Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
558/06.0TJLSB-L1-2
Relator: JORGE VILAÇA
Descritores: ACIDENTE DE VIAÇÃO
SEGURO DE DANOS
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 04/21/2016
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: IMPROCEDENTE
Sumário: I - No âmbito do disposto no art.º 2º, n.º 3, do Decreto-Lei n.º 522/85, o lesante pode opor ao lesado a excepção de que no momento do acidente o veículo abrangido por contrato de seguro de garagista não era conduzido no exercício de funções inerentes à actividade de garagista.
II - O ónus de provar os factos impeditivos relativos a tal excepção compete à seguradora do garagista que foi demandada.
Decisão Texto Parcial:
Decisão Texto Integral:
Acordam no Tribunal da Relação de Lisboa
I

Relatório

Fundo de Garantia Automóvel
Instaurou acção declarativa sob a forma de processo comum ordinário contra:
1- G. Companhia de Seguros, SA,
2- A e
3- B
Alegando, em síntese, o seguinte:
· No dia 1 de Janeiro de 2003, pelas 5 horas e 50 minutos, na Av. Infante D. Henrique junto à saída da discoteca LUX, em Lisboa, ocorreu um acidente de viação entre os veículos automóveis ....TB e ....AV.
· O AV era à data do acidente propriedade da 3ª Ré, sendo conduzido pelo 2º Réu.
· O TB era conduzido por M, sendo propriedade da sociedade “ V, Lda.”, nele seguindo ainda como passageiros Joaquim e Vitor.
· No momento imediatamente anterior ao acidente o TB circulava na referida avenida no sentido Praça de Comércio/Expo, na sua mão de trânsito, tendo saído momentos antes do parque de estacionamento da discoteca LUX, enquanto que o AV circulava na mesma avenida, mas em sentido contrário, a uma velocidade muito superior a 80 Km/hora.
· O AV entrou em derrapagem e despiste, atravessou as duas vias de trânsito no sentido por si tomado, passando a circular em sentido e mão contrária, indo embater com a frente e lateral esquerda na roda da frente e lateral esquerda do TB, o qual circulava na via de trânsito mais à direita, dentro da sua mão de trânsito.
· Em consequência do acidente o veículo TB sofreu danos, tendo ficado imobilizado para ser efectuada a reparação, tendo o FGA assumido a regularização do acidente ao lesado em virtude da 1ª Ré ter informado que não podia dar seguimento à reclamação apresentada pela proprietária do veículo TB por não se encontrarem verificados os pressupostos para que a apólice de garagista produzisse os seus efeitos.
· O acidente ficou a dever-se exclusivamente à conduta culposa do 2º Réu, que violou os artigos13º e 24º do CE, pelo que tem direito ao reembolso do que prestou a título de indemnização, bem como das despesas de gestão inerentes, e ainda aos juros de mora vincendos a contar da citação da 1ª Ré, conforme resulta dos artigos 21º, nº 5, e 25º, nº 1 do citado DL nº 255/85, de 31/12, com a redacção dada pelo artigo 1º do DL 122-A/86, de 30-05.
Concluiu pedindo que a Ré G. Companhia de Seguros, SA seja condenada a pagar-lhe a quantia de € 10.204,85, acrescida da quantia de despesas de gestão que se apurarem até final do processo, a liquidar em execução de sentença, bem como dos juros de mora vincendos a contar da sua citação até integral pagamento.
Subsidiariamente, caso não venha a julgar-se o seguro celebrado entre a 1ª Ré e o 2º Réu válido e eficaz e/ou aplicável ao caso em apreço, deverão ser condenados no pedido o 2º Réu e a 3ª Ré.

Os réus foram regularmente citados.
A 1ª ré contestou, alegando que celebrou com o 2º Réu um contrato de seguro de garagista, vulgo seguro de carta, o qual só teria aplicação se o referido 2º Réu conduzisse o AV no âmbito da sua actividade de mecânico de automóveis, concluindo que tendo o acidente dos autos ocorrido quando o 2º Réu se deslocava no AV em passeio não tem o contrato de seguro de garagista aplicação no caso concreto; e impugnando a dinâmica do acidente descrita na petição inicial.
O 2º Réu contestou, excepcionando a sua ilegitimidade, bem como a prescrição do direito do Autor, alegando relativamente à dinâmica e circunstâncias do acidente que ao fazer a curva que se lhe apresentava pela direita encontrava-se óleo derramado e que ao passar por cima desse óleo derrapou e entrou em despiste, afastando assim a sua culpa pela produção do acidente.
Na sua contestação, o 3º réu alegou que em 2000 entregou o veículo AV à sociedade Citrotejo, SA como retoma na aquisição do veículo com a matrícula ...PF, o qual passou desde aí a ser propriedade da referida sociedade.

Notificado das contestações, veio o autor responder às excepções deduzidas pelos réus, pugnando pela sua improcedência.

Foi proferido despacho saneador, no qual foi julgada improcedente a excepção de ilegitimidade deduzida pelo 2º réu, e foi organizada a condensação do processo, fixando-se a matéria de facto assente e elaborada a base instrutória.
Procedeu-se a julgamento, tendo sido fixada a matéria de facto.
Foi proferida sentença decidindo:
“a) Condeno a 1ª Ré G. Companhia de Seguros, SA a pagar ao Autor Fundo da Garantia Automóvel a quantia de € 10.204,85 (dez mil duzentos e quatro euros e oitenta e cinco cêntimos), acrescida dos juros de mora vincendos contados à taxa supletiva legal dos juros civis, em vigor em cada momento, desde a citação da 1ª Ré para a acção e até integral pagamento, absolvendo no mais a 1ª Ré do pedido.
b) Mais absolvo os Réus A e B do pedido.”


Não se conformando com aquela sentença, dela interpôs recurso a 1ª ré, que nas suas alegações formulou as seguintes “CONCLUSÕES”:
– O seguro de garagista não é aplicável ao caso sub-judice, tendo em conta a lei aplicável no momento do alegado acidente: 1.1.2003
– A lei aplicável era o DL 522/85 de 31 de Dezembro. Não foi tido em consideração, como devia, o disposto no artigo 2º, nº 3 do Decreto-lei nº 522/85, de 31 de dezembro.
– A douta sentença não aplica o DL 522/85 de 31 de Dezembro e por omissão comete uma imprecisão de aplicação normativa violadora das mais elementares regras de direito.
Porquanto,
– O seguro de garagista é um seguro de risco específico, inerente à função de “garagista”
– O interesse no seguro de garagista é distinto do interesse de proprietário.
- O prémio de seguro do “risco” de garagista é bem diferente do prémio de seguro do “risco de proprietário” – um não se subsume no outro. São distintos.
- Existem factos que não necessitam de ser provados mas que resultam da experiencia da vida de todos nós: ninguém entende razoável que um mecânico circule uma viatura as 5 horas da madrugada num dia de réveillon no exercício da função de garagista.
– O ónus da prova pertenceria ao Autor de que àquela hora o Co Demandado circulava no exercício das suas funções de garagista.
- A douta sentença, ao caso sub judicie, não aplicou – como deveria - o Decreto-lei nº 522/85, de 31 de Dezembro – donde consta que “estão obrigados os garagistas, bem como quaisquer pessoas ou entidades que habitualmente exercem a actividade de fabrico, montagem ou transformação, de compra e ou venda, de reparação, de desempanagem ou de controlo do bom funcionamento de veículos, a segurar a responsabilidade civil em que incorrem quando utilizem, por virtude das suas funções, os referidos veículos no âmbito da sua actividade profissional.”
10ª – Ao não aplicar este diploma esqueceu que o seguro aceite pela ora apelante é precisamente “um seguro de garagista” e não outro.

Nas contra-alegações o recorrido pugnou pela improcedência do recurso.

II

- Factos
Na sentença recorrida foram considerados assentes os seguintes factos:
1) No dia 1 de Janeiro de 2003, pelas 5 horas e 50 minutos, na Avenida Infante D. Henrique, junto à saída da discoteca LUX, em Lisboa, ocorreu um acidente de viação.
2) Nele foram intervenientes os veículos com as matrículas:
- ....TB, veículo ligeiro de passageiros que se designará apenas por TB;
- ....AV, veículo ligeiro de passageiros que adiante se designará por AV.
3) O AV era conduzido pelo 2º Réu.
4) Enquanto que o TB era conduzido por M, sendo propriedade da sociedade “V, Lda.”, nele seguindo ainda como passageiros Joaquim e Vitor.
5) No momento imediatamente anterior ao acidente o TB circulava na referida avenida no sentido Praça do Comércio/Expo, tendo saído momentos antes do parque de estacionamento da discoteca LUX.
6) Circulava dentro da sua mão de trânsito.
7) Enquanto que o AV circulava na mesma avenida, mas em sentido contrário.
8) A faixa de rodagem no local do acidente é conformada por duas vias de trânsito em cada sentido, com largura de cerca de 3 metros para cada uma das vias.
9) No local do acidente não existe qualquer barreira física a separar os dois sentidos de trânsito.
10) Encontrando-se no entanto delineada no pavimento uma linha longitudinal contínua a separar os referidos sentidos.
11) O local do acidente, atento o sentido de trânsito tomado pelo TB, conforma o final de uma recta com cerca de 50 metros, seguido de curva para a esquerda encadeada (ligada) em nova curva para a direita, servindo de desvio e contorno ao estaleiro das obras da estação do metro de Santa Apolónia.
12) No sentido contrário, o local do acidente situa-se imediatamente a seguir ao referido desvio, o qual se apresenta primeiramente com curva para a esquerda e depois para a direita.
13) No momento imediatamente anterior ao acidente o AV entrou em derrapagem e despiste.
14) Não conseguindo perfazer a curva que de seguida se lhe apresentava à direita.
15) Atravessando as duas vias de trânsito no sentido por si tomado.
16) Ultrapassando também a linha longitudinal contínua que separava os dois sentidos de trânsito.
17) Passando a circular em sentido e mão contrária.
18) E indo embater com a frente e lateral esquerda na roda da frente e lateral esquerda do TB.
19) No local do acidente o piso é asfaltado, sendo a velocidade limitada no local a 50 Kms/hora.
20) À data do acidente existia um contrato de seguro de garagista celebrado entre a 1ª Ré e o 2º Réu titulado pela apólice 202055639.
21) O veículo TB beneficiava, à data do acidente, de um contrato de seguro que incluía danos próprios, celebrado com a Zurich, Companhia de Seguros S.A.
22) Em consequência do acidente o veiculo TB sofreu danos na parte traseira esquerda, na parte lateral esquerda e na parte frontal esquerda, no total de € 6.987,84.
23) Tendo ficado imobilizado para ser efectuada a reparação entre os dias 02/01/2003 e 14/02/2003.
24) A proprietária do veiculo TB alugou um veiculo de substituição durante o referido período, tendo despendido a quantia de € 3.556,29.
25) Ao abrigo do contrato referido em 21. a Zurich, Companhia de Seguros SA, pagou directamente à proprietária do veiculo TB a quantia de 6075,24 correspondente ao valor de reparação no montante de 6.947,84 deduzida a franquia de 872,60.
26) Da quantia de € 6075,24 referida em 25., o Autor pagou à Zurich a quantia de € 5.902,14.
27) O Autor pagou à proprietária do veiculo TB a quantia de € 4.302,71, correspondendo ao valor da franquia por si suportada e ao valor do aluguer do veiculo de substituição descontando a franquia legal.
28) O pagamento pelo FGA à Zurich foi efectuado em 02/12/2004.
29) O pagamento pelo FGA à proprietária do TB foi efectuado em 06/10/2003.
30) Em 18/10/2000 o veículo AV foi entregue pela 3ª Ré à sociedade Citrotejo, SA., como retoma na aquisição do veículo de marca Citroen, modelo Xsara Picasso, matrícula ...PF.

III

- Fundamentação

Cumpre apreciar e decidir.

O objecto do recurso é limitado e definido pelas conclusões da alegação dos recorrentes, pelo que no presente recurso o mesmo se cinge ao conhecimento de uma única questão que é a de saber no âmbito de aplicação do contrato de seguro de garagista se cabe ao autor o ónus da prova de que o condutor do veículo abrangido por tal seguro e responsável pelo acidente circulava no exercício das suas funções de garagista ou se cabe ao réu o ónus de provar que não circulava no exercício dessas mesmas funções.

A sentença recorrida considerou que não "sendo utilizado o veículo (alheio) … no desempenho da actividade profissional, ficam, pois, excluídos da garantia do seguro de garagista os danos causados a terceiros, sendo lícito à seguradora opor tal excepção ao lesado", que tais "factos, como impeditivos do direito invocado pelo Autor, constituem matéria de excepção (n.º 2 do artigo 342º do CC)" e que "assim à 1ª Ré seguradora a alegação e a prova da verificação de uma situação excluída do risco que no caso presente seria a de o 2º Réu não conduzir o AV no âmbito da sua actividade profissional".

Entende a apelante que não foi aplicado o regime legal do seguro obrigatório de responsabilidade civil automóvel estabelecido pelo Decreto-Lei n.º 522/85, de 31 de Dezembro, que se encontrava em vigor à data do acidente dos autos, e que por isso deveria ter sido aplicado o disposto no art.º 2º, n.º 3 do mesmo diploma, que, seu entender, não foi tomado em consideração.

O art.º 2º, n.º 3, referido dispunha o seguinte:
"Estão ainda obrigados os garagistas, bem como quaisquer pessoas ou entidades que habitualmente exercem a actividade de fabrico, montagem ou transformação, de compra e ou venda, de reparação, de desempanagem ou de controle do bom funcionamento de veículos, a segurar a responsabilidade civil em que incorrem quando utilizem, por virtude das suas funções, os referidos veículos no âmbito da sua actividade profissional.".
O Decreto-Lei n.º 522/85 foi revogado pelo Decreto-Lei n.º 291/2007, de 21 de Agosto, que aprovou um novo regime do sistema do seguro obrigatório de responsabilidade civil.
O Decreto-Lei n.º 291/2007 reproduz no seu art.º 6º, n.º 3, a norma do art.º 2º, n.º 3 do diploma anterior revogado.
O novo regime veio ainda a estabelecer no seu art.º 7º, n.º 1, em norma não existente no regime anterior, o seguinte:
"Relativamente ao seguro previsto no n.º 3 do artigo anterior, é inoponível ao lesado o facto de o acidente causado pelo respectivo segurado ter sido causado pela utilização do veículo fora do âmbito da sua actividade profissional, sem prejuízo do correspondente direito de regresso."

Não se discorda da apelante quando diz que o regime aplicável ao caso dos autos é do Decreto-Lei n.º 522/85, em virtude da data da ocorrência do acidente gerador de responsabilidade civil.
Contudo, já não se concorda com a apelante quando refere que a sentença recorrida não teve em consideração o disposto no art.º 2º, n.º 3, do regime revogado.
Com efeito, a sentença aplicou a referida norma só que com uma interpretação diferente da defendida no recurso, ou seja, a sentença considerou que era oponível ao lesado o facto de o acidente causado pelo respectivo segurado ter sido causado pela utilização do veículo fora do âmbito da sua actividade profissional, mas que tais factos eram impeditivos do direito do lesado e que como matéria exceptiva cabia a prova dos mesmos ao lesante.
O mesmo será dizer, face ao entendimento da 1ª instância, que quando o garagista seja responsável por acidente causado por veículo abrangido pelo seguro de garagista se presume que a condução é feita no âmbito do exercício de funções da sua actividade.
Concordamos plenamente com o entendimento defendido na sentença recorrida.
O novo regime do art.º 7º, n.º 1, do Decreto-Lei n.º 291/2007, veio reforçar essa interpretação ao afastar a possibilidade de ser oposta ao lesado a excepção baseado no facto de o acidente não ser sido causado no âmbito da actividade profissional de garagista.
Em suma, a nova lei veio reforçar a ideia de que se trata de factos impeditivos do direito do lesado e não de factos constitutivos.
Tratando-se de factos impeditivos o ónus da sua prova recai sobre o lesante nos termos do art.º 342º, n.º 2, do Código Civil.
No mesmo sentido seguiu o Acórdão da Relação de Coimbra de 15 de Maio de 2007, publicado em:
http://www.dgsi.pt/jtrc.nsf/c3fb530030ea1c61802568d9005cd5bb/11c26f6516b86fe9802572e200396b78?OpenDocument

Não tendo a ré logrado provar que o veículo não foi conduzido na altura do acidente no exercício das funções inerentes à actividade de garagista, a responsabilidade por tal acidente terá de recair sobre a apelante como considerou o tribunal de 1ª instância.

A circunstância de o veículo seguro na apelante circular na via pública pelas cinco 5 horas e 50 minutos do dia 1 de Janeiro, madrugada de noite de festa só por si não revela que o condutor não estivesse no exercício das suas funções.

Perante o exposto, a apelação terá de improceder.

IV

Decisão

Em face de todo o exposto, acorda-se em julgar improcedente a apelação, confirmando-se a sentença recorrida.
Custas pela apelante.

Lisboa, 21 de Abril de 2016
Jorge Vilaça
Vaz Gomes
Jorge Leitão Leal