Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
491/21.6PFLSB.L1-3
Relator: RUI MIGUEL TEIXEIRA
Descritores: VIOLAÇÃO
APRECIAÇÃO DA PROVA
ALTERAÇÃO DA MATÉRIA DE FACTO
LIMITE DA LIVRE APRECIAÇÃO
MEDIDA DA PENA
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 03/06/2024
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Texto Parcial: N
Meio Processual: RECURSO PENAL
Decisão: PROVIDO
Sumário: A alteração da matéria de facto nos termos do art.º 412º nº 3 e 4 do C.P.P. obedece a dois momentos.
Um primeiro em que o recorrente demonstra o erro do Tribunal na apreciação da prova;
Um segundo em que demonstra qual a versão correcta dos factos.
Feita esta demonstração o Tribunal ad quem alterará a matéria de facto, procederá ao seu enquadramento jurídico e definirá a medida da pena.
O crime de violação, pela sua gravidade, quer ao nível da vítima, quer ao nível do bem estar social, deve obter por parte dos tribunais uma resposta que não deixe dúvidas sobre a sanção.
Decisão Texto Parcial:
Decisão Texto Integral: Acordam os juízes que compõem a 3ª secção do Tribunal da Relação de Lisboa

I. Relatório
A assistente AA, assistente nos autos supra referenciados, recorre para este Tribunal da Relação de Lisboa do acórdão de 30.11.2023 proferido pelo colectivo de juízes do Tribunal da Comarca de Lisboa, Juízo Central Criminal de Lisboa - Juiz 19 – mediante o qual foi absolvido o arguido BB, com o sinal nos autos, da prática de um crime de violação, na forma consumada, p.p. pelo art.º 164º/2 al. a) e 177º/1 al. c) do Código Penal e 1 (um) crime de coacção, agravada, na forma tentada nos termos dos 22.º, n.º 1, art.ºs 154.º, n.º 1 e 155.º, n.º 1, al. a) do Código Penal e do pedido de indemnização civil formulado.
Para tanto apresentou, após motivações, as seguintes conclusões recursais:
“I. O Ministério Público deduziu acusação, para julgamento em processo comum, contra o aqui recorrente1, imputando-lhe a prática em autoria material, sob a forma consumada, de 1 (um) crime de crime de violação, na forma consumada, p.p. pelo art.º 164º/2 al. a) e 177º/1 al. c) do Código Penal e 1 (um) crime de coacção, agravada, na forma tentada nos termos dos 22.º, n.º 1, art.ºs 154.º, n.º 1 e 155.º, n.º 1, al. a) do Código Penal;
II. A assistente e deduziu pedido de indemnização civil peticionando o pagamento pelo arguido da quantia de €60.000,00 a título de danos não patrimoniais;
III. O Tribunal a quo absolveu o arguido da prática dos crimes por que vinha acusado e do pedido de indemnização civil por não considerar provados os factos referentes à violação da assistente;
IV. O Tribunal a quo considerou não provados os factos referentes à violação da assistente, não porque duvidasse que a assistente estivesse a dizer (o que considera ser) a verdade, mas porque tivesse dúvidas a respeito da "confusão mental" que podia afectar a assistente no momento em que ocorreram os actos sexuais.
V. A assistente descreveu vividamente como foi forçada a ter relações sexuais com o arguido, porém o Tribunal põe em causa que a assistente possa ter uma memória errada dos factos, pois vinha sendo acompanhada na consulta de psiquiatria, tomava medicamentos para a depressão, e outros que lhe foram prescritos para a fibromialgia e, à data dos factos tinha ingerido bebidas alcoólicas.
VI. O Tribunal não põe em causa que a assistente esteja genuinamente convencida da verdade do que afirma; o Tribunal a quo considera, outrossim, que a memória da assistente a respeito da vivência de ter sido violada, designadamente devido à interacção dos fármacos com o álcool, poderá não corresponder ao que ocorreu, podendo o acto sexual ter sido, afinal, consentido.
VII. A assistente, por sua vez, não tem dúvidas de que foi constrangida pelo arguido a ter relações sexuais, entendendo que a decisão do Tribunal a quo é (com a devida vénia) perversa e discriminatória da doença mental e, com o devido respeito, radica na desconfiança e na ignorância a respeito das especialidades farmacêuticas prescritas à assistente, atribuindo imaginarias propriedades alucinogénias à interacção destas substâncias com o álcool - conjecturas que, sempre com o devido respeito, contrariam severamente as regras da experiência;
VIII. O tribunal a quo, para justificar a tese da "confusão mental" cita na sua decisão a médica psiquiatra CC, atribuindo-lhe palavras que não disse, e um sentido a parte do seu depoimento que não pode ser encontrado nas palavras que que usou, tendo dito, aliás, o contrário do que lhe é atribuído.
IX. O presente recurso é, por isso, centrado na impugnação da decisão da matéria de facto.
X. O tribunal a quo considerou provados os seguintes factos:
1. Em 12.04.2021, e desde data não concretamente apurada, o arguido BB e AA residiam no apartamento sito na ....
2. Na mesma data, também era ali residente EE, ocupando, cada um, um dos referidos quartos individuais, mas partilhando os espaços comuns da habitação.
3. Não obstante coabitarem juntos, não existia relação amorosa entre qualquer dos supra referidos co residentes.
4. No dia 11.04.2021, o arguido, FF e AA juntaram-se no apartamento sito na ..., para festejar o aniversário de FF.
5. No decurso de tal festejo, reunidos na marquise do apartamento que era utilizada como sala de estar, consumiram cerveja, tendo, pelas 20:30 horas, ali chegado EE.
6. Entre as 23h30m e as 0h00m EE recolheu ao quarto para se deitar, o que fez cerca de 30m depois;
7. Cerca da 1h00m, pelo facto de o quarto de EE ser contiguo à zona da sala de estar, o arguido, FF e AA retiraram-se para o quarto desta e ali continuaram sendo que em hora não apurada, FF retirou-se para a sua residência, permanecendo o arguido com AA naquele quarto;
8. No exame objectivo realizado à assistente no dia 12.4.21 pelo médico especialista de medicina legal foram detectadas diversas escoriações e equimoses dispersas pelos membros superiores, inferiores, tórax e abdómen, incluindo na face anterior de ambos os joelhos.
9. Após a saída do arguido do seu quarto, AA, ainda completamente despida, foi pedir ajuda a EE, dizendo-lhe que o arguido lhe queria fazer mal;
10. AA veio a contactar as autoridades e a denunciar os factos.
11. AA foi conduzida ao Centro Hospitalar de Lisboa Central onde deu entrada sob o n.º de episódio 21039807.
- Provando-se ainda que:
12. O arguido não tem antecedentes criminais registados.
13. Do atestado assinado pela médica psiquiatra da assistente de fls. 138 cujo teor se dá por reproduzido consta designadamente que: (AA) é acompanhada em consulta de psiquiatria desde 13.4.21 com diagnóstico de perturbação depressiva recorrente e fibromialgia; acompanhada anteriormente pelo Dr. GG neste Centro Hospitalar desde 15.1.2020 estando medicada até a minha consulta com duloxetina 60 mg, Pregabalina 50 mg e Trazadona 100 mg;
14. Consta do relatório médico elaborado em 11.05.21 pela médica psiquiatra supra identificada, CC, que a assistente é acompanhada em consulta de psiquiatria por depressão em traços de personalidade disfuncionais e que se encontra medicada habitualmente com duloxetina 60 mg, Pregabalina 50 mg e Trazadona 100 mg (fls. 124 a 126 e 133-134);
15. Da informação clínica de 12.5.21 cujo teor se dá por reproduzido consta que a assistente é seguida em consulta de reumatologia e apresenta diagnóstico de fibromialgia e espondilodiscartrose cervical e lombar;
16. Do atestado médico elaborado pela psiquiatra CC relativo à assistente consta designadamente que: do acompanhamento breve em consulta verificaram-se episódios depressivos recorrentes em geral relativos a eventos adversos da vida. A referência a traços disfuncionais da personalidade acentuados nos períodos de agravamento depressivo são caracterizados por instabilidade emocional, baixa tolerância à frustração e hipersensibilidade à rejeição, não consubstanciam no entanto impacto suficiente para se enquadrarem no disgnóstico de perturbação da personalidade.
17. Após colheita de analises no SU do HSJ no dia 12.4.21, na sequência da sua admissão, pelas 5h, a assistente tinha etanol no sangue numa taxa de 148 mg/dl;
XI. O tribunal a quo julgou não provados os seguintes factos:
a) Na ocasião descrita no (Facto provado nº 5) foi consumido vinho;
b) Pela 1h00m EE interpelou o arguido, FF e AA pelo barulho que faziam;
c) No decurso da conversa então mantida após a saída de FF, o arguido, dizendo que a amava, tentou convencer AA a manter consigo relações sexuais.
d) AA recusou o pretendido pelo arguido, recusa de que o arguido não podia deixar de ficar bem ciente, sendo que, em acto continuo, BB, agarrando-lhe nos pulsos, atirou-a para cima da cama e da cobertura (edredon) que ali se encontrava.
e) O arguido apertou então o pescoço de AA e tapou-lhe o nariz e a boca, causando-lhe aflição, bem como puxou-lhe o cabelo, causando-lhe dores.
f) Também movimentou o punho junto do rosto de AA causando-lhe temor que ali pudesse desferir uma pancada com a mão fechada, maltratando-a.
g) O arguido disse-lhe então, com foros de seriedade, “Vai deixar, vai deixar, senão vou-te matar!”, expressões de que AA ficou ciente e que lhe causaram medo que o arguido maltratasse a sua saúde e bem-estar, até a pudesse matar, caso opusesse resistência, tendo de seguida retirado a roupa que a vitima vestia, nomeadamente, umas bermudas, as cuecas, uma camisa e um casaco.
h) Tendo-se também despido, o arguido, com o pénis erecto e sem preservativo, penetrou a vagina de AA e iniciou um movimento de vai e vem.
i) Ignorando os rogos da vítima que o instava a parar, o arguido disse á vítima “Eu vou-te matar se você não deixar! Fica quieta!”, com tais expressões causando temor e receio à vítima do que o arguido lhe pudesse fazer, quer à sua saúde quer à sua vida, caso opusesse resistência ao seu comportamento.
j) O arguido, após friccionar o seu pénis na vagina da vítima, introduziu-o na boca de AA constrangendo-a a sugar-lho porquanto, enquanto lhe agarrava o pescoço e lhe dizia que a maltrataria fisicamente se não o fizesse.
k) Quando cessaram estes factos, e sem que ejaculasse, o arguido, enquanto se vestia e ainda no quarto da vitima disse-lhe: “você não vai falar pra ninguém senão eu te mato”, expressões que a vítima ficou ciente e que lhe causaram receio que o arguido lhe pudesse fazer mal ao seu bem estar físico e até tirar-lhe a vida, caso denunciasse os factos.
l) As lesões referidas no (Facto provado nº 8) foram consequência da conduta do arguido;
m) Na ocasião descrita no (Facto provado nº 9) a assistente disse a EE que o arguido a havia violado e que tinha dito que a iria matar.
n) O arguido BB bem sabia que AA não queria ter relações sexuais consigo e que, actuando como actuou, atirando-a para cima da cama, manietando-a e agarrando-a, nomeadamente, nos pulsos e pescoço, puxando-lhe o cabelo, assim como pelas expressões, que lhe dirigia e que infundiam temor na vitima que o arguido maltratasse a sua saúde ou até lhe tirasse a vida, a impedia de opor resistência e a constrangia à pratica de relações sexuais vaginais e orais consigo, não se abstendo de o fazer e concretizando este resultado que quis e logrou alcançar.
o) Bem sabia o arguido que praticava tais factos porquanto se encontrava na residência em que, juntamente com a vítima, habitava, não se abstendo de o fazer.
p) O arguido bem sabia que dizendo a AA que a mataria em caso desta contar a terceiro dos factos de que tinha sido vítima lhe infundia temor e receio que o arguido lhe poderia tirar a vida caso o fizesse, inibindo-a, com esta actuação, à denuncia dos factos, mas não se absteve de o fazer.
q) O arguido agiu livre e voluntariamente, bem sabendo que actuava sem o consentimento e contra a vontade da ofendida e que a sua conduta era proibida e punida por lei penal.
XII. Não se provando ainda, do pedido de indemnização que, em consequência da conduta do arguido:
r) A assistente sentiu medo, humilhação e tristeza;
s) A fibromialgia de que padece ficou mais grave e penosa;
t) A assistente ficou num estado permanente de ansiedade, desânimo, frustração e raiva, sem alegria de viver durante vários meses depois dos factos;
u) Verificou-se o agravamento do quadro de perturbação depressiva com sentimentos de infelicidade e dor;
XIII. O tribunal assim o decidiu por entender ser possível que a assistente tenha ficado com uma percepção errada quanto ao efectivo consentimento que deu para os actos íntimos/físicos, situação que não exclui que tenham ocorrido, pelas ordens de razões enunciadas na (douta sentença):
a) o relato da dinâmica das eventuais agressões, incongruente com as lesões que lhe foram detectadas, inexistentes, especialmente ao nível do pescoço, sendo que as demais podem ser justificadas com um confronto físico, as recentes e as mais antigas não têm relação com o evento;
b) o desfasamento temporal do relato que aponta para confusão mental;
c) a predisposição em que se colocou a assistente para a confusão mental, através do consumo de álcool e a já mencionada interacção medicamentosa. A esta confusão mental a própria assistente fez referência ao remeter para as palavras do arguido no momento dos factos, em que o mesmo abandonou o local referindo ela surtou, tendo de seguida ido à esquadra reportar o ocorrido,
d) o comportamento do arguido que também não é habitual nem compatível com a de um agressor sexual, porquanto colaborou e foi aliás o primeiro a contactar as autoridades, tendo chegado à esquadra antes da assistente, como a própria declarou.
XIV. Com o devido respeito, não decidiu correctamente o Tribunal a quo.
XV. A assistente prestou declarações de forma que o Tribunal a quo descreve como "tranquila", que ficaram registadas na sessão do dia 26-10-2023 com início às 10h e 13m e 49s e final às 11h e 28m e 50s.
XVI. No que toca ao relato dos concretos actos sexuais que o arguido perpetrou sobre a assistente e a violência física de que foi alvo, a assistente referiu que, na noite em que ocorreram os factos, foi para o quarto com II e arguido, pois estavam a fazer barulho na área comum da casa, e o quarto tinha uma varanda onde podiam conviver (07min 20 seg a 7min 42 seg); nesse lugar, o arguido deitou-se na sua cama da assistente, e fingiu que estava a dormir enquanto aquela assistente se manteve a conversar com o FF na varanda do seu quarto (07min46seg a 08min 07 seg); a certa altura o arguido fez um sinal e o FF e este saiu do quarto (08min 10 seg a 08min 23 seg); disse ao arguido para ele se levantar e sair do quarto porque não gostou que ele estivesse deitado na cama, insistiu várias vezes para ele se levantar até que ele levantou e a assistente sentou-se na cama (08min 25 seg a 08min42seg); o arguido colocou-se de joelhos à sua frente da assistente e "começou a falar um monte de coisas" como "te amo" e "gosto de você" e a assistente disse que não, "não isso não é uma coisa certa porque você é um rapaz novo", "você tem muita coisa pela frente não tem nada a ver. Tenho uma relação com você de amizade" (08min 42seg a 08min56 seg). O arguido abraçou a assistente e esta disse "tá eu vou te dar um abraço" mas "não tem nada a ver" (08min 57seg a 09min 03 seg); Nessa sequência "quando ele voltou na posição em que ele estava, olhou para mim pegou no meu pescoço" deitou-a na cama "me pressionando muito em cima de mim, colocou-se em cima de mim, falou para eu tirar a roupa (09min 04 seg a 09min19seg); a assistente gritou por socorro "eu falei o que é que é isso, e aí eu gritei socorro", "e aí ele tapou a minha boca e o meu nariz", "mas estava tapando muito forte e me ameaçava com soco e falou «tira a roupa, tira a roupa»" (09min19seg a 09min32seg); "Os primeiros segundos, assim, foi uma coisa muito sinistra", "eu fiquei tentando entender o que estava acontecendo, porque era uma pessoa próxima, da casa" (09min 32 segs a 09min 52 segs); "dei luta, obvio, mas estava sempre com muito medo; ele era muito forte, ele estava em cima de mim o tempo todo e aconteceram as coisas" (10min 10segs a 10min 18 segs); "tirou a roupa, fez o sexo, me penetrou, eu tentando lutar (...) pegou no meu cabelo, o tempo todo me ameaçando, falando «eu vou te matar»", "fez eu fazer o sexo oral, e eu mesmo assim, sempre dando luta, (10min 19 seg a 10min 39 segs); "depois que acabou, eu fiquei deitada na cama e ele me deixou lá (...) ele chegou no meu ouvido (...) e falou «se você for à polícia dar queixa eu vou matar você e a sua família» (10min 40segs a 11min 06seg); Nessa altura a assistente tentou atacá-lo com um banco, que ele agarrou e ele saiu do quarto gritando dizendo a AA está louca, ela está «surtando» (11min 06seg a 11min 23 segs); De seguida a assistente saiu do quarto totalmente despida foi pedir ajuda EE e ele disse-lhe, para voltar para o seu quarto e se trancar que não podia fazer nada, fechou a porta e a assistente a deu conta que estava nua, ficou com medo que ele voltasse que a fosse matar, foi para o quarto, vestiu-se e foi à PSP pedir ajuda (10min 32segs a 12min 08segs).
