Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
689/10.2TCFUN.L1-6
Relator: VÍTOR AMARAL
Descritores: VENDA A FILHOS OU NETOS
CONSENTIMENTO
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 12/13/2012
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: IMPROCEDENTE
Sumário: 1 - A venda a filhos ou netos, possível perante o disposto no artigo 877.º do CCiv., constitui uma modalidade de compra e venda cuja validade exige o consentimento de terceiros, determinados descendentes de quem vende, sem o que o negócio é anulável.
2 - Aquele preceito legal prevê duas hipóteses de venda quanto aos sujeitos adquirentes: a venda a filhos e a venda a netos. Na venda a filhos é necessário o consentimento dos outros filhos, mas não, em princípio, o consentimento sos netos. Dentre os descendentes dos vendedores, os filhos são os cabeças de estirpe e as pessoas imediatamente interessadas em evitar diminuições simuladas das legítimas. Somente se algum filho tiver falecido previamente, é que passa tal filho a ser representado, neste âmbito, pelos seus descendentes (netos dos vendedores).
3 - Esta limitação legal à liberdade contratual, traduzida na exigência do consentