Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
190/20.6YRLSB-2
Relator: SOUSA PINTO
Descritores: REVISÃO DE SENTENÇA ESTRANGEIRA
UNIÃO ESTÁVEL
ESCRITURA DECLARATÓRIA
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 05/21/2020
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Texto Parcial: N
Meio Processual: REVISÃO DE SENTENÇA ESTRANGEIRA
Decisão: DEFERIR O PEDIDO
Sumário: Uma escritura pública declaratória de “união estável” lavrada na República Federativa do Brasil pode ser confirmada no âmbito do processo especial de revisão de sentença estrangeira previsto nos art.º 978.º ss. do CPC.
Decisão Texto Parcial:
Decisão Texto Integral: Acordam neste Tribunal da Relação de Lisboa,

I - Relatório
LA… e IA…, vieram instaurar a presente acção especial de revisão de sentença estrangeira, pedindo a revisão e confirmação da Escritura Pública de União Estável, datada de … de janeiro de 2011 e realizada no Primeiro Tabelião de Notas e Protesto de Letras e Títulos de Indaiatuba, Estado de São Paulo, Brasil.
Alegaram, em síntese, para fundamentar tal pedido, que em tal escritura foi declarado pelos requerentes que vivem em União de Facto há 28 (vinte e oito) anos, sendo que tal união perdura até os dias actuais.
Referiram, ainda, que dessa união nasceram 03 (três) filhas; que tal declaração consta de documento sobre cuja autenticidade e inteligência não deve haver dúvidas; que está devidamente legalizado; que provém de órgão competente; que não versa sobre matéria da exclusiva competência dos Tribunais portugueses; que tal Escritura Pública Declaratória de União Estável foi realizada de acordo com a legislação nacional Brasileira aí vigentee e que não contém decisão contrária aos princípios de ordem pública internacional do Estado Português.
Este tribunal é competente em razão da matéria, da hierarquia e da nacionalidade.
II - Questões a decider
A única questão que importa conhecer prende-se com o saber se estão verificados os requisitos legais que admitem a revisão e confirmação da escritura pública declaratória de União Estável, aqui em causa.
II – Fundamentação
1 – De facto
Atenta a prova documental junta aos autos, mostra-se comprovado:
1 – LA…, de nacionalidade portuguesa, nasceu no dia … de Fevereiro de 1959.
2 -  IA…, de nacionalidade brasileira, nasceu no dia … de Abril de 1958.
3 – YC…, nascida em …/08/1992, é filha dos requerentes.
4 – LC…, nascida em …/12/1995, é filha dos requerentes.
5 – IC…, nascida em …/08/1998, é filha dos requerentes.
6 – No dia … de janeiro de 2011, foi realizada escritura pública pelo Primeiro Tabelião de Notas e Protesto de Letras e Títulos de Indaiatuba, Estado de São Paulo, Brasil, tendo sido declarado pelos requerentes que vivem em União de Facto há 28 (vinte e oito) anos, ou seja, desde meados de janeiro de 1983. A certidão de tal “Escritura Declaratória”, foi junta aos autos com o requerimento inicial, dando-se aqui inteiramente por reproduzida.
2 – De direito
Sobre a questão que nos cumpre conhecer – susceptibilidade ou insusceptibilidade de revisão e confirmação por este Tribunal da escritura pública declaratória de União Estável – os ora relator e 1.º adjunto deste colectivo, em acórdão anterior[1], decidiram – na esteira do entendimento de parte da jurisprudência do STJ[2] - que tal revisão não seria admissível, pois que, tratando-se de mera declaração assertiva ou de constatação, mais não seria do que documento que poderia constituir meio de prova, mas que não valeria como decisão passível de ser reconhecida, como tal, pelos tribunais portugueses.
Temos, entretanto, vindo a assistir a uma crescente tomada de posição em sentido contrário ao por nós ali defendido, sendo que um aprofundar da questão e a argumentação que vem sendo desenvolvida em variadíssimos acórdãos desta Relação de Lisboa[3], levam-nos a reconsiderar a posição inicialmente assumida e a entender que a aludida Escritura de “União Estável” é passível de revisão e confirmação por via deste processo especial.
Como exemplo ilustrativo de tal possibilidade e porque se tratou de recente acórdão que nos convenceu em definitive da bondada de tal posição, transcrevemos aqui o teor da fundamentação de direito do ac. de 05-03-2020, proferido no âmbito do Proc.º 308/20.9YRLSB, em que foi relatora a Juíza Desembargadora Inês Moura.
Escreveu-se aí:
«(…).
5. Razões de Direito
Sobre o processo especial de revisão de sentença estrangeira regem os art.º 978.º ss. do CPC.
Dispõe o art.º 978.º n.º 1 do CPC que: “Sem prejuízo do que se ache estabelecido em tratados, convenções, regulamentos comunitários e leis especiais, nenhuma decisão sobre direitos privados, proferida por tribunal estrangeiro ou por árbitros no estrangeiro, tem eficácia em Portugal, seja qual for a nacionalidade das partes, sem estar revista e confirmada.
De acordo com o disposto no art.º 980.º do CPC, são os seguintes os requisitos necessários para a confirmação da sentença:
a) Que não haja dúvidas sobre a autenticidade do documento de que conste a sentença nem sobre a inteligência da decisão;
b) Que tenha transitado em julgado segundo a lei do país em que foi proferida;
c) Que provenha de tribunal estrangeiro cuja competência não tenha sido provocada em fraude à lei e não verse sobre matéria da exclusiva competência dos tribunais portugueses;
d) Que não possa invocar-se a excepção da litispendência ou de caso julgado com fundamento em causa afecta a tribunal português, excepto se foi o tribunal estrangeiro que preveniu a jurisdição;
e) Que o réu tenha sido regularmente citado para a acção, nos termos da lei do país do tribunal de origem, e que no processo hajam sido observados os princípios do contraditório e da igualdade das partes;
f) Que não contenha decisão cujo reconhecimento conduza a um resultado manifestamente incompatível com os princípios da ordem pública internacional do Estado Português.”
O processo especial de revisão de sentença estrangeira destina-se apenas a verificar se a decisão sobre direitos privados proferida por tribunal estrangeiro ou entidade equiparada para este efeito, está em condições de produzir os seus efeitos em Portugal.
Tal passa apenas pela avaliação dos pressupostos que o legislador elenca nas várias alíneas do art.º 980.º do CPC, só podendo ser impugnado o pedido com fundamento na falta de qualquer dos requisitos previstos neste artigo, ou por se verificar algum dos casos de revisão especificados nas al. a), c) e g) do art.º 696.º, conforme dispõe o art.º 983.º do CPC.
Estamos neste caso perante um sistema de revisão formal ou delibação, que abstrai dos fundamentos da decisão e se centra nas condições de regularidade em que a mesma foi proferida – neste sentido, e apenas a título de exemplo, vd Acórdão do TRL de 14/11/2006 no proc. 3329/2006-7 in www.dgsi.pt
Na situação em presença, não se nos oferece dúvidas, em razão dos factos apurados que resultam dos documentos juntos ao processo, que estão verificados os diversos requisitos previstos nas al. a) a f) do art.º 980.º do CPC.
Na verdade, não surgem dúvidas sobre a autenticidade do documento que constitui a escritura pública apresentada, nem sobre o seu conteúdo que respeita a uma declaração de existência de uma união estável; a escritura provém de autoridade oficial estrangeira competente que corresponde à nacionalidade das partes; não versa sobre matéria da exclusiva competência dos tribunais portugueses, de acordo com o disposto no art.º 63.º do CPC; não existe qualquer indício de litispendência ou caso julgado que obste à revisão e confirmação requerida; ambos os interessados aqui requerentes tiveram intervenção na escritura sob revisão; a mesma não contém decisão cujo reconhecimento conduza a um resultado manifestamente incompatível com os princípios de ordem pública internacional do Estado Português, sendo que o nosso ordenamento jurídico contempla uma figura semelhante ao da União Estável Brasileira, aqui denominada União de Facto, prevista na Lei 7/2001 de 11 de maio e à qual o legislador nacional também atribui determinados efeitos jurídicos.
A nossa jurisprudência tem estado dividida, na questão de saber se pode ser revista e confirmada uma escritura pública declaratória de união estável brasileira, centrando-se a discussão no âmbito e na interpretação que pode ser dada à expressão “decisão sobre direitos privados” que consta do já mencionado art.º 978.º do CPC no sentido da mesma poder ou não integrar aquela realidade.
Vejamos sinteticamente o que nos diz o ordenamento jurídico brasileiro sobre o que denomina de União Estável.
Desde logo ao nível da lei constitucional, dispõe a Constituição Federal Brasileira no seu art.º 226.º § 3º “Para efeito da proteção do Estado, é reconhecida a união estável entre o homem e a mulher como entidade familiar, devendo a lei facilitar sua conversão em casamento (…).
Na República Federativa do Brasil foi o Código Civil de 2002, aprovado pela Lei n.º 10.406, de 10 de janeiro de 2002, que veio definir e regular a união estável, conferindo-lhe oficialmente o caráter de “entidade familiar”.
O art.º 1723.º do C.Civil brasileiro reconhece como entidade familiar “a união entre o homem e a mulher, configurada na convivência pública, contínua e duradoura e estabelecida com o objetivo de constituição de família.
O art.º 1724.º do mesmo diploma vem regular as relações pessoais entre os companheiros, definindo os seus deveres, enquanto o art.º 1725.º se reporta às relações patrimoniais entre os companheiros, estabelecendo um regime supletivo de bens, tal como acontece a respeito do casamento.
Por seu turno, o art.º 1726.º vem prever a possibilidade da união estável se converter em casamento, “mediante pedido dos companheiros ao juiz e assento no Registro Civil.”
Quanto ao processo de extinção da união estável, regulam os art.º 731.º ss. do Código do Processo Civil Brasileiro aprovado pela Lei 13.105 de 16 de março de 2015, prevendo a possibilidade da extinção da união estável ser feita através de escritura pública, não dependendo de homologação judicial, à semelhança do que também acontece com o divórcio consensual.
A união estável, não corresponde a um qualquer negócio formal, antes representa uma situação de facto, à qual o legislador veio atribuir múltiplos efeitos jurídicos, que os companheiros podem querer invocar e deles se prevalecer, em que, pela natureza da situação podem confrontar-se com a dificuldade de fazer a prova da sua “entidade familiar” designadamente perante os organismos oficiais que a exigem.[4]
Diz-nos o Acórdão do TRL de 11/12/2019 no proc. 1807/19.0YRLSB-7 in www.dgsi.pt : “Nos termos do art. 215º do Código Civil Brasileiro, a escritura pública, lavrada em notas de tabelião, é documento dotado de fé pública, fazendo prova plena. Conforme refere Ronan Cardoso Naves Neto, A União Estável nas Serventias Extrajudiciais, 2017, pp. -7473, «(…) a escritura pública declaratória de união estável, apesar de não possuir presunção absoluta de veracidade, serve de prova pré-constituída da existência da união estável, uma vez que incide fé pública sobre a declaração dos companheiros no tocante à convivência pública, contínua, duradoura e com o objetivo de constituir família. Assim, constitui instrumento apto a disciplinar as relações patrimoniais entre os conviventes. (…) Não obstante a força probante da escritura pública declaratória de união estável, certo é que apenas o registro de tal documento no registro público é que operará efeitos em relação a terceiros e cognoscibilidade das demais pessoas acerca de tal relacionamento familiar. Repise-se que, embora destituído dos atributos dos documentos públicos, é possível que os conviventes formalizem seu relacionamento afetivo através de documento particular devidamente assinado. Todavia, imprescindível é que tais documentos tenham ingresso no registro público para que operem efeitos contra terceiros de boa-fé.».
Com o objetivo de esclarecer dúvidas que vinham surgindo quanto à necessidade do registo da escritura pública declaratória da união estável, veio o Conselho Nacional de Justiça emitir o Provimento nº 37, afirmando como facultativo o registo da união estável (art.º 1º), mais esclarecendo que “O registro da sentença declaratória de reconhecimento e dissolução, ou extinção, bem como da escritura pública de contrato e distrato envolvendo união estável, será feito no Livro "E", pelo Oficial do Registro Civil” (art.º 2º).
Após avaliar o regime jurídico brasileiro da união estável, conclui com toda a clareza o citado Acórdão do TRL: “Desta breve incursão no ordenamento jurídico brasileiro, infere-se o seguinte. Em primeiro lugar, a união estável é erigida à qualidade de entidade familiar, podendo ser constituída por escritura pública perante tabelião de notas. Essa escritura pública – como foi o caso – integra um verdadeiro contrato, designadamente com disposições sobre as relações patrimoniais entre os companheiros. Esse contrato pode ser objeto de registo, colhendo então efeitos perante terceiros. A lei processual equipara a extinção consensual da união estável aos casos de divórcio consensual, podendo efetuar-se todos por escritura pública, a qual não depende de homologação judicial. Ou seja, a ordem jurídica brasileira atribui efeitos e reconhece a união estável, formalizada por escritura pública, sem necessidade de intervenção judicial. E, no que tange quer à extinção do casamento por divórcio consensual quer à extinção da união estável, não exige que as escrituras que os determinam sejam objeto de homologação judicial.”
Tal como enfatiza o Acórdão do TRL de 23/01/2020 no proc. 3106/19.9YRLSB, relatado pela aqui 1ª adjunta: “A certidão de escritura pública declaratória de união estável é o documento emitido pelo Tabelionato de Notas que certifica e dá fé pública à Declaração de União Estável ora lavrada. Trata-se de um documento público declaratório firmado pelos conviventes no Tabelionato de Notas, que oficializa a união estável (cf. artigos 215.º a 218.º do Código Civil Brasileiro). É este documento que, nessa parte e medida, é equiparado a uma sentença, à semelhança do que acontece com a escritura pública de divórcio lavrada em Tabelionato de Notas brasileiro (…) Ainda que pela escritura pública declaratória de união estável os outorgantes também possam definir regras aplicáveis à sua relação, como regime de bens, cláusulas, pagamento de pensão, titularidade de bens [como aliás acontece com este nosso caso], isso não deve obstar à possibilidade da sua revisão e confirmação, à semelhança do que sucede, aliás, com as escrituras públicas de divórcio, que, para além do divórcio, também podem incidir sobre outros aspetos, designadamente a partilha dos bens do casal, sendo certo que a revisão destas últimas vem sendo concedida nos tribunais superiores portugueses, sem que tenhamos notícia de jurisprudência em contrário.”
No mesmo sentido pronunciou-se o Acórdão de 23/01/2020 no proc. 2718/19.5YRLSB relatado pela aqui 2ª adjunta, onde se refere: “O que nos parece evidente é que este documento não pode deixar de ser equiparado a uma decisão sobre direitos privados, à semelhança do que sucede com a escritura pública de divórcio lavrada em Tabelionato de Notas brasileiro, estando bem distante do valor da declaração da Junta de Freguesia prevista no artigo 2.º-A da Lei n.º 7/2001, de 11 de maio. Em ambas as escrituras se verifica a intervenção de oficial público com repercussão performativa na ordem jurídica em que é prevista e praticada. Assim, tal como sucede com a escritura de divórcio consensual, também na escritura declaratória de união estável a intervenção do oficial público prevista na ordem jurídica brasileira autoriza a inscrição no registo da situação de facto e os outorgantes podem definir regras específicas para gerir os efeitos patrimoniais da relação.”[5]
Com relevância para a determinação do âmbito deste processo especial de revisão de sentença estrangeira, na interpretação da expressão “decisão sobre direitos privados” que consta do art.º 978.º n.º 1 do CPC não podemos deixar de levar em consideração a tendência a que temos vindo a assistir de desjudicialização em certas áreas, particularmente no âmbito do direito da família, em que o legislador atribui competência de intervenção a outras entidades públicas em detrimento dos tribunais.[6]
É na sequência desta situação que o conceito de decisão e de sentença previsto no art.º 978.º n.º 1 do CPC tem de ser avaliado. Tal como nos diz o Acórdão do STJ de 29/03/2011 in CJ/STJ 2011, Vol. I, pág. 156: “Deve ser aceite a prova documental estrangeira que suporte a decisão revidenda, ainda que formalmente não seja um decalque daquilo que na lei interna nacional preenche o conceito de sentença.
Não podemos deixar de chamar a atenção para o Acórdão do TRL de 21/11/2019 no proc. 1429/19.6YRLSB-2 in www.dgsi.pt que subscrevemos como adjunta, com uma análise exaustiva da jurisprudência sobre esta questão controvertida e a possibilitar o amplo conhecimento dos argumentos que se alinham em cada uma das diferentes posições que têm vindo a ser tomadas nos nossos tribunais, e para o qual se remete, onde se diz: “A expressão “decisões”, usada pelo art. 978/1 do CPC, vem sido entendida, desde há mais de 30 anos, como “acto caucionado administrativamente pela ordem jurídica em que foi produzido” (na expressão dos dois acórdãos do STJ de Maio e Junho de 2013). Esta conclusão é aceite pelos três recentes acórdãos do STJ e pelo ac. do TRL, todos de 2019. Ou seja, aceita-se que o divórcio, quando não seja decretado por uma sentença judicial, resulte de maneira contratual, através das declarações dos outorgantes, se isso for assim admitido na ordem jurídica competente. Basta que tenha havido uma qualquer intervenção no processo de uma entidade administrativa ou religiosa. O mesmo resultado é aceite no Brasil e em Espanha. (…) Servindo a escritura declaratória para o registo civil e para a aquisição da situação vantajosa correspondente, não há razão para tirar quaisquer consequências do facto de tal escritura ser um acto constativo, pois que o próprio ac. do STJ de 28/02/2019, o primeiro a fazer a distinção destes actos com os actos performativos, expressamente diz que “o sentido do termo decisão dos arts. 978 e 980 deve interpretar-se em termos de abranger, p. ex., as decisões que reconhecem uma determinada circunstância ou uma determinada qualidade.” Sendo inegável, depois de tudo o que consta acima, que a escritura declaratória é uma escritura que reconhece uma situação juridicamente relevante.”