XVII. Ainda a respeito dos actos de que foi vítima, a assistente explicou ainda que "ele pegou no meu pescoço e me colocou deitada, ficou em cima de mim, e começou a falar «eu vou-te matar», e mandou tirar a roupa ameaçando com um soco, enquanto segurava no meu pescoço" (17min 29 segs a 17min 40 segs); "mas como eu gritei socorro, ele tapou a minha boca e o meu nariz, (...) puxou o meu cabelo" (17min 41 segs a 18min 05 segs); "ele mandou eu me despir senão ele ia me agredir (...) fez penetração vaginal" 19min02segs a 19min 12 segs; "depois eu continuei dando luta, eu caí da cama ele me puxou pelo cabelo (...) foi nessa hora que ele estava segurando o meu cabelo, me ameaçando com um soco, que mandou fazer sexo oral nele (...) eu fiz" (19min 15 segs a 19 min 31 segs), quando a obrigou a assistente a fazer sexo oral o arguido estava a agarrar a assistente pelos cabelos (20min 25 segs a 20 min 31 segs); o arguido dizia "vai deixar senão eu vou-te matar" 20min35 segs a 20min 41 segs; Não soube dizer que o arguido ejaculou - "na minha boca não" (21min 01seg a 21min 05 segs); disse que viu a morte, e sentiu-se incrédula pelo seu agressor ser uma pessoa "da casa", que já tinha ajudado, e que conhecia a sua irmã, e teve muito medo (24min21 segs a 24min 40segs); o arguido não usou preservativo (29min 00 segs a 29min 03 segs).
XVIII. A assistente não apresenta a menor dúvida de que foi forçada a ter relações sexuais com o arguido.
XIX. A esta certeza da assistente responde o tribunal a quo, sumariamente, com (A) a inexistência de lesões ao nível do pescoço, a (B e C) tese da "confusão mental", e (D) o comportamento do arguido. Ora,
XX. Quanto à (A) inexistência de lesões ao nível do pescoço, na dinâmica descrita na acusação, e de acordo com o narrado pela assistente, não constitui, de facto, uma incongruência, porque não pode ser entendido que, perante a descrição, devessem existir tais lesões: Tal como consta no ponto nove da acusação "O arguido apertou então o pescoço de AA e tapou-lhe o nariz e a boca, causando-lhe aflição". Isso mesmo foi também referido pela assistente em julgamento sessão/acta do dia 26-10-2023, quando na sua expressão disse "quando ele voltou na posição em que ele estava, olhou para mim pegou no meu pescoço" deitou-a na cama "me pressionando muito em cima de mim, colocou-se em cima de mim, falou para eu tirar a roupa (declarações da assistente acta/sessão de 26-10-2023 de 09min 04 seg a 09min19seg); a assistente gritou por socorro "eu falei o que é que é isso, e aí eu gritei socorro", "e aí ele tapou a minha boca e o meu nariz", "mas estava tapando muito forte e me ameaçava com soco e falou «tira a roupa, tira a roupa»" (declarações da assistente acta/sessão de 26-10-2023 de 09min19seg a 09min32seg).
XXI. Assim, a factualidades descrita na acusação e confirmada pela assistente em audiência de julgamento, de acordo com as regras da experiência, não é de ordem a deixar lesões ao nível do pescoço, não sendo, por isso razoável ou lógico acompanhar a objecção apontada pelo Tribunal a quo, a respeito do que foi verificado no corpo da assistente.
XXII. A respeito do (B) "desfasamento temporal do relato que aponta para confusão mental", a existência de incongruências a respeito da linha temporal, mesmo que significativas, tendo em conta o evento traumático, o que demais se provou a respeito do consumo de bebidas alcoólicas e o tempo decorrido entre a data dos factos (12-04-2021) e a audiência de julgamento (26-10-2023), é compreensível, de acordo com as regras da experiência.
XXIII. Há uma relação conhecida, natural e lógica, entre o trauma, o consumo de bebidas alcoólicas e o decurso de mais de dois anos, e a incapacidade de correctamente indicar as horas a que ocorreram certos eventos ou o tempo certo que tiverem durado. Mas não há uma relação conhecida, natural e lógica entre o trauma, o consumo de bebidas alcoólicas e o decurso do tempo e a memória de que se foi forçado a ter relações sexuais.
XXIV. A falta de orientação temporal não constitui indício de que possa haver uma incorrecta memória de agressão sexual, não podendo colocar-se os dois em relação como faz o Tribunal a quo, contrariando também neste ponto as regras da experiência.
XXV. A respeito da invocada (C) predisposição em que se teria colocado a assistente para a "confusão mental", entendeu o tribunal a quo que a assistente, com a taxa de álcool no sangue que lhe foi detectada, não podia estar com todas as suas faculdades mentais intactas e a confusão mental em que se encontrava levantam dúvidas sérias sobre a fiabilidade do seu relato, e em consequência sobre a ocorrência dos factos tal como por esta relatado: Às 5h da manhã ainda tinha 148mg/dl no sangue podendo inferir-se que nas horas que antecederam a recolha de sangue a taxa era superior o que permite concluir que se encontrava numa situação de intoxicação moderada;
XXVI. As conclusões a que (com a devida vénia) chega o tribunal a quo a respeito da "confusão mental" que diz poder ter afectado a assistente, não têm qualquer suporte científico e estão em desacordo com as regras da experiência: a intoxicação moderada por álcool não cria memórias vívidas a respeito de agressões sexuais.
XXVII. Nada existe nos autos que permita a conclusão que a assistente teve no dia dos factos um distúrbio mental grave e intenso que a faz recordar ter sido violentamente forçada a ter relações sexuais com o arguido.
XXVIII. Ainda a respeito das interacções entre o álcool e os medicamentos, o Tribunal a quo o menciona o depoimento da Médica Psiquiátrica CC, para dizer que: "Em relação aos consumos de álcool combinados com a medicação que a assistente tomava na altura dos factos, referiu que o álcool interfere no sentido que pode causar sedação excessiva e pode a assistente ficar sem discernimento para saber se a relação sexual é consentida ou não, dependendo da quantidade de álcool consumida" (sublinhado nosso).
XXIX. Testemunha CC prestou depoimento na sessão de 09-11-2023, tendo as suas declarações ficado a constar da acta do mesmo dia com início às 10h e 09m e 55s e fim às 10h e 43m e 10s.
XXX. A testemunha CC em nenhum momento disse que por via da combinação entre o álcool e a medicação poderia a assistente (como referido na douta sentença) " ficar sem discernimento para saber se a relação sexual é consentida ou não, dependendo da quantidade de álcool consumida";
XXXI. Bem ao contrário, a testemunha disse, e repetiu, que a interacção pode potenciar a sedação, ou impedir que os fármacos produzam o seu efeito, mas que a interacção não interfere na compreensão sobre se uma relação sexual é ou não consentida. E isso é o oposto do que lhe atribui o Tribunal a quo.
XXXII. De acordo com o depoimento da testemunha CC, que foi julgado absolutamente credível, do que disse ser do seu conhecimento, à data dos factos, a assistente conseguiria distinguir uma situação de sexo consentido de outra situação em que fosse forçada a ter relações sexuais, estando para este efeito em pleno poder das suas capacidades (acta/sessão de 09-11-2023 de 9min 55segs a 10min 11 segs.); A respeito do efeito dos medicamentos prescritos à assistente, acompanhados do consumo de bebidas alcoólicas alcoólicos, referiu " na prática... (os efeitos fazem-se sentir com) mais do que 5 a 6 unidades de álcool, o que pode acontecer é que nesse caso se potenciam os efeitos sedativos dos medicamentos, e portanto hipoteticamente pode haver uma interferência nas questões de causar sedação excessiva" (acta/sessão de 09-11-2023 de 22min 21 segs a 22min 47segs) Quanto à interacção com o álcool dos medicamentos prescritos à assistente que não têm efeito sedativo disse que o efeito "é a falta de eficácia", momentaneamente não acontece nada "mas a longo prazo pode significar uma ineficácia terapêutica" (acta/sessão de 09-11-2023de 28min 29 segs a 28min 50 segs).
XXXIII. Por fim, quanto ao (C) alegado comportamento do arguido, que se apressou a deslocar-se a um posto policial após a ocorrência dos factos, que o tribunal a quo considera não ser "habitual nem compatível com a de um agressor sexual", dir-se-á que não é certamente habitual ou compatível com o comportamento de alguém que acabou de ter relações sexuais consensuais.
XXXIV. O que se consegue, objectivamente, observa a respeito do seu comportamento é que nunca compareceu no Tribunal, nem foi encontrado em nenhuma das moradas assinaladas no processo, designadamente aquela em que prestou TIR.
XXXV. Foram emitidos mandados para a detenção do arguido, que não foi encontrado pela polícia, posto que o arguido, conhecendo o processo e as suas obrigações processuais, colocou-se em parte incerta.
XXXVI. Também a interpretação que o tribunal a quo faz a respeito do comportamento do arguido surge não suportada pela lógica, nem pelas regras da experiência.
XXXVII. Em suma, não se retira do depoimento da assistente, ou de outros factos, que esta padeça de qualquer "confusão mental" a respeito dos actos sexuais que o arguido perpetrou sobre si e a violência física de que foi alvo;
XXXVIII. A tese da "confusão mental" não surge suportada pela experiência comum, ou por algum meio de prova;
XXXIX. As declarações da assistente surgem, assim, absolutamente credíveis e inabaladas pela demais prova produzida em julgamento.
XL. Pela valorização das declarações da assistente, registadas na sessão do dia 26-10-2023 com início às 10h 13m 49s até às 11h 28m 50s deverão ser julgados provados os seguintes factos, que o Tribunal a quo julgou não provados:
c) "No decurso da conversa então mantida após a saída de FF, o arguido, dizendo que a amava, tentou convencer AA a manter consigo relações sexuais" mostra-se provado pelas declarações da assistente na referida sessão do dia 26-10-2023 entre 08min 42seg a 08min56 seg e entre 08min 57seg a 09min 03 seg;
d) "AA recusou o pretendido pelo arguido, recusa de que o arguido não podia deixar de ficar bem ciente, sendo que, em acto continuo, BB, agarrando-lhe nos pulsos, atirou-a para cima da cama e da cobertura (edredon) que ali se encontrava" mostra-se provado pelas declarações da assistente acta/sessão do dia 26-10-2023 entre 09min 04 seg a 09min19seg;
e) "O arguido apertou então o pescoço de AA e tapou-lhe o nariz e a boca, causando-lhe aflição, bem como puxou-lhe o cabelo, causando-lhe dores" mostra-se provado pelas declarações da assistente acta/sessão do dia 26-10- 2023 de 09min19seg a 09min32seg e de 17min 41 segs a 18min 05 segs;
f) "Também movimentou o punho junto do rosto de AA causando-lhe temor que ali pudesse desferir uma pancada com a mão fechada, maltratando-a" mostra-se provado pelas declarações da assistente acta/sessão do dia 26-10-2023 entre 09min19seg a 09min32seg e 09min 32 segs a 09min 52 segs;
g) "O arguido disse-lhe então, com foros de seriedade, “Vai deixar, vai deixar, senão vou-te matar!”, expressões de que AA ficou ciente e que lhe causaram medo que o arguido maltratasse a sua saúde e bem-estar, até a pudesse matar, caso opusesse resistência, tendo de seguida retirado a roupa que a vitima vestia, nomeadamente, umas bermudas, as cuecas, uma camisa e um casaco" mostra-se provado pelas declarações da assistente acta/sessão do dia 26-10-2023 de 10min 10segs a 10min 18 segs, de 10min 19 seg a 10min 39 segs, de17min 29 segs a 17min 40 segs;
h) "Tendo-se também despido, o arguido, com o pénis erecto e sem preservativo, penetrou a vagina de AA e iniciou um movimento de vai e vem", mostra-se provado pelas declarações da assistente acta/sessão do dia 26-10-2023 entre 10min 19 seg a 10min 39 segs, de 19min02segs a 19min 12 segs, e de 29min 00 segs a 29min 03 segs;
i) "Ignorando os rogos da vítima que o instava a parar, o arguido disse á vítima “Eu vou-te matar se você não deixar! Fica quieta!”, com tais expressões causando temor e receio à vítima do que o arguido lhe pudesse fazer, quer à sua saúde quer à sua vida, caso opusesse resistência ao seu comportamento" mostra-se provado pelas declarações da assistente acta/sessão do dia 26-10-2023 de 17min 29 segs a 17min 40 segs, de 37min50 segs a 37min 58segs, e de 20min35 segs a 20min 41 segs;
j) "O arguido, após friccionar o seu pénis na vagina da vítima, introduziu-o na boca de AA constrangendo-a a sugar-lho porquanto, enquanto lhe agarrava o pescoço e lhe dizia que a maltrataria fisicamente se não o fizesse" mostra-se provado pelas declarações da assistente acta/ sessão de dia 26-10-2023, de 10min 19 seg a 10min 39 segs, de 19min 15 segs a 19 min 31 segs, e de 20min 25 segs a 20 min 31 segs;
k) "Quando cessaram estes factos, e sem que ejaculasse, o arguido, enquanto se vestia e ainda no quarto da vitima disse-lhe: “você não vai falar pra ninguém senão eu te mato”, expressões que a vítima ficou ciente e que lhe causaram receio que o arguido lhe pudesse fazer mal ao seu bem estar físico e até tirar-lhe a vida, caso denunciasse os factos" mostra-se provado pelas declarações da assistente ata/sessão do dia 26-10-2023 de 10min 40segs a 11min 06seg e 21min 01seg a 21min 05 segs;
n) "O arguido BB bem sabia que AA não queria ter relações sexuais consigo e que, actuando como actuou, atirando-a para cima da cama, manietando-a e agarrando-a, nomeadamente, nos pulsos e pescoço, puxando-lhe o cabelo, assim como pelas expressões que lhe dirigia e que infundiam temor na vitima que o arguido maltratasse a sua saúde ou até lhe tirasse a vida, a impedia de opor resistência e a constrangia à pratica de relações sexuais vaginais e orais consigo, não se abstendo de o fazer e concretizando este resultado que quis e logrou alcançar.", mostra-se provado pelas declarações da assistente acta/sessão do dia 26-10-2023 de 09min 04 seg a 11 min 06 seg e de 17min 29 segs a 20 min 41 segs;
o) "Bem sabia o arguido que praticava tais factos porquanto se encontrava na residência em que, juntamente com a vítima, habitava, não se abstendo de o fazer", mostra-se provado pelas declarações da assistente ata/ sessão de 26-10-2023 de 24min21 segs a 24min 40segs;
p) "O arguido bem sabia que dizendo a AA que a mataria em caso desta contar a terceiro dos factos de que tinha sido vítima lhe infundia temor e receio que o arguido lhe poderia tirar a vida caso o fizesse, inibindo-a, com esta actuação, à denuncia dos factos, mas não se absteve de o fazer", mostra-se provado pelas declarações da assistente ata/ sessão de 26-10-2023 de 10min 40segs a 11min 06seg e de 11min 06seg a 11min 23 segs;
q) "O arguido agiu livre e voluntariamente, bem sabendo que actuava sem o consentimento e contra a vontade da ofendida e que a sua conduta era proibida e punida por lei penal" mostra-se provado pelas declarações da assistente acta/sessão de 26-10-2023 de 08 min 10 seg a 08min 23 seg a 11 min 06 seg a 11 min 23 segs e de 17min 29 segs a 20min 41 segs.
r) "A assistente sentiu medo, humilhação e tristeza," mostra-se provado pelas declarações da assistente acta/sessão do dia 26-10-2023 entre09min 32 segs a 09min 52 segs, 38min 14segs e 38min 23 segs, 47min 30 segs a 49min01segs;
s) "A fibromialgia de que padece ficou mais grave e penosa" mostra-se provado pelas declarações da assistente sessão do dia 26-10-2023 entre 49min 08 segs a 49min a 39 segs;
t) "A assistente ficou num estado permanente de ansiedade, desânimo, frustração e raiva, sem alegria de viver durante vários meses depois dos factos", mostra-se provado pelas declarações da assistente ata/sessão do dia 26-10-2023 entre 47min 22 segs a 48min 28segs e 49min 42segs e 50min 00 segs;
u) "Verificou-se o agravamento do quadro de perturbação depressiva com sentimentos de infelicidade e dor", mostra-se provado pelas declarações da assistente acta/ sessão do dia 26-10-2023 entre 47min 38 segs e 47min 54 segs;
XLI. Os factos que o tribunal a quo julgou não provados indicados nas alíneas r) e t) surgem igualmente confirmados pelo depoimento da testemunha JJ que prestou depoimento na sessão de 26-10-2023, com início às 15h19m 01s e fim às 15h 48m 34s, entre 05m10s, e 12m10s, depoimento que se revelou absolutamente credível e inabalado pela demais prova produzida, de 11min 30 segs a 12 min 13 segs, de 14min 21 segs a 14min 34 segs, de 14min 50 segs a 15min 02 segs, de 15min 35segs a 16min 00 segs, de 16min 45 segs a 17min 16 segs), de 17min 20 segs a 17min 32 segs, de 22min10segs a 22min 24 segs e de 24min 20 segs a 25 min 08 segs, devendo julgar-se provados os factos r) e t), também pelo depoimento desta testemunha;
XLII. Os factos que o tribunal a quo julgou não provado indicados na alínea u) foram confirmados pela testemunha CC que prestou depoimento que se revelou absolutamente credível e inabalado pela demais prova, produzido na sessão de 09-11-2023, com início às 10h e 09m e 55s e fim às 10h e 43m e 10s, entre os 11min 35 seg e os 12min 22 segs, e entre 16min 29 segs e 16min 54 segs, devendo julgar-se provados os factos u), também pelo depoimento desta testemunha;
XLIII. Coexistem na decisão do tribunal a quo situações de erro notório, nos termos do art.º 410º n.º 2 c) CPP, com situações de erro na apreciação da prova, nos termos do art.º 412º nº 3 do CPP;
XLIV. Padece de erro notório a decisão quanto à prova com base na designada tese da "confusão mental" que questiona de que a assistente pudesse confundir uma situação de violação, vividamente recordada, com uma situação de sexo consentido, com base na falta de lesões na assistente ao nível do pescoço e com base no comportamento do arguido;
XLV. Um homem médio, perante o teor da decisão recorrida conjugada com o senso comum, apercebe-se que o tribunal a quo (com a devida vénia), na análise da prova, violou as regras da experiência e efectuou uma apreciação manifestamente incorrecta, desadequada, baseada em juízos ilógicos e preconceituosos, ao julgar não provados os factos c) a k) e n) a q) com base na teoria da "confusão mental", na apontada falta de lesões na assistente ao nível do pescoço e no comportamento do arguido;
XLVI. Ocorre igualmente erro na acepção do art.º 412.º do CPP a decisão sobre os factos assente na errada interpretação das declarações da médica psiquiatra CC, como na errada apreciação das declarações da testemunha JJ e nas da assistente, as quais, de forma conjugada, pela consideração do seu real teor impõe que se julguem provados os factos indicados nas alíneas c) a k), n) a q) e r) a u), supra.
Termos em que, com o douto suprimento de V/ Exas, deve a douta sentença do tribunal a quo ser revogada e substituída por decisão desse Venerando Tribunal que condene o arguido pela prática dos crimes que lhe são imputados e no pedido de indemnização civil.
Com o que se fará a costumada e sã.... JUSTIÇA!”
Ao assim recorrido veio responder o Ministério Público e o arguido.
Refere o primeiro que:
“1.ª A recorrente invocou a nulidade de erro notório na apreciação da prova, mas sem razão, pois os argumentos judiciais citados não contendem com a experiência comum ou com o pensar, sentir e agir do homem médio, não podendo a assistente confundir a sua discordância com falta de lógica ou nulidade.
2.ª A Recorrente quis pôr em crise a extensa apreciação da matéria de facto, sem que conseguisse abalar os fundamentos da motivação do Acórdão, assentes na livre convicção do Tribunal a quo e com fundamento no artigo 127.º do C. Processo Penal.
3.ª A Recorrente nunca impôs a necessidade de uma nova decisão, limitando-se a discordar do julgamento e a tentar, em esforço, abalar os fundamentos do Acórdão revidendo.
4.ª A assistente avançou com uma tese pouco intuitiva, de que o estrangulamento não implicava lesões no pescoço, sem que conseguisse explicá-la.
5.ª Quanto ao desfasamento temporal entre as declarações da assistente e a restante prova, a própria reconheceu-o, a páginas 10/11 das suas motivações.
6.ª A assistente mais criticou o facto, apontado pelo Tribunal a quo, de o arguido se ter apresentado no OPC, o que não é típico de um agressor sexual, usando, porém, argumentos falaciosos.
7.ª O Tribunal a quo expôs o seu percurso lógico com fundamentos extensos, objectivos e claros, em prova produzida em julgamento.
8.ª Ao contrário, as objecções da assistente foram produzidas em esforço lógico, não tendo a mesma avançado com argumentos que exigissem a necessidade de uma nova convicção: limitou-se a negar argumentos (e sem eficácia), sem conseguir sustentar uma versão probatória positiva.
9.ª A final, impor-se-á inexoravelmente a improcedência do Recurso, mantendo-se o Acórdão do Tribunal a quo nos seus precisos termos, pela exigência e rigor da análise da prova.
V. Ex.as, porém, e como sempre, farão JUSTIÇA!”
Refere o arguido aderir aos argumentos avançados pelo Ministério Público na sua resposta.
Os autos subiram a este Tribunal e no mesmo o Exmo. Procurador Geral Adjunto lavrou parecer no sentido da improcedência do recurso pelas razões constantes da resposta apresentada pelo Ministério Público em primeira instância.
Os autos foram a vistos e à conferência.
*
II – Do âmbito do recurso e da decisão recorrida
O âmbito do recurso é delimitado em função do teor das conclusões extraídas pelo recorrente da motivação apresentada, só sendo lícito ao Tribunal ad quem apreciar as questões desse modo sintetizadas, sem prejuízo das que importe conhecer oficiosamente, como são os vícios da sentença previstos no artigo 410º, nº 2, do CPP, mesmo que o recurso se encontre limitado à matéria de direito (cfr. Ac. do Plenário das Secções Criminais do STJ de 19/10/1995, DR I-A Série, de 28/12/1995 e artigos 403º, nº1 e 412º, nºs 1 e 2, ambos do Código do Processo Penal).
No caso concreto, temos que no presente recurso apenas há a conhecer da seriação da matéria de facto.
Para tanto e antes do mais recordaremos a matéria de facto provada, a não provada e a fundamentação das mesmas (transcrição do acórdão recorrido).
1. Em 12.04.2021, e desde data não concretamente apurada, o arguido BB e AA residiam no apartamento sito na ....
2. Na mesma data, também era ali residente EE, ocupando, cada um, um dos referidos quartos individuais, mas partilhando os espaços comuns da habitação.
3. Não obstante coabitarem juntos, não existia relação amorosa entre qualquer dos supra referidos co residentes.
4. No dia 11.04.2021, o arguido, FF e AA juntaram-se no apartamento sito na ..., para festejar o aniversário de FF.
5. No decurso de tal festejo, reunidos na marquise do apartamento que era utilizada como sala de estar, consumiram cerveja, tendo, pelas 20:30 horas, ali chegado EE.
6. Entre as 23h30m e as 0h00m EE recolheu ao quarto para se deitar, o que fez cerca de 30m depois;
7. Cerca da 1h00m, pelo facto de o quarto de EE ser contiguo à zona da sala de estar, o arguido, FF e AA retiraram-se para o quarto desta e ali continuaram sendo que em hora não apurada, FF retirou-se para a sua residência, permanecendo o arguido com AA naquele quarto;
8. No exame objectivo realizado à assistente no dia 12.4.21 pelo médico especialista de medicina legal foram detectadas diversas escoriações e equimoses dispersas pelos membros superiores, inferiores, tórax e abdómen, incluindo na face anterior de ambos os joelhos.
9. Após a saída do arguido do seu quarto, AA, ainda completamente despida, foi pedir ajuda a EE, dizendo-lhe que o arguido lhe queria fazer mal;
10. AA veio a contactar as autoridades e a denunciar os factos.
11. AA foi conduzida ao Centro Hospitalar de Lisboa Central onde deu entrada sob o n.º de episódio 21039807.
− Mais se provou que:
12. O arguido não tem antecedentes criminais registados.
13. Do atestado assinado pela médica psiquiatra da assistente de fls. 138 cujo teor se dá por reproduzido consta designadamente que: (AA) é acompanhada em consulta de psiquiatria desde 13.4.21 com diagnóstico de perturbação depressiva recorrente e fibromialgia; acompanhada anteriormente pelo Dr. GG neste Centro Hospitalar desde 15.1.2020 estando medicada até a minha consulta com duloxetina 60 mg, Pregabalina 50 mg e Trazadona 100 mg;
14. Consta do relatório médico elaborado em 11.05.21 pela médica psiquiatra supra identificada, CC, que a assistente é acompanhada em consulta de psiquiatria por depressão em traços de personalidade disfuncionais e que se encontra medicada habitualmente com duloxetina 60 mg, Pregabalina 50 mg e Trazadona 100 mg (fls. 124 a 126 e 133-134);
15. Da informação clínica de 12.5.21 cujo teor se dá por reproduzido consta que a assistente é seguida em consulta de reumatologia e apresenta diagnóstico de fibromialgia e espondilodiscartrose cervical e lombar;
16. Do atestado médico elaborado pela psiquiatra CC relativo à assistente consta designadamente que: do acompanhamento breve em consulta verificaram-se episódios depressivos recorrentes em geral relativos a eventos adversos da vida. A referência a traços disfuncionais da personalidade acentuados nos períodos de agravamento depressivo são caracterizados por instabilidade emocional, baixa tolerância à frustração e hipersensibilidade à rejeição, não consubstanciam no entanto impacto suficiente para se enquadrarem no disgnóstico de perturbação da personalidade.
17. Após colheita de analises no SU do HSJ no dia 12.4.21, na sequência da sua admissão, pelas 5h, a assistente tinha etanol no sangue numa taxa de 148 mg/dl;
B | FACTOS NÃO PROVADOS
Da discussão da causa não resultou provado:
a) Na ocasião descrita no (Facto provado nº 5) foi consumido vinho;
b) Pela 1h00m EE interpelou o arguido, FF e AA pelo barulho que faziam;
c) No decurso da conversa então mantida após a saída de FF, o arguido, dizendo que a amava, tentou convencer AA a manter consigo relações sexuais.
d) AA recusou o pretendido pelo arguido, recusa de que o arguido não podia deixar de ficar bem ciente, sendo que, em acto continuo, BB, agarrando-lhe nos pulsos, atirou-a para cima da cama e da cobertura (edredon) que ali se encontrava.
e) O arguido apertou então o pescoço de AA e tapou-lhe o nariz e a boca, causando-lhe aflição, bem como puxou-lhe o cabelo, causando-lhe dores.
f) Também movimentou o punho junto do rosto de AA causando-lhe temor que ali pudesse desferir uma pancada com a mão fechada, maltratando-a.
g) O arguido disse-lhe então, com foros de seriedade, “Vai deixar, vai deixar, senão vou-te matar!”, expressões de que AA ficou ciente e que lhe causaram medo que o arguido maltratasse a sua saúde e bem-estar, até a pudesse matar, caso opusesse resistência, tendo de seguida retirado a roupa que a vitima vestia, nomeadamente, umas bermudas, as cuecas, uma camisa e um casaco.
h) Tendo-se também despido, o arguido, com o pénis erecto e sem preservativo, penetrou a vagina de AA e iniciou um movimento de vai e vem.
i) Ignorando os rogos da vítima que o instava a parar, o arguido disse á vítima “Eu vou-te matar se você não deixar! Fica quieta!”, com tais expressões causando temor e receio à vítima do que o arguido lhe pudesse fazer, quer à sua saúde quer à sua vida, caso opusesse resistência ao seu comportamento.
j) O arguido, após friccionar o seu pénis na vagina da vítima, introduziu-o na boca de AA constrangendo-a a sugar-lho porquanto, enquanto lhe agarrava o pescoço e lhe dizia que a maltrataria fisicamente se não o fizesse.
k) Quando cessaram estes factos, e sem que ejaculasse, o arguido, enquanto se vestia e ainda no quarto da vitima disse-lhe: “você não vai falar pra ninguém senão eu te mato”, expressões que a vítima ficou ciente e que lhe causaram receio que o arguido lhe pudesse fazer mal ao seu bem estar físico e até tirar-lhe a vida, caso denunciasse os factos.
l) As lesões referidas no (Facto provado nº 8) foram consequência da conduta do arguido;
m) Na ocasião descrita no (Facto provado nº 9) a assistente disse a EE que o arguido a havia violado e que tinha dito que a iria matar.
n) O arguido BB bem sabia que AA não queria ter relações sexuais consigo e que, actuando como actuou, atirando-a para cima da cama, manietando-a e agarrando-a, nomeadamente, nos pulsos e pescoço, puxando-lhe o cabelo, assim como pelas expressões que lhe dirigia e que infundiam temor na vitima que o arguido maltratasse a sua saúde ou até lhe tirasse a vida, a impedia de opor resistência e a constrangia à pratica de relações sexuais vaginais e orais consigo, não se abstendo de o fazer e concretizando este resultado que quis e logrou alcançar.
o) Bem sabia o arguido que praticava tais factos porquanto se encontrava na residência em que, juntamente com a vítima, habitava, não se abstendo de o fazer.
p) O arguido bem sabia que dizendo a AA que a mataria em caso desta contar a terceiro dos factos de que tinha sido vitima lhe infundia temor e receio que o arguido lhe poderia tirar a vida caso o fizesse, inibindo-a, com esta actuação, à denuncia dos factos, mas não se absteve de o fazer.
q) O arguido agiu livre e voluntariamente, bem sabendo que actuava sem o consentimento e contra a vontade da ofendida e que a sua conduta era proibida e punida por lei penal.
− Do pedido de indemnização civil
Em consequência da conduta do arguido:
r) A assistente sentiu medo, humilhação e tristeza;
s) A fibromialgia de que padece ficou mais grave e penosa;
t) A assistente ficou num estado permanente de ansiedade, desânimo, frustração e raiva, sem alegria de viver durante vários meses depois dos factos;
u) Verificou-se o agravamento do quadro de perturbação depressiva com sentimentos de infelicidade e dor;
C | MOTIVAÇÃO DA MATÉRIA DE FACTO
(…)
A audiência de julgamento decorreu com o registo, em suporte digital, dos depoimentos e esclarecimentos nela prestados. Tal circunstância, que deve, também nesta fase do processo, revestir-se de utilidade, dispensa o relato detalhado das declarações e dos depoimentos produzidos. Todos os sujeitos processuais tiveram ampla oportunidade de discutir todos os documentos de que o Tribunal se serviu para fundar a sua convicção.
Com efeito, dos elementos probatórios tidos em consideração, destacam-se os seguintes:
1. Prova por declarações da assistente;
2. Prova testemunhal:
• Da acusação: JJ, irmã da assistente; EE, KK, Inspectora-Chefe da Polícia Judiciária, LL, Inspectora da PJ;
• Da assistente: MM, Psicóloga Clínica; CC, médica Psiquiatra; NN; OO;
3. Prova documental: Email relativo à observação de AA, fls. 24; Impressões imagens relativas a AA, fls. 57 a 59 e do arguido a fls. 60; Nota de alta Centro Hospitalar de Lisboa Central, fls. 61; Relatório de Inspecção Judiciária, fls. 65 e ss; Auto de apreensão, fls. 74; Auto de Noticia, fls. 108; relatório medico de fls. 133-134; informação clínica e fls. 134 verso; relatório médico de fls. 135; informações clínicas de fls. 136 – 140; Informação proveniente do Centro Hospitalar Psiquiátrico de Lisboa, fls. 325 (verso); CRC do arguido Referência Citius 428508277
4. Prova pericial: Exame pericial LPC/PJ n.º 202104985-CLC, fls. 79 a 100; Relatório Pericial IMLCF 2021-001035.1, fls. 124 a 126; Relatório da Perícia de Natureza Sexual em Direito Penal, fls. 178 a 180; Relatório Pericial IMLCF 2021-000929.1, fls. 298; Relatório da Perícia de Natureza Sexual em Direito Penal, fls. 299 e 300; CRC Referência Citius 428508277;
Concretizando:
Não foi possível trazer o arguido a julgamento apesar dos esforços desenvolvidos nesse sentido, conforme consta do teor das actas da audiência.
A assistente prestou declarações de forma tranquila, corroborando os (Factos provados nº 1 a 4) apenas divergindo no tipo de bebidas alcoólicas consumidas na data dos factos, referindo que foi apenas cerveja, cerca de 24 minis a dividir pelos 3 convivas. Também disse que tinham estado a beber desde as 12h00m. Declarou que recebeu da sua irmã, JJ, ao fim da tarde, um bolo de chocolate, o que foi confirmado pela própria irmã – que relatou que se deslocou ao prédio da assistente pelas 19h00m para lhe entregar o bolo mas não subiu à habitação - que se apercebeu, quando falou com ela, que a assistente não estava no seu estado normal, talvez alegre mas não alcoolizada e como lhe perguntasse se ela estava bem, a assistente respondeu que sim, que estava a conviver com o arguido, algo que a testemunha estranhou, por saber de conflitos anteriores que tinham ocorrido entre ambos, mas apenas a advertiu para ter cuidado. Em qualquer caso, saiu do local, sem ter entrado na residência da assistente, onde se encontrava o arguido, pelo que a nada mais assistiu.
Os (Factos provados nº 5-7) também foram parcialmente descritos pela assistente, embora esta tenha revelado não ter qualquer noção das horas em que os factos ocorreram, porquanto disse que EE terá chegado a casa pelas 21h00 (marco que reteve porque sabia que tinham que deixar de fazer barulho pelas 22h00m por causa dele, que não gostava de ser incomodado com o barulho) e como estavam a conviver na zona comum perto do quarto deste, recolheram ao seu quarto, e tudo terá ocorrido nos 30m seguintes. Em concreto, em resposta ao Tribunal, disse que foram para o seu quarto às 21h , às 21h15m saiu o FF, teve 5m de conversa com o arguido, às 21h20 iniciaram actos sexuais que terminaram 20m depois, às 21h40m, foi bater à porta do quarto do EE a pedir ajuda, pelas 21h45m foi à esquadra logo em seguida, ou seja, às 22hm tendo ali chegado pelas 22h05m; ficou 10 a 20m até chamarem a ambulância e ir para o hospital, onde pensa que esteve de madrugada pois recordava-se que estava tudo muito sossegado. Afirmou peremptoriamente que os factos não poderiam ter ocorrido pelas 0h00m. Ora, esta fita do tempo está totalmente desfasada da restante prova documental constante dos autos, de onde se retira que a PSP se deslocou à residência da assistente pelas 3h30m e a queixa foi apresentada pelas 3h (cfr. auto de notícia de fls. 107). Por outro lado, a assistente foi admitida no SU do Hospital de São José às 4h44m (nota de alta da urgência de fls. 61) e teve alta às 8h43m.
Ainda que não se exija a qualquer vítima que tivesse vivido a experiência relatada pela assistente que soubesse as horas e os minutos a que os factos tinham ocorrido, já é de exigir um mínimo de coerência no intervalo temporal em que os factos ocorreram, e não uma diferença no relato de cerca de seis horas, no caso, a diferença entre pouco depois do jantar e a madrugada documentada os autos. Acresce que como foi muito bem esclarecido pela testemunha EE, este recolheu ao seu quarto entre as 23h30m e as 0h00m, deitou-se pelas 0h30m e só depois se apercebeu que a assistente e (pelo menos) o arguido foram para o quarto da primeira; também disse que a assistente e o arguido estiveram em convívio várias horas, que não soube quantificar porquanto estava a dormitar, mas sabe que foram várias horas, o que já é compatível com a hora a que a queixa foi apresentada. Este convívio foi descrito como festivo e só na parte final a testemunha EE ouviu ruído de discussão.
O Tribunal não tem razões para duvidar do depoimento da testemunha EE, que se revelou isento e coerente, tendo a testemunha demonstrado genuína vontade de colaborar com a descoberta da verdade mostrando compreender a importância de transmitir com rigor as circunstâncias de tempo em que os factos de que teve conhecimento directo ocorreram. Não perpassou pelo seu depoimento qualquer intenção de se esquivar ao esclarecimento dos factos ou de parcialidade no sentido de favorecer o arguido ou desfavorecer a assistente e vice-versa.
Ou seja, tendo em conta o depoimento de EE, conclui-se que a assistente omitiu ao Tribunal que esteve várias horas no quarto em convívio com o arguido e afirmou convictamente que tudo se tinha passado em cerca de 30m. Este desfasamento afecta a credibilidade das suas declarações o que teve reflexo na formação da convicção do Tribunal nos termos infra explanados.
Os (Factos provados nº 6 e 7) resultam por isso do depoimento da testemunha EE conjugados com as declarações da assistente na parte em que a mesma referiu ter convidado o arguido para o seu quarto para não incomodarem o colega de casa.
O (Facto provado nº 8) resulta de fls. 24 (email do médico especialista em medicina legal), conjugado com as fotografias de fls. 57 a 59 e relatório pericial de 179-180.
Os (Factos provados nº 9-10) resultam do depoimento de EE e das declarações da assistente e o (Facto provado nº 11) da nota de alta do SU de fls. 61-62.
O (Facto provado nº 12) resulta do teor do CRC supra mencionado.
Os (Factos provados nº 13-17) resultam da prova documental supra indicada: relatório medico de fls. 133-134; informação clínica e fls. 134 verso; relatório médico de fls. 135; informações clínicas de fls. 136 – 140; Informação proveniente do Centro Hospitalar Psiquiátrico de Lisboa, fls. 325 (verso).
Foram por sua vez inquiridas as testemunhas arroladas pela assistente.
MM, Psicóloga Clínica que acompanhou a assistente na APAV, no essencial relatou o estado psicológico desta na sequência de um episódio que a mesma relatou de agressão sexual, referindo que esteve com a assistente durante 5 sessões e a mesma estava zangada por não estar a acontecer nada no processo judicial e tinha receio de encontrar o arguido, pensamentos ruminativos e hipervigilância, tinha dificuldade em dormir, encontrar emprego e percebeu que para além das questões da vitimação relacionada com o episódio por si relatado, a assistente precisava de um acompanhamento psicológico mais abrangente e por isso encaminhou-a. Procurou depois saber como estava a correr esse acompanhamento tendo a assistente relatado que estava a ser acompanhada em psiquiatria, ficou de contactar a APAV e não contactou.
CC, médica psiquiatra, acompanhou a assistente entre 2019 e 2021 e confirmou o teor dos atestados médicos que juntou aos autos referindo que do que conhece da assistente ela não confunde a realidade com a ficção. Relatou que quando a acompanhou detectou agravamento da sintomatologia depressiva e ansiosa e com ajuste da medicação; o acompanhamento foi mensal ou de dois em dois meses, referindo ainda que as queixas de ansiedade associadas a experiências traumáticas tendentes a reviver os sentimentos associados à experiência têm impacto na saúde mental. Posteriormente houve melhoria em relação a essas queixas e disse que a assistente teve alta da consulta de psiquiatria, mas podia ser acompanhada em médico de família e tomar a medicação. Em relação aos consumos de álcool combinados com a medicação que a assistente tomava na altura dos factos, referiu que o álcool interfere no sentido que pode causar sedação excessiva e pode a assistente ficar sem discernimento para saber se a relação sexual é consentida ou não, dependendo da quantidade de álcool consumida, o que remete para a confusão mental já antes referida.
A testemunha NN compartilhou casa com a assistente entre 2018 e 2020, não a via desde há dois anos e meio e relatou que a assistente não é pessoa conflituosa e nunca a viu acusar alguém de alguma coisa que não tivesse feito, não tem dificuldade em compreender a realidade e não fantasia.
OO, namorado da assistente desde uma altura próxima da data dos factos referiu que a assistente lhe contou que tinha tido um problema com outro homem antes de o conhecer, num contexto de uma tentativa de agressão sexual na sequência de ter recusado manter relações sexuais e que o agressor a tentou matar apertando-lhe o pescoço, mas nunca disse que foi violada.
Foi junto aos autos pela assistente um relatório médico elaborado em 11.05.21 pela médica psiquiatra supra identificada, CC que atesta que a assistente é acompanhada em consulta de psiquiatria por depressão em traços de personalidade disfuncionais e que se encontra medicada habitualmente com duloxetina 60 mg, Pregabalina 50 mg e trazadona 100 mg (fls. 124 a 126 e 133-134).
De acordo com a informação clínica de 12.5.21 a assistente é seguida em consulta de reumatologia e apresenta diagnóstico de fibromialgia e espondilodiscartrose cervical e lombar, cfr. fls. 134 cujo teor se dá por reproduzido.
No que toca aos factos não provados nas alíneas a) e b) os mesmos assim foram considerados por não ter sido produzido qualquer meio de prova que os sustentasse.
Quanto aos demais factos, em concreto, os actos sexuais não consentidos perpetrados pelo arguido, que teriam ocorrido no quarto da assistente, adianta-se desde já que o Tribunal fica com dúvidas sobre a ocorrência dos factos, apesar das declarações da assistente, tendo em conta que as mesmas se revelaram incoerentes com a demais prova produzida, apesar de o arguido não ter estado presente e não ter prestado declarações em audiência de julgamento.
Vejamos.
No que toca ao desfasamento e incoerência do relato da assistente no que toca à hora em que os factos ocorreram que aparenta remeter para alguma confusão mental e permitem suscitar dúvidas sobre a capacidade da assistente interpretar a realidade na data dos factos, importa assinalar que foi detectado por exame pericial que a assistente tinha no sangue Etanol no valor de 148 mg/dl sendo que a recolha foi efectuada entre as 5h00m (hora do atendimento inicial) e as 6h51m (hora da consulta de medicina interna de onde decorre que aguarda análises (nota de alta da urgência polivalente a fls. 61) que como decorre dos estudos relacionados com os efeitos do consumo de álcool em seres humanos (bastando para tanto uma consulta em fontes abertas na internet) implica já um estado de confusão mental.2
Ora, no caso, tendo em conta que a assistente tinha estado a beber durante todo o dia, tinha parado de beber pelo menos pouco antes das 3h da manhã (hora a que saiu de casa para apresentar queixa, e pelas 5h da manhã ainda tinha 148mg/dl no sangue pode inferir-se que nas horas que antecederam a recolha de sangue a taxa era superior e permite concluir que se encontrava numa situação de intoxicação moderada com concentração sanguínea de etanol entre 150 e 300 mg/dl que conforme consta de fontes abertas da internet implica os seguintes sintomas para uma pessoa não alcoólica: variabilidade de humor; desinibição pronunciada; fala arrastada; maiores deficits na coordenação e habilidades psicomotoras; aumento da instabilidade da marcha; falta de jeito, a pessoa torna-se desastrada; atenção, memória e julgamento cada vez mais prejudicados; redução na capacidade de resposta, de alerta e no tempo de reacção; confusão mental; movimentos oculares descontrolados; sonolência; tontura; náuseas e vómitos; visão e localização sonora prejudicadas; amnésia.3
Assim sendo, pode inferir-se destes elementos que a assistente, com a taxa de álcool no sangue que lhe foi detectada, não podia estar com todas as suas faculdades mentais intactas e a confusão mental em que se encontrava levantam dúvidas sérias sobre a fiabilidade do seu relato, e em consequência sobre a ocorrência dos factos tal como por esta relatado. De realçar que a própria assistente referiu que o arguido quando saiu do quarto referiu que a mesma estava surtando, como quem diz, estava a ter um surto (psicótico), estava delirar, o que é compatível com a referida concentração de etanol e com o facto de ter saído do quarto totalmente despida, facto do qual só se apercebeu depois de ter batido à porta de EE. Pode perguntar-se até se tendo sido objecto de uma violação como referiu, não seria instintivo cobrir o próprio corpo quando saiu do quarto, com um edredon, que tinha à mão, o que não fez (fotografias de fls. 68 e 69). Reitera-se, por outro lado, o desfasamento temporal no relato dos factos, ou seja, a assistente tem uma memória totalmente distorcida da hora a que os factos ocorreram o que permite duvidar que os mesmos tenham ocorrido dessa forma.
Mas não apenas nestes aspectos as declarações da assistente levantam dúvidas.
De facto, no que toca ao relato dos concretos actos sexuais que o arguido teria perpetrado sobre si e a violência física de que foi alvo, referiu a assistente que ficaram na varanda e o arguido se deitou na sua cama, pelas 21h da noite, fingiu que estava a dormir e a assistente continuou a conversar com o FF; a certa altura acha que foi feito um sinal e o FF saiu do quarto; disse ao arguido para ele se levantar e sair do quarto porque não gostou que ele estivesse deitado na cama, insistiu várias vezes para ele se levantar até que ele levantou e a assistente sentou-se na cama, o arguido de joelhos à sua frente a dizer te amo e gosto de você e a assistente disse que não era certo porque ele era novo e eram amigos. Mais declarou que o arguido ele já tinha manifestado interesse por si, mas já o tinha dissuadido pela diferença de idades e porque ele tinha diversas pessoas. Deram um abraço e disse não tem nada a ver; ele baixou a cabeça, fingindo que estava me escutando quando ele voltou à posição que estava, olhou para mim com um olhar ruim pegou-lhe no pescoço, deitou-a na cama, colocou-se em cima de mim, me enforcando, falou para eu tirar a roupa, a assistente gritou socorro e aí ele tapou a boca e o nariz da assistente, mas estava tapando muito forte e ameaçava com soco e dizia tira a roupa e isso estava me fazendo perder a consciência; disse que deu luta porque caiu e ele puxou o cabelo fazendo-a voltar para a cama enquanto a ameaçava com um soco e dizia que a ia matar o tempo todo e mandou tirar a roupa; tinha vestido uma blusa de manga comprida, uma camisa, uma blusa jeans e uma cueca. De seguida a assistente despiu-se e de seguida ele também se despiu e fez penetração vaginal e ele estava por cima de si e depois continuou dando luta e caiu da cama e ele puxou pelo cabelo e ameaçava com soco e mandou fazer sexo oral nele; eu fiz porque estava com medo de ele agredir. Quando a obrigou a fazer sexo oral não soube explicar como ele fez força no corpo mas relatou que tinha a ideia muito forte é que ele estava sempre a fazer pressão no seu corpo por cima e ameaçando o tempo todo; depois que caiu puxou o cabelo com muita força e acha que ele pegou no seu corpo, no braço, na mão e quando a obrigou a fazer sexo oral estava agarrar os cabelos e dizia vai deixar senão eu vou-te matar. Não soube dizer que o arguido ejaculou porque a certa altura dissociou tentando perceber o que estava a acontecer porque era uma pessoa próxima. Disse que viu a morte e pensou nos filhos e viu a morte e deu luta, óbvio. Depois que acabou ficou deitada na cama e ele deixou-a lá mas antes de sair do quarto ainda lhe disse se você for dar queixa na policia, eu vou matar você e a sua família (ele sabia que tinha irmã e filhos). Nessa altura tentou atacá-lo com um banco, que ele agarrou e ele saiu do quarto gritando dizendo a AA está louca, ela está surtando. De seguida a assistente saiu do quarto totalmente despida foi pedir ajuda EE e ele disse-lhe, para voltar para o seu quarto e se trancar que não podia fazer nada, fechou a porta e a assistente a deu conta que estava nua, ficou com medo que ele voltasse que a fosse matar, foi para o quarto, vestiu-se e foi à PSP pedir ajuda. Quando cruzou a rua viu o arguido na porta da PSP, relatou o que aconteceu na esquadra e diz que fez exames. Depois voltaram a casa com a PSP, o que é compatível com o auto de notícia já referido, fez a perícia e foram para um albergue e não voltou a estar naquela casa desde esse dia. A assistente declarou que ficou com lesões no braço, perna, tórax e nariz (tentou tirar a mão dele para poder respirar), na cabeça, mas não deu para tirar foto na hora da perícia porque o cabelo é grande e que a perita disse aqui não vai dar; ficou com lesões na boca, cabeça e garganta e o corpo com muitos hematomas.
Desde relato ressalta a maior incongruência no facto de a assistente ter asseverado, por várias vezes, que o arguido a agarrou pelo pescoço com força e no exame de fls. 24 (remetido pelo médico especialista em medicina legal) realizado no dia 12.4.21 pelas 10h00, na nota de alta do SU, nas fotografias de fls. 57-59 e no auto de notícia da PSP de fls. 107 não se mencionarem nem visualizarem quaisquer lesões no pescoço (ou visíveis), facto que as Inspectoras da PJ que prestaram depoimento, disseram ser incongruente com o relato, bem como ressaltaram não existirem lesões na zona genital. O que apesar de tudo é menos estranho tendo em conta a idade da vítima (em vítimas adultas sujeitas a violação sexual nem sempre existem lesões na zona vaginal por serem vítimas em princípio com experiência sexual). A Inspectora KK afirmou que as fotografias e as perícias foram realizadas com a sua supervisão e que foram seguidos todos os procedimentos habituais neste tipo de casos. A Inspectora referiu ainda não poder concluir que as lesões detectadas no corpo da assistente resultassem da agressão sexual de que declarou ter sido vítima. Desde logo pela análise da coloração das lesões, verifica-se que a mesma diverge, sendo umas lesões mais escuras, outras avermelhadas e outras amareladas que a Inspectora LL, instrutora do processo, referiu que não aparentavam ser recentes. Mais disse que juntou aos autos uma fotografia do arguido (fls. 60), na qual é indicada a existência de uma lesão/escoriação recente compatível com o relato da assistente que referiu que tentou atingir o arguido com um banco quando estava a sair do quarto o que aponta para confronto físico.
Ou seja, a incongruência entre o relato da assistente quanto à fita do tempo e quanto às lesões que lhe foram encontradas também aprofunda a dúvida sobre a ocorrência dos factos nos termos por si relatados mas não exclui que tenha havido confronto ou contacto físico entre a assistente e o arguido.
E a corroborar essa hipótese surge o relatório pericial criminalística biológica realizado e que constam de fls. 124 a 126 do qual decorre que não se evidenciou a presença de sémen na zaragatoa vaginal e nas machas de édredon do quarto da assistente mas foram detectados haplótipos compatíveis com o arguido quer numa mancha de édredon, quer na zaragatoa vaginal. Tal facto é compatível com a existência de contacto intimo entre os dois, mas não permite concluir, sem apoio de outros meios de prova congruentes e concludentes que a assistente foi forçada à prática de actos sexuais nos termos em que relatou.
Em relação ao relato que fez a EE, de realçar que este declarou que a assistente lhe disse que o arguido lhe queria fazer mal, mas a assistente não lhe disse que tinha sido violada/agredida sexualmente e não ficou com a ideia que tinha havido qualquer agressão sexual. Nas suas declarações a assistente disse que tinha pedido ajuda.
De realçar ainda que o arguido teve um comportamento nos autos que não é habitual, tendo tido a iniciativa de se deslocar à esquadra para relatar o sucedido, colaborou e acompanhou a investigação como foi relatado pelas Inspectoras responsáveis pelo inquérito e resulta da tramitação dos autos (fls. 129, 183). EE também declarou que o arguido se comportou como alguém que não tinha praticado os factos de que era acusado.
Conjugada toda a prova verifica-se que a assistente admite que esteve com o arguido todo o dia em convívio e que ao longo de todo esse tempo, desde a hora de almoço, estiveram a ingerir bebidas alcoólicas e certamente não na quantidade que a mesma referiu, ou seja 24 minis a dividir por três pessoas, mas certamente em quantidade superior de acordo com as regras da experiência e estudos científicos publicados, tendo em conta que pelas 5h da madrugada ainda lhe foi detectada uma TAS de 148 mg/dl que como foi atestado pela médica psiquiatra assistente pode comprometer o discernimento do doente para saber se a relação sexual é consentida ou não, tendo ainda em conta os sintomas habituais associados à referida taxa de álcool no sangue já supra referidos. Ou seja, tendo em conta que a assistente e o arguido estiveram várias horas fechados no quarto desta em convívio e existem indicadores de que tiveram contacto físico designadamente pelos elementos encontrados no édredon e na zaragatoa vaginal – cfr. relatório de perícia sexual fls. 299-300), pode esse contacto ter sido íntimo, sexual e consentido.
Para tal hipótese apontam:
a) o relato da dinâmica das eventuais agressões, incongruente com as lesões que lhe foram detectadas, inexistentes, especialmente ao nível do pescoço, sendo que as demais podem ser justificadas com um confronto físico, as recentes e as mais antigas não têm relação com o evento;
b) o desfasamento temporal do relato que aponta para confusão mental;
c) a predisposição em que se colocou a assistente para a confusão mental, através do consumo de álcool e a já mencionada interacção medicamentosa. A esta confusão mental a própria assistente fez referência ao remeter para as palavras do arguido no momento dos factos, em que o mesmo abandonou o local referindo ela surtou, tendo de seguida ido à esquadra reportar o ocorrido,
d) o comportamento do arguido que também não é habitual nem compatível com a de um agressor sexual, porquanto colaborou e foi aliás o primeiro a contactar as autoridades, tendo chegado à esquadra antes da assistente, como a própria declarou.
Ou seja, é possível que a assistente tenha ficado com uma percepção errada quanto ao efectivo consentimento que deu para os actos íntimos/físicos que não se pode excluir que tenham ocorrido, com o arguido, de forma consentida. Nesse caso, não se pode dar como provado que a assistente recusou a prática de relações sexuais e que o arguido estava ciente de tal recusa (Facto não provado al. d)
E pelas mesmas razões não se dão como provados os demais factos relativos à dinâmica das agressões sexuais nos termos em que constavam da acusação (Factos não provados als. c) e e) e q))
Como se refere na jurisprudência (Ac. TRP de 13/02/13, P. 256/10.0GARMR): a reconstrução que o tribunal deve fazer para procurar determinar a verdade de uma narrativa de factos passados irrepetíveis assenta essencialmente na utilização de raciocínios indutivos que, pela sua própria natureza, apenas propiciam conclusões prováveis. Mais ou menos prováveis, mas nunca conclusões necessárias como são as que resultam da utilização de raciocínios dedutivos, cujo campo de aplicação no domínio da prova é meramente marginal. Chegamos, assim, à conclusão que o cerne da prova penal assenta em juízos de probabilidade e que a obtenção da verdade é, em rigor, um objectivo inalcançável, não tendo por isso o juiz fundamento racional para afirmar a certeza das suas convicções sobre os factos. A decisão de considerar provado um facto depende, a nosso ver, do grau de confirmação que esses juízos de probabilidade propiciem. Esta exigência de confirmação impõe a definição de um “standard” de prova de natureza objectiva, que seja controlável por terceiros e que respeite as valorações da sociedade quanto ao risco de erro judicial, ou seja, que satisfaça o princípio “in dubio pro reo”. Podemos, para o efeito, aceitar o critério definido por Ferrer Beltrán segundo o qual «para se considerar provada uma hipótese de culpabilidade devem encontrar-se preenchidas simultaneamente as seguintes condições: 1) A hipótese deve ser capaz de explicar os dados disponíveis, integrando-os de forma coerente, e as previsões de novos dados que a hipótese permita formular devem ter resultado confirmadas; 2) Devem ter-se refutado todas as demais hipóteses plausíveis explicativas desses mesmos dados que sejam compatíveis com a inocência do acusado, excluídas as meras hipóteses “ad hoc”»;
Ora, no caso, a versão da assistente é incongruente e não explica os factos, em conjugação com a demais prova produzida, existindo uma possibilidade real de os factos não terem ocorrido como por esta relatado, sendo tal dúvida insanável, após terem sido efectuados todos os esforços para recolher a versão do arguido, que não foi possível trazer a julgamento. Nessa medida, existindo uma dúvida razoável quanto à culpabilidade deste, resta concluir pela sua absolvição, aplicando o princípio in dubio pro reo.
No que toca aos factos relativos ao pedido de indemnização civil, não se apurando a responsabilidade criminal do arguido, é manifesto que não se estabelece o nexo de causalidade entre os danos invocados pela assistente e a conduta do arguido pelo que tais factos foram dados como não provados. (Factos não provados als. q) a t))”
*
Do mérito do recurso
No acórdão de 22.02.2023 tirado no processo 36/17.2 PTSNT.L1 e em que foi relatora a Desembargadora Maria Margarida Ramos Almeida, acessível em www.dgsi.pt , considerou-se com acerto que “O que diferencia a revista alargada e a reapreciação por erro de julgamento - dois autónomos e diversos fundamentos de recurso - é uma questão de patologia e de perspectiva analítica. No caso da revista alargada, fundada nos vícios consignados no art.º 410 nº2 do C.P.Penal, a perspectiva de análise é realizada sem que possa ser feito qualquer apelo ao que concretamente foi dito em termos de depoimentos em audiência, com excepção do resumo probatório realizado pelo tribunal “a quo”. A consequência da existência deste tipo de erro é a ocorrência de um vício, que acarreta a nulidade da sentença (parcial ou total), passível ou não de suprimento, consoante o caso em apreço.
No caso do erro de julgamento (previsto no art.º 412 nºs 3 e 4 do C.P.Penal), a reapreciação probatória a realizar já faz apelo a segmentos probatórios concretos, prestados em audiência. Isto significa que o registo de prova é aqui um elemento essencial para se proceder à reanálise pretendida, pois a mesma vai para além da mera decisão constante no texto, fundando-se no teor do que foi concretamente dito pelas testemunhas ouvidas em 1ª instância. A consequência jurídica da verificação da existência deste tipo de indevida apreciação probatória é a alteração da matéria de facto dada como assente ou não assente, realizando-se uma reapreciação dos segmentos criticados pelo recorrente e procedendo-se a nova fundamentação dos mesmos, substitutiva da originariamente realizada pelo juiz “a quo”.
Concomitantemente são as conclusões recursais e não as motivações que balizam o poder e o dever de conhecimento do Tribunal ad quem.
Serve o presente intróito para realçar que, ao contrário do alegado pela recorrente não existe qualquer erro notório na apreciação da prova. Este vício, como referido, tem de fluir do próprio texto da decisão e não de outros elementos externos à mesma e. lida a decisão, a mesma, sem quaisquer outros elementos, é lógica e coerente. Em momento algum é possível dizer que, a partir do texto da decisão, deflua de forma fácil, evidente e ostensiva que factualidade ali exarada é arbitrária, contrária à lógica, a regras científicas ou de experiência comum, ou assenta na inobservância de regras sobre o valor da prova vinculada, ou das leges artis (Acs. do STJ de 12.03.2015, processo 40/11.4JAAVR.C2; de 06.12.2018, processo 22/98.0GBVRS.E2.S1 e de 03.04.2019, processo 38/17.9JAFAR.E1.S1 e Simas Santos e Leal Henriques, in “Recursos em Processo Penal, 7ª ed., 2008, Editora Rei dos Livros, pág. 77).
A questão que se coloca – e que a assistente colocou com extremo acerto – é a da impugnação da matéria de facto nos termos do artº 412 nºs 3 e 4 do C.P.Penal.
Para que o recorrente obtenha ganho de causa neste tipo de impugnação terá de proceder em dois momentos distintos:
Num primeiro momento tem de demonstrar perante o Tribunal ad quem que a escolha probatória do tribunal a quo foi errada, contrária à lógica ou ausente de prova de suporte. Não basta dizer que para além da factualidade apreciada haveria outras versões possíveis com a mesma prova. Neste último caso haveria uma diferente apreciação da prova e esta apreciação (desde que suportada na lógica e nas regras da experiência) seria insindicável. O que o recorrente tem de fazer é demonstrar que o Tribunal a quo errou, que versão que deu como assente não é suportada, quer na lógica, quer na prova. Trata-se de desconstruir a decisão.
Num segundo momento o recorrente tem de demonstrar qual a versão factual que é suportada pelos factos e porquê, indicando quer a prova, quer o raciocínio que da é possível levar a cabo ante a mesma. Trata-se de construir a nova decisão.
Vejamos, então, a questão proposta analisando o primeiro momento recursal, o dito momento de desconstrução.
Como referiu o Tribunal a quo, a prova da acusação assentaria, grosso modo, nas declarações da assistente a qual, em traços largos, confirmou o acto de violação.
O Tribunal, contudo, não julgou críveis tais declarações porquanto, como o próprio refere apontam para a incoerência do relatado os seguintes factos:
“a) o relato da dinâmica das eventuais agressões, incongruente com as lesões que lhe foram detectadas, inexistentes, especialmente ao nível do pescoço, sendo que as demais podem ser justificadas com um confronto físico, as recentes e as mais antigas não têm relação com o evento;
b) o desfasamento temporal do relato que aponta para confusão mental;
c) a predisposição em que se colocou a assistente para a confusão mental, através do consumo de álcool e a já mencionada interacção medicamentosa. A esta confusão mental a própria assistente fez referência ao remeter para as palavras do arguido no momento dos factos, em que o mesmo abandonou o local referindo ela surtou, tendo de seguida ido à esquadra reportar o ocorrido,
d) o comportamento do arguido que também não é habitual nem compatível com a de um agressor sexual, porquanto colaborou e foi aliás o primeiro a contactar as autoridades, tendo chegado à esquadra antes da assistente, como a própria declarou.”
Ora, no que tange à incongruência do relato e das lesões apresentadas temos que a assistente apresentava.
Ouvida por este Tribunal toda a prova produzida temos que apenas a assistente se refere às agressões pois que as mesmas ocorreram quando ela e o arguido estavam no quarto sem terceiros presentes e o arguido não prestou declarações em audiência.
A tal acrescem as declarações de EE a quem a assistente recorreu depois dos factos e o resultado do exame médico e da perícia efectuada, elementos que poderão corroborar ou não o que foi dito.
Temos por assente e por ponto de partida que as declarações prestadas com compromisso de verdade correspondem, efectivamente, à verdade. As declarações de um interveniente processual só devem ser descartadas se se demonstrar a sua impossibilidade.
No que toca ao relato dos concretos actos sexuais que o arguido perpetrou sobre a assistente e a violência física de que foi alvo, a assistente referiu que, na noite em que ocorreram os factos, foi para o quarto com II e arguido, pois estavam a fazer barulho na área comum da casa, e o quarto tinha uma varanda onde podiam conviver (07min 20 seg a 7min 42 seg); nesse lugar, o arguido deitou-se na sua cama da assistente, e fingiu que estava a dormir enquanto aquela assistente se manteve a conversar com o FF na varanda do seu quarto (07min46seg a 08min 07 seg); a certa altura o arguido fez um sinal e o FF e este saiu do quarto (08min 10 seg a 08min 23 seg); disse ao arguido para ele se levantar e sair do quarto porque não gostou que ele estivesse deitado na cama, insistiu várias vezes para ele se levantar até que ele levantou e a assistente sentou-se na cama (08min 25 seg a 08min42seg); o arguido colocou-se de joelhos à sua frente da assistente e "começou a falar um monte de coisas" como "te amo" e "gosto de você" e a assistente disse que não, "não isso não é uma coisa certa porque você é um rapaz novo", "você tem muita coisa pela frente não tem nada a ver. Tenho uma relação com você de amizade" (08min 42seg a 08min56 seg). O arguido abraçou a assistente e esta disse "tá eu vou te dar um abraço" mas "não tem nada a ver" (08min 57seg a 09min 03 seg); Nessa sequência "quando ele voltou na posição em que ele estava, olhou para mim pegou no meu pescoço" deitou-a na cama "me pressionando muito em cima de mim, colocou-se em cima de mim, falou para eu tirar a roupa (09min 04 seg a 09min19seg); a assistente gritou por socorro "eu falei o que é que é isso, e aí eu gritei socorro", "e aí ele tapou a minha boca e o meu nariz", "mas estava tapando muito forte e me ameaçava com soco e falou «tira a roupa, tira a roupa»" (09min19seg a 09min32seg); "Os primeiros segundos, assim, foi uma coisa muito sinistra", "eu fiquei tentando entender o que estava acontecendo, porque era uma pessoa próxima, da casa" (09min 32 segs a 09min 52 segs); "dei luta, óbvio, mas estava sempre com muito medo; ele era muito forte, ele estava em cima de mim o tempo todo e aconteceram as coisas" (10min 10segs a 10min 18 segs); "tirou a roupa, fez o sexo, me penetrou, eu tentando lutar (...) pegou no meu cabelo, o tempo todo me ameaçando, falando «eu vou te matar»", "fez eu fazer o sexo oral, e eu mesmo assim, sempre dando luta, (10min 19 seg a 10min 39 segs); "depois que acabou, eu fiquei deitada na cama e ele me deixou lá (...) ele chegou no meu ouvido (...) e falou «se você for à polícia dar queixa eu vou matar você e a sua família» (10min 40segs a 11min 06seg); Nessa altura a assistente tentou atacá-lo com um banco, que ele agarrou e ele saiu do quarto gritando dizendo a AA está louca, ela está «surtando» (11min 06seg a 11min 23 segs); De seguida a assistente saiu do quarto totalmente despida foi pedir ajuda EE e ele disse-lhe, para voltar para o seu quarto e se trancar que não podia fazer nada, fechou a porta e a assistente a deu conta que estava nua, ficou com medo que ele voltasse que a fosse matar, foi para o quarto, vestiu-se e foi à PSP pedir ajuda (10min 32segs a 12min 08segs).
A assistente explicou ainda que "ele pegou no meu pescoço e me colocou deitada, ficou em cima de mim, e começou a falar «eu vou-te matar», e mandou tirar a roupa ameaçando com um soco, enquanto segurava no meu pescoço" (17min 29 segs a 17min 40 segs); "mas como eu gritei socorro, ele tapou a minha boca e o meu nariz, (...) puxou o meu cabelo" (17min 41 segs a 18min 05 segs); "ele mandou eu me despir senão ele ia me agredir (...) fez penetração vaginal" 19min02segs a 19min 12 segs; "depois eu continuei dando luta, eu caí da cama ele me puxou pelo cabelo (...) foi nessa hora que ele estava segurando o meu cabelo, me ameaçando com um soco, que mandou fazer sexo oral nele (...) eu fiz" (19min 15 segs a 19 min 31 segs), quando a obrigou a assistente a fazer sexo oral o arguido estava a agarrar a assistente pelos cabelos (20min 25 segs a 20 min 31 segs); o arguido dizia "vai deixar senão eu vou-te matar" 20min35 segs a 20min 41 segs; Não soube dizer que o arguido ejaculou - "na minha boca não" (21min 01seg a 21min 05 segs); disse que viu a morte, e sentiu-se incrédula pelo seu agressor ser uma pessoa "da casa", que já tinha ajudado, e que conhecia a sua irmã, e teve muito medo (24min21 segs a 24min 40segs); o arguido não usou preservativo (29min 00 segs a 29min 03 segs).”
O Tribunal enfatiza a ausência de marcas no pescoço, mas a verdade é que das declarações da assistente - as única referentes ao evento - não resulta que o apertar o pescoço tivesse sido uma acção persistente ou de tal forma intensa que tivesse que deixar uma qualquer marca. Que existiu um aperto no pescoço refere-o a assistente na sessão de 26-10-2023 de 09min 04 seg a 09min19seg mas também refere que o arguido se colocou em cima dela (assim a manietando) tendo também lhe tapado o nariz e a boca sendo que também aqui não existem lesões e o Tribunal não parece ter ficado alarmado com tal ausência.
Tem, pois, razão a assistente quando refere que “a factualidades descrita na acusação e confirmada pela assistente em audiência de julgamento, de acordo com as regras da experiência, não é de ordem a deixar lesões ao nível do pescoço, não sendo, por isso razoável ou lógico acompanhar a objecção apontada pelo Tribunal a quo, a respeito do que foi verificado no corpo da assistente”
O Tribunal a quo refere também o "desfasamento temporal do relato que aponta para confusão mental".
Que o relato da assistente não seja coerente quanto às horas e ao tempo (a assistente relata a sucessão de eventos no início da noite quando a ida à esquadra e a hospital ocorrem madrugada dentro) é, parece-nos, um dado adquirido.
A questão não é tanto a incongruência, mas a relevância da mesma. É que, com o devido respeito, não conseguimos alcançar em que é que um erro na indicação das horas de um evento traumático pode permitir concluir ou ajudar a concluir que esse evento (que para mais é uma violação e, como tal, talvez a maior intrusão na intimidade de uma pessoa) não ocorreu. Então há um engano nas horas e pomos em causa a violação?
A questão das horas poderia, em tese, ser relevante se as horas proporcionassem um alibi. Se, por exemplo, se provasse que o arguido a tais horas estava num outro local que não o dos factos, a confusão das horas poderia ser relevante. Mas, no caso concreto, é irrelevante. O Tribunal dá como assente que o arguido, este arguido, esteve naquele local, naquela noite com a assistente. Apenas diz ter dúvidas quanto à (não) consensualidade do acto.
Assim, a objecção não colhe.
O Tribunal refere também que o facto da assistentes estar medicada e haver ingerido bebidas alcoólicas contribuiu para a confusão mental em que a assistente se encontrava a pontos de ser lícito duvidar da veracidade do relato sem que tal signifique afirmar que a assistente não estava convencida intimamente da correcção do que depunha.
Ora, neste particular temos para nós que a conclusão a que o Tribunal chega não tem suporte fáctico e vai contra as regras da experiência.
Vamos por partes:
Que aquando da ida ao hospital naquela madrugada a assistente apresentava uma TAS de 1,48 g/l não restam dúvidas.
Que a arguida estava medicada habitualmente com duloxetina 60 mg, Pregabalina 50 mg e Trazadona 100 mg também não restam dúvidas.
O que já não está provado é que a assistente, naquele dia, tivesse tomado a medicação.
Aliás, o estado de confusão a que o Tribunal alude poder-lhe-ia ter dado para não tomar a medicação. Foi questão não explorada em audiência.
Importante, contudo, é realçar que os factos assistentes não permitem fazer a associação entre a toma dos medicamentos, o consumo de álcool e a “confusão mental”.
Ainda que se tivesse aceite (como o Tribunal a quo parece ter feito sem ter os factos dados como provados) que a assistente tomou medicamentos e consumiu bebidas alcoólicas ter-se-ia ainda de demonstrar que tal conjugação seria apta a levar ao estado de confusão mental a que alude o Tribunal a quo.
Ora, o Tribunal refere, neste particular, estribando-se no depoimento da médica psiquiátrica CC, que: "Em relação aos consumos de álcool combinados com a medicação que a assistente tomava na altura dos factos, referiu que o álcool interfere no sentido que pode causar sedação excessiva e pode a assistente ficar sem discernimento para saber se a relação sexual é consentida ou não, dependendo da quantidade de álcool consumida".
Ora, a testemunha (e é uma testemunha e não um perito) que prestou depoimento na sessão de 09-11-2023, tendo as suas declarações ficado a constar da acta do mesmo dia com início às 10h e 09m e 55s e fim às 10h e 43m e 10s, em nenhum momento disse que por via da combinação entre o álcool e a medicação poderia a assistente "ficar sem discernimento para saber se a relação sexual é consentida ou não, dependendo da quantidade de álcool consumida";
Bem ao contrário, a testemunha disse, e repetiu, que a interacção pode potenciar a sedação, ou impedir que os fármacos produzam o seu efeito, mas que a interacção não interfere na compreensão sobre se uma relação sexual é ou não consentida. E isso é o oposto do que lhe atribui o Tribunal a quo.
De acordo com o depoimento da testemunha CC, do que disse ser do seu conhecimento, à data dos factos, a assistente conseguiria distinguir uma situação de sexo consentido de outra situação em que fosse forçada a ter relações sexuais, estando para este efeito em pleno poder das suas capacidades (acta/sessão de 09-11-2023 de 9min 55segs a 10min 11 segs.). A respeito do efeito dos medicamentos prescritos à assistente, acompanhados do consumo de bebidas alcoólicas alcoólicos, referiu " na prática... (os efeitos fazem-se sentir com) mais do que 5 a 6 unidades de álcool, o que pode acontecer é que nesse caso se potenciam os efeitos sedativos dos medicamentos, e portanto hipoteticamente pode haver uma interferência nas questões de causar sedação excessiva" (sessão de 09-11-2023 de 22min 21 segs a 22min 47segs) Quanto à interacção com o álcool dos medicamentos prescritos à assistente que não têm efeito sedativo disse que o efeito "é a falta de eficácia", momentaneamente não acontece nada "mas a longo prazo pode significar uma ineficácia terapêutica" (sessão de 09-11-2023de 28min 29 segs a 28min 50 segs).
Assim, a conclusão a que o Tribunal a quo chegou apresenta-se sem suporte factual quer por não se prova que haja existido naquele dia uma mistura de álcool e medicamentos, quer porque, a ter existido tal mistura, a mesma nunca geraria no consumidor a incerteza ou dúvida sobre a existência de uma relação sexual consentida ou não.
Assim, resta-nos o facto de que a assistente tinha uma TAS de 1,48 g/l, quantia que não sendo despicienda não de molde a gerar um estado tal que impossibilite alguém de desconhecer que está a ter uma relação sexual. É verdade que tal quantidade de álcool poderá tornar a pessoa inconsciente (caso em que o crime se verifica também) mas este não será o caso já que a assistente soube pedir ajuda a EE, sair de casa e ir à polícia.
Por fim, o facto do arguido não ter tido nem um comportamento "habitual nem compatível com a de um agressor sexual".
Desconhece este Tribunal da Relação o que seja um comportamento "habitual” ou “compatível com o de um agressor sexual”. Na verdade, o comportamento dos agressores sexuais não constituem factos notórios de molde a serem do conhecimento de toda uma comunidade, nem sequer são expectáveis ou previsíveis. Se o fossem nem sequer haveria crimes sexuais.
O que o arguido faz na sequência das suas acções sabemo-lo, o porque o fez ficará para sempre com o arguido. Fê-lo porque se achava inocente? Fê-lo porque se poderia aproveitar de um estado de maior perturbação da vítima? Fê-lo sem qualquer razão? Não sabemos, nem nunca saberemos.
O que sabemos, isso sim, é que a conduta posterior ao facto, mormente o de ir à esquadra, não releva, positiva ou negativamente, para o devir da decisão.
Aqui chegados temos para nós que a assistente desconstruiu validamente a versão afirmada pelo Tribunal a quo.
Está cumprido o primeiro momento do recurso.
Vejamos agora se a assistente conseguiu, de forma eficaz, construir com base na prova produzida em audiência, uma versão diferente dos factos.
Para tanto louvar-nos-emos das próprias alegações de recurso por reporte à prova gravada e à prova documental adquirida nos autos.
Com base nas declarações da assistente, que o Tribunal aquo considerou credíveis e que, pelas apontadas razões não padecem de nenhum dos vícios que o yribunal a quo lhes apontou temos por provado que:
a. "No decurso da conversa então mantida após a saída de FF, o arguido, dizendo que a amava, tentou convencer AA a manter consigo relações sexuais" mostra-se provado pelas declarações da assistente na referida sessão do dia 26-10-2023 entre 08min 42seg a 08min56 seg e entre 08min 57seg a 09min 03 seg;
b. "AA recusou o pretendido pelo arguido, recusa de que o arguido não podia deixar de ficar bem ciente, sendo que, em acto continuo, BB, agarrando-lhe nos pulsos, atirou-a para cima da cama e da cobertura (edredon) que ali se encontrava" mostra-se provado pelas declarações da assistente acta/sessão do dia 26-10-2023 entre 09min 04 seg a 09min19seg;
c. "O arguido apertou então o pescoço de AA e tapou-lhe o nariz e a boca, causando-lhe aflição, bem como puxou-lhe o cabelo, causando-lhe dores" mostra-se provado pelas declarações da assistente acta/sessão do dia 26-10- 2023 de 09min19seg a 09min32seg e de 17min 41 segs a 18min 05 segs;
d. "Também movimentou o punho junto do rosto de AA causando-lhe temor que ali pudesse desferir uma pancada com a mão fechada, maltratando-a" mostra-se provado pelas declarações da assistente acta/sessão do dia 26-10-2023 entre 09min19seg a 09min32seg e 09min 32 segs a 09min 52 segs;
e. "O arguido disse-lhe então, com foros de seriedade, “Vai deixar, vai deixar, senão vou-te matar!”, expressões de que AA ficou ciente e que lhe causaram medo que o arguido maltratasse a sua saúde e bem-estar, até a pudesse matar, caso opusesse resistência, tendo de seguida retirado a roupa que a vitima vestia, nomeadamente, umas bermudas, as cuecas, uma camisa e um casaco" mostra-se provado pelas declarações da assistente acta/sessão do dia 26-10-2023 de 10min 10segs a 10min 18 segs, de 10min 19 seg a 10min 39 segs, de17min 29 segs a 17min 40 segs;
f. "Tendo-se também despido, o arguido, com o pénis erecto e sem preservativo, penetrou a vagina de AA e iniciou um movimento de vai e vem", mostra-se provado pelas declarações da assistente acta/sessão do dia 26-10-2023 entre 10min 19 seg a 10min 39 segs, de 19min02segs a 19min 12 segs, e de 29min 00 segs a 29min 03 segs;
g. "Ignorando os rogos da vítima que o instava a parar, o arguido disse á vítima “Eu vou-te matar se você não deixar! Fica quieta!”, com tais expressões causando temor e receio à vítima do que o arguido lhe pudesse fazer, quer à sua saúde quer à sua vida, caso opusesse resistência ao seu comportamento" mostra-se provado pelas declarações da assistente acta/sessão do dia 26-10-2023 de 17min 29 segs a 17min 40 segs, de 37min50 segs a 37min 58segs, e de 20min35 segs a 20min 41 segs;
h. "O arguido, após friccionar o seu pénis na vagina da vítima, introduziu-o na boca de AA constrangendo-a a sugar-lho porquanto, enquanto lhe agarrava o pescoço e lhe dizia que a maltrataria fisicamente se não o fizesse" mostra-se provado pelas declarações da assistente acta/ sessão de dia 26-10-2023, de 10min 19 seg a 10min 39 segs, de 19min 15 segs a 19 min 31 segs, e de 20min 25 segs a 20 min 31 segs;
i. "Quando cessaram estes factos, e sem que ejaculasse, o arguido, enquanto se vestia e ainda no quarto da vitima disse-lhe: “você não vai falar pra ninguém senão eu te mato”, expressões que a vítima ficou ciente e que lhe causaram receio que o arguido lhe pudesse fazer mal ao seu bem estar físico e até tirar-lhe a vida, caso denunciasse os factos" mostra-se provado pelas declarações da assistente ata/sessão do dia 26-10-2023 de 10min 40segs a 11min 06seg e 21min 01seg a 21min 05 segs;
j. "O arguido BB bem sabia que AA não queria ter relações sexuais consigo e que, actuando como actuou, atirando-a para cima da cama, manietando-a e agarrando-a, nomeadamente, nos pulsos e pescoço, puxando-lhe o cabelo, assim como pelas expressões que lhe dirigia e que infundiam temor na vitima que o arguido maltratasse a sua saúde ou até lhe tirasse a vida, a impedia de opor resistência e a constrangia à pratica de relações sexuais vaginais e orais consigo, não se abstendo de o fazer e concretizando este resultado que quis e logrou alcançar.", mostra-se provado pelas declarações da assistente acta/sessão do dia 26-10-2023 de 09min 04 seg a 11 min 06 seg e de 17min 29 segs a 20 min 41 segs;
k. "Bem sabia o arguido que praticava tais factos porquanto se encontrava na residência em que, juntamente com a vítima, habitava, não se abstendo de o fazer", mostra-se provado pelas declarações da assistente ata/ sessão de 26-10-2023 de 24min21 segs a 24min 40segs;
l. "O arguido bem sabia que dizendo a AA que a mataria em caso desta contar a terceiro dos factos de que tinha sido vítima lhe infundia temor e receio que o arguido lhe poderia tirar a vida caso o fizesse, inibindo-a, com esta actuação, à denuncia dos factos, mas não se absteve de o fazer", mostra-se provado pelas declarações da assistente ata/ sessão de 26-10-2023 de 10min 40segs a 11min 06seg e de 11min 06seg a 11min 23 segs;
m. "O arguido agiu livre e voluntariamente, bem sabendo que actuava sem o consentimento e contra a vontade da ofendida e que a sua conduta era proibida e punida por lei penal" mostra-se provado pelas declarações da assistente acta/sessão de 26-10-2023 de 08 min 10 seg a 08min 23 seg a 11 min 06 seg a 11 min 23 segs e de 17min 29 segs a 20min 41 segs.
n. "A assistente sentiu medo, humilhação e tristeza," mostra-se provado pelas declarações da assistente acta/sessão do dia 26-10-2023 entre09min 32 segs a 09min 52 segs, 38min 14segs e 38min 23 segs, 47min 30 segs a 49min01segs;
o. "A fibromialgia de que padece ficou mais grave e penosa" mostra-se provado pelas declarações da assistente sessão do dia 26-10-2023 entre 49min 08 segs a 49min a 39 segs;
p. "A assistente ficou num estado permanente de ansiedade, desânimo, frustração e raiva, sem alegria de viver durante vários meses depois dos factos", mostra-se provado pelas declarações da assistente ata/sessão do dia 26-10-2023 entre 47min 22 segs a 48min 28segs e 49min 42segs e 50min 00 segs;
q. "Verificou-se o agravamento do quadro de perturbação depressiva com sentimentos de infelicidade e dor", mostra-se provado pelas declarações da assistente acta/ sessão do dia 26-10-2023 entre 47min 38 segs e 47min 54 segs;
Dito isto temos os factos que o tribunal a quo julgou não provados indicados nas alíneas r) e t) surgem confirmados pelo depoimento da testemunha JJ que prestou depoimento na sessão de 26-10-2023, com início às 15h19m 01s e fim às 15h 48m 34s, entre 05m10s, e 12m10s, depoimento que se revelou absolutamente credível e inabalado pela demais prova produzida, de 11min 30 segs a 12 min 13 segs, de 14min 21 segs a 14min 34 segs, de 14min 50 segs a 15min 02 segs, de 15min 35segs a 16min 00 segs, de 16min 45 segs a 17min 16 segs), de 17min 20 segs a 17min 32 segs, de 22min10segs a 22min 24 segs e de 24min 20 segs a 25 min 08 segs.
Os factos que o tribunal a quo julgou não provado indicados na alínea u) foram confirmados pela testemunha CC que prestou depoimento que se revelou absolutamente credível e inabalado pela demais prova, produzido na sessão de 09-11-2023, com início às 10h e 09m e 55s e fim às 10h e 43m e 10s, entre os 11min 35 seg e os 12min 22 segs, e entre 16min 29 segs e 16min 54 segs.
Poderemos, é certo, dizer que não existem vestígios de semem na vítina ou lacerações vaginais mas, neste particular, teremos de dizer que tais elementos, conquanto indicativos de uma acção compatível com relações sexuais violentas não têm de estar sempre presentes e que, só por si, não provam o crime.
Contudo, a verificação da acção sexual (não posta em causa pelo tribunal a quo) não consentida é afirmada pela assistente e corroborada, pelo menos em parte, pelo o relatório pericial de criminalística biológica realizado e que consta de fls. 124 a 126 do qual decorre que não se evidenciou a presença de sémen na zaragatoa vaginal e nas machas de édredon do quarto da assistente mas foram detectados haplótipos compatíveis com o arguido, quer numa mancha de édredon, quer na zaragatoa vaginal. Tal facto, como refere o Tribunal a quo, é compatível com a existência de contacto íntimo entre os dois, mas não permite concluir, sem apoio de outros meios de prova que a assistente foi forçada à prática de actos sexuais nos termos em que relatou. Este preenchimento é feito pelas declarações da assistente as quais surgem sem mácula e sem qualquer oposição de outro tipo de prova ou regra.
Quanto ao facto de não existirem lesões na zona genital como refere o Tribunal a quo tal não é “estranho tendo em conta a idade da vítima (em vítimas adultas sujeitas a violação sexual nem sempre existem lesões na zona vaginal por serem vítimas em princípio com experiência sexual)”.
Assim sendo e aqui chegados temos como assente que:
1. Em 12.04.2021, e desde data não concretamente apurada, o arguido BB e AA residiam no apartamento sito na ....
2. Na mesma data, também era ali residente EE, ocupando, cada um, um dos referidos quartos individuais, mas partilhando os espaços comuns da habitação.
3. Não obstante coabitarem juntos, não existia relação amorosa entre qualquer dos supra referidos co residentes.
4. No dia 11.04.2021, o arguido, FF e AA juntaram-se no apartamento sito na ..., para festejar o aniversário de FF.
5. No decurso de tal festejo, reunidos na marquise do apartamento que era utilizada como sala de estar, consumiram cerveja, tendo, pelas 20:30 horas, ali chegado EE.
6. Entre as 23h30m e as 0h00m EE recolheu ao quarto para se deitar, o que fez cerca de 30m depois;
7. Cerca da 1h00m, pelo facto de o quarto de EE ser contiguo à zona da sala de estar, o arguido, FF e AA retiraram-se para o quarto desta e ali continuaram sendo que em hora não apurada, FF retirou-se para a sua residência, permanecendo o arguido com AA naquele quarto;
8. No decurso da conversa então mantida após a saída de FF, o arguido, dizendo que a amava, tentou convencer AA a manter consigo relações sexuais.
9. AA recusou o pretendido pelo arguido, recusa de que o arguido não podia deixar de ficar bem ciente, sendo que, em acto continuo, BB, agarrando-lhe nos pulsos, atirou-a para cima da cama e da cobertura (edredon) que ali se encontrava.
10. O arguido apertou então o pescoço de AA e tapou-lhe o nariz e a boca, causando-lhe aflição, bem como puxou-lhe o cabelo, causando-lhe dores.
11. Também movimentou o punho junto do rosto de AA causando-lhe temor que ali pudesse desferir uma pancada com a mão fechada, maltratando-a.
12. O arguido disse-lhe então, com foros de seriedade, “Vai deixar, vai deixar, senão vou-te matar!”, expressões de que AA ficou ciente e que lhe causaram medo que o arguido maltratasse a sua saúde e bem-estar, até a pudesse matar, caso opusesse resistência, tendo de seguida retirado a roupa que a vitima vestia, nomeadamente, umas bermudas, as cuecas, uma camisa e um casaco.
13. Tendo-se também despido, o arguido, com o pénis erecto e sem preservativo, penetrou a vagina de AA e iniciou um movimento de vai e vem.
14. Ignorando os rogos da vítima que o instava a parar, o arguido disse á vítima “Eu vou-te matar se você não deixar! Fica quieta!”, com tais expressões causando temor e receio à vítima do que o arguido lhe pudesse fazer, quer à sua saúde quer à sua vida, caso opusesse resistência ao seu comportamento.
15 O arguido, após friccionar o seu pénis na vagina da vítima, introduziu-o na boca de AA constrangendo-a a sugar-lho porquanto, enquanto lhe agarrava o pescoço e lhe dizia que a maltrataria fisicamente se não o fizesse.
16 Quando cessaram estes factos, e sem que ejaculasse, o arguido, enquanto se vestia e ainda no quarto da vitima disse-lhe: “você não vai falar pra ninguém senão eu te mato”, expressões que a vítima ficou ciente e que lhe causaram receio que o arguido lhe pudesse fazer mal ao seu bem estar físico e até tirar-lhe a vida, caso denunciasse os factos.
17. As lesões referidas no (Facto provado nº 8) foram consequência da conduta do arguido;
18. No exame objectivo realizado à assistente no dia 12.4.21 pelo médico especialista de medicina legal foram detectadas diversas escoriações e equimoses dispersas pelos membros superiores, inferiores, tórax e abdómen, incluindo na face anterior de ambos os joelhos.
19. Após a saída do arguido do seu quarto, AA, ainda completamente despida, foi pedir ajuda a EE, dizendo-lhe que o arguido lhe queria fazer mal;
20. AA veio a contactar as autoridades e a denunciar os factos.
21. AA foi conduzida ao Centro Hospitalar de Lisboa Central onde deu entrada sob o n.º de episódio 21039807.
− Mais se provou que:
22. O arguido não tem antecedentes criminais registados.
23. Do atestado assinado pela médica psiquiatra da assistente de fls. 138 cujo teor se dá por reproduzido consta designadamente que: (AA) é acompanhada em consulta de psiquiatria desde 13.4.21 com diagnóstico de perturbação depressiva recorrente e fibromialgia; acompanhada anteriormente pelo Dr. GG neste Centro Hospitalar desde 15.1.2020 estando medicada até a minha consulta com duloxetina 60 mg, Pregabalina 50 mg e Trazadona 100 mg;
24. Consta do relatório médico elaborado em 11.05.21 pela médica psiquiatra supra identificada, CC, que a assistente é acompanhada em consulta de psiquiatria por depressão em traços de personalidade disfuncionais e que se encontra medicada habitualmente com duloxetina 60 mg, Pregabalina 50 mg e Trazadona 100 mg (fls. 124 a 126 e 133-134);
25. Da informação clínica de 12.5.21 cujo teor se dá por reproduzido consta que a assistente é seguida em consulta de reumatologia e apresenta diagnóstico de fibromialgia e espondilodiscartrose cervical e lombar;
26. Do atestado médico elaborado pela psiquiatra CC relativo à assistente consta designadamente que: do acompanhamento breve em consulta verificaram-se episódios depressivos recorrentes em geral relativos a eventos adversos da vida. A referência a traços disfuncionais da personalidade acentuados nos períodos de agravamento depressivo são caracterizados por instabilidade emocional, baixa tolerância à frustração e hipersensibilidade à rejeição, não consubstanciam no entanto impacto suficiente para se enquadrarem no disgnóstico de perturbação da personalidade.
27. Após colheita de analises no SU do HSJ no dia 12.4.21, na sequência da sua admissão, pelas 5h, a assistente tinha etanol no sangue numa taxa de 148 mg/dl;
28. O arguido BB bem sabia que AA não queria ter relações sexuais consigo e que, actuando como actuou, atirando-a para cima da cama, manietando-a e agarrando-a, nomeadamente, nos pulsos e pescoço, puxando-lhe o cabelo, assim como pelas expressões que lhe dirigia e que infundiam temor na vitima que o arguido maltratasse a sua saúde ou até lhe tirasse a vida, a impedia de opor resistência e a constrangia à pratica de relações sexuais vaginais e orais consigo, não se abstendo de o fazer e concretizando este resultado que quis e logrou alcançar.
29. Bem sabia o arguido que praticava tais factos porquanto se encontrava na residência em que, juntamente com a vítima, habitava, não se abstendo de o fazer.
30. O arguido bem sabia que dizendo a AA que a mataria em caso desta contar a terceiro dos factos de que tinha sido vitima lhe infundia temor e receio que o arguido lhe poderia tirar a vida caso o fizesse, inibindo-a, com esta actuação, à denuncia dos factos, mas não se absteve de o fazer.
31. O arguido agiu livre e voluntariamente, bem sabendo que actuava sem o consentimento e contra a vontade da ofendida e que a sua conduta era proibida e punida por lei penal.
− Do pedido de indemnização civil
Em consequência da conduta do arguido:
32. A assistente sentiu medo, humilhação e tristeza;
33. A fibromialgia de que padece ficou mais grave e penosa;
34. A assistente ficou num estado permanente de ansiedade, desânimo, frustração e raiva, sem alegria de viver durante vários meses depois dos factos;
35. Verificou-se o agravamento do quadro de perturbação depressiva com sentimentos de infelicidade e dor;
Não se prova que:
a. Na ocasião descrita no (Facto provado nº 19) a assistente disse a EE que o arguido a havia violado e que tinha dito que a iria matar.
Aqui chegados e ante esta factualidade cumpre, porque estão reunidos todos os elementos necessários a tal, proceder ao enquadramento jurídico da conduta do arguido, à fixação da medida da pena e conhecimento do pedido de indemnização civil.
Assim:
No crime de violação previsto no art.º 164.º do Código Penal está em causa a liberdade sexual, a auto – conformação da vida e prática sexuais da pessoa, afrontada pelo constrangimento daquela a suportar ou praticar os actos descritos no n.º 1 e 2 do mesmo artigo. A liberdade sexual decorre do direito do indivíduo a dispor do seu corpo, parte integrante da sua autonomia pessoal, sendo um elemento fundamental do direito à intimidade e vida privada.
Ao longo dos tempos os crimes de natureza sexual foram sofrendo profundas alterações ao nível conceitual, interesses a proteger e a própria moldura da pena. Actualmente, trata-se de um crime contra a pessoa e não, como no passado, contra a moralidade sexual. A protecção da liberdade e autodeterminação sexual surge com a Revisão de 1995.
Dispõe o preceito que : «Quem, por meio de violência, ameaça grave, ou depois de, para esse fim, a ter tornado inconsciente ou posto na impossibilidade de resistir, constranger outra pessoa: a) A sofrer ou a praticar, consigo ou com outrem, cópula, coito anal ou coito oral; b) A sofrer introdução vaginal ou anal de partes do corpo ou objectos; é punido com pena de prisão de três a dez anos».
Dúvidas não restam que o arguido forçou, por meio de violência, a assistente a manter relações sexuais de cópula e coito oral consigo. Agiu querendo e conhecendo o resultado e ciente da antijuridicidade da sua conduta.
Cometeu, pois o crime de violação.
O arguido vem ainda acusado de haver cometido o crime na sua forma agravada atento o disposto nos art.º 177º nº 1 al. c) do Código Penal.
Ora, dispõe o preceito que “As penas previstas nos artigos 163.º a 165.º e 167.º a 176.º são agravadas de um terço, nos seus limites mínimo e máximo, se a vítima: (…) c) For pessoa particularmente vulnerável, em razão de idade, deficiência, doença ou gravidez.”
Ora, no caso concreto, não existem dados que permitam afirmar esta particular vulnerabilidade em qualquer aspecto. A arguida não é pessoa de idade, não padece de deficiência doença ou gravidez que a coloque numa posição especialmente vulnerável em relação à generalidade das vítimas em situações (infelizmente) semelhantes.
Não há, pois, agravação.
O arguido vem ainda acusado da prática de um crime de coacção, agravada, na forma tentada nos termos dos 22.º, n.º 1, art.ºs 154.º, n.º 1 e 155.º, n.º 1, al. a) do Código Penal.
Dispõe o artº 154º nº 1 e 2 do Código Penal que “1 - Quem, por meio de violência ou de ameaça com mal importante, constranger outra pessoa a uma acção ou omissão, ou a suportar uma actividade, é punido com pena de prisão até três anos ou com pena de multa. 2 - A tentativa é punível. (…)”. Por sua vez o artº 155º nº 1 al. a) do Código Penal dispõe que “1 - Quando os factos previstos nos artigos 153.º e 154.º forem realizados: a) Por meio de ameaça com a prática de crime punível com pena de prisão superior a três anos; (…) o agente é punido com pena de prisão até dois anos ou com pena de multa até 240 dias, no caso do artigo 153.º, e com pena de prisão de um a cinco anos, no caso do n.º 1 do artigo 154.”
Ora, o bem jurídico protegido pelo crime de coacção é a liberdade de decisão e de acção. São requisitos objectivos do crime de coacção: (i) Que o agente constranja por meio de violência ou de ameaça com mal importante. (ii) Outra pessoa a adoptar um determinado comportamento:
- À prática de uma acção
- À omissão de uma acção
- Ao suportar de uma actividade
Sujeito passivo do crime de coacção pode ser qualquer pessoa.
O conceito indeterminado “mal importante”, cuja densificação (substância e forma; precisão e concretização) cabe à doutrina e jurisprudência, deve orientar-se pelas seguintes ideias: a) - Tanto pode ser ilícito como não ilícito, cabendo como mal importante a ameaça de procedimento jurídico ou de queixa-crime, censurável. b) - A ameaça tem de ser adequada a constranger o ameaçado.
A coacção é um crime de resultado cuja consumação exige, consequentemente, que a pessoa objecto da acção de coacção tenha, efectivamente, sido constrangida a praticar a acção, a omitir ou a tolerar a acção, não bastando a adequação da acção, sendo ainda necessário que entre o comportamento e a acção de coacção haja uma relação de efectiva causalidade.
Se o sujeito passivo, apesar da ameaça, acabou por levar a cabo a conduta devida, apenas se verifica uma tentativa do crime de coacção, verificados os restantes elementos do tipo (Ac. da Rel. de Lisboa de 23.11.2013 acessível em www.dgsi.pt ).
Como se salientou no Ac. da Rel. de Coimbra de 07.03.2012 acessível em www.dgsi.pt “No crime de coacção, exige-se a verificação do resultado para a sua consumação, ou seja, exige-se que a pessoa objecto da acção de coacção tenha efectivamente sido constrangida a praticar a acção, a omitir a acção ou a tolerar a acção, de acordo com a vontade do coactor e contra a sua vontade. Mas basta-se com o simples início da execução da conduta coagida, sendo suficiente para a consumação, se o objecto da coacção for a prática de uma acção, que o coagido inicie esta acção.”
Os meios da coacção são a violência ou a ameaça com mal importante. apresentando-se, assim, como um crime de execução vinculada.
A noção de “violência” implica o emprego de força física (reduzindo a capacidade de defesa da pessoa), podendo, contudo, ser entendida de modo mais amplo, por forma a abranger a violência psíquica (enquanto pressão anímica exercida sobre a vítima).
Um dos critérios orientadores da definição concreta de “mal importante” é o da «adequação da ameaça a constranger o ameaçado a comportar-se de acordo com a exigência do ameaçante. Isto é, deverá considerar-se mal importante aquele mal que é capaz de fazer “dobrar” a vontade do ameaçado. Há, portanto, que relacionar a importância ou a gravidade do mal ameaçado com a exigência típica da adequação (imputação objectiva) deste a constranger o ameaçado» (cfr. Comentário Conimbricense do Código Penal, parte especial, T. 1, Coimbra Editora, 1999, pág. 358).
Com a ameaça cria-se no espírito da vítima um fundado receio de grave e iminente mal, capaz de, no caso concreto, paralisar a sua reacção.
Para aferir se a ameaça é ou não bastante para constranger é necessário recorrer a um critério objectivo-individual, no sentido de se ponderar, por um lado, o critério objectivo do homem médio” e, por outro, atender às características individuais da pessoa ameaçada) - vide Taipa de Carvalho, ob. cit.. pp. 343 e 344.
Ora, este crime exige a verificação do resultado para a sua consumação, ou seja, exige que a pessoa objecto da acção de coacção tenha efectivamente sido constrangida a praticar a acção, a omitir a acção ou a tolerar a acção, de acordo com a vontade do coactor e contra a sua vontade.
Mas basta-se com o simples início da execução da conduta coagida, sendo suficiente para a consumação, se o objecto da coacção for a prática de uma acção, que o coagido inicie esta acção.
Nos termos do n° 1 do artigo 22° do Código Penal: “há tentativa quando o agente pratica actos de execução de um crime que decidiu cometer, sem que este chegue a consumar-se, devendo considera-se como tal, de harmonia com o n.º 2 do art.º 22.º: os que preenchem um elemento constitutivo de um tipo de crime os que são idóneos a produzir o resultado típico e os que, segundo a experiência comum e salvo circunstâncias imprevisíveis, são de natureza a fazer esperar que se lhes sigam actos das espécies indicadas nas alíneas anteriores.
Ora, para que se verifique “constrangimento” e, desse modo, limitação da liberdade pessoal, tem que existir uma efectiva pressão sobre a pessoa coagida, capaz de a colocar em impossibilidade de resistir, através da gravidade ou importância da ameaça efectuada.
Ora, no caso concreto, tudo se verifica. Depois de uma relação sexual forçada e não consentida segue-se a ameaça de morte em caso de denúncia. No caso destes autos a ameaça efectuada é, de acordo com o critério objectivo-formal, apta a constranger a capacidade de decisão do homem médio pelo que tendo-se proferido a ameaça base existe o inicio da comissão do crime o qual não é consumado por factos alheios ao arguido.
Cometeu, assim, o arguido o crime de coacção agravada na forma tentada.
Ante tal impõe-se determinar a medida das penas individuais e operar o cúmulo jurídico.
Hans Heinrich Jescheck, in Tratado de Derecho Penal, Parte General, II, pág. 1194, diz: “o ponto de partida da determinação judicial das penas é a determinação dos seus fins, pois, só partindo dos fins das penas, claramente definidos, se pode julgar que factos são importantes e como se devem valorar no caso concreto para a fixação da pena”.
Definindo o papel que cabe à culpa na determinação concreta da pena, nos termos da teoria da margem de liberdade (Claus Roxin, Culpabilidade y Prevención en Derecho Penal, págs. 94 -113) é ele o seguinte: a pena concreta é fixada entre um limite mínimo (já adequado à culpa) e um limite máximo (ainda adequado à culpa), limites esses que são determinados em função da culpa do agente e aí intervindo dentro desses limites os outros fins das penas (as exigências da prevenção geral e da prevenção especial).
Com a entrada em vigor do actual Código Penal, a pena passou a servir finalidades exclusivas de prevenção, geral e especial, assumindo a culpa um papel meramente limitador da pena.
A terceira alteração ao Código Penal operada pelo Decreto-Lei nº 48/95, de 15 de Março, entrado em vigor em 1 de Outubro seguinte, proclamou a necessidade, proporcionalidade e adequação como princípios orientadores que devem presidir à determinação da pena aplicável à violação de um bem jurídico fundamental, introduzindo a inovação, com feição pragmática e utilitária, constante do artigo 40.º, ao consagrar que a finalidade a prosseguir com as penas e medidas de segurança é «a protecção dos bens jurídicos e a reintegração do agente na sociedade», ou seja, a reinserção social do agente do crime, o seu retorno ao tecido social lesado.
Com esta reformulação do Código Penal, como se explica no preâmbulo do diploma, não prescindiu o legislador de oferecer aos tribunais critérios seguros e objectivos de individualização da pena, quer na escolha, quer na dosimetria, sempre no pressuposto irrenunciável, de matriz constitucional, de que em caso algum a pena pode ultrapassar a culpa, dispondo o n.º 2 que «Em caso algum a pena pode ultrapassar a medida da culpa».
Em consonância com estes princípios dispõe o artigo 71.º, n.º 1, que “a determinação da medida da pena, dentro dos limites definidos na lei, é feita em função da culpa do agente e das exigências de prevenção”; o n.º 2 elenca, a título exemplificativo, algumas das circunstâncias, agravantes e atenuantes, a atender na determinação concreta da pena, dispondo o n.º 3, que na sentença são expressamente referidos os fundamentos da medida da pena, injunção com concretização adjectiva no artigo 375.º, n.º 1 do CPP, ao prescrever que a sentença condenatória especifica os fundamentos que presidiram à escolha e à medida da sanção aplicada. (Em sede de processo decisório, a regulamentação respeitante à determinação da pena tem tratamento autónomo relativamente à questão da determinação da culpabilidade, sendo esta tratada no artigo 368.º, e aquela prevista no artigo 369.º, com eventual apelo aos artigos 370.º e 371.º do CPP).
