Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
392/10.3JAFUN.L1-5
Relator: FILIPA MACEDO
Descritores: ABUSO SEXUAL DE CRIANÇAS
ACTO SEXUAL DE RELEVO
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 05/26/2015
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Texto Parcial: N
Meio Processual: RECURSO PENAL
Decisão: NÃO PROVIDO
Sumário: ABUSO SEXUAL AGRAVADO - ART.ºS 171.º n.º 2 e 177.º n.º 1 aL.ª a) DO CÓDIGO PENAL.
- DEFINIÇÃO DE ACTO SEXUAL DE RELEVO."

(Sumário elaborado pela Relatora)
Decisão Texto Parcial:
Decisão Texto Integral: CORDAM EM CONFERÊNCIA, OS JUÍZES DO TRIBUNAL DA RELAÇÃO DE LISBOA:



 I – RELATÓRIO:


1. – No processo supra referido do 2.º Juízo do Tribunal Judicial de St.ª Cruz, Madeira, foi proferido Acórdão, a fls 322 a 342, em 14/06/2013, que decidiu:

( … )

I. Condenar o arguido E. como autor de um crime de abuso sexual de crianças agravado p.p. nos artigos 171 n° 2 c 177 n° 1 - a) do CP, na pena de 5 (cinco) anos de prisão, cuja execução fica suspensa pelo período de 5 (cinco) anos a contar do trânsito em julgado do presente acórdão, mediante regime de prova assente num plano de reinserção social com imposição das seguintes regras de conduta:

i. não acompanhar, alojar ou receber as menores S. (ofendida nos autos) e F., filhas do arguido e da testemunha T.;
ii. frequentar um programa de prevenção de risco de reiteração de crimes sexuais contra crianças;
iii. submeter-se a uma avaliação de risco, médico psicológica, que lhe for indicada pelos serviços de reinserção social, mediante o seu consentimento prévio e a prévia informação das finalidades da avaliação e das consequências da recusa de consentimento, que devem ter lugar na fase de execução da pena. ( … )

É do seguinte teor, tal Acórdão:

( … )

1. Segundo a acusação do Ministério Público, aos arguidos E. e M. é imputada a prática, como autores, de um crime de abuso sexual de criança, na modalidade agravada, p.p. nos artigos 26,171, n°s 1 e 2, e 177 n° 1 - a), do CP (Código Penal).

2. Os arguidos contestaram.

3. Realizou-se o julgamento com observância do formalismo legal.

4. Cumpre proferir sentença.

5. Não há questões prévias ou incidentais que obstem ao conhecimento do mérito.

Factos provados:


Da acusação:

6. No dia 21/2/2010, o arguido introduziu um dedo no ânus da menor S. (doravante também ofendida menor ou menor) e tocou na região ano-genital da menor, provocando-lhe uma cicatriz ao nível do grande lábio esquerdo.
7. Estes factos ocorreram durante uma visita da menor ao arguido, no interior da residência deste.
8. Depois destes acontecimentos, ao regressar à companhia da mãe, a menor mostrou-se agitada e urinou no vestuário que trajava.
9. A menor ofendida nasceu no dia 9/2/2006 e tinha à data dos factos 4 anos e 12 dias de idade.
10. Os factos acima descritos provocaram na menor repercussões traumáticas, não só pelos actos em si, como pelo facto dos mesmos advirem do seu próprio pai e de alguém com quem mantinha uma relação próxima, produzindo alterações no seu comportamento, nomeadamente, tornando-a uma criança pouco comunicativa e com dificuldades na interacção e em estabelecer relações de confiança com adultos, demonstrando reacções ansiosas.
11.A menor ofendida é filha do arguido e da N. O arguido e a N. mantiveram entre si uma relação amorosa tendo-se separado em meados de 2007.
12.Após a separação do casal a menor ofendida ficou a residir com a mãe e passou a visitar o pai algumas vezes aos fins-de-semana tendo sido neste contexto que ocorreram os factos acima descritos.
13.O arguido reside no Edifício A, Machico, onde também reside a sua companheira, a arguida M. .
14.Ao praticar os factos descritos, o arguido agiu de forma livre, voluntária e consciente, com o intuito de manter um contacto íntimo e de cariz sexual com a menor, não obstante ter conhecimento da idade da ofendida e dos laços de filiação que o uniam à mesma.
15.O arguido sabia que a sua conduta era proibida e punida por lei penal.
 
Da contestação:

16. Em 18 de Fevereiro de 2010 o arguido e a mãe da menor chegaram a acordo quanto à regulação das responsabilidades parentais das duas filhas menores que têm em comum.
17. A mãe das menores ficou insatisfeita com o valor dos alimentos constante desse acordo por considerar que a pensão de alimentos de 100,00 euros mensais para ambas as menores, era insuficiente.
18.Até então o arguido tinha procurado entregar 150,00 euros mensais de alimentos para as duas menores.
19.Entre a separação dos progenitores e o acordo de regulação das responsabilidades parentais, o arguido visitou as menores algumas vezes.
20.Após o acordo acima referido, o arguido teve as menores consigo pelo menos duas vezes, uma delas no dia 21/2/2010 e outra em Agosto de 2010. No dia 21/2/2010 as visitas ocorreram na presença da arguida e de outros familiares do arguido - a irmã, o cunhado e a mãe do arguido, que se encontravam na mesma residência.
21.Depois de Agosto de 2010 a progenitora das menores opôs-se a que o arguido levasse as menores consigo para casa.
22.Depois de instaurados os presentes autos o arguido viu as menores algumas vezes aos fim-de-semana, em locais públicos, nomeadamente num bar, perto da casa das menores, na presença da avó destas, com o consentimento da progenitora das menores, por períodos de duas a três horas.
23.Actualmente o arguido não visita as menores.
24.Os arguidos mantêm entre si uma relação amorosa desde 2009.
25.A mãe das menores e o arguido têm tido uma relação conflituosa pelo facto do valor da pensão de alimentos às menores ter sido reduzido, pelo menos desde a data do acordo de regulação das responsabilidades parentais acima mencionado.

Relativos aos antecedentes criminais e situação pessoal do arguido:

26.O arguido não tem antecedentes criminais.
27.O arguido nasceu em 24/9/75. Tem actualmente 37 anos de idade. É natural da Venezuela onde completou o ensino secundário. Em 2000 veio viver para a Madeira. Iniciou a carreira profissional como desportista num clube. Manteve um relacionamento afectivo com a N. até Julho de 2007. Desse relacionamento nasceram duas filhas, a menor S., nascida em 9/2/2006 e uma outra menor chamada F., nascida em 28/5/2008. Quando nasceu a menor F. a relação afectiva entre o arguido e a mãe da menor já tinha terminado. A gravidez foi fruto de um relacionamento sexual ocasional que não implicou reconciliação.
28.O arguido mora num apartamento T3 pertencente aos seus pais.O agregado familiar é composto pelo arguido e a companheira, pela irmã do arguido, o companheiro desta e um filho de ambos. Cada um dos núcleos familiares faz uma vida independente embora partilhe o espaço da habitação.
29. O arguido trabalha actualmente como pintor estucador. Tem um vínculo de trabalho estável com uma empresa de construção civil. A companheira trabalha regularmente. Contribuem ambos para as despesas domésticas. Entre o arguido e a companheira existem laços de afecto.
30. Perante os factos de que vem acusado a atitude do arguido é de negação e inconformismo. Deixou de visitar as filhas quando as visitas foram condicionadas à presença de uma pessoa de confiança das menores (a avó materna) e confinadas a um local público (um café ou a proximidade da Igreja nas imediações da casa da progenitora das menores), por considerar que dessa forma não tem privacidade nem um ambiente propício.

Relativos aos antecedentes criminais e situação pessoal da arguida:

31. No que diz respeito à arguida, uma vez que das deliberações do colectivo não resulta a necessidade de lhe aplicar uma pena ou medida de segurança, o Tribunal Colectivo não procede à leitura do relatório social nem do certificado de registo criminal juntos aos autos. Pelo que não se pronuncia nesta parte sobre os factos respeitantes à arguida.

Factos não provados.

Da acusação:

32.A arguida introduziu um dedo no ânus da menor e roçou os dedos na vagina da menor.
33.Os arguidos passaram os dedos pelo nariz da menor, dizendo-lhe que cheirava mal.
34.O eritema da região vulvar e a presença de escassa leucorreia esbranquiçada, encontrados na menor ofendida, foram devidos à actuação dos arguidos.
35.Em Agosto de 2010 o arguido bateu na menor.

Da contestação:

36. A progenitora da menor ofendida chamou puta e gorda à arguida e disse-lhe que as filhas não iam ter outra mãe.
37. Os parágrafos da acusação e da contestação, não mencionados nos factos provados ou não provados, são conclusivos, puramente instrumentais ou contêm alegações de direito.

Provas que serviram para fundamentar a convicção do Tribunal:

38. Na apreciação critica da prova o Tribunal seguirá de perto os ensinamentos e a experiência constantes da doutrina " O registo
das audições dos menores vítimas de abusos sexuais: primeiros
indicadores de avaliação da experiência de Bruxelas" Paul Somers
e Damien Vandermeersch, Infância e Juventude, N° 1/98 Janeiro -
- Março.


39. Os arguidos negaram a prática dos factos. Nas suas declarações reconhecem a generalidade das circunstâncias
apuradas, relativas às visitas das menores e ao conflito entre os
progenitores agudizado por causa da diminuição da prestação de
alimentos. Esclarecem que as menores (a ofendida e a irmã) nunca dormiram na casa onde moram os arguidos. Reconhecem que no
21/2/2010 ambas as menores passaram o dia na residência dos
arguidos com os restantes familiares do arguido que aí moram.
Em Agosto de 2010 estiveram com as menores apenas da parte
da manhã. Referem que nesse dia a menor ofendida se magoou numa máquina existente no café onde estavam. A mãe da menor
telefonou para saber o que se tinha passado. Negam ter batido na
menor ou ter-lhe puxado as orelhas.


40. Das suas declarações extrai-se que a animosidade existente entre o arguido e a progenitora das menores é recíproca.

41.O arguido referiu que, se a menor foi abusada não foi na sua casa nem foi ele o autor. A arguida, por seu lado, disse que a menor não dormiu a sesta no dia 21/2/2010. Só a irmã mais nova da menor, a F. é que dormiu. As suas declarações, ao quererem afastar a hipótese da menor ter estado no quarto do arguido nesse dia, não merecem credibilidade, pois estão em contradição com o depoimento da testemunha ML., irmã do arguido, que estava presente no dia 21/23/2010 na mesma casa, e que afirmou ter deitado a menor F. no seu quarto e que a menor S., aqui ofendida, foi para o quarto dos arguidos, a seguir ao almoço.

42. Sobre a questão da agressão à menor em Agosto de 2010, a mãe da menor, a testemunha N., quando ouvida, disse que a menor se queixou de ter sido a arguida quem lhe puxou uma orelha, quando regressou da visita ao pai. Não existem outros elementos de prova sobre esse facto. A testemunha MA., inspectora da polícia judiciária, que se ocupou da denúncia feita, esteve com a menor na altura mas não se recorda de ver nenhuma marca na orelha da menor. Do exame médico-legal a seguir mencionado, feito poucos dias depois dessa visita, não resulta que a menor tivesse alguma lesão na orelha. Na dúvida o Tribunal considera não provado que os arguidos tenham agredido a menor com um puxão de orelhas.

43. Das declarações para memória futura da menor, transcritas nos autos, nada se extrai quanto aos factos objecto dos autos. A menor na altura dos factos tinha quatro anos de idade. Os factos ocorreram em Fevereiro de 2010 e foram denunciados em Agosto de 2010. As declarações para memória futura foram colhidas em 14/12/2011, ou seja, mais de um ano após a denuncia dos factos. A inquirição de um menor em idade pré escolar, como era o caso, deve ter lugar num local apropriado, com a intervenção de especialistas, com ocultação dos restantes sujeitos processuais que têm o direito de assistir, e sempre que possível é aconselhável a gravação do som e da imagem, pois a linguagem gestual do menor é muito importante. Os Tribunais não dispõem de todas essas condições mas apenas de alguns meios, relativamente limitados. Os meios materiais e humanos disponíveis têm-se revelado na prática insuficientes para colher as declarações para memória futura e proceder à avaliação psicológica e psiquiátrica dos menores vítimas de abuso sexual, imediatamente após a denúncia dos factos, como seria desejável. Nestas circunstâncias, atenta a idade pré-escolar da menor, a recolha do seu relato por uma pedopsiquiatra parece ser o meio mais adequado para obtenção da prova sobre o abuso. A mesma foi feita cerca de dois anos após os factos. A perícia pedopsiquiátrica acresce a perícia médico-legal feita em 2/9/2010. Esta teve lugar seis meses após os factos e dois dias após a sua denúncia.

44.O exame médico psicológico feito às menores não substitui a decisão do Tribunal. Daí o confronto que se segue entre esse exame e os restantes elementos de prova. Na falta de elementos fornecidos pelo registo das declarações da menor para memória futura, no caso dos autos, a pedra angular da prova assenta na perícia pedopsiquiátrica e na perícia médico-legal. Da análise que se seguirá o Tribunal conclui que tais perícias permitiram por em evidência as consequências psicológicas e a lesão física em que a ofendida incorreu, e que as mesmas resultaram dos factos praticados pelo arguido. A técnica usada pela perita pedopsiquiatra e que o Tribunal considera adequada, assenta no postulado de que um relato baseado em acontecimentos reais é qualitativamente diferente de um relato fabricado ou sugerido, tendo em conta as especificidades mnésicas, cognitivas e afectivas da criança.

45. Dito isto, importa ter em conta o conflito existente entre os progenitores, como um factor capaz de indiciar a instrumentalização da menor que é necessário ponderar. O conflito não diz respeito à guarda da menor, pois não resulta das declarações do arguido nem do depoimento da mãe da menor, a testemunha N., que a questão da guarda os separasse. O conflito restringe-se aos alimentos e à periodicidade, duração e lugar das visitas. Perante esta circunstância, a questão que importa resolver é saber se a existência deste conflito levou a testemunha N., mãe da menor ofendida, a instrumentalizar a menor, convencendo esta a relatar um falso abuso com o objectivo de impedir as visitas ao pai. Para responder à questão o Tribunal procederá de seguida ao cruzamento da informação obtida, ou seja, à análise critica de todos os elementos de prova, quer provenientes da acusação quer da defesa: o relato dos arguidos já mencionado, a avaliação psicológica, a perícia pedopsiquiátrica, o relato das educadoras de infância, o exame médico-legal, os depoimentos das testemunhas ouvidas.

46. A perita AC., psicóloga, referiu que a menor apresentava sintomatologia ansiosa. Não efectuou a avaliação do abuso. No âmbito da sua avaliação esclarece que a sintomatologia ansiosa pode dever-se ao abuso sexual ou à existência dum conflito dos pais da menor quanto às visitas. Neste último caso, pode haver instrumentalização da criança. Mas quando isso acontece o relato da criança e o vocabulário que usa, são o do adulto. Esse factor ajuda a saber se houve instrumentalização. A avaliação desse relato e do respectivo vocabulário foram feitas pela pedopsiquiatra. A criança pode denunciar o abuso logo mas pode também fazê-lo mais tarde.

47.A perita CF., pedopsiquiatra, colheu o relato da menor no âmbito da perícia pedopsiquiátrica e indicou os factores usados para avaliar a credibilidade desse relato. Foram necessárias quatro sessões. A menor demonstrou ansiedade na primeira e na segunda sessão, dizendo que tinha um segredo dela e do pai. Mostrou-se dividida, querendo contar o segredo mas sentindo-se culpada. Na terceira sessão contou o abuso. Utilizou um vocabulário infantil, que a perita cita no seu relatório. Disse que o papá viu o seu "papinho", que tocou no "rabinho " com o dedo indicador. Referiu que foi só uma vez. A menor tinha seis anos na altura da avaliação e os factos ocorreram quando a menor tinha quatro anos. A perita disse que a menor lhe relatou que quem lhe tocou com o dedo no ânus foi o pai, negou que tivesse sido a companheira do pai. A menor ficou aliviada depois de ter contado os factos. A coerência, os detalhes, o segredo, o uso de vocabulário infantil, a sensação de alívio depois de ter contado os factos, são factores que apontam para a veracidade do relato da menor, segundo a perita.

48.A perita CF. refere ainda que o conflito dos progenitores quanto às visitas pode causar angustia na menor mas não ao ponto da mesma regredir no comportamento sexualizado, como fazer xixi na cama ou não querer tomar banho. Estes factores não foram verificados pela perita mas resultam do depoimento da mãe que a seguir será mencionado. Apontam para um trauma de cariz sexual. A perita refere ainda que se a criança fosse instrumentalizada pela mãe, por um lado, acabaria por dizer quem é que a mandou fazer o relato ao longo das sessões em que foi observada, por outro lado, não apresentaria sinais de angústia e de trauma como apresentou. A menor sabia que o facto de alguém lhe tocar nos órgãos genitais não está certo. Sentiu que estava a denunciar uma coisa má e a trair o pai. No caso do abuso não ter sido repetido o trauma é menor, a criança tende a recalcar e a esquecer. Há que ter em cuidado para não expor a menor à pessoa que teve comportamentos desadequados. Caso a menor volte a ver o pai há comportamentos que não podem repetir-se. Acresce que, segundo a perita, tem de haver muitas cautelas e é importante levar em conta que a criança poderá ter reservas em ver o pai.

49.A testemunha N., mãe da menor ofendida, confirmou a generalidade das circunstâncias apuradas no que diz respeito às visitas e às razões da denúncia feita. Disse que no dia 21/2/2010 a menor urinou pelas pernas, no tapete da sala, quando regressou da casa do pai. A partir daí passou a ter comportamentos que não eram habituais nela, como fazer xixi na cama, ter pesadelos, tentar sufocar a irmã com um edredão, atirar com o prato da comida para o chão, recusar tomar banho para que a mãe não lhe tocasse e numa ocasião, meter o seu próprio dedo no ânus dizendo que era o que o pai e a companheira lhe faziam. Este último episódio ocorreu em Agosto de 2010, após a visita da menor ao pai em que aquela se queixou que lhe tinham puxado uma orelha. Foi na sequência destas revelações da menor que a testemunha fez a denúncia. Referiu que desde então a menor tem acompanhamento psicológico e psiquiátrico.

50. A testemunha N. reconheceu o conflito que tem com o pai das menores e explicou que o mesmo se deve ao facto de considerar uma barbaridade (segundo as suas palavras) que o pai pague 180,00 euros de prestação para o carro e que tenha reduzido a pensão de alimentos para as duas filhas em conjunto, de 150,00 euros para 100,00 euros. Do seu depoimento não resultam outros factores de animosidade em relação ao arguido além da divergência quanto ao valor dos alimentos que paga às filhas. Pareceu sinceramente preocupada com o bem-estar da menor.

51. As testemunhas BP. e MN., foram educadoras de infância da menor nos anos lectivos de 2010/2011 e 2011/2012. Referem que por vezes a menor vinha mais agitada. Isso acontecia às segundas-feiras. Quando contactavam a mãe para tentar resolver o assunto esta explicava que a menor tinha visto o pai no fim-de-semana anterior. Acontecia também depois das avaliações psicológicas. A menor regrediu na aprendizagem, era uma criança fechada, por vezes apática e com reacções agressivas para com as outras crianças. A menor disse à educadora BP. que não tinha pai e nessa altura fez um gesto com a mão para cima e para baixo. A testemunha repetiu o gesto da menor em audiência. Era o de um homem a masturbar o pénis. Quando a educadora MN. pediu à menor que dissesse uma mensagem destinada ao pai, para dia do pai, a menor ficou calada. A educadora perguntou-lhe se não brincava com o pai e a menor disse que o pai tinha brincadeiras tolas.

52.O relato das duas educadoras de infância foi isento, sereno, coerente e mereceu credibilidade. As mesmas acompanharam a menor ao longo de dois anos lectivos. Resulta das declarações dos arguidos, dos depoimentos da mãe da menor e das testemunhas indicadas pela defesa que a seguir serão analisados, que depois de Agosto de 2010 a menor ainda viu o pai algumas vezes, embora por poucas horas, em locais públicos e na presença de alguém de confiança. O que torna plausíveis as alterações de comportamento na escola, nas segundas-feiras que se seguiam a essas visitas. Por outro lado, o depoimento das educadoras é coerente com o depoimento da mãe das menores, no que diz respeito à regressão no comportamento da menor, quer em casa (segundo a mãe) quer na escola (segundo as educadoras).

53. As testemunhas indicadas pela defesa confirmam em geral as circunstâncias em que decorriam as visitas da menor ao arguido, embora todas neguem que os arguidos tenham praticado os factos.

54. Assim, a testemunha FN., irmão da arguida, disse que o conflito entre os progenitores se deve ao facto do arguido ter diminuído a pensão de alimentos de 150,00 euros para 100,00 euros. Confirma que depois da instauração destes autos o arguido ainda viu as filhas num bar, na presença da avó.

55. A testemunha MI., amiga dos arguidos, referiu que a arguida e a mãe das menores não têm qualquer relacionamento entre si. Depôs em abono da arguida.

56. A testemunha CP., cunhada da arguida, depôs em abono de ambos os arguidos, referindo que lhes confiaria o filho. Disse que a mãe da menor enviou mensagens a chamar nomes feios à arguida mas não referiu concretamente que nomes. Sobre essa questão o seu depoimento foi lacónico e não serviu para fundamentar a convicção do Tribunal. A arguida, quando ouvida disse que a mãe da menor enviou uma mensagem ao arguido dizendo que a companheira tinha sida e indicou como motivo para a actuação da mãe da menor o facto de ter ciúmes. Mas a prova produzida sobre estas circunstâncias é vaga e insuficiente. Ainda que se tivesse apurado que a mãe da menor sentiu ciúmes da arguida ou a injuriou, quod non, resulta da perícia pedopsiquiátrica feita à menor que esta não foi instrumentalizada pela mãe para relatar um falso abuso.

57.A testemunha ML., irmã do arguido, confirma que a menor e a irmã estiveram na casa onde moram os arguidos no dia 21/2/2010. Na mesma casa estavam a testemunha, o seu companheiro e a mãe da testemunha e do arguido. A testemunha nesse dia foi com o arguido buscar as menores a casa da mãe destas. Estavam presentes todos os familiares que moram com o arguido. Depois do almoço, a testemunha deitou a F., irmã da menor, no seu quarto e a S. foi para o quarto dos arguidos. A testemunha refere que a porta do quarto dos arguidos ficou aberta e que se aconteceu alguma coisa não foi na sua casa.

58.Do seu depoimento o Tribunal conclui que a menor ofendida, no dia 21/2/2010, foi para o quarto dos arguidos a seguir ao almoço a pretexto de dormir a sesta. O facto da testemunha ML. referir que a porta ficou aberta não merece credibilidade pois a testemunha, embora reconhecendo que a menor esteve no quarto do irmão, quer evitar incriminá-lo. A testemunha referiu que a menor ficou pouco tempo no quarto do arguido, não quis dormir. As menores traziam roupa para trocar e nesse dia trocaram-lhes a roupa à frente de toda a gente que estava lá em casa.

59.A testemunha RA., companheiro da irmã do arguido, confirma as circunstâncias em que decorreu a visita das menores no dia 21/2/2010. Disse que as menores entraram nos quartos mas as portas estavam abertas. A S., a menor ofendida, nunca ficou fechada no quarto com o pai. Nesta parte o seu depoimento não mereceu credibilidade pelos motivos acima indicados na análise do depoimento da testemunha ML.

60. Na verdade, da prova pericial a seguir mencionada, resulta a veracidade do abuso relatado pela menor. Pelo que, quando confrontados com esta prova, os depoimentos das testemunhas ML. e RA., na parte em que referem que a porta do quarto do arguido esteve sempre aberta enquanto ali permaneceu a menor, não merecem credibilidade. O que se extrai dos seus depoimentos é que a menor ofendida esteve no quarto do pai a seguir ao almoço e foi nesse contexto que ocorreu o abuso apurado. A partir desse dia a menor regrediu no comportamento em casa. Meses mais tarde, em Agosto de 2010, veio a denunciar o abuso na sequência de uma outra visita ao pai. Em Setembro, no início do ano lectivo de 2010/2011, deu indicadores de regressão do comportamento na escola. É o que resulta dos meios de prova acima analisados corroborados pela perícia médico-legal a seguir mencionada.

61. A prova pericial junta a fls. 18 a 21 consiste no exame médico-legal feito à menor em 2/9/2010, na sequência das queixas da menor e do seu primeiro relato do abuso feito à mãe em Agosto de 2010. Este exame detectou, na região ano-genital, a presença de uma cicatriz ao nível do grande lábio esquerdo, de aspecto não recente, podia ter sido causada há três semanas ou há seis meses. Resulta da perícia que esta lesão poderá ser compatível com o abuso objecto dos presentes autos. Ou seja, a menor tinha uma cicatriz na região ano-genital, no grande lábio esquerdo. A mesma terá sido produzida por instrumento contundente ou actuando como tal, não sendo possível identificar o objecto em concreto. O Tribunal conclui que essa lesão no grande lábio esquerdo foi causada pelo arguido, uma vez que da perícia pedopsiquiátrica junta a fls. 213 a 220 resulta que a menor relatou o abuso cometido pelo arguido e os indicadores de veracidade do seu relato são muito fortes. Quanto à data e às circunstâncias em que decorreu o abuso, as mesmas resultam da prova pessoal acima analisada.

62. Não há elementos no relatório médico-legal e nos restantes meios de prova produzidos, que permitam ao Tribunal concluir que as equimoses e o eritema da região vulvar, encontrados na menor, sejam consequência da actuação do arguido. Não existe prova de que a arguida tenha participado no abuso cometido.

63. Do relatório de avaliação psicológica junto a fls. 208 a 212, resulta a necessidade de cruzar essa avaliação com os demais elementos de prova, tal como fez o Tribunal.

64. A perícia pedopsiquiátrica junta a fls. 213 a 220, decorreu em várias sessões. Na mesma foi colhido o relato da menor sobre o abuso. A perícia cita o vocabulário usado pela menor, as perguntas que lhe foram feitas e as respostas que deu à pedopsiquiatra. São mencionados a metodologia usada e o número de sessões. Foram especificamente avaliados os indicadores de veracidade do discurso da menor. Foram levados em conta e interpretados os resultados da avaliação psicológica acima mencionada. A conclusão é que a menor produziu um relato com fortes indicadores de veracidade do testemunho.

65.O relatório comportamental das educadoras de infância junto a fls. 205, corrobora a existência de alterações do comportamento da menor na escola que as deixaram apreensivas. O que consta dessa informação foi corroborado pelas duas educadoras que depuseram como testemunhas em audiência.

66. A defesa, na contestação, alega que o pai não interveio na avaliação psicológica e na perícia psiquiátrica feita à menor, contrariamente ao que sucedeu com a progenitora. A este propósito importa esclarecer o seguinte: a avaliação psicológica foi um dos elementos clínicos pedidos pela pedopsiquiatra no contexto da perícia psiquiátrica que efectuou à menor e não aos progenitores; no relatório de avaliação psicológica de fls. 208 a 212 são referidos especificadamente os dados colhidos junto da mãe da menor e aqueles que foram observados directamente na menor; resulta dos relatórios de fls. 208 a 220 que os dados contextuais foram recolhidos junto da mãe que acompanhou a menor às entrevistas e ainda com base nos elementos processuais enviados às peritas; esses dados referem-se à situação familiar da menor e a outros indicadores de alteração de comportamento que não foram constatados pelas peritas como estas mesmas referem; a perícia pedopsiquiátrica de fls. 213 a 210 refere inequivocamente que "Nesta perícia foi avaliada a credibilidade do testemunho da menor. A da mãe (e adultos) está fora do âmbito das Perícias Pedopsiquiátricas". O relatório remete para quem de direito - neste caso o Tribunal - o cruzamento do testemunho da mãe com outros testemunhos sobre os mesmos factos relatados pela mãe - cf fls. 219, ponto 4 do relatório.

67. Do exposto resulta que as peritas foram isentas. O relato da mãe, tal como a notícia do crime, serviu para contextualizar os acontecimentos. Na perícia pedopsiquiátrica, a entrevista com a mãe e os dados obtidos na mesma, são mencionados separadamente a fls. 214 e 215 primeira parte, do relatório. De modo que o Tribunal consegue distinguir claramente o que foi dito às peritas pela mãe do que foi dito pela menor. O que foi dito pela mãe só pode servir de meio de prova se a mãe das menores depuser como testemunha em audiência, o que aconteceu - artigo 129 n° 1 do CPP.

68.Resulta inequivocamente do relatório de perícia pedopsiquiátrica de fls. 213 a 220, que a perícia não se baseou no relato da progenitora para concluir pela veracidade do relato da menor. Os indicadores de veracidade do relato da menor são outros e estão indicados a fls. 217 a 218, pontos VI e VII.

69. Uma vez que o relatório pedopsiquiátrico não teve por finalidade avaliar o relato de nenhum dos progenitores, a única finalidade que poderia ter a intervenção do pai na realização da perícia, seria a de relatar a situação familiar da menor e o contexto em que decorriam as visitas. Ora nessa parte, o relato da mãe e do pai da menor são em geral coincidentes. Na parte em que não coincidem, ou seja, na parte em que a mãe refere outros indicadores de alteração de comportamento da menor (em casa e na escola) não presenciados pelas peritas, estas limitam-se a interpretá-los (caso existam) remetendo porém para o Tribunal a tarefa de julgar se tais indicadores ocorreram ou não na realidade. A prova dos mesmos resulta, não da perícia, mas dos depoimentos da mãe e das educadoras, prestados em audiência. A perícia pedopsiquiátrica serviu para prova da veracidade do relato da menor feito à perita. Não resulta dos relatórios que mãe da menor tenha sequer assistido à avaliação da menor. A progenitora forneceu informações prévias, preliminares à intervenção das peritas junto da menor.

70. O que parece extrair-se da alegação da defesa sobre esta questão é que o arguido tem o direito de exercer o contraditório. Nesse contexto, o contraditório foi assegurado na fase da audiência, as peritas foram especificamente inquiridas sobre a questão da instrumentalização da menor e contra inquiridas pela defesa. Resulta dos esclarecimentos que prestaram que a hipótese da instrumentalização é de excluir.

71. Da análise critica de todos os elementos de prova acima mencionados, o Tribunal conclui que a menor não foi instrumentalizada pela mãe. Não obstante a existência de um conflito entre os progenitores quanto ao montante da pensão de alimentos, o certo é que a menor apresentava uma cicatriz no grande lábio esquerdo e que a perícia pedopsiquiátrica conclui que há fortes indicadores da veracidade do relato do abuso feito pela menor. Relato em que a menor referiu que o pai lhe introduziu o dedo indicador no ânus. Não existe prova abundante de que as dificuldades postas pela mãe às visitas das menores ao pai se devessem a outros factores que não fossem essencialmente o bem-estar das menores. A perita pedopsiquiatra, quando ouvida em audiência, referiu os motivos que a levam a afastar a hipótese de instrumentalização da menor pela mãe. As declarações dos arguidos e das testemunhas de defesa, que negam os factos, não são suficientes para fundamentar a divergência do Tribunal em relação ao juízo técnico-científico dos peritos - artigo 163 do CPP (Código de Processo Penal). Pelo contrário, os depoimentos das educadoras de infância confirmam a existência de indicadores de alteração de comportamento da menor na escola. O que confere credibilidade ao relato da mãe, que menciona alterações de comportamento da menor em casa posteriormente ao abuso. A irmã do arguido e o companheiro desta reconhecem que no dia dos factos a menor foi para o quarto do arguido a pretexto de dormir a sesta, conforme já foi mencionado. A perícia médico-legal refere a existência de uma cicatriz na zona ano-genital compatível com o abuso relatado pela menor à pedopsiquiatra. Nestas circunstâncias, os resultados da perícia pedopsiquiátrica e da perícia médico-legal, presumem-se subtraídos à livre apreciação do Tribunal.

72. A certidão de nascimento da menor junta a fls. 11 e 12, da qual resulta a idade da menor e a filiação.

73.O certificado de registo criminal junto a fls. 255 do qual resulta que o arguido não tem antecedentes criminais.

74.O relatório social junto na fase do julgamento, quanto à situação pessoal, familiar e profissional do arguido.

75. Os factos não provados não resultam de forma convincente dos elementos de prova analisados. Em particular, não existe prova de que a arguida tenha participado no abuso. Não ficou muito claro se estava dentro do quarto com o arguido e a menor ou se aí esteve durante todo o tempo. Daí a resposta negativa dada pelo Tribunal sobre a autoria da arguida.

76. Quanto à cicatriz no grande lábio esquerdo na zona ano-genital da menor, examinada na perícia médico-legal, o Tribunal ficou convicto de que foi provocada por actuação do arguido. Mas ignora se o arguido o fez com os dedos, com outra parte do corpo ou com outro objecto. Daí a resposta restritiva dada sobre esta questão.

Relevância jurídico criminal dos factos.

Responsabilidade criminal do arguido-

77. É a seguinte a redacção dos artigos 171 n°s 1 e 2 e 177 n° 1 - a) do CP:
"Artigo 171°Abuso Sexual de Crianças
1 - Quem praticar acto sexual de relevo com ou em menor de 14 anos, ou o levar a praticá-lo com outra pessoa, é punido com pena de prisão de um a oito anos.
2 - Se o acto sexual de relevo consistir em cópula, coito anal, coito oral ou introdução vaginal ou anal de partes do corpo ou objectos, o agente é punido com pena de prisão de três a dez anos. "

Artigo 177° Agravação

- As penas previstas nos artigos 163.° a 165." e 167." a 176. ° são agravadas de um terço, nos seus limites mínimo e máximo, se a vítima:
a) For ascendente, descendente, adoptante, adoptado, parente ou afim até ao segundo grau do agente ".
78. O arguido incorreu na prática do crime de abuso sexual de crianças agravado, previsto nas disposições legais acima citadas. A agravação prevista no artigo 177 n° 1 - a) do CP decorre da circunstância do arguido ser pai da menor ofendida.

79. O arguido agiu como autor - artigo 26 do CP. Com dolo directo - artigo 14 n° 1 do CP. O dolo do arguido tem de abranger, como abrangeu, todos os elementos do tipo objectivo de ilícito, incluindo a idade da vítima e a relação de filiação que o unia à mesma.

80.O bem jurídico protegido pelas incriminações citadas é a autodeterminação sexual mas aqui sob uma forma particular, não face a condutas que representem extorsão de contactos sexuais de forma coactiva, mas face a condutas de natureza sexual que, tendo em conta a pouca idade da vítima, podem, mesmo sem coacção, prejudicar gravemente o livre desenvolvimento da sua personalidade (cf. Comentário Conimbricense do Código Penal, parte especial, tomo I, dirigido por Jorge de Figueiredo Dias, Coimbra Editora, p. 541 a 553, que o Tribunal seguirá de perto na presente fundamentação).

81.O arguido introduziu um dedo no ânus da menor e tocou na região ano-genital da menor, provocando-lhe uma cicatriz ao nível do grande lábio esquerdo. Estes actos constituem actos sexuais de relevo. Acto sexual de relevo é aquele que de um ponto de vista predominantemente objectivo assume uma natureza, um conteúdo e um significado directamente relacionados com a esfera da sexualidade e que, desse modo, representa um entrave importante para a liberdade de determinação sexual da vítima (cf. loc. cit. p. 447 a 449). As consequências físicas e psicológicas do acto praticado na esfera da menor, acima apuradas, e as circunstâncias em que foi praticado o abuso, demonstram: em primeiro lugar, que de um ponto de vista predominantemente objectivo o mesmo assumiu uma natureza, um conteúdo e um significado directamente relacionados com a esfera da sexualidade; em segundo lugar, que o abuso praticado provocou comportamentos regressivos na menor, representando um entrave importante para a liberdade de determinação sexual da ofendida.

