivos dados como provados - que se resumem no essencial a ter o arguido, como Diretor de um agrupamento de escolas, ignorando por completo todas as regras e princípios de contratação pública, contratado pelo período de 4 anos os serviços de uma sociedade comercial gerida pela sua própria filha, e adquirindo ainda à mesma nesse período alguns bens, destinados ao aludido agrupamento -, não pode senão extrair-se a conclusão extraída.
Que mais seria preciso para que se cogitasse existir na mente dos intervenientes nestes negócios um objetivo de obtenção de benefício ilegítimo?
Se:
- as sociedades comerciais têm naturalmente por objeto o exercício de atividades lucrativas, e esta, atento o seu objeto, indicado em 2.1.5, necessariamente contratava para poder lucrar com isso;
- com a sua contratação direta, sem qualquer auscultação do mercado ou convites a outras entidades para apresentação de propostas, pôde esta sociedade fixar e cobrar, sem concorrência, o preço que bem entendeu;
quem poderia beneficiar com tal tratamento de favoritismo, por um lado, e da não adoção dos procedimentos da contratação pública?
A resposta só pode ser esta: a gerente e sócia desta sociedade, filha do arguido, e em última análise o próprio arguido, por ser o seu pai, isto independentemente de se encontrarem atualmente de relações cortadas (não o poderiam estar certamente quando celebraram estes contratos); é evidente que a estabilidade financeira de um filho desonera os progenitores da sua obrigação alimentar – cfr. art. 2009º/1,c) do Código Civil.
Benefício que seria sempre ilegítimo porque alcançado com violação das regras legais aplicáveis, regras essas que visam precisamente evitar tais favoritismos e favorecimentos, em prejuízo da concorrência e do interesse público que deve nortear a contratação pública.
Cremos ficar assim demonstrado que as «conclusões probatórias» que o arguido genericamente censura por contrárias às regras da experiência e ao princípio in dubio pro reo (aqui também sem que se perceba minimamente em que medida), resultam na verdade como lógicas, evidentes e claras, diríamos mesmo, inelutáveis.
Nada por isso a censurar neste conspecto à decisão recorrida, sendo nesta parte também improcedente o recurso.
*
2.4–DO DIREITO
Aqui chegados, sendo a matéria de facto provada a considerada pelo Tribunal recorrido, sobra a questão jurídica implícita na argumentação arrazoada no recurso:
Os factos provados permitem o preenchimento do tipo legal de crime de abuso de poder previsto e punido pelo art. 382º do Código Penal que vem imputado ao arguido?
A resposta é claramente afirmativa.
Nenhuma das objeções colocadas no recurso é relevante para perturbar a subsunção jurídico-penal realizada pelo Tribunal a quo.
Vejamos brevemente o tipo legal de crime aqui em causa.
Nos termos do disposto no art. 382º do Código Penal, sob a epígrafe «Abuso de Poder»:
«O funcionário que, fora dos casos previstos nos artigos anteriores, abusar de poderes ou violar deveres inerentes às suas funções, com intenção de obter, para si ou para terceiro, benefício ilegítimo ou causar prejuízo a outra pessoa, é punido com pena de prisão até 3 anos ou com pena de multa, se pena mais grave lhe não couber por força de outra disposição legal.».
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Paulo Pinto de Albuquerque [15] indica como bem jurídico protegido por esta incriminação a integridade do exercício das funções públicas pelo funcionário e, acessoriamente, os interesses patrimoniais ou não patrimoniais de outra pessoa.
Já para Paula Ribeiro de Faria [16], está em causa a autoridade e credibilidade da administração do Estado ao ser afetada a imparcialidade e eficácia dos seus serviços.
A sua tutela encontra-se, desde logo, na Lei Fundamental, prevendo o art. 266º/2 que «Os órgãos e agentes administrativos estão subordinados à Constituição e à lei e devem atuar, no exercício das suas funções, com respeito pelos princípios da igualdade, da proporcionalidade, da justiça, da imparcialidade e da boa fé.» (negrito nosso).
Ao nível do tipo objetivo tem que se verificar abuso dos poderes ou violação dos deveres inerentes às funções do funcionário, sendo esta qualidade de funcionário fundante crimes específicos próprios [17], cuja ilicitude é fundada na qualidade do agente e do especial dever que sobre ele impende por via dessa qualidade.
Tratando-se de um elemento típico da incriminação em análise importa atentar na definição legal de quem deve considerar-se como funcionário público para efeitos penais.
Essa norma conceptual, introduzida sob proposta de Eduardo Correia, autor do Anteprojeto do Código Penal de 1982 [18], mercê de um movimento contínuo de alargamento da punição reservada aos funcionários públicos para múltiplos outros agentes do Estado que àqueles vão sendo equiparados, estabilizaria com a redação do art. 386º do Código Penal, introduzida pela L. 94/2021, de 21/12 [19], com o seguinte teor na parte que aqui releva:
«1–Para efeito da lei penal a expressão funcionário abrange:
a)-O funcionário civil;
b)-O agente administrativo; e
c)-Os árbitros, jurados e peritos; e
d)-Quem, mesmo provisória ou temporariamente, mediante remuneração ou a título gratuito, voluntária ou obrigatoriamente, tiver sido chamado a desempenhar ou a participar no desempenho de uma actividade compreendida na função pública administrativa ou jurisdicional, ou, nas mesmas circunstâncias, desempenhar funções em organismos de utilidade pública ou nelas participar.
(…)».
Ora, o crime de abuso de poder consiste, na prática, numa instrumentalização dos poderes inerentes à função exercida pelo funcionário público, usando-os com desvio em relação ao fim público que deveria prosseguir, para finalidades ilegítimas, porque estranhas ou contrárias às permitidas pelo direito administrativo.
A conduta típica há-de corresponder a uma ação/omissão ou decisão do funcionário que padeça de um dos seguintes vícios:
1.–Violação de lei substantiva ou processual – desrespeito por formalidades legalmente impostas, atuação fora dos casos estabelecidos na lei ou em contrário às normas jurídicas com que se devia conformar;
2.–Desvio de poder – uso dos poderes no exercício de faculdades discricionárias, para fim diverso daquele para os quais foram conferidos, preterindo o interesse público em nome de fins ou interesses de natureza particular;
3.–Incompetência relativa – agente que atua excedendo os poderes que lhe estão conferidos, em razão da matéria, do grau hierárquico, do lugar ou do tempo (Paula Ribeiro de Faria, na ob. e loc. cit., exclui do âmbito de proteção da norma as condutas que se subsumem a uma incompetência absoluta ou a usurpação de poderes, em que ocorre uma ausência de poderes por parte do agente);
4.–Violação de deveres funcionais – abrange todos os deveres que estão relacionados com o exercício da função e que só subsistem enquanto o funcionário está em atividade, e que podem ser específicos – impostos por normas jurídicas ou instruções de serviço, e relativos a uma particular função –, e genéricos – referentes a toda a atividade desenvolvida no âmbito da Administração do Estado.
A violação dos deveres funcionais, enquanto ação/omissão ou decisão do funcionário que fere os deveres a que está adstrito no exercício da sua função, já é tutelada por outros crimes, como é o caso do dever de sigilo (383º), o dever de isenção (368º), o dever de obediência (381º), o dever de zelo (385º), sendo, portanto, este tipo legal de crime residual para a violações de outros deveres funcionais, desde que com direta relação com o bem jurídico protegido pelo tipo.
Os deveres funcionais genéricos cuja violação pode integrar o crime de abuso de poder, são os que resultam desde logo dos princípios gerais da atividade administrativa, plasmados no Código de Procedimento Administrativo, aprovado pela L. 4/2015, de 07/01, e que nos termos dos nºs. 1 e 3, do art. 2º, «são aplicáveis à conduta de quaisquer entidades, independentemente da sua natureza, adoptada no exercício de poderes públicos ou regulada de modo específico por disposições de direito administrativo, e ainda a toda e qualquer actuação da Administração Pública, ainda que meramente técnica ou de gestão privada.» (negrito nosso).
Ou seja, são deveres resultantes de princípios gerais aplicáveis a todos os que, mesmo não detendo a qualidade de funcionário público, em sentido estrito, exerçam funções materialmente públicas.
Destacam-se os seguintes deveres genéricos que recaem sobre os funcionários:
1.–O dever de atuar em obediência à lei e ao direito, dentro dos limites dos poderes que lhes forem conferidos e em conformidade com os respetivos fins – art. 3º, Princípio da Legalidade;
2.–O dever de prosseguir o interesse público, no respeito pelos direitos e interesses legalmente protegidos dos cidadãos – art. 4º, Princípio da Prossecução do Interesse Público;
3.–O dever de, nas relações com os particulares, se reger pelos princípios da igualdade e da imparcialidade, não podendo privilegiar, beneficiar, prejudicar, privar de qualquer direito ou isentar de qualquer dever ninguém, devendo tratar todos de forma imparcial, considerando com objetividade todos e apenas os interesses relevantes no contexto decisório, e adotando soluções organizatórias e procedimentais indispensáveis à preservação da isenção administrativa e à confiança nessa isenção – art. 6º e 9º, Princípios da Igualdade e da Imparcialidade;
4.–O dever de tratar de forma justa todos aqueles que entrem em relação com a Administração Pública, e rejeitar as soluções manifestamente desrazoáveis ou incompatíveis com a ideia de Direito, nomeadamente em matéria de interpretação das normas jurídicas e das valorações próprias do exercício da função administrativa – art. 8º, Princípios da Justiça e da Razoabilidade.
5.–O dever de agir sempre segundo as regras da boa-fé – art. 9º, Princípio da boa-fé.
Também a Lei Geral do Trabalho em Funções Públicas, aprovada pela L. 35/2014, de ..., prevê sob o art. 73º um conjunto de deveres do trabalhador em funções públicas, destacando-se os seguintes:
Prossecução do interesse público: defesa do interesse público, no respeito pela Constituição, pelas leis e pelos direitos e interesses legalmente protegidos dos cidadãos;
Isenção: não retirar vantagens, directas ou indirectas, pecuniárias ou outras, para si ou para terceiro, das funções que exerce;
Imparcialidade: desempenhar as funções com equidistância relativamente aos interesses com que seja confrontado, sem discriminar positiva ou negativamente qualquer deles, na perspectiva do respeito pela igualdade dos cidadãos.
E embora não exista ainda um código geral de conduta do funcionário público [20], podemos verificar que, com base nestes mesmos princípios e deveres, reafirmando-os, proliferam nos vários órgãos da Administração Pública os Códigos de Conduta, como o Código de Conduta da Direção-Geral da Qualificação dos Trabalhadores em Funções Públicas [21], ou, a um subnível, os códigos de conduta aprovados pelos Conselhos Gerais de algumas escolas e agrupamentos escolares.
No caso do Agrupamento de Escolas ..., inexiste, pelo menos publicado no seu sítio da internet, esse Código de Conduta, desconhecendo-se qual o Regulamento Interno vigente à data da prática dos factos; encontra-se inscrito no seu Regulamento Interno vigente para o período de 2024 a 2026, um normativo genérico dirigido a todos os membros da comunidade escolar, independentemente da sua qualidade, impondo deveres de isenção, de zelo e lealdade – art. 3º.[22]
Importa também salientar que o abuso de poderes ou a violação de deveres, partindo de um conceito amplo de função pública, não tem que estar reportado a um ato administrativo, bastando que esteja em causa um ato idóneo a produzir efeitos jurídicos enquanto manifestação de vontade do Estado, abrangendo assim atos simples e complexos, informações, atos orais, atividades técnicas e todos os atos que, em ligação com outros, constituam um todo juridicamente relevante com referência ao aparelho do Estado.[23]
O agente terá que atuar com intenção de obter, para si ou para terceiro, benefício ilegítimo ou de causar prejuízo a outra pessoa.
«Benefício» é toda a vantagem que o agente pretende retirar da sua atuação e que, em concreto, poderá assumir natureza patrimonial ou não patrimonial.
Apenas se exige que esse benefício seja «ilegítimo», o que ocorrerá ainda que o abuso de poderes ou a violação de deveres funcionais tenha tido fins caritativos ou altruístas.
Como escreve a propósito Paula de Ribeiro Faria [24] citando Padovani, «(…) o favoritismo ou o compadrio (mesmo não remunerados), podem ser mais lesivos para o bom funcionamento da administração e para a imagem do Estado, do que a perspectiva da obtenção de um lucro.».
Da forma como está traçado o tipo legal de crime, o legislador entendeu que o abuso de poderes ou a violação de deveres apenas atingem o bem jurídico protegido – com lesão do bom andamento e imparcialidade da administração - quando o benefício visado com tais condutas não merece qualquer tutela da ordem jurídica, sendo, pois, ilegítimo, desse modo sublinhando a ilicitude daquela conduta típica.
Tal como o benefício ilegítimo, o prejuízo que o agente intenda causar a outra pessoa não tem que ser patrimonial, mas terá como sujeito os particulares destinatários do ato praticado ou os que de alguma forma sejam atingidos pelos seus efeitos.
Não se exige, em qualquer caso (benefício/prejuízo), indagação sobre os motivos do agente – ódio, rancor, racismo, inimizades políticas, prepotência, etc..
O crime consuma-se com a conduta de abuso de poderes ou de violação de deveres do agente, com esta específica intencionalidade, sendo irrelevante a efetiva verificação do dano ou vantagem, pois que se trata de crime formal ou de mera atividade.
De notar que a utilização do segmento «fora dos casos previstos nos artigos anteriores» nos remete para uma intenção legislativa de obstar à impunidade, prevenindo todo e qualquer abuso de poderes ou violação de deveres, inerentes à função desempenhada, que se não encontre abrangido pela previsão dos restantes tipos incriminadores do Capítulo em que está inserido.[25]
*
Feito este périplo, e considerando tudo quanto já se expendeu, são de fácil resposta as objeções jurídicas trazidas ao recurso, já acima enunciadas.
Assim, quanto à primeira.
[Não sendo a contratação da prestação de serviços ou da aquisição de bens pelo Agrupamento de Escolas da competência própria do seu diretor, nunca poderá ter cometido o crime que lhe vem imputado de abuso de poder uma vez que este crime constitui um crime de função, um crime próprio, específico do funcionário que detém determinados poderes funcionais e faz uso de tais poderes para um fim diferente daquele para que a lei os concede, envolvendo um mau uso ou uso desviante de poderes funcionais, por excesso de poderes legais ou por desrespeito de formalidades essenciais (conclusão d)].
O arguido recorrente não põe em causa a qualidade de funcionário público para efeitos penais, que detinha quando da prática dos factos, a qual decorre das funções exercidas como Diretor do Agrupamento de Escolas ... portanto na qualidade de agente administrativo ou atuando como tal, nos termos da previsão do art. 386º/1,b) e d), do Código Penal.
Questiona apenas que estivesse no âmbito das suas competências funcionais a prática dos atos que lhe foram imputados de contratação de uma empresa para prestar serviços e fornecer bens ao agrupamento que dirigia.
Desde logo, como vimos já, competindo ao BB autorizar a realização de despesa, esse Conselho é composto por três elementos, um dos quais o Diretor que ao mesmo preside; Diretor esse que é quem representa a Escola perante terceiros.
Ou seja, independentemente de haver ou não autorização (colegial) do Conselho Administrativo para a despesa (e não consta que tenha havido) e de quem tenha executado na prática o seu pagamento, mesmo que igualmente autorizado, estava nos poderes do Diretor, no exercício das suas competências de gestão e administração das instalações escolares, propor/orçamentar a despesa e despoletar o procedimento de contratação pública respetivo junto dos serviços administrativos que igualmente superintende; a ele caberia, a final, intervir em representação do Agrupamento de Escolas contratante na celebração dos contratos de prestação de serviços e de aquisição de bens, por ser a ele que compete a sua representação junto de entidades externas, mormente junto das empresas fornecedoras - arts. 20º, 36º, 37º/b) e 38º, do DL 75/2008.
Ao contratar determinada empresa para prestar serviços de apoio informático e elétrico às escolas do agrupamento, adquirindo-lhe bens destinados a essas escolas, fê-lo ainda no exercício funcional das competências que lhe estavam atribuídas no âmbito das atribuições legais de gestão e administração das instalações e recursos disponíveis no espaço escolar; sucede que, contrariamente ao que se lhe impunha, omitiu os atos destinados à formação do contrato público, violando grosseira e ostensivamente o regime legal da contratação pública.
Mas ainda que assim não fosse, estaríamos sempre perante uma situação de abuso dos seus poderes por incompetência relativa para a prática do ato, visto que esse ato, mesmo que não fosse da sua competência funcional, não deixaria de se circunscrever no âmbito do exercício funcional do arguido, como Diretor de um Agrupamento de Escolas com as atribuições legais indicadas de gestão e administração das instalações e recursos disponíveis no espaço escolar, tendo sido precisamente nessa qualidade que outorgou no contrato de prestação de serviços e ordenou a aquisição de bens à mesma empresa, qualidade sem a qual, de resto, não poderia sequer aceder à prática de tais atos com produção de efeitos práticos, como tiveram efetivamente.
Não colhe, por isso, a primeira objeção.
Igual sorte merece a segunda.
[Atenta a tipificação do art. 382° do Código Penal, necessário é que tenha existido um benefício ilegítimo, um efectivo enriquecimento sem causa por parte do arguido ou de terceiro, algo a que os autos nem sequer fazem referência, não questionando que os serviços contratados tenham sido prestados, que os bens fornecidos tenham sido efectivamente facultados ao Agrupamento ou que os serviços prestados e os bens fornecidos tivessem um preço ou contrapartida excessiva ou desrazoável (conclusão e)];
Como decorre do exposto supra acerca do tipo legal de crime de abuso de poder, estamos perante crime formal ou de mera atividade, bastando que se prove a intenção de obter benefício ilegítimo, não sendo necessário provar que o mesmo foi efetivamente alcançado.
Razão pela qual, ainda que nada conste dos factos provados quanto à (des)razoabilidade dos preços cobrados como contrapartida dos serviços prestados e bens fornecidos, ou à efetiva prestação desses serviços e fornecimento desses bens – de resto, se não tivessem sequer sido prestados ou fornecidos, diga-se, tal serviria apenas para agravar a ilicitude da conduta -, sempre os que constam a este propósito, mormente os descritos em 2.1.19, 2.1.23 e 2.1.24, se mostram suficientes para o preenchimento do concernente elemento subjetivo típico do crime de abuso de poder.
De todo o modo, resulta dos factos provados descritos em 2.1.24 que essa intenção de obtenção de benefício se consumou com o efetivo recebimento das quantias indicadas no contrato de prestação de serviços e faturas de aquisição de bens, facto que a defesa nem sequer questiona.
Mais.
Conforme consta expresso nos factos provados, e se abordou já supra, esse benefício não decorre apenas do recebimento dos valores pagos pela prestação de serviços e aquisição de bens, e lucro comercial inerente; antes se corporiza também na subtração da relação contratual aos efeitos da concorrência de outras empresas congéneres a operar no mercado, mediante um tratamento de favoritismo baseado na ligação familiar direta entre o representante do contraente público e a representante da contraente privada.
Cai, nessa medida, igualmente esta objeção equacionada no recurso ao preenchimento do tipo legal de crime com a factualidade considerada provada.