Figueiredo Dias, em Temas Básicos da Doutrina Penal, Coimbra Editora, 2001, no tema Fundamento, Sentido e Finalidades da Pena Criminal, págs. 65 a 111, diz que o legislador de 1995 assumiu, precipitando no artigo 40.º do Código Penal, os princípios ínsitos no artigo 18.º, n.º 2, da CRP, (princípios da necessidade da pena e da proporcionalidade ou da proibição do excesso) e o percurso doutrinário, resumindo assim a teoria penal defendida: 1) Toda a pena serve finalidades exclusivas de prevenção, geral e especial. 2) A pena concreta é limitada, no seu máximo inultrapassável, pela medida da culpa. 3) Dentro deste limite máximo ela é determinada no interior de uma moldura de prevenção geral de integração, cujo limite superior é oferecido pelo ponto óptimo de tutela dos bens jurídicos e cujo limite inferior é constituído pelas exigências mínimas de defesa do ordenamento jurídico. 4) Dentro desta moldura de prevenção geral de integração a medida da pena é encontrada em função de exigências de prevenção especial, em regra positiva ou de socialização, excepcionalmente negativa ou de intimidação ou segurança individuais.
No dizer de Fernanda Palma, in “As Alterações Reformadoras da Parte Geral do Código Penal na Revisão de 1995: Desmantelamento, Reforço e Paralisia da Sociedade Punitiva”, nas “Jornadas sobre a Revisão do Código Penal”, edição 1998, AAFDL, pág. 25, «a protecção de bens jurídicos implica a utilização da pena para dissuadir a prática de crimes pelos cidadãos (prevenção geral negativa), incentivar a convicção de que as normas penais são válidas e eficazes e aprofundar a consciência dos valores jurídicos por parte dos cidadãos (prevenção geral positiva). A protecção de bens jurídicos significa ainda prevenção especial como dissuasão do próprio delinquente potencial».
Américo Taipa de Carvalho, em Prevenção, Culpa e Pena, in Liber Discipulorum para Jorge Figueiredo Dias, Coimbra Editora, 2003, pág. 322, afirma resultar do actual artigo 40.º que o fundamento legitimador da aplicação de uma pena é a prevenção, geral e especial, e que a culpa do infractor apenas desempenha o (importante) papel de pressuposto (conditio sine qua non) e de limite máximo da pena a aplicar por maiores que sejam as exigências sociais de prevenção. Está subjacente ao artigo 40.º uma concepção preventivo-ética da pena. Preventiva, na medida em que o fim legitimador da pena é a prevenção; ética, uma vez que tal fim preventivo está condicionado e limitado pela exigência da culpa.
Para o efeito de determinação da medida concreta ou fixação do quantum da pena que vai constar da decisão o juiz serve-se do critério global contido no referido artigo 71.º do Código Penal estando vinculado aos módulos - critérios de escolha da pena constantes do preceito.
Como se refere no acórdão de 28-09-2005, CJSTJ 2005, tomo 3, pág. 173, na dimensão das finalidades da punição e da determinação em concreto da pena, as circunstâncias e os critérios do artigo 71.º do Código Penal têm a função de fornecer ao juiz módulos de vinculação na escolha da medida da pena; tais elementos e critérios devem contribuir tanto para co-determinar a medida adequada à finalidade de prevenção geral (a natureza e o grau de ilicitude do facto impõe maior ou menor conteúdo de prevenção geral, conforme tenham provocado maior ou menor sentimento comunitário de afectação dos valores), como para definir o nível e a premência das exigências de prevenção especial (circunstâncias pessoais do agente; a idade, a confissão; o arrependimento) ao mesmo tempo que também transmitem indicações externas e objectivas para apreciar e avaliar a culpa do agente.
As finalidades da aplicação de uma pena residem primordialmente na tutela de bens jurídicos e, na medida do possível, na reinserção do agente na comunidade. A pena, por outro lado, não pode ultrapassar em caso algum a medida da culpa.
Assim, pois, primordial e essencialmente, a medida da pena há-de ser dada pela medida da necessidade de tutela dos bens jurídicos face ao caso concreto e referida ao momento da sua aplicação, protecção que assume um significado prospectivo que se traduz na tutela das expectativas da comunidade na manutenção (ou mesmo no reforço) da validade da norma infringida. Um significado, deste modo, que por inteiro se cobre com a ideia da prevenção geral positiva ou de integração que vimos decorrer precipuamente do princípio político-criminal básico da necessidade da pena».
Anabela Miranda Rodrigues em “O Modelo de Prevenção na Determinação da Medida Concreta da Pena”, in Revista Portuguesa de Ciência Criminal, ano 12, n.º 2, Abril/Junho de 2002, págs. 147 e ss., como proposta de solução defende que a medida da pena há-de ser encontrada dentro de uma moldura de prevenção geral positiva e que será definida e concretamente estabelecida em função de exigências de prevenção especial, nomeadamente de prevenção especial positiva ou de socialização; a pena, por outro lado, não pode ultrapassar em caso algum a medida da culpa. Adianta que “é o próprio conceito de prevenção geral de que se parte – protecção de bens jurídicos alcançada mediante a tutela das expectativas comunitárias na manutenção (e no reforço) da validade da norma jurídica violada - que justifica que se fale de uma moldura de prevenção. Proporcional à gravidade do facto ilícito, a prevenção não pode ser alcançada numa medida exacta, uma vez que a gravidade do facto ilícito é aferida em função do abalo daquelas expectativas sentido pela comunidade. A satisfação das exigências de prevenção terá certamente um limite definido pela medida da pena que a comunidade entende necessária à tutela das suas expectativas na validade das normas jurídicas: o limite máximo da pena. Que constituirá, do mesmo passo, o ponto óptimo de realização das necessidades preventivas da comunidade, que não pode ser excedido em nome de considerações de qualquer tipo, ainda quando se situe abaixo do limite máximo consentido pela culpa. Mas, abaixo daquela medida (óptima) de pena (da prevenção), outras haverá que a comunidade entende que são ainda suficientes para proteger as suas expectativas na validade das normas - até ao que considere que é o limite do necessário para assegurar a protecção dessas expectativas. Aqui residirá o limite mínimo da pena que visa assegurar a finalidade de prevenção geral”.
Apresenta três proposições em jeito de conclusões e da seguinte forma sintética:
“Em primeiro lugar, a medida da pena é fornecida pela medida de necessidade de tutela de bens jurídicos, isto é, pelas exigências de prevenção geral positiva (moldura de prevenção). Depois, no âmbito desta moldura, a medida concreta da pena é encontrada em função das necessidades de prevenção especial de socialização do agente ou, sendo estas inexistentes, das necessidades de intimidação e de segurança individuais. Finalmente, a culpa não fornece a medida da pena, mas indica o limite máximo da pena que em caso algum pode ser ultrapassado em nome de exigências preventivas”. E finaliza, afirmando: “É este o único entendimento consentâneo com as finalidades da aplicação da pena: tutela de bens jurídicos e, na medida do possível, a reinserção do agente na comunidade, e não compensar ou retribuir a culpa. Esta é, todavia, pressuposto e limite daquela aplicação, directamente imposta pelo respeito devido à eminente dignidade da pessoa do delinquente”.
Uma síntese destas posições sobre os fins das penas foi feita no acórdão de 10-04-1996, processo n.º 12/96, in CJSTJ 1996, tomo 2, pág. 168, nos seguintes termos: “ O modelo de determinação da medida da pena no sistema jurídico-penal português comete à culpa (juízo de apreciação, de valoração, que enuncia o que as coisas valem aos olhos da consciência e o que deve ser do ponto de vista da validade lógica e da moral ou do direito) a função de determinar o limite máximo e inultrapassável da pena, mas disso já cuidou, em primeira mão, o legislador, quando estabeleceu a moldura punitiva. Acontece, porém, que outras exigências concorrem naquele modelo: a prevenção geral (dita de integração) que tem por função fornecer uma moldura de prevenção, cujo limite é dado, no máximo, pela medida óptima de tutela dos bens jurídicos - dentro do que é consentido pela culpa - e, no mínimo, fornecido pelas exigências irrenunciáveis de defesa do ordenamento jurídico. Cabe à prevenção especial a função de encontrar o quantum exacto da pena, dentro dessa função, rectius, moldura de prevenção que melhor sirva as exigências de socialização (ou, em casos particulares) de advertência ou de segurança”.
Uma outra formulação, em síntese, na esteira de Figueiredo Dias, “As consequências jurídicas do crime 1993”, § 301 e ss., é a que consta dos acórdãos do STJ de 17-09-1997, processo n.º 624/97; de 01-10-1997, processo n.º 673/97; de 08-10-1997, processo n.º 874/97; de 15-10-1997, processo n.º 589/97, sendo os três últimos publicados in Sumários de Acórdãos do Gabinete de Assessoria do STJ, n.º 14, Outubro de 1997, II volume, págs. 125, 134 e 145, e de 20-05-1998, processo n.º 370/98, este publicado na CJSTJ 1998, tomo 2, pág. 205 e no BMJ n.º 477, pág. 124, todos da 3.ª Secção, nos seguintes termos: “A defesa da ordem jurídico-penal, tal como é interiorizada pela consciência colectiva (prevenção geral positiva ou de integração), é a finalidade primeira, que se prossegue, no quadro da moldura penal abstracta, entre o mínimo, em concreto, imprescindível à estabilização das expectativas comunitárias na validade da norma violada e o máximo que a culpa do agente consente; entre esses limites, satisfazem-se, quanto possível, as necessidades da prevenção especial positiva ou de socialização.
Ou seja, devendo ter um sentido eminentemente pedagógico e ressocializador, as penas são aplicadas com a finalidade primordial de restabelecer a confiança colectiva na validade da norma violada, abalada pela prática do crime, e, em última análise, na eficácia do próprio sistema jurídico-penal”.
Aqui chegados urge ponderar, a pena a aplicar ao arguido tendo presente que a pena para o crime de violação tem uma medida abstracta de 3 anos de prisão a 10 anos de prisão.
Na fixação da medida da pena consideraremos:
a) O grau de ilicitude: mediano atenta a forma como a acção se desenrola embora sem nos esquecermos dos actos individuais praticados, mas englobados na mesma acção criminosa (coito e coito oral);
b) O dolo: directo e intenso;
c) O alheamento em relação à pessoa da vítima;
d) A ausência de antecedentes criminais,
e) As consequências do acto na vivência da vítima.
Tudo visto e ponderado julgamos adequada a pena de 6 (seis) anos de prisão.
Quanto ao crime de coacção agravada na forma tentada cuja pena de prisão de 1 mês a 3 anos e 4 meses (art.º 154.º, n.º 1 e 155.º, n.º 1, al. a), 22º, 73º nº 1 al. a) e b) do Código Penal)
Na fixação da medida da pena considerar-se-á:
a. O grau de ilicitude do facto: elevado considerando as circunstâncias em que o crime ocorreu – após uma violação – e a razão de ser do crime: a pretendida ocultação do crime antecedente.
b. O dolo: directo e intenso;
c. A ausência de antecedentes criminais do arguido;
Tudo visto e ponderado julgamos adequada a pena de 10 (dez) meses de prisão.
Importa agora proceder ao cúmulo jurídico.
Dispõe o art.º 77º n.º 1 do Código Penal que “... na medida da pena são considerados, em conjunto, os factos e a personalidade do agente”.
Segundo a interpretação mais comum na jurisprudência, na esteira, aliás, de Figueiredo Dias, do que se trata é de avaliar unitariamente a personalidade do arguido em correlação com o conjunto dos factos, como se estes constituíssem um facto global, em ordem a saber se o agente revela uma tendência para a prática do crime ou de certos crimes, ou se a sua actuação delituosa é devida a factores ocasionais, no caso, a uma pluriocasionalidade. Nisso consiste o critério específico de determinação da pena conjunta e, portanto, aí residirá também o ponto nodal da fundamentação exigida no âmbito da determinação da pena do concurso de crimes, que se não confunde com a fundamentação exigida para a determinação concreta das penas singulares – fundamentação que, todavia, está presente na determinação da pena conjunta.
“De grande relevo será também a análise do efeito previsível da pena sobre o comportamento futuro do agente (exigências de prevenção especial da pena)”, como observa Figueiredo Dias, Direito Penal Português – As Consequências Jurídicas Do Crime, Editorial de Notícias, 1993, p. 292/293).
A medida abstracta do cúmulo é de 6 anos de prisão até 6 anos e 10 meses de prisão.
Considerando que em causa estão condutas perpetradas numa sequência temporal única, considerando a ausência de antecedentes criminais do arguido, considerando o alheamento pelo mesmo demonstrado designadamente quanto à vítima e ao facto do crime de coacção, cometido após uma violação, demonstrar uma personalidade avessa aos valores sociais com uma aparente indiferença ao sofrimento alheio, não descurando a impressão deixada pelos factos cometidos no observador que são de violência grave, entendemos como correcta a pena de 6 anos e 6 meses de prisão.
A assistente refere, a final que pretende que venha a “douta sentença do tribunal a quo ser revogada e substituída por decisão desse Venerando Tribunal que condene o arguido pela prática dos crimes que lhe são imputados e no pedido de indemnização civil.”
Acontece que vistas e revistas as conclusões (e são as conclusões recursais que balizam o conhecimento deste Tribunal) nenhuma delas se refere ao pedido de indemnização civil, designadamente à pretendida fixação do quantum dos danos sofridos.
Assim, este Tribunal não pode, por falta de alegação, conhecer da decisão proferida quanto ao pedido de indemnização civil.
É verdade que o pedido formulado foi julgado improcedente por o Tribunal a quo ter absolvido o arguido mas não menos verdade é que a assistente, ao contrário do que fez com a matéria crime, não solicitou a alteração de tal parte da decisão, designadamente não incluiu tal matéria em sede conclusiva.
Procede, assim, o recurso nos termos sobreditos.
*
Dispositivo
Termos em que acordam os juízes que compõem a 3ª secção do Tribunal da Relação de Lisboa em julgar parcialmente procedente o recurso e:
a. Alterar a matéria de facto provada e não provada nos termos sobreditos;
b. Condenar o arguido BB, com o sinal nos autos, como autor material de prática de um crime de violação, na forma consumada, p.p. pelo art.º 164º/2 al. a) e 177º/1 al. c) do Código Penal na pena de 6 (seis) anos de prisão;
c. Condenar o mesmo BB como autor material de 1 (um) crime de coacção, agravada, na forma tentada nos termos dos 22.º, n.º 1, art.ºs 154.º, n.º 1 e 155.º, n.º 1, al. a) do Código Penal na pena de 10 (dez) meses de prisão;
d. Operar, nos termos do artº 77º do Código Penal, o cúmulo entre as penas supra impostas e condenar o arguido na pena única de 6 (seis) anos e 6 (seis) meses de prisão;
e. Condena o arguido no pagamento das custas do processo - artº 514º, nº 1, do Código do Processo Penal -, com taxa de justiça que se fixa em 4 (quatro) UC;
Na primeira instância proceder-se-á:
a. À remessa de boletins ao registo criminal com recolha das impressões digitais e assinatura ao arguido em cumprimento do disposto no art.º 12.º do Decreto-Lei n.º 171/2015, de 25 de Agosto, com a finalidade de comunicação aos serviços de identificação criminal e subsequente inscrição no SICRIM (Sistema de Informação de Identificação Criminal);
b. À recolha de amostra de ADN do arguido nos termos e para os efeitos do disposto nos artº 8º nº 2 e 5 da Lei 5/2008 de 12 de Fevereiro;
c. Uma vez recolhidas a amostra, a sua inserção na competente base de dados ao abrigo do disposto no artº 18º nº 3 da Lei 5/2008 de 12 de Fevereiro;
d. Ordena que em primeira instância seja remetida certidão da presente decisão com nota de trânsito ao INML para efeitos de recolha das amostras e subsequente inserção na base de dados.
Notifique.
Acórdão elaborado pelo 1º signatário em processador de texto que o reviu integralmente sendo assinado pelo próprio e pelos Venerandos. Juízes Adjuntos.

Lisboa e Tribunal da Relação, 6 de Março de 2024
Rui Miguel de Castro Ferreira Teixeira
Alfredo Gameiro Costa
Rosa Vasconcelos
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1. Ter-se-á querido dizer “recorrido” (nota do relator).
2. 1 De facto, é sabido que, ao ser absorvido, o álcool entra na circulação sanguínea, que o transporta ao longo de todo o corpo. Quando atinge o cérebro afecta o comportamento, produzindo efeitos anestésicos e modificando as funções cerebrais. A maioria das pessoas elimina o etanol da corrente sanguínea a uma taxa aproximada de 15 a 20 mg/dL por hora. Portanto, grosso modo, a cada hora que passa após o indivíduo ter parado de beber deve-se subtrair 15 a 20 mg/dl do valor obtido na calculadora. Por exemplo, se uma pessoa de 70 kg bebeu 7 latas de cerveja de 350 ml com teor alcoólico de 5%, ela terá alcançado uma concentração sanguínea de álcool ao redor de 230 mg/dl. 10 horas depois, ao acordar, ela terá ainda no sangue entre 30 e 80 mg/dl de etanol. Num consumo que redunde numa taxa 50 a 300 mg/dL (32,6 a 65,1 mmol/L) os sintomas podem chegar a delirium e letargia; https://www.msdmanuals.com/pt-pt/profissional/t%C3%B3picos-especiais/drogas-il%C3%ADcitas-e-intoxicantes/intoxica%C3%A7%C3%A3o-e-abstin%C3%AAncia-de-%C3%A1lcool
3. https://www.mdsaude.com/dependencia/calculadora-alcool/