82. A introdução do dedo do arguido no ânus da menor integra a previsão do artigo 171-nº2 do CP.

83. A acusação improcede em relação à arguida por falta de prova.

Medida da pena:

84. A medida abstracta da pena aplicável ao arguido é de prisão de 4 anos até 13 anos e 4 meses.

85. Importa agora fixar a medida concreta da pena à luz dos factores previstos no artigo 71 do CP.

86. O dolo directo agrava a culpa. Os actos sexuais acima mencionados tornam média a ilicitude. Porém, as consequências físicas e psicológicas sofridas pela menor elevam a ilicitude. A ausência de antecedentes criminais, a circunstância do arguido contar com factores de protecção familiar e profissional, bem como o facto do arguido não manter actualmente contactos com a menor ofendida nem com a outra filha também menor, atenuam as exigências de prevenção especial. Atenta a natureza e as consequências do crime de abuso sexual cometido no contexto das relações familiares, as exigências de prevenção geral são muito elevadas.

87. Pelo que se afigura adequada a pena concreta de 5 anos de prisão.

88. Atendendo agora tão só às exigências de prevenção acima mencionadas e ao disposto nos artigos 50, 53 n° 3, 54 n° 3 e 52 n° 1 b), n° 2 - d) e n° 3 do CP, o Tribunal suspende a execução da pena de prisão por igual período de 5 anos, mediante regime de prova com imposição de regras de conduta. Os fundamentos desta decisão são os seguintes.

89. O arguido está sócio profissionalmente integrado. Já não contacta com a menor ofendida nem com a irmã desta, o que atenua o risco de repetição de crimes sexuais em crianças. Resulta dos considerandos 30, 31, 39 e dos artigos 3 n° 5, 9 b), 10 e 24, da Directiva 2011/92/UE do Parlamento Europeu e do Conselho, de 13 de Dezembro de 2011, relativa à luta contra o abuso sexual e a exploração sexual de crianças e a pornografia infantil, o seguinte: devem ser adoptadas medidas de apoio e protecção das crianças vítimas de abuso sexual; devem ser adoptadas medidas de inclusão, consecutivas à conduta, a fim de prevenir o risco de repetição; as medidas de prognose e prevenção de risco de reincidência de crimes sexuais contra crianças podem ser aplicadas no decurso do processo penal; o condenado deve ser sujeito a uma avaliação de risco, mediante o seu consentimento prévio, a fim de ser determinado o programa de prevenção que deve seguir; a pessoa condenada deve ser impedida temporária ou permanentemente de exercer actividades que impliquem contactos directos e regulares com crianças.

90. A Directiva acabada de mencionar não é directamente aplicável, dirige-se aos Estados Membros. O que se extrai da mesma é que as exigências de prevenção geral são elevadas e o risco de reincidência é importante. Na prática os Estados Membros devem aplicar os instrumentos legais de que dispõem já para alcançar os objectivos previstos na Directiva. É nessa conformidade que o Tribunal interpreta o disposto no artigo 52 n° 1 - b), n° 2 - d) e n° 3 do CP e julga que as exigências de prevenção geral e especial podem ser satisfeitas mediante a imposição ao arguido de regras de conduta adequadas a prosseguir as finalidades da Directiva.

91. O arguido não exerce uma actividade que implique o contacto regular e directo com crianças. Porém, no âmbito da regulação das responsabilidades parentais pode ter contacto directo e regular não só com a menor ofendida como com a irmã mais nova desta, F, igualmente filha do arguido. O importante risco de reincidência considerado pela Directiva leva a mesma a impor aos Estados Membros que prevejam a proibição de contactos regulares e directos do condenado com menores. Acresce que a regra de conduta prevista no artigo 52 n° 2 - d) do CP não se refere a qualquer actividade profissional exercida pelo arguido e não se restringe às vítimas mas abrange na sua previsão as pessoas relativamente às quais se justifique a proibição de contacto directo, como é o caso de ambas as filhas menores do arguido.

92. Em consequência, o Tribunal impõe ao arguido as seguintes regras de conduta: não acompanhar, alojar ou receber as suas filhas menores S. (ofendida nos autos) e F.; frequentar um programa de prevenção de risco de reiteração de crimes sexuais contra crianças; submeter-se a uma avaliação de risco, médico psicológica, que lhe for indicada pelos serviços de reinserção social, mediante o seu consentimento prévio. As finalidades da avaliação de risco são a determinação do programa mais adequado de prevenção da reincidência de crimes de abuso sexual de crianças, a frequentar pelo arguido. Sem prejuízo do disposto no artigo 51 n° 3 do CP, a consequência da recusa de consentimento do arguido será o cumprimento efectivo da pena de prisão.

93. As regras de conduta acima mencionadas vigoram durante o período de suspensão da execução da pena cabendo aos serviços de reinserção social apoiar e fiscalizar o seu cumprimento no âmbito do plano de reinserção social. O Tribunal julga que a aplicação do regime de prova previsto no artigo 53 n° 3 do CP deve ser acompanhado da imposição das regras de conduta acima enunciadas, conforme prevê o artigo 54 n° 3 do CP. No caso em apreço, pelos motivos já expostos, as concretas regras de conduta acima mencionadas, mostram-se adequadas e convenientes a satisfazer as exigências de prevenção apuradas.

Decisão:

Acordam os Juízes do Tribunal Colectivo em julgar parcialmente procedente por provada a acusação e em conformidade

I. Condenar o arguido E. como autor de um crime de abuso sexual de crianças agravado p.p. nos artigos 171 n° 2 c 177 n° 1 - a) do CP, na pena de 5 (cinco) anos de prisão, cuja execução fica suspensa pelo período de 5 (cinco) anos a contar do trânsito em julgado do presente acórdão, mediante regime de prova assente num plano de reinserção social com imposição das seguintes regras de conduta:

iv. não acompanhar, alojar ou receber as menores S. (ofendida nos autos) e F., filhas do arguido e da testemunha N.;
v. frequentar um programa de prevenção de risco de reiteração de crimes sexuais contra crianças;
vi. submeter-se a uma avaliação de risco, médico psicológica, que lhe for indicada pelos serviços de reinserção social, mediante o seu consentimento prévio e a prévia informação das finalidades da avaliação e das consequências da recusa de consentimento, que devem ter lugar na fase de execução da pena

II. Condenar o arguido nas custas fixando em 2 Uc a taxa de justiça.

III. Absolver totalmente a arguida M. da acusação.

Medidas de coacção:

O Tribunal declara imediatamente extinta a medida de coacção (termo de identidade e residência) imposta à arguida M.
Mantém-se inalterada a medida de coacção imposta ao arguido (termo de identidade e residência) uma vez que não há indícios de que tenha restabelecido os contactos com a menor ofendida.
Após trânsito remeta cópia certificada do presente acórdão ao processo de Regulação das Responsabilidades Parentais das menores S. e F. acima mencionadas.


( … )

Deste Acórdão, recorreu o arguido – E., tendo apresentado motivações, das quais extraiu as suas “conclusões”:

( … )

1 - Houve erro notório na apreciação da prova, ao basear a decisão no relatório pedopsiquiátrico e na perícia médico-legal, o Tribunal a quo deu por provados factos que face as regras da experiência comum e lógica corrente não se podiam ter verificado.

2 - A sentença deve considera-se nula, em conformidade com o estatuído pelo artigo 379.°, n.° 1, alínea c) do CPP, por não se ter pronunciado sobre questões que deveria ter apreciado, nomeadamente os relatórios do Infantário constantes nas fls. 185 e ss dos autos.

3 - Houve violação do princípio in dúbio pro reo, uma vez que perante provas inconclusivas e não evidentes sobre a existência de crime por parte do arguido, em vez de valorá-las a favor do arguido o Tribunal a quo decidiu condená-lo.

4 - Com base nas declarações da menor constantes no relatório pedopsiquiátrico, contata-se que não existe crime, uma vez que não houve nenhum tipo de ato sexual de relevo, conforme a tipificação do crime descrito no artigo 171.° 2 do Código Penal, vigorando o princípio da nulla poena sine crime.

NESTES TERMOS, e nos melhores de direito, e com o sempre mui douto suprimento das V. Exas. deverá a douta sentença ser revogada ou mesmo declarada nula, na parte em que condenou ao ora recorrente, sendo o mesmo absolvido do crime de que foi condenado, fazendo-se assim devida JUSTIÇA!

( …)

3. – O Magistrado do M.P. da 1ª instância respondeu, que este recurso deve ser julgado improcedente.

4. – Neste Tribunal, a Digna P.G.A. emitiu “ parecer”, concordando com a posição do seu Colega da 1ª instância.

5. – Colhidos os vistos legais, realizou-se a conferência.
 
6. – O objecto do recurso, tal como se mostra delimitado pelas respectivas conclusões, é o seguinte:

   O recorrente alega:

    - erro notório na apreciação da prova;
    - que a sentença deve considera-se nula, de acordo com o artigo 379.°, n.° 1, alínea c) do CPP;
     - violação do princípio “in dubio pro reo”.
     - Entende, que não existe crime, de acordo com o artigo 171.° 2 do Código Penal, vigorando o princípio da nulla poena sine crime.
      - Pede que a Decisão seja revogada ou mesmo declarada nula, devendo o arguido ser absolvido do crime por que foi condenado.

II – CUMPRE APRECIAR: 

O arguido E.  foi condenado, como autor material, de um crime de abuso sexual de crianças agravado p. e p. nos artigos 171 n° 2 e 177 n° 1 al.ª a) do CP, na pena de 5 (cinco) anos de prisão, cuja execução foi suspensa pelo período de 5 (cinco) anos, a contar do trânsito em julgado do presente Acórdão, mediante regime dc prova assente num plano de reinserção social com imposição das seguintes regras de conduta:
 - não acompanhar, alojar ou receber as menores S (ofendida nos autos) e F, filhas do arguido c da testemunha N.;
 - frequentar um programa de prevenção de risco de reiteração de crimes sexuais contra crianças;
 - submeter-se a uma avaliação de risco, médico psicológica, que lhe for indicada pelos serviços de reinserção social, mediante o seu consentimento prévio e a prévia informação das finalidades da avaliação e das consequências da recusa de consentimento, que devem ter lugar na fase de execução da pena.

Inconformado com tal Decisão, o arguido E. recorre do Acórdão condenatório, apresentando as considerações de facto e de direito constantes das motivações, que aqui constam.

       Alega:
       - erro notório na apreciação da prova;
    - que a sentença deve considera-se nula, de acordo com o artigo 379.°, n.° 1, alínea c) do CPP;
       - violação do princípio “in dubio pro reo”.
       - Entende, que não existe crime, de acordo com o artigo 171.° 2 do Código Penal, vigorando o princípio da nulla poena sine crime.
       - Pede que a Decisão seja revogada ou mesmo declarada nula, devendo o arguido ser absolvido do crime por que foi condenado.

                                                ***

Na verdade, os factos dados como provados são o resultado lógico, não só de uma análise da prova no seu conjunto, não havendo qualquer contradição insanável entre a motivação da matéria de facto e a decisão que o condenou, como autor material do crime de abuso sexual de crianças agravado p. e p. nos artigos 171° n° 2 e 177° n° 1, al. a), do Código Penal.

Verifica-se, que o ora recorrente não concorda como o Tribunal "a quo" apreciou a prova.

Todavia, não pode impor ao Tribunal "a quo", que aprecie a prova segundo determinados critérios, os seus critérios.

Diz o recorrente, que houve erro notório na apreciação da prova – art.º 410.º n.º 2 al.º c) do CPP, ao basear a Decisão no “relatório pedopsiquiátrico” e na “perícia médico-legal”, dando como provados factos, que face as regras da experiência comum e lógica corrente não se podiam ter verificado.

Porém, sobre esta questão, preceitua o art.° 127.° do CPP, que a prova é apreciada segundo as regras da experiência e da livre convicção da entidade competente.

Ora, não havendo no caso em apreço, qualquer contradição entre a Decisão e a prova produzida, o arguido ora recorrente só tem que aceitar a decisão do tribunal sob pena de intromissão ilegítima na função de um órgão jurisdicional.

                                                    ***

Como resulta da leitura do Acórdão, todos os factos dados como provados estão claramente fundamentados, além do mais, nos depoimentos prestados pelas testemunhas:
 - MP (Inspectora da Polícia Judiciária),
 - N (mãe da menor ofendida),
 - AC (perita psicóloga),
 - CF (perita pedopsiquiatra),
 - BP (educadora de infância)
 -e MN, (educadora de infância), depoimentos estes, que mereceram toda a credibilidade no texto da valoração global da prova produzida, nomeadamente:
- perícia pedopsiquiátrica;
- perícia médico-legal;
- exame médico psicológico.

Aliás, o Tribunal "a quo" explica cabal e perfeitamente a razão pela qual considera, que o arguido E. praticou o crime.

Assim sendo, só se pode concluir, que improcede nesta parte o recurso do recorrente, visto que não se encontra na Decisão o vício de erro notório na apreciação da prova – art.º 410.º n.º 2 al.ª c) do CPP.

                                                   ***

Diz também o recorrente, que a Decisão deve considera-se nula, em conformidade com o estatuído pelo artigo 379.°, n.° 1, alínea c) do CPP, por não se ter pronunciado sobre questões que deveria ter apreciado, nomeadamente os “relatórios” do Infantário "O Barquinho" constantes nas fls. 185 e segs dos autos.

Da consulta destes, resulta que a fls 194 é dito:

( … )

Relatório comportamental da aluna S.:

A S. é uma criança de cinco anos integrada numa sala de pré-escolar da escola EBI/PE de Água de Pena, constituído por crianças de 4,5 e 6 anos. É o segundo ano que frequenta este estabelecimento de ensino e tem acompanhado o mesmo grupo de crianças, a auxiliar e as Educadoras de Infância.

No primeiro ano que frequentou este estabelecimento de ensino, revelou ser uma criança reservada, pouco comunicativa, com dificuldades na interação entre os pares c cm estabelecer relações de confiança com adultos e crianças. Nós as educadoras de infância inicialmente sentimos dificuldade em estabelecer confiança e conversas com a S., pois, era muito reservada e mesmo perante uma pergunta muitas vezes permanecia calada.

Observamos que gradualmente a S. tem evoluído nesta relação quer com adultos, quer com as crianças, no entanto, apresenta oscilações comportamentais. Pensamos existir acontecimentos desencadeadores da mudança de comportamento da S., que nos são alheios. Por vezes, a criança apresenta-se mais agitada, calada, desatenta, desinteressada pelas atividades, com dificuldades de concentração e muitas vezes agressiva com os colegas sem motivo aparente e essencialmente em contexto de recreio. Com o adulto nunca se mostrou agressiva e quando tem chamadas de atenção ou quando questionada sobre um comportamento menos correto, permanece calada, não admitindo a situação nem justificando.

No final do ano letivo 2010/2011 a S. já se encontrava bem integrada no grupo e com comportamentos mais sociáveis, no entanto, devido a um acidente não frequentou a parte final do ano letivo (partiu o braço na escola).

Relativamente a este ano letivo 2011/2012, e no que concerne ao 2° período, a S. revelou oscilações comportamentais. Por vezes estava mais solta e desinibida e outras vezes apresentava-se apática, indiferente, desatenta e ansiosa. Regrediu nas aprendizagens e no momento de avaliação individual revelou algumas dificuldades que no período anterior não manifestava. Parecia confusa e insegura, recusando por vezes responder. Este facto na nossa opinião prende-se a problemas emocionais.

No final deste ano, a S. continua a revelar oscilações comportamentais, o que tem comprometido a sua aprendizagem. Por vezes parece estar "alheia" ao que se passa em seu redor e muito irrequieta. Inibe-se de falar c não manifesta interesse pela "vida da sala". Outras vezes a S., está mais participativa e solta. Esta situação também se reflete na sua avaliação, pois, as suas aprendizagens não são seguras nem consistentes (ora sabe, ora não sabe).

A aluna já usufrui de apoio especializado (psicóloga), no entanto, existem situações que deverão ser resolvidas para que a criança progrida.

Todas as situações que nos pareceram relevantes foram comunicadas à mãe, que por sua vez as comunicou à psicóloga, muitas vezes acompanhada de trabalhos e registos do que a criança dizia e as suas reações perante algumas situações/assuntos.

Machico, 4 de Julho 2011
As Educadoras de Infância
( … ).


Assim como a fls 205 está escrito:

( … )

Relatório comportamental da aluna S. .

A S. é uma criança de seis anos integrada numa sala de pré-escolar da escola eb1lPE de Água de Pena, constituído por crianças de 4,5 e 6 anos. É o segundo ano que frequenta este estabelecimento de ensino e tem acompanhado o mesmo grupo de crianças, a auxiliar e as Educadoras de Infância.

Verificámos que a S. tem oscilações de comportamento e por vezes apresenta atitudes que nos despertam atenção.

No dia 27 de fevereiro segunda-feira, a S apresentou-se na escola muito agitada. Neste dia teve dificuldade em permanecer sentada com o grupo, mexia-se muito na cadeira e coiceava constantemente a mão à frente da boca, quando falava.

Aproveitando as horas não letivas, neste mesmo dia, procedemos a uma observação mais direta a algumas crianças, com a finalidade de iniciar a sua avaliação individual do 2° período. Para nosso espanto a criança não foi capaz de contar até 3, no entanto, sabemos que já o faz pelo menos até 10, para além de não conseguir responder a várias questões 'como por exemplo as figuras geométricas, termos que já tinha assimilado.

A S. apresentou-se confusa, agitada, com dificuldade em manter um contato ocular connosco e um pouco agressiva no recreio, tendo batido em alguns colegas (facto que também já não se observava à bastante tempo).

No dia 28 terça-feira apesar de apresentar uma melhoria, ainda eram observáveis alguns comportamentos destes.

Existiu outra situação na sala de aulas importante referir. No dia 6 de março quando fazia o desenho do pai a S. disse que o presente seria para o padrinho. Perante esta situação questionámos "o porquê" de não querer dar ao pai e ela respondeu: "porque ele faz brincadeiras tolas". A conversa prosseguiu onde, foi dito à criança que o pai iria gostar do presente e a S. mais uma vez respondeu: "Ele já tem uma grande em casa", como não sabíamos a que se referia perguntamos: "o quê?", após muita insistência disse "a escova".

Realmente era uma escova para os sapatos que estava a fazer para o pai, no entanto, os gestos que fez simulavam outra coisa que nos deixou muito apreensivas. Esta conversa foi individual e a criança tentou fugir à questão.

Machico, 13 de março de 2012
As Educadoras de Infância

( …)

É evidente, que o teor do que consta nestes Relatórios das Educadoras de Infância foram verbalizadas por estas, enquanto Testemunhas e que foram ouvidas em Julgamento - BP. e M.ª N. e como tal, não houve necessidade por parte do Tribunal eles remeter como sendo prova documental tida em conta para a Decisão.

Só se pode dizer, que a Decisão está conforme com o estatuído pelo artigo 379.°, n.° 1, alínea c) do CPP e assim não se lhe pode imputar qualquer nulidade, como alegado pelo recorrente E. .

Não se verifica qualquer falha de aplicação do art.º 379.º n.º al.ª c) do CPP, nem se poderá dizer, que há nulidade da Decisão por não ter para aqueles Relatórios remetido.
Improcede o recurso também neste segmento.

                                                      ***
                                                  ***   ***

Diz ainda o recorrente, que houve violação do princípio “in dubio pro reo”, uma vez que perante provas inconclusivas e não evidentes sobre a existência de crime por parte do arguido, em vez de valorá-las a favor do arguido, o Tribunal “a quo” decidiu condená-lo.

Mas este princípio só é de aplicar, se (aliás como reconhece o próprio recorrente) acabada a produção de prova, dúvidas subsistirem quanto à participação do arguido.

Ora, da prova produzida em julgamento resulta claro e inequívoco, que o recorrente praticou os factos, que lhe são imputados no Acórdão da 1.ª Instância, não se vislumbrando em qualquer passo daquela Decisão, que houvesse qualquer dúvida com que o Tribunal se tivesse deparado.

Na verdade, realizada a Audiência de discussão e julgamento, logrou-se obter prova bastante para que Tribunal "a quo" desse como provado a prática, por parte do arguido E do crime, que lhe era imputado e pelo qual veio a ser condenado.

Não houve da parte do Tribunal "a quo" qualquer dúvida na apreciação da prova produzida em sede de Audiência de Julgamento, nem na subsunção dos factos ao Direito.

Com efeito, no caso vertente o exame crítico das provas foi realizado pelo Tribunal “a quo” através dc um raciocínio, que se reputa lógico e coerente, num contexto da livre apreciação da prova que lhe é, de resto, concedida pelo art.º 127.° do C.P.P..

Foi de forma clara e inequívoca que o Tribunal "a quo" explanou no Acórdão os motivos de facto e de direito, que levaram à condenação do arguido, ora recorrente E. .

O princípio constitucional “in dubio pro reo” é inaplicável ao caso em apreço uma vez, que inexistem dúvidas razoáveis sobre os factos e a qualificação jurídico-penal da conduta do arguido E.

                                                        
Ainda diz o recorrente, que com base nas declarações da menor constantes no “relatório pedopsiquiátrico”, contata-se que não existe crime, uma vez que não houve nenhum tipo de acto sexual de relevo, conforme a tipificação do crime descrito no artigo 171.° n.º 2 do Código Penal, vigorando o princípio da “nulla poena sine crime”.

Mas além de resultar do acervo da prova produzida, documental, testemunhal e declarações, verifica-se, que se encontram preenchidos todos os elementos objectivos e subjectivos de tal tipo legal de crime de abuso sexual de criança, p. e p. pelos art.ºs 171.º n.º 2 e 177.º n.º 1 al.ª a) do Código Penal, cuja moldura abstractamente aplicável se situa entre 3 a 10 anos, acrescida de um terço nos seus limites mínimo e máximo.

E da análise do invocado relatório pedopsiquiátrico, constante de fls 208 a 212 e também de fls 213 a 220, ambos datados de 31 /10/2012, concluem a Psicóloga e a Perita Pedopsiquiátrica, além do mais, que:

( … )

Conclusão:

A S. é uma menina de 6 anos que se apresenta com um aspeto cuidado e prático, vestindo-se de forma adequada à sua faixa etária e nível socieconomico. No contacto que estabeleceu manifesta um discurso organizado mas marcado por alguma inibição.

Após a análise dos instrumentos de avaliação, podemos referir que a S apresenta capacidades cognitivas dentro do que seria de esperar para a sua faixa etária.

Em termos de desenvolvimento, os dados revelam níveis de compreensão verbal, perceção, memória, linguagem, capacidade expressiva, vocabulário, adequados à sua faixa etária.

À data da avaliação, verifica-se um ajustamento global adequado à sua idade. No entanto, os resultados são indicadores de fatores emocionais perturbados que podem comprometer o seu desenvolvimento global.

Os dados da avaliação demonstram dificuldades no contacto e adaptação ao meio, a presença de comportamentos de internalização, como ansiedade e medos, de comportamentos regressivos e de queixas somáticas.

Na idade da criança avaliada, e embora a sintomatologia anterior possa surgir noutras situações ou problemáticas, a literatura demonstra que esses indicadores podem também ser reativos à vivência de um acontecimento emocionalmente intenso ou gerador de sofrimento.

É de referir que os intervenientes desta avaliação (cognitiva e emocional), foram a menina e a mãe, pelo que se considera importante o cruzamento com outras fontes de informação.

Tendo em conta os dados da avaliação, considera-se que a criança deverá manter o acompanhamento psicológico no Centro de Saúde de Machico.

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e ainda,

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A linguagem não-verbal, tal como a postura e a atitude comportamental foram adequadas ao conteúdo expresso. Foi notória a dificuldade e desconforto (vergonha) em narrar os factos, como provável defesa contra emoções desagradáveis.
Através da entrevista realizada à mãe e dos relatos das educadoras da escola, e da avaliação psicológica, foi possível verificar outros indicadores clínicos de vivências de impacto traumático.

Sinais e sintomas relevantes:

a) Ao nível físico e somático: "cansaço/fadiga", "dores de cabeça e de barriga", perturbação do sono ("pesadelos e não queria dormir sozinha");
b) Ao nível emocional e comportamental: instabilidade afectiva ("agitada, calada, desatenta, desinteressada pelas actividades", irritabilidade ("chorava por tudo e por nada", ansiedade; episódios de enurese ("faz xixi quando está nervosa"); (alterações do comportamento com hetero-agressividade ("quando vê o pai toma-se agressiva e bate", "e muitas vezes agressiva com os colegas sem motivo aparente").
c) Ao nível da conduta sexual: vergonha quanto ao toque ou nudez (na hora de tomar banho, não deixava a mãe tocá-la, nem queria que a mãe lhe desse banho);

VII – Conclusões:

A menor S. produziu um relato com fortes indicadores de veracidade de testemunho. Foram detectados sinais e sintomas compatíveis com o impacto traumático resultante de uma situação de abuso sexual.

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Aliás, a questão agora a dirimir é se a introdução pelo pai do dedo no “ânus da menor” e o “tocar na região ano-genital” da mesma são ou não actos sexuais de relevo.

O bem jurídico protegido através da norma transcrita é a autodeterminação sexual, sendo que, face à idade da vítima, a prática destes crimes pode ter consequências graves no desenvolvimento da sua personalidade.

Ora,
acto sexual de relevo é “todo aquele (comportamento activo...) que, de um ponto de vista predominantemente objectivo, assume uma natureza, um conteúdo ou um significado directamente relacionados com a esfera da sexualidade e, por aqui, com a liberdade de autodeterminação sexual de quem a sofre ou pratica” - (Figueiredo Dias, “Comentário Conimbricense ao Código Penal”, I, pág. 447).

Assim, o tipo legal está limitado pelo uso da expressão restritiva “de relevo”.


O direito criminal, como “ultima ratio” implica, que só seja tutelada a liberdade sexual contra acções que revistam certa gravidade. Em tais termos, actos como o coito oral e a masturbação devem aqui ser incluídos (aliás como expressamente estatui o nº 2 do artº 171º do C. Penal).


O mesmo não sucederá, em regra, com os beliscões e os beijos, que só o deverão ser em casos extremos, ou seja, naqueles em que existem grande intensidade objectiva e intuitos sexuais atentatórios da autodeterminação sexual.

Por outro lado, escrevem Leal-HEs e Simas Santos, que "repescando o sentido legislativo imanente ao preceito correspondente do Código anterior - onde se considerou que nem todo o acto ofensivo do pudor cabia na previsão da norma, mas apenas os que ofendiam gravemente os sentimentos gerais de moralidade sexual, com exclusão, portanto, das «atitudes anódinas como, por exemplo, um simples beijo, que não têm dignidade criminal» - (Actas da respectiva Comissão Revisora, 12ª Sessão, BMJ, 287-94) - somos do mesmo modo a entender que não é qualquer acto de natureza sexual que serve ao espírito do artigo, mas apenas aqueles actos que constituam uma ofensa séria e grave à intimidade e liberdade do sujeito passivo e invadam, de uma maneira objectivamente significativa, aquilo que constitui a reserva pessoal, o património íntimo, que no domínio da sexualidade, é apanágio de todo o ser humano, “nomeadamente das crianças”.


Estão nesta situação (entre muitos outros), por exemplo, o sexo oral (já expressamente previsto no nº 2 do artº 171º como acto sexual de relevo), os actos de masturbação, os beijos dados nas zonas erógenas do corpo, como os seios, a púbis, o sexo, etc.


Serão estes, pois, os tais actos sexuais de relevo de que fala o legislador.


Como diz Sénio Alves, em “Crimes Sexuais”, pág. 8 e segs, a propósito do que seja acto sexual de relevo o seguinte: “O acariciar dos seios é um acto sexual? E se sim, é de relevo? (…) Numa noção pouco rigorosa (diria sociológica) de acto sexual têm cabimento actos como os supra referidas (o acariciar dos seios e de outras partes do corpo, que não só dos órgãos genitais).
São aquilo que vulgarmente se designa como “preliminares da cópula” e, por isso, são actos de natureza sexual ou, se se preferir, actos com fim sexual”, pelo que “o acto sexual de relevo é, assim, todo o comportamento destinado à libertação e satisfação dos impulsos sexuais (ainda que não comporte o envolvimento dos órgãos genitais de qualquer dos intervenientes) que ofende, em grau elevado, o sentimento de timidez e vergonha comum à generalidade das pessoas”.


Já Paulo Pinto de Albuquerque no seu “Comentário do Código Penal” em anotação ao artigo 163º, concretizando o que seja acto sexual de relevo, nele integra o toque com partes do corpo nos seios, nádegas, coxas e boca.


Na jurisprudência pode colher-se uma certa uniformidade (cfr. nomeadamente os Acórdãos do TRC, de 5.3.2000, 27.6.2007, 9.7.2008, 2.2.2011 e do TRP, de 26.11.2003, 7.10.2009, 27.1.2012 e 28.11.2012), de acordo com os ensinamentos da doutrina, que será acto sexual de relevo todo aquele, que tenha uma natureza objectiva estritamente relacionada com a actividade sexual, ou seja, que normalmente apenas seja praticado no domínio da sexualidade entre pessoas, como é manifestamente o caso de acariciar os seios/mamas, actos preliminares do acto sexual final, que conduz ao orgasmo.


Também aduziremos e como se refere no Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra, de 02.02.2011, "o acto sexual de relevo é ( ... ) todo o comportamento destinado à libertação e satisfação dos impulsos sexuais (ainda que não comporte o envolvimento dos órgãos genitais de qualquer dos intervenientes) que ofende, em grau elevado, o sentimento de timidez e vergonha comum à generalidade das pessoas e a relevância ou irrelevância de um acto sexual só lhe pode ser atribuída pelo sentir geral da comunidade (...) que considerará relevante ou irrelevante um determinado acto sexual consoante ofenda, com gravidade ou não, o sentimento de vergonha e timidez (relacionado com o instinto sexual) da generalidade das pessoas - (in www.dgsi.pt. proc. n.º 889/09.8.TAPBL.C1).


Por outro lado, o Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, de 05.09.2007, no qual se diz, que: "a lei presume que a prática de actos sexuais em menor, com menor ou por menor de certa idade, prejudica o seu desenvolvimento global, e considera este interesse tão importante que coloca as condutas que o lesem ou ponham em perigo sob a tutela da pena criminal. Protege-se, pois, uma vontade individual ainda insuficientemente desenvolvida, e apenas parcialmente autónoma, dos abusos que sobre ela executa um agente, aproveitando-se da imaturidade do jovem. (...) O que está em causa não é somente a autodeterminação sexual mas, essencialmente, o direito do menor a um desenvolvimento físico e psíquico harmonioso, presumindo-se que este estará sempre em perigo quando a idade se situe dentro dos limites definidos pela lei"- (in
www.dgsi.pt-processo-n.º07P2273).

Estamos, assim, perante um tipo de crime cujos elementos objectivos consistem na prática de um acto sexual de relevo, que envolva a participação, activa ou passiva, de menor de 14 anos.

Constitui, por sua vez, elemento subjectivo, o conhecimento dos elementos objectivos típicos e a vontade de agir de forma a preenchê-los.


O bem jurídico protegido por esta a norma incriminadora é a liberdade e autenticidade de expressão, ao nível da sexualidade, de pessoas que, situadas abaixo de determinado nível etário, não são ainda suficientemente maduras para se autodeterminarem a esse nível – procura-se proteger a autodeterminação sexual, “face a condutas de natureza sexual que, em consideração da pouca idade da vítima, podem, mesmo sem coacção, prejudicar gravemente o livre desenvolvimento da sua personalidade.” – Figueiredo Dias in “Comentário Conimbricence do Código Penal”, Parte Especial, Tomo I, pag. 541.


Nas palavras de Teresa Pizarro Beleza, “há uma convicção legal (juris et de jure - dir-se-ia) de que abaixo de uma certa idade ou privada de uma certa dose de auto determinação a pessoa não é livre de se decidir em termos de relacionamento sexual” – in “O conceito legal de violação”, Revista do M.ºP.º, ano 15, n.º 59, pag. 56.

Costa Andrade, por sua vez, in “Consentimento e Acordo em Direito Penal”, Conimbricense Editora, 1993, pags 391 e segs, refere que: “(...) até atingir um certo grau de desenvolvimento, indiciado por determinados limites etários, o menor deve ser preservado de certos perigos relacionados com o desenvolvimento prematuro em actividades sexuais”.

Assim, ainda que o bem jurídico protegido com a incriminação do abuso sexual de crianças seja também a liberdade e auto determinação sexual, é primordialmente o livre desenvolvimento da personalidade do menor na sua esfera sexual.


Com efeito, a lei presume, que a prática de actos sexuais em menor, com menor ou por menor de certa idade, prejudica o seu desenvolvimento global. Protege-se, pois, uma vontade individual ainda insuficientemente desenvolvida e apenas parcialmente autónoma, dos abusos que sobre ela podem ser perpetrados, aproveitando-se da imaturidade do jovem para a realização de acções sexuais bilaterais. - (cfr neste sentido, o Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 5 de Setembro de 2007, Processo n.º 07P2273, em www.dgsi.pt).

Sucede, porém, que mesmo no âmbito do art. 171º do Código Penal, são distinguidas diversas situações, de acordo com a sua gravidade objectiva.


Assim, o n.º 1 dispõe, que comete um crime de abuso sexual de crianças, quem pratica acto sexual de relevo com ou em menor de 14 anos, ou o leva a praticá-lo com outrem.


O n.º 2, por sua vez, pune dentro da prática de acto sexual de relevo com ou em menor de 14 anos, aquela que consista em cópula, coito anal, coito oral ou introdução vaginal ou anal de partes do corpo ou objectos.

Ora, o que se diz para a prática de actos sexuais com ou em menor (n.º 1 citado) também vale para a prática de determinados actos sexuais, perante menor ou na actuação sexual sobre ele, independentemente de o seu corpo ser tocado dado que igualmente tais actos assumem entraves para o desenvolvimento normal da personalidade do menor no âmbito sexual.


O crime previsto no artigo em análise constitui um crime de perigo abstracto, na medida em que a possibilidade de um perigo concreto para o livre desenvolvimento físico e psíquico do menor ou o dano correspondente podem ou não vir a verificar-se, sem que a integração pela conduta do tipo objectivo de ilícito fique afastada. – cfr. Mouraz Lopes in “Os crimes contra a liberdade e autodeterminação sexual”, 1995, citado por Figueiredo Dias in obra supra citada.


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Daqui só se pode concluir, que os actos praticados pelo arguido E. Carvalho, como seja, a introdução do dedo no “ânus da menor” e o “tocar na região ano-genital” da mesma são actos sexuais de relevo.

Neste segmento também improcede o recurso do arguido – E. Carvalho.

   Em suma:

- O Tribunal "a quo" fez uma correcta aplicação dos arts. 171.° n.° 2 e 177° n° 1, al. a), ambos do Código Penal, 127.° e 410.º n° 2, al.ª c), ambos do C.P.P. e 32.° n.° 2 da C.ªR.ªP.ª.

Nestes termos, nega-se provimento ao recurso interposto pelo arguido E. e, em consequência, mantem-se a benevolente Decisão recorrida.

III – DECISÃO:

Pelo exposto, acordam os Juízes da ...ª Secção do Tribunal da Relação de Lisboa:

a) negar provimento ao recurso, mantendo a Decisão recorrida;
b) custas pelo o recorrente, sendo a taxa de justiça: o mínimo. 


Lisboa, 26-05-2015

               
Filipa de Frias Macedo         
Artur Vargues