Em suma: em face dos factos provados, dúvidas não restam de que o arguido, exercendo funções de Diretor de Agrupamento de Escolas, portanto, na qualidade de funcionário, ao celebrar contrato de prestação de serviços e de fornecimento de bens com sociedade comercial da qual era sócia e gerente a sua filha, sem adotar os procedimentos de formação de contrato público previstos no Código dos Contratos Públicos, violou a lei e os respetivos deveres funcionais de atuar em obediência à lei e ao direito, de isenção e imparcialidade na relação com os particulares, assim como de transparência e prossecução do interesse público que nessa qualidade lhe estava confiado, fazendo-o ainda com intenção de alcançar para si e para aquela sua filha benefício que sabiam ser ilegítimo, consistente, desde logo, na contratação direta sem passar pelo crivo da concorrência.
Bem andou, assim, o Tribunal a quo, ao condenar o arguido em conformidade.
É, pois, totalmente improcedente o recurso.
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Constata-se que, como também se assinala no recurso, existe erro na identificação do arguido constante do relatório da sentença recorrida; com efeito aí se indica como sendo o seu nome AA, quando no restante texto da decisão figura com o nome de AA, sendo este efetivamente o nome correto.
Nos termos do disposto no art. 380º/1, b) e 2, do Código de Processo Penal cabe-nos nesta sede recursiva proceder à correção demandada pela verificação do que assoma como manifesto lapso de escrita, o que se determinará dispositivamente.
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III–DISPOSITIVO
Nos termos e pelos fundamentos expostos, acordam os juízes do Tribunal da Relação de Lisboa em:
- proceder à correção da sentença recorrida na parte em que identifica o arguido como AA, quando deveria constar AA;
- negar provimento ao recurso, mantendo a decisão recorrida nos seus precisos termos.
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Custas pelo recorrente, fixando-se a taxa de justiça em quantia correspondente a 4 (quatro) unidades de conta - arts. 513º/1 do Código de Processo Penal, 8º/9 do Regulamento das Custas Processuais, e Tabela III anexa a este último diploma.
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Notifique e proceda à correção ordenada no local próprio da sentença recorrida (processo físico).
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Lisboa, 02 de julho de 2024
Ana Cláudia Nogueira
Maria José Machado
Manuel Advínculo Sequeira
1.Acessível em www.dgsi.pt .
2.Acessível em www.dgsi.pt .
3.Neste sentido, o acórdão da Relação de Évora de 10/05/2022 relatado no processo 18/19.0T8TVR.E1 por Maria Clara Figueiredo, acessível em www.dgsi.pt .
4.Neste sentido, o acórdão da Relação de Guimarães de 11/07/2013, relatado por João Lee Ferreira no processo 2162/12.5TABRG.G1, acessível em www.dgsi.pt .
5.Acessível em www.dgsi.pt .
6.Acessível em www.dgsi.pt .
7.Vide Maia Gonçalves, in Código de Processo Penal Anotado, 10. ª ed., pág. 729; Germano Marques da Silva, in Curso de Processo Penal, Vol. III, Verbo, 2ª ed., pág. 339; e Simas Santos e Leal Henriques, in Recursos em Processo Penal, 6.ª ed., pág. 77 e sgs..
8.Vide,nomeadamente, o acórdão de 20/04/2006 relatado no processo 06P363, disponível em http://www.dgsi.pt.
9.Vide o acórdão da Relação de Lisboa de 18/07/2013, relatado no processo 1/05.2JFLSB.L1-3, disponível em http://www.dgsi.pt .
10.Art. 8º/1: «1 - A autonomia é a faculdade reconhecida ao agrupamento de escolas ou à escola não agrupada pela lei e pela administração educativa de tomar decisões nos domínios da organização pedagógica, da organização curricular, da gestão dos recursos humanos, da acção social escolar e da gestão estratégica, patrimonial, administrativa e financeira, no quadro das funções, competências e recursos que lhe estão atribuídos.»; art. 9º: «1 - O projecto educativo, o regulamento interno, os planos anual e plurianual de actividades e o orçamento constituem instrumentos do exercício da autonomia de todos os agrupamentos de escolas e escolas não agrupadas, sendo entendidos para os efeitos do presente decreto-lei como:
- (…)
- d) «Orçamento» o documento em que se prevêem, de forma discriminada, as receitas a obter e as despesas a realizar pelo agrupamento de escolas ou escola não agrupada.
- 2 - São ainda instrumentos de autonomia dos agrupamentos de escolas e das escolas não agrupadas, para efeitos da respectiva prestação de contas, o relatório anual de actividades, a conta de gerência e o relatório de auto-avaliação, sendo entendidos para os efeitos do presente decreto-lei como:
- a) «Relatório anual de actividades» o documento que relaciona as actividades efectivamente realizadas pelo agrupamento de escolas ou escola não agrupada e identifica os recursos utilizados nessa realização;
- b) «Conta de gerência» o documento que relaciona as receitas obtidas e despesas realizadas pelo agrupamento de escolas ou escola não agrupada;
- (…)» (negrito nosso).
11.Cfr. https://www.base.gov.pt/
12.Nos termos do art. 5º do DL 149/2012, de 12/07, fixa-se como regra de aplicação no tempo – regra que se tem mantido constante nos sucessivos diplomas de alteração desde então aprovados – a de que a nova redação «(…) só sendo aplicável aos procedimentos de formação de contratos públicos iniciados a partir dessa data e à execução dos contratos que revistam a natureza de contrato administrativo celebrados na sequência de procedimentos de formação iniciados após essa data.».
13.Pedro Costa Gonçalves In Direito dos Contratos Públicos, 4.ª edição, Almedina, 2020, pág. 113 e 114, que seguimos de perto.
14.Neste sentido, entre muitos outros, os acórdãos do STJ de 20/04/2006, relatado por Rodrigues da Costa, no processo n.º 06P363 e de 15/02/2007, relatado por Costa Mortágua no processo 3174/06 – 5ª Secção, acessíveis em www.dgsi.pt.
15.In Comentário do Código Penal à luz da Constituição da República Portuguesa e da CEDH, UCP, 2022, pág. 1330.
16.In Comentário Conimbricense do Código Penal, Parte Especial, Tomo III, Coimbra Editora, 2001, pág. 774.
17.Sobre o conceito, vide Figueiredo Dias, Direito Penal, Parte Geral, Tomo I, Coimbra Editora, 2004, pág. 287.
18.Sob o art. 437º/1, com estrutura idêntica à do atual art. 386º, «já com a preocupação de abarcar todas as hipóteses possíveis de atuação administrativa», por forma a não deixar espaços de não punibilidade – cfr. Damião da Cunha, Comentário Conimbricense do Código Penal, Parte Especial, Tomo III, Coimbra Editora, 2001, pág. 813.
19.Com redação idêntica nesta parte à versão que vigorava à data dos factos, introduzida pela L. 32/2010, de 02/09.
20.Código que foi proposto pelo Provedor de Justiça à Assembleia da República já em Abril de 2010, sem que tenha sido entretanto aprovado - https://app.parlamento.pt/webutils/docs/doc.pdf; https://www.provedor e jus.pt/site/public/archive/doc/codigo_boacondutaadminist_2012.pdf -, visando aquele ir ao encontro dos instrumentos internacionais, nomeadamente a Resolução 51/59 da Assembleia Geral das Nações Unidas, de 12/12/1996, a qual, pese embora a Resolução da Assembleia da República n.º 47/2007, de 21/09, nunca obteria concretização legislativa neste ponto.
21. Acessível em file:///C:/Users/mj02016/Downloads/codigo_conduta_ina_v10_vf%20(2).pdf .
22. Acessível em https://agan.pt/oatcheds/2024/05/Regulamento-Interno-AGAN-Maio-2024.pdf .
23.Assim, Paula Ribeiro de Faria, in ob. cit., pág. 776.
24.In ob. cit., pág. 778.
25.Neste sentido Leal Henriques e Simas Santos, in Código Penal Anotado, 2º Vol., Reis dos Livros, pág. 1216.
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