No mesmo sentido pronuncia-se o Acórdão do TRL de 21/11/2019 no proc. 1899/19.2YRLSB-6 in www.dgsi.pt que de modo sintético, com clareza e com argumentação em que nos revemos, nos diz: “A questão é assim a de saber qual o alcance desta intervenção da autoridade pública e, bem assim, se essa intervenção pode ser assimilada ao conceito de decisão. Na expressão do acórdão desta Relação de 24 de Outubro de 2019, na senda de arestos anteriores do Supremo Tribunal de Justiça, trata-se de saber se a intervenção constitui um mero acto de verificação ou se tem natureza performativa. Diga-se que se entende que essa natureza performativa pode decorrer de o acto do oficial público alterar a realidade jurídica em si mesma – constituir a relação jurídica até aí inexistente – ou alterar os efeitos jurídicos da situação fáctica. No caso, a intervenção do oficial público, do Notário, não é constitutiva da união de facto, não declara a união de facto ao mesmo título a que o oficial público declara o casamento ou o divórcio (quando o não seja por escritura pública). No primeiro caso, a união estável existe antes da intervenção do oficial público, não se constitui por esta intervenção. No segundo caso, a situação é constituída pela intervenção, o acto tem virtualidade de modificação da realidade: o casamento cessa pela declaração de divórcio. Ou seja, o que importa é averiguar quais os efeitos da intervenção do oficial público na ordem jurídica em que essa mesma intervenção está prevista: os efeitos são de mera recepção das declarações e avaliação formal da capacidade de quem as emite ou têm repercussão externa, constituindo um plus face à mera declaração. Sendo que esse plus não pode residir na mera força probatória acrescida atribuída às declarações presenciadas pelo oficial público. Ora, no caso da escritura declaratória de união estável, a intervenção do oficial público envolve mais do que a força probatória acrescida, uma vez que autoriza, nomeadamente, o registo da situação de união de facto e a usufruição de direitos e privilégios atribuídos em razão dessa situação. (…) Em suma, a evolução do entendimento do que seja decisão sobre direitos privados proferida por tribunal estrangeiro, implica já a ultrapassagem da dicotomia intervenção constativa ou performativa do oficial público para exigir uma outra ordem de classificação: intervenção de oficial público com ou sem repercussão performativa na ordem jurídica em que é prevista e praticada. Esta a fronteira a estabelecer para a admissibilidade da revisão, ultrapassada como está a da decisão judicial em sentido estrito e, bem assim, a da decisão de oficial público não tribunal. Na verdade, a revisão de sentença estrangeira tem uma razão de ser que decorre desde logo do artigo 978.º, n.º 1, do Código de Processo Civil: nenhuma decisão (…) tem eficácia em Portugal (…) sem estar revista e confirmada. A tónica é colocada na eficácia em território português. Admitindo, como a jurisprudência portuguesa admite, o alargamento da noção de decisão judicial à decisão de órgão público caucionada nos seus efeitos pelo sistema jurídico, é esta dimensão performativa que importa – intervenção com efeitos no sistema jurídico em que é prevista e realizada.”[7]
Em face do que fica exposto, no enunciado da jurisprudência, meramente exemplificativa, com a qual nos identificamos e de que lançámos mão por se entender não se justificar estar a dizer as mesmas coisas de outra forma, não podemos deixar de concluir a respeito da questão da revisão da escritura pública declaratória da união estável, nos mesmos termos em que o fez o Acórdão do STJ de 29/01/2019 no proc. 896/18.0YRLSB.S1 in www.dgsi.pt: “Uma vez emitida pela autoridade administrativa estrangeira legalmente competente para o efeito, uma tal escritura pública tem, no ordenamento jurídico daquele país, força igual à de um sentença que reconheça uma «união estável homoafetiva» e, assim, deve ser considerada como uma decisão sobre direitos privados abrangida pela previsão do art. 978º, nº 1, do CPC, carecendo de revisão para produzir efeitos em Portugal.” Deste acórdão do STJ foi extraído o seguinte sumário[8]:
“I - A escritura pública, lavrada em cartório do Registo Civil situado no Brasil, que reconhece a “união estável e de endereço comum” entre uma pessoa com nacionalidade brasileira e outra com nacionalidade portuguesa, tem no ordenamento jurídico brasileiro força idêntica a uma sentença.
