Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
3911/18.3T8ALM-A.L1-6
Relator: MANUEL RODRIGUES
Descritores: EXECUÇÃO COMUM
PENHORA
EXECUÇÃO FISCAL
SUSTAÇÃO
VENDA
IMÓVEL
HABITAÇÃO PRÓPRIA
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 11/05/2020
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Texto Parcial: N
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: PROCEDENTE
Sumário: I - A existência de penhora sobre imóvel efectuada em execução fiscal e registada a favor da Autoridade Tributária, com registo anterior à efectuada numa execução comum, não obsta ao prosseguimento desta execução com a venda desse bem, quando na execução fiscal tal venda não pode ocorrer, por força do disposto no n.º 2 do art.º 244.º do Código de Procedimento e do Processo Tributário (CPPT), por o imóvel constituir habitação própria e permanente do executado ou do seu agregado familiar.
II - Este regime apenas proíbe a venda do imóvel afecto à habitação própria e permanente do executado ou do seu agregado familiar no âmbito da execução fiscal.
III - Na situação referida no ponto I, não obsta ao prosseguimento da execução comum o disposto no n.º 1 do artigo 794.º do Código de Processo Civil já que o mesmo pressupõe que o processo onde ocorreu a primeira penhora se encontre a correr os seus termos e pretende evitar a execução simultânea do mesmo bem, o que não ocorre no caso em análise.
IV - Estando vedada a venda do imóvel na execução fiscal suspensa e não tendo aplicação ao caso o disposto no n.º 1 do artigo 794.º do Código de Processo Civil, deve a mesma ter lugar na execução comum.
V - Impondo-se, neste caso, que seja promovida a citação da Autoridade Tributária para reclamar o seu crédito (art.º 786.º, n.º 1, alínea b), do CPC) o que a suceder determinará que seja oportunamente graduado no lugar que lhe competir (art.º 791.º do CPC).
Decisão Texto Parcial:
Decisão Texto Integral: Acordam na 6ª Secção Cível do Tribunal da Relação de Lisboa:

I - Relatório
1.1. No dia 25/05/2018 o Novo Banco, S.A., moveu acção executiva, com base num título executivo (Escritura Pública de Mútuo), contra Pedro …, Vítor …e Anabela …, para obter o pagamento da quantia de 109 813,44€.
1.2. No âmbito da predita execução foi penhorada, a 20/06/2018, a Fracção Autónoma designada pelas letras “AN”, correspondente ao nono andar B, para habitação, (…) - cf. Auto de Penhora junto aos autos a 27/06/2018, cujo teor se dá aqui por inteiramente reproduzido.
1.3. A penhora foi inscrita no registo predial, através da Ap. 423 de 2018/06/20.
1.4. Sobre a referida fracção hipotecada ao Novo Banco, S.A., e penhorada, nos autos, impendem duas penhoras anteriores, da Fazenda Nacional, que se mostram inscritas no registo predial, respectivamente, pela Ap. 4903, de 2015/03/12 e pela Ap.2416 de 2018/03/08 (cf. certidão junta aos autos de execuçao a 27/06/2018).
1.5. Motivo pelo qual foi SUSTADA a execução supra, nos termos do disposto no art.º 794° do CPC, conforme notificação elaborada pelo Senhor Agente de Execução, datada de 16/04/2020 (ref.ª Citius 26054613)..
1.6. O Novo Banco, S.A., reclamou créditos no âmbito do processo da Fazenda Nacional (Proc. n° 2151201601047710 e Aps.), em 16/05/2018,  na sequência da citação que lhe foi remetida pela Fazenda Nacional, anterior à sustação, nos termos dos arts. 239.º e 240.º CPPT, uma vez que, é ali credor com garantia real/hipoteca, conforme Reclamação de Créditos, enviada ao Serviço de Finanças de Almada 1, e respectivo acuso de recepção (Doc. 1 e 2).
1.7. Na sequência da notificação referida em 1.5, o Exequente, aqui Recorrente, requereu o levantamento da sustaçºao da execuçao e a citação da Fazenda Nacional para vir reclamar os seus créditos na execuçao de que estes autos de recurso são apenso (/ref.ª Citius 35610767).
1.8. Por Despacho proferido a 04/06/2020 (ref.ª Citius 396559069), foi indeferido o requerimento apresentado pela Exequente, com os seguintes fundamentos:
Caso o Exequente pretenda prosseguir com a venda do imóvel dos autos deverá reclamar créditos na execução fiscal e aí promover a venda do prédio sub judice para ver satisfeito o seu crédito (cfr. o Acórdão da Relação de Coimbra de 24.10.2017, disponível em www.dgsi.pt).
1.9. Inconformado com o assim decidido, veio o Exequente Novo Banco S.A. interpor recurso de apelação junto desta Relação de Lisboa, que rematou com as seguintes conclusões:
“A. O Novo Banco, S.A. moveu, em 16/05/2018, contra o mutuário Pedro …, e os fiadores Vítor … e Anabela …, a execução sumária supra, com base numa escritura pública de Hipoteca através da qual, o primeiro, emprestou ao segundo, no dia 09/03/2010, a quantia de €110.000,00 de capital, tendo, o segundo, em contrapartida, constituído hipoteca voluntária a favor do primeiro, sobre a fração autónoma designada pelas letras “NA”, (…), para garantia do capital mutuado, juros e demais encargos, por aquele ter deixado de pagar o empréstimo bancário atrás mencionado, em 02/08/2017, e onde o exequente Novo Banco, peticionou a quantia de €109.813,44.
B. O empréstimo concedido pelo exequente ao executado/mutuário Pedro …, destinou-se exclusivamente à aquisição da fracção para sua habitação própria e permanente, conforme consta da escritura de hipoteca que acompanhou o requerimento executivo, sob o Doc. 1.
C. A execução supra prosseguiu com a penhora do imóvel atrás identificado hipotecado ao Novo Banco, mas, por força da existência de duas penhoras anteriores da Fazenda Nacional foi sustada, por Oficio do Agente de Execução, datado de 27/06/2018, nos termos do disposto no art.° 794° do CPC.
D. O Novo Banco, S.A., reclamou créditos no âmbito do processo da Fazenda Nacional, Proc. n° 2151201601047710 e Aps., em 16/05/2018, não por força da sustação do art. 794.º, mas, por força da citação, que lhe foi remetida pela Fazenda Nacional, anterior à sustação, nos termos dos arts. 239° e 240° CPPT, uma vez que, é ali credor com garantia real/hipoteca.
E. O Sr. Agente de Execução, veio por Oficio datado de 16/04/2020, notificar o Exequente Novo Banco, para que este informasse os autos se "tem alguma coisa a opôr à extinção do processo pela sustação integral de bens", ao que o Novo Banco reagiu, através de requerimento, apresentado nos autos supra, no dia 22/05/2020, requerendo ao Mm° Juiz do Tribunal “a quo” o levantamento da sustação da execução supra, com o consequente prosseguimento dos autos, uma vez que a execução fiscal se encontra parada, desde, pelo menos, 16 de Maio de 2018, por força do disposto no art.° 244° do CPPT, na redação dada pela Lei n° 13/2016 de 23/05.
F. Sobre o requerimento apresentado pelo exequente, no dia 22/05/2020, recaiu o douto despacho proferido no dia 04/06/2020, que indeferiu o levantamento da sustação relativamente ao referido imóvel e condenou o exequente nas custas do incidente em 2 UC, por considerar que "A venda do imóvel nos presentes autos viola frontalmente o disposto no art" 794°, n° 1 do NCP". interpretação que coloca o exequente/credor Hipotecário num impasse, com os inerentes prejuízos, quer para o exequente, quer para o executado que vê a dívida aumentar todos os dias, o que não pode aceitar-se.
G. A situação dos autos, em que se encontra o CREDOR HIPOTECÁRIO, que mutuou o executado, precisamente, para que o mesmo, adquirisse uma habitação própria e permanente, e que vê, agora, face ao incumprimento dos empréstimos, negado o Direito de reaver o reembolso do seu crédito, é clamorosamente injusta !
H. Uma interpretação literal, ao art.° 794° do CPC e 244°/2 do CPPT, levaria a que sempre que a Fazenda Nacional penhorasse um imóvel antes do credor hipotecário, que emprestou ao executado o dinheiro, precisamente para aquisição de habitação própria e permanente, ficasse, em caso de incumprimento, impedido de ser reembolsado do seu crédito, quer na sua própria execução, uma vez que foi sustada, nos termos do disposto no art.° 794° do CPC, quer na execução fiscal, apesar de ter reclamado ali o seu crédito, uma vez que, a Fazenda Nacional está impedida de prosseguir com a sua execução, em virtude da atual redação do art.° 244°/2 do CPPT, introduzida pela Lei 13/2016 de 23/05, que veio proibir a venda da casa de morada de família.
I. Em bom rigor, não se pode aplicar, nestes casos - como o dos autos - o disposto no art.° 794° do CPC, dado que, embora a execução fiscal esteja registada na Conservatória do Registo Predial antes da penhora dos presentes autos, não existem duas execuções a correr em simultâneo, dado que a execução da Fazenda Nacional está "parada" e não pode prosseguir.
J. Tendo em conta que a redação do art.° 244°/2 do CPPT introduzida pela Lei n° 13/2016, tem uma durabilidade indeterminada, daqui por 5 anos, 10 anos, ainda estaremos todos à espera, que a Fazenda Nacional, promova a venda do imóvel, aqui em causa.
K. Com a alteração ao art.° 244° do CPPT, introduzida pela Lei n° 13/2016, o Legislador, por imprudência, ou excesso de zelo, logrou proibir a venda das casas de morada de família, no âmbito de Processos de Execução Fiscal, mas, não logrou proibir a penhora, desprezando, por completo, os contribuintes/credores dos Executados, os quais, enquanto Credores, ficam impedidos de cobrar as suas dívidas, pelas barreiras que foram levantadas pela referida Lei.
L. Felizmente, a jurisprudência, de forma unanime, tem feito uma interpretação ágil dos dois preceitos legais  que aqui estão em causa - art.° 244° do CPPT ( na redação dada pela Lei n° 13/2016 de 23/05) e art.° 794° do CPC — e tem decidido, pelo prosseguimento das execuções, quando os imóveis não podem ser vendidos na execução fiscal em virtude do estabelecido na Lei n.° 13/2016. (Neste sentido, veja-se, o decidido nos doutos acórdãos proferidos pelo Tribunal Da Relação De Lisboa, no âmbito do Proc. n° 985/15.2T8AGH-A.L1-6, em 07/02/2019; pelo Tribunal da Relação do Porto, no âmbito do Proc. n" 8590/18.5T8PRT-B.P1, proferido em 22/10/2019 • pelo Tribunal da Relação de Évora, no âmbito do Proc. n° 91/14.7TBBNV-B.E1, em 23/04/2020 ; pelo Tribunal da Relação de Coimbra, no âmbito do Proc. n° 205003/10.1YIPRT.1.C1, em 18/12/2019, todos disponíveis para consulta em www.dgsi.pt ).
M. A Lei não é algo estático, mas, sim dinâmico, palco onde os deveres de gestão processual e adequação formal, consagrados nos arts. 6° e 547°, ambos do CPC, desempenham um papel essencial.
N. No fundo, o que é necessário salvaguardar, sempre, é que o crédito da Fazenda Nacional, seja graduado e pago no lugar que lhe competir, pelo que, se impõe que a Execução supra, prossiga os seus termos, para a venda do imóvel penhorado nos autos, sendo a Fazenda Nacional, devidamente citada, pelo Sr. Agente de Execução, para querendo, vir aos autos supra, reclamar os seus créditos.
O. Outra solução, colocará o Novo Banco, S.A., numa situação inaceitável, ferida de inconstitucionalidade, onde o seu direito de acesso à justiça, consagrado no art. 20° da CRP, se encontra, desproporcionalmente, limitado, em relação aos outros valores em apreço, no caso sub judice.
P. No caso concreto, e salvo o devido respeito por opinião diversa, o circunstancialismo previsto no art. 794°/l do CPC, que levou à sustação da Execução supra, relativamente ao imóvel penhorado, ou seja, a pendência de duas ou mais execuções em curso, ou dinâmicas, sobre o mesmo bem, não se verifica.
Q. Uma interpretação literal, levaria a um resultado, que seguramente, o legislador não quis, porquanto vai ao arrepio dos princípios constitucionais do direito de acesso à justiça e do escopo do processo executivo, cabendo, a quem aplica o direito, interpretar a lei, em termos hábeis, como preceitua o art.° 9° do Código Civil, quando nos diz que "A interpretação não deve cingir-se à letra da lei, mas reconstituir a partir dos textos o pensamento legislativo, tendo sobretudo em conta a unidade do sistema jurídico, as circunstâncias em que a lei foi elaborada e as condições específicas do tempo em que é aplicada.", o que salvo, o devido respeito não se verificou, no douto despacho recorrido.
R. A interpretação literal dos dois normativos, ( art.° 244°/2 do CPPT e 794° do CPC), feita no douto despacho recorrido levaria, a médio prazo, a que os devedores aos Bancos, deixem de pagar ao Fisco, para que assim, fiquem "protegidos", pois sabem que logo que penhora da Fazenda Nacional recaia sobre o imóvel, para habitação própria e permanente, os Bancos ficam impedidos, de ver as execuções por estes movidas, seguir os seus ulteriores termos, porquanto, sustada, nos termos do disposto no art.° 794° do CPC, nada mais poderão fazer, para além de reclamarem o seu crédito, na Execução Fiscal que ficará eternamente "parada".
S. O propósito da Lei n° 13/2016 de 23/05 - proteger a cada de morada de família no âmbito de processo de execução fiscal - ficará adulterado, levando a um aproveitamento inadmissível, num Estado de Direito Democrático.
T. Todos nós sabemos que quando existem penhoras anteriores, a regra é a sustação, nos termos do disposto no art.° 794° do CPC, mas, essa sustação pressupõe que existam dois processos ativos, numa situação de dinâmica processual, o que não acontece no nosso caso, e, em todos aqueles cuja situação seja semelhante a esta e são já muitas, desde a entrada em vigor da Lei 13/2016 de 23/05.
U. O legislador, por ignorância ou imprudência, sabia ou devia saber que, sobre as casas de morada de família, podem impender outras penhoras de outros credores dos devedores, nomeadamente, dos Bancos que emprestam dinheiro para comprar as casas e não podem ficar impedidos de cobrar os seus créditos, só porque ali está registada uma penhora por falta de pagamento de IMI no valor de € 100 /€200... credores esses que também não são obrigados a pagar sub-rogadatnente aqueles créditos, para se verem livres daquelas penhoras, uma vez que estes pagamentos cabem aos devedores, e não aos credores, cabendo, agora, aos Tribunais confrontados, com esta realidade, interpretar e aplicar a lei, aos casos concretos, que lhes forem submetidos, já que o legislador ao proteger as famílias, esqueceu-se, dos credores que financiaram a compra das casas e que ficaram agora de "mãos atadas" e não podem, cobrar os seus créditos, por o legislador ter proibido o Fisco de vender as casas de morada de família, mas, não ter proibido o Fisco de penhorar as mesmas.
V. Salvo melhor entendimento, o douto despacho recorrido, ao indeferir o levantamento da sustação da execução movida pelo Novo Banco, para cobrança do seu crédito, veda a possibilidade do exequente, que é CREDOR HIPOTECÁRIO, de executar a garantia de que dispõe, ( cfr. art.° 686° do CC) porquanto, a situação em que o exequente se encontra foi exaustivamente exposta ao Tribunal, que indeferiu tudo quanto havia sido requerido, e remeteu para o credor para o processo de execução fiscal , posição com a qual o Novo Banco, não concorda, porquanto, não obstante a existência da penhora da Fazenda Nacional ser anterior à dos presentes autos, o certo é que, as duas execuções não se encontram numa situação dinâmica, (o que foi levado ao conhecimento do Tribunal “a quo” no requerimento apresentado em 22/05/2020) que possa justificar a manutenção da sustação, nos termos do art.° 7940 do CPC.
W. Os pressupsotos que levaram à sustação da presente execução, só formalmente se verificam, porque, na prática, não existem duas execuções pendentes/ativas/dinâmicas, sobre o mesmo bem, dado que, quanto à execução fiscal, a mesma encontra-se "estagnada", na fase da penhora, e enquanto se mantiver a atual redação do art.° 244°/2 do CPPT assim, ficará, por tempo indeterminado.
X. O prosseguimento dos presentes autos de execução, em nada prejudica a Fazenda Nacional  que será citada, nos termos, nomeadamente do disposto no art. 786°/2 CPC, para que esta venha reclamar os seus créditos no Processo supra, de modo a que também os direitos desta, sejam, devidamente, acautelados, sendo, o Exequente e demais Credores, do ora Executado, incluindo, a Fazenda Nacional, pagos, no lugar que lhes competir, prosseguindo o processo supra, os seus normais e ulteriores termos, até final.
Y. Como se não bastasse, o douto despacho recorrido para além de ter indeferido o levantamento da sustação, ainda condenou o exequente Novo Banco, no pagamento de 2 UC 's pelo incidente, o que também não se aceita.
Z. Violou, assim, o douto despacho recorrido, o disposto, designadamente, nos artigos 9.º, e 686.º do Cód. Civil artigos 6.º, 547.º e 794.º do CPC e art.º 20.º da CRP entre outros.
Nestes termos e sempre com o mui douto suprimento de V. Exas., deve o presente Recurso de Apelação ser julgado procedente por provado e, outrossim, o douto despacho recorrido que indeferiu o levantamento da sustação e condenou o exequente nas custas do incidente, em 2 UCs, ser totalmente revogado, e substituído por outro, que ordene o levantamento da sustação da execução, prosseguindo os autos, os seus ulteriores termos com a venda do imóvel, com todas as demais consequências legais, com o que será feita, Venerandos Juízes Desembargadores, a vossa habitual, JUSTICA!
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1.10. Não foram apresentadas contra-alegações.
1.11. Colheram-se os vistos
II - Objecto do recurso
O objecto do recurso é balizado pelas conclusões da alegação do recorrente (artigos 5.º, 635º, n.º 3 e 639º, n.ºs 1 e 3, do CPC), sem prejuízo do conhecimento das questões de que cumpra apreciar oficiosamente, por imperativo do art.º 608, n.º 2., “ex vi” do art.º 663º, nº 2, do mesmo diploma legal. E porque os recursos não visam criar decisões sobre matéria nova, ele é delimitado pelo conteúdo da decisão recorrida.
Consoante resulta das conclusões das alegações do Recorrente, o recurso tem por objecto a questão de saber se assiste ao Recorrente direito ao prosseguimento da presente execução comum com vista à satisfação do seu crédito com o produto da venda do imóvel penhorado, não obstante existir penhora com registo anterior sobre o mesmo bem a favor da Autoridade Tributária, no âmbito de processo de execução fiscal.
III - Fundamentação
A) Motivação de Facto
Para a decisão dos recursos relevam as ocorrências processuais e os factos descritos no relatório que antecede.
B) Do mérito do recurso
A questão a dirimir no presente recurso é a de saber se assiste ao Exequente, aqui Recorrente, direito ao prosseguimento da presente execução comum com vista à satisfação do seu crédito com o produto da venda do imóvel penhorado, não obstante existir penhora com registo anterior sobre o mesmo bem a favor da Autoridade Tributária, no âmbito de processo de execução fiscal.
O Tribunal recorrido decidiu indeferir o requerimento de prosseguimento dos autos de execução comum, por entender que a venda do imóvel penhorado nos presentes autos violaria frontalmente o disposto no art.º 794.º. n.º 1, do CPC e que nada obsta a que o Exequente requeira o prosseguimento da execução fiscal suspensa para ressarcimento do seu crédito, uma vez que o impedimento a que a Lei n.º 13/2016, de 23 de Maio, faz referência diz respeito unicamente à Autoridade Tributária.
O Recorrente insurge-se contra esta decisão, defendendo que não se verifica no caso o circunstancialismo previsto no artigo 794,º, n.º 1, do Código de Processo Civil (CPC), que levou à sustação da presente execução, por não se verificar a pendência de duas ou mais execuções, e que a interpretação literal deste normativo e do artigo 244.º, n.º 2, do Código de Procedimento e de Processo Tributário (CPPT), na redacção dada pela Lei n.º 13/2016, de 23 de Maio, feita na decisão recorrida levaria a que os devedores aos Bancos deixassem de pagar à Autoridade Tributária, por saberem que logo que a penhora promovida pela Fazenda Nacional recaia sobre imóvel afecto a habitação própria e permanente do devedor, aqueles credores ficariam impedidos de ver as execuções por si movidas seguir os seus ulteriores termos, porquanto seriam sustadas, nos termos do disposto no artigo 794.º, n.º 1, do CPC, nada mais podendo fazer do que reclamarem o seu crédito na execução fiscal, que também ficará eternamente sustada, por força do n.º 2 do artigo 244.º do CPPT.
A questão é controversa e tem merecido respostas divergentes, quer na doutrina, quer na jurisprudência.
Vejamos.
Nos termos do n.º 2 do artigo 244.º do CPPT, em sede de execução-fiscal, penhorado imóvel que constitua a habitação própria e permanente do devedor ou do seu agregado familiar (verificados que sejam os restantes pressupostos aí referidos) e decidida a reclamação de créditos - se a houver -, não pode a Administração Tributária e Aduaneira promover a venda desse bem imóvel.
O citado normativo tem a redacção dada pela Lei n.º 13/2016, de 23 de Maio, cujo art.º 1.º, sob a epígrafe “Objecto”, dispõe: “A presente lei protege a casa de morada de família no âmbito de processos de execução fiscal, estabelecendo restrições à venda executiva de imóvel que seja habitação própria e permanente do executado”. E, estatuindo sobre a concretização da venda na sequência de penhora ou execução de hipoteca, estipula o art.º 4º que “ “1 - Quando haja lugar a penhora ou execução de hipoteca, o executado é constituído depositário do bem, não havendo obrigação de entrega do imóvel até que a sua venda seja concretizada nos termos em que é legalmente admissível.
2 - Enquanto não for concretizada a venda do imóvel, o executado pode proceder a pagamentos parciais do montante em dívida, sendo estes considerados para apuramento dos montantes relevantes para a concretização daquela venda”.
É incontroverso que, não obstante a casa de morada de família do executado constitua um bem susceptível de penhora, nos processos de execução fiscal a Administração Tributária e Aduaneira encontra-se impedida de promover a venda judicial desse imóvel, reconhecendo-se que a protecção dos direitos de crédito do Estado deve harmonizar-se com a salvaguarda do direito fundamental à habitação, constitucionalmente garantido, e que tal justifica uma solução legislativa que, não impedindo a penhora, obsta à venda de imóveis afectos a habitação própria e permanente do devedor ou do seu agregado familiar por iniciativa do Estado. E, para garantir os direitos de crédito do Estado, estabeleceu que o prazo de prescrição suspende-se durante o período de impedimento legal à realização da venda de imóvel afecto a habitação própria e permanente (art.º 49.º, n.º 4, al. d) da LGT). Trata-se de um regime em que se reconhece a protecção da casa de morada de família do executado da venda judicial para satisfação dos créditos tributários.
Daqui decorre, também sem margem para dúvidas, tal como se discorre no Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra, de 18-12-2019, proc. n.º 205003/10.1YIPRT.1.C1 (Desembargador Manuel Capelo), acessível em www.dgsi.pt., “que esse impedimento legal de promover a venda judicial do bem para ver os seus créditos ressarcidos apenas é aplicável às execuções instauradas por iniciativa da Autoridade Tributária e Aduaneira, deixando de fora, por exemplo, as execuções hipotecárias promovidas pelas instituições bancárias. É que, a não ser assim, com esse limitado e delimitado âmbito de aplicação, esta solução comportaria problemas quer de índole constitucional [(designadamente, por referência aos princípios constitucionais da proporcionalidade (n.º 2 do art.º 18º CRP), da garantia do direito à propriedade privada (n.º 1 do art.º 62º da CRP) e do próprio acesso à justiça (art.º 20º da CRP], quer ao nível da própria legitimidade de o Estado dispor de direitos de que não é titular. Isto é, sendo compreensível e aceitável que a tutela da habitação do executado possa ser feita por sacrifício do Estado, já não é aceitável que o possa ser a coberto dos demais credores.”
Sobre a presente problemática escreveu-se, ainda, no citado aresto:
“A nível jurisprudencial foi já entendido que “[a] aparente desarmonia do regime em causa criado pelo n.º 2 do art.º 244º do CPPT só resulta da interpretação deste preceito, que forçosamente não pode ser literal, sendo manifesto que nada nos indica que o legislador tenha querido criar um entrave ao prosseguimento das ações executivas cíveis”, acrescentando-se que esta impossibilidade de venda do imóvel penhorado não foi “estendida aos demais credores”.
De igual, a proibição de venda do imóvel afecto a habitação própria e permanente do devedor ou do seu agregado familiar não implica a preclusão da garantia real ou do grau de preferência pelo pagamento de que a administração fiscal possa beneficiar.
O impedimento legal de realização da venda não determina o levantamento da penhora fiscal, com a inevitável perda da prevalência (ou preferência) decorrente do registo-predial do ato (art.º 6º, n.º 1 do C.R.Predial) porquanto o levantamento da penhora apenas pode (e deve) ser ordenado nos casos especificamente previstos nas disposições dos art.ºs 218º e ss. do CPPT ou em consequência da procedência de embargos de terceiro, oposição à execução ou qualquer outra causa que produza a extinção desta (cfr. art. 763º do CPC).
Aliás, tendo presente o regime prescrito no n.º 1 do art.º 794º do CPC, que determina que, em caso de dupla penhora sobre os mesmos bens susta-se, quanto a estes, a execução em que a penhora tiver sido posterior, podendo o exequente reclamar o respectivo crédito no processo em que a penhora seja mais antiga. O pressuposto da sustação é pender “mais de uma execução sobre os mesmos bens”, sendo que essa pendência tanto pode ser de execução civil, como de execução fiscal não tendo de se considerar o estado processo, mas sim a data da penhora ou a do registo.
O regime estabelecido no citado preceito legal “não se inspira em razões de economia processual, visto que não se manda atender ao estado em que se encontram os processos; susta-se o processo em que a penhora se efectuou em segundo lugar, ainda que a execução respectiva tenha começado primeiro e ainda que esteja mais adiantada do que aquele em que precedeu a penhora.
O que a lei não quer é que em processos diferentes se opere a adjudicação ou venda dos mesmos bens; a liquidação tem de ser única e, em princípio, há-de fazer-se no processo em que os bens foram penhorados em primeiro lugar”.
O “exequente irá deduzir os seus direitos no processo em que os bens tiverem sido penhorados em primeiro lugar. (…).
Tem de ir à execução que fica a correr (a execução com penhora anterior) reclamar o seu crédito para conseguir que seja aí reconhecido, graduado e pago”. “Neste caso, a reclamação não tem apenas por fim desembaraçar de encargos os bens a vender ou a adjudicar; destina-se essencialmente a evitar a pendência de duas execuções simultâneas sobre os mesmos bens” pois é óbvia a inconveniência de um regime que permita a tramitação em paralelo de mais do que uma execução sobre os mesmos bens, já que dificulta o atendimento ponderado e simultâneo dos direitos dos diversos credores.”
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No caso em análise, estando adquirido que sobre o imóvel onerado com hipoteca a favor do Exequente encontram-se registadas duas penhoras inscritas a favor da Autoridade Tributária e Aduaneira, com registo anterior à efectuada nestes autos de execução comum, coloca-se precisamente a questão da harmonização entre o regime consagrado no n.º 2 do artigo 244.º do CPPT, que proíbe que a Autoridade Tributária promova a venda do imóvel penhorado no âmbito da execução fiscal, devendo sobrestar a respectiva venda executiva fiscal, dado esse bem corresponde à sada de morada de família do(s) executado(s), e o regime previsto no n.º 1 do artigo 794.º do CPC, que manda sustar a execução quanto ao bem duplamente penhorado e onera o exequente com o encargo de ir reclamar os seus créditos àquele processo de execução fiscal, no qual a penhora foi realizada em primeiro lugar.
Como se disse, as respostas que a jurisprudência e a doutrina tem levado ao impasse criado, que impede os credores de promoverem a execução fiscal e consequentemente de satisfazerem os seus créditos pelo produto da venda desse bem que, muitas das vezes, é único com valor suficiente para liquidar o crédito exequendo, têm sido divergentes.
Uma parte da jurisprudência e da doutrina entende que, tendo a primeira penhora do imóvel sido efectuada na execução fiscal, o credor cuja penhora não goza de anterioridade deve aí reclamar o seu crédito e ser pago pelo produto da venda do bem penhorado (cfr., por todos, Ac. do TRC, de 24/10/2017 (relatora Sílvia Pires), disponível em www.dgsi.pt.; e J. H., J H Delgado Carvalho, com a colaboração de Miguel Teixeira de Sousa, in As alterações introduzidas pela Lei n.º 13/2016, de 23/5, no Código de Procedimento e de Processo Tributário e na Lei Geral Tributária e as suas repercussões no concurso de credores publicado no Blog do IPPC, citados no Ac. do TRC, de 18-12-2019, que vimos seguindo de perto).
Esta tese, que foi a adoptada pelo Tribunal recorrido, assenta no entendimento de que o disposto no n.º 2 do artigo 244.º do CPPT tem de ser interpretado no sentido de que a Autoridade Tributária não pode promover, nessa situação – penhora de imóvel afecto a habitação própria e permanente do executado ou do seu agregado familiar -, a venda desse bem, mas não impede que um credor que nesse processo tenha reclamado o seu crédito promova essa venda dado que se encontra em situação similar à prevista no artigo 850.º, n.º 2, do CPC, normativo que deve ser aplicado com as adaptações necessárias.
Tal interpretação reduz, pois, o âmbito de aplicação do n.º 2 do art.º 244.º aos casos em que a Autoridade Tributária seja o único credor interveniente no processo de execução fiscal, considerando que a protecção conferida pelo citado normativo legal não se estende às situações em que haja concurso de credores. Daí concluírem que a venda judicial do bem deve ser promovida na execução que procedeu à penhora do imóvel em primeiro lugar, ainda que isso signifique que seja promovida na execução fiscal.
Uma outra parte da jurisprudência defende o entendimento que deve ser averiguado o estado da execução fiscal e caso se mantenha o impedimento deve a venda ser promovida no processo executivo comum. Para tal, deve a Autoridade Tributária e Aduaneira ir ao processo executivo comum reclamar os seus créditos, de modo a que também os seus direitos sejam devidamente acautelados, distribuindo-se, posteriormente, os resultados do produto da venda em conformidade com o que for determinado na graduação de créditos (cfr., neste sentido, Ac. do TRC de 26/09/2017, Acs. do TRE de 12/07/2018 no proc. 893/12.9TBPTM.E1 e de 30-5-2019 no proc. 402/18.6T8MMN.E1; Ac. do TRL, de 22/10/2019, proc.º 2270/07.4TBVFX.B1.L1.7; e Ac. do TRC, de 18-12-2019, citado, in www.dgsi.pt.).
Com o devido respeito pela tese contrária, sufragamos esta segunda posição cujos argumentos se nos afiguram mais pertinentes, por considerarmos que, face à sustação da execução fiscal (n.º 2 do artigo 244.º do CPPT), a efectiva tutela judiciária de que carece o devedor deve ser assegurada e tornar-se efectiva não pela via da reclamação de créditos no processo de execução fiscal, como decidiu o Tribunal a quo, mas sim através da promoção da venda no processo executivo comum, no qual deverá ser promovida a citação da Autoridade Tributária e Aduaneira para reclamar o seu crédito (art.º 786.º, n.º 1, alínea a), b), do CPC), para que seja graduado no lugar que lhe competir (art.º 791.º do CPC).
Com efeito, no projecto de Lei nº 87/XIII/1ª, que iniciou o processo de alteração legislativa que conduziu à aprovação da Lei n.º 13/2016, de 23 de Maio, que visou a protecção da casa de morada de família no âmbito de execuções fiscais, pode ler-se na respectiva exposição de motivos que “com esta medida, pretende-se proteger um direito essencial dos cidadãos, com maior relevância social, no caso do direito à habitação, posto em causa quando, num processo de execução fiscal, a habitação é objecto de venda judicial por iniciativa do Estado, por vezes em razão de quantias irrisórias face ao valor do imóvel.”
Não foi, pois, propósito do legislador estender a restrição prevista no mencionado diploma às execuções comuns, sacrificando os restantes credores e, designadamente os que beneficiem de garantias reais.
Por outro lado, da análise dos diversos preceitos do CPPT relativos à penhora e à extinção da execução resulta o seguinte: (i) a penhora não pode ser levantada qualquer que seja o tempo por que se mantiver parada a execução, ainda que o motivo não seja imputável ao executado (art.º 235º, nº 2 do CPPT) a não ser em caso de pagamento coercivo ou voluntário da dívida ou de anulação desta (arts. 260º, 269º e 271º, todos do CPPT); e (ii) não se encontra previsto o prosseguimento da execução por impulso dos credores reclamantes - o CPPT não tem norma equivalente ao art.º 850º, n.º 2, do CPC (cfr. Ac. STA de 3/2/2016 in www.dgsi.pt).
Ora, em face deste regime e, sendo certo que a penhora não será levantada no âmbito da execução fiscal, a não ser que a dívida seja paga ou anulada, aplicando no caso o disposto no art.º 794º, n.º 1, do C. P. Civil, os credores com garantia real sobre o bem imóvel penhorado previamente na execução fiscal ficarão impedidos de satisfazer os seus créditos pelo produto da venda desse bem, que muitas vezes ou é o único bem, ou o único com valor suficiente para liquidar o crédito exequendo ou reclamado.
Não foi seguramente esta a intenção do legislador, e uma interpretação do n.º 1 do art.º 794.º do CPC como a que foi feita na decisão recorrida comporta problemas de natureza constitucional, designadamente por afrontar os princípios da proporcionalidade (n.º 2 do art.º 18.º CRP), da garantia do direito à propriedade privada (n.º 1 do art.º 62.º CRP) e do próprio acesso à justiça (art.º 20.º CRP). Na verdade, sendo compreensível e aceitável que a tutela da habitação do executado possa ser feita por sacrifício do Estado, já não é aceitável que o possa ser a coberto dos demais credores.
O que o art.º 794º, n.º 1, do CPC pretendeu foi que, estando pendentes várias execuções sobre o mesmo bem, a venda do mesmo fosse promovida apenas na execução onde tivesse ocorrido a primeira penhora, evitando a pendência de execuções simultâneas sobre os mesmos bens (vide Eurico Lopes Cardoso, in Manual da Acção Executiva, 3ª ed, pág. 493). Ora, no caso não há esse perigo, pois na primeira execução a venda do bem não pode ocorrer por força do disposto no art.º 244º, n.º 2 do CPPT.
Na verdade, o art.º 794º, n.º 1, do CPC pressupõe que a execução em que deve ocorrer a venda do bem se encontra a correr os seus termos. Não fazendo sentido que, em face da aplicação deste preceito a venda do bem ficasse suspensa “ad eternum”, deixando o credor com a penhora posterior num impasse, por motivos que lhe são alheios, não podendo requerer o prosseguimento da execução própria, nem das que se encontram sustadas.
Frise-se, uma vez mais, que o regime introduzido pela Lei 13/2016, não impede que a venda de um bem imóvel afecto à habitação própria e permanente do executado ou do seu agregado familiar, ocorra no âmbito de uma execução comum.
Assim, não deve no caso ser aplicado o art.º 794º do CPC, uma vez que há impossibilidade de prosseguimento da primeira execução, por causa não imputável ao credor, podendo este exercer os seus direitos na execução onde foi realizada a penhora posterior.
A tanto não obsta o disposto no art.º 822º do C. Civil, já que, a Autoridade Tributária pode vir reclamar o seu crédito nesta outra execução, devendo para isso ser notificada ao abrigo do preceituado no art.º 786º do CPC, sendo o seu crédito graduado no lugar que lhe competir.
Em suma, não tem aplicação ao caso o disposto no art.º 794º do CPC, impondo-se, outrossim, que a execução de que estes autos dependem prossiga os seus ulteriores termos, promovendo-se a citação da Autoridade Tributária e Aduaneira para reclamar o seu crédito (art.º 786.º, n.º 1, alínea b), do CPC) o que a suceder determinará que seja oportunamente graduado (art.º 791.º do CPC) no lugar que lhe competir.
Procede, portanto, a apelação.
III – Decisão
Pelo exposto, acordam os Juízes nesta Relação de Lisboa em julgar procedente a apelação e, revogando a decisão recorrida, determinar o prosseguimento da presente acção executiva relativamente ao bem imóvel em causa nos autos, nos termos acima expostos.
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Sem custas.
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Registe e notifique.
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Lisboa, 5 de Novembro de 2020
Manuel Rodrigues
Ana Paula A. A. Carvalho
Nuno Luís Lopes Ribeiro