II - Verificados os requisitos previstos no art. 980.º do CPC, e não relevando saber se a referida escritura é suficiente para atribuir nacionalidade portuguesa ao membro com nacionalidade brasileira, como pretendido, deve a mesma ser revista e confirmada por tribunal português.”
Assim, verifica-se estarem reunidos todos os requisitos necessários à revisão e confirmação da escritura pública declaratória da união estável brasileira nos termos requeridos, de modo a que a mesma possa produzir efeitos em Portugal.
(…).»
Como referimos supra, com base na basta argumentação expendida no acórdão que, em grande parte, transcrevemos, somos hoje do entendimento de que as “escrituras de união estável” são passíveis de serem revistas ao abrigo do nosso processo de revisão de sentenças estrangeiras.
Assinalámos - com destaque a Negrito - as passagens dos diversos acórdãos que se nos revelam de maior significância no sentido do deferimento da pretensão de revisão, sendo que as principais razões se poderão sintetizar, nos seguintes pontos:
. O facto da “união estável” ter consagração no ordenamento jurídico brasileiro, nomeadamente no seu Código Civil, considerando-a entidade familiar, sendo-lhe atribuídos efeitos jurídicos, designadamente de âmbito patrimonial;
. A existência de um paralelismo com outras situações – como seja o caso do “divórcio consensual”, também ele celebrado por escritura pública meramente declaratória não carecida de homologação judicial – em que a nossa jurisprudência tem admitido a sua revisão e confirmação à luz do art.º 978.º e seguintes do CPC.
. A opção legislativa (nacional e estrangeira) no sentido de uma cada vez maior desjudicialização de algumas áreas do ordenamento jurídico, designadamente na área do direito da família, e que o legislador atribui competências de intervenção a outras entidades que não os tribunais;
. O facto da “Escritura de União Estável” ser uma escritura declaratória, mas que reconhece uma situação juridicamente relevante no seu país de origem e que pode ter reflexos fora dele;
. O facto do processo de Revisão de Sentença Estrangeira ter como uma das suas principais finalidades tornar eficazes em território nacional “decisões” de países estrangeiros (art.º 978.º do CPC) que assumam relevância jurídica.
III - Decisão   
Por tudo o que se deixa dito, os juízes desembargadores que integram este colectivo acordam em, deferindo ao pedido, confirmar a “Escritura Declaratória de União Estável”, datada de … de janeiro de 2011, que formalizou o reconhecimento da união estável dos Requerentes LA… e IA…, que passa a ter eficácia na ordem jurídica portuguesa.
Fixa-se à causa o valor processual de €30 000,01.
Custas pelos requerentes.

Lisboa, 21 de Maio de 2020
José Maria Sousa Pinto
João Vaz Gomes
Jorge Leal
_______________________________________________________
[1] Ac. deste Tribunal de 26-09-2019, proferido no P.º 1777-19.5YRLSB, disponível em www.dgsi.pt
[2] Acórdãos do STJ de 09/05/2019, (Proc.º 828/18.5YRLSB.S1), de 28 de Fevereiro de 2019 (processo n.º 106/18.0YRCBR.S1) e de 21 de Março de 2019 (Nos processos n.º 559/18.6YRLSB.S1 e 925/18.7YRLSB-A.S1), todos eles disponíveis em www.dgsi.pt .
[3] Vejam-se, meramente a título de exemplo, os acórdãos proferidos nos Procs.: 2403/19.8YRLSB.L1-2 (de 24-10-2019), 1072/09.8YRLSB-7 (de 10-11-2019), 1429/19.6YRLSB-2 (de 21-11-19), 1899/19.2YRLSB-6 (também de 21-11-19), 2778/19.9YRLSB (de 11-12-2019),  1807/19.0YRLSB-7 (também de 11-12-2019) e 2718/19.5YRLSB-2 (de 23-01-20), todos eles disponíveis em www.dgsi.pt .
[4] Destaque a Negrito nosso.
[5] Destaque a Negrito nosso.
[6] Destaque a Negrito nosso.
[7] Destaque a Negrito nosso.
[8] Destaque a Negrito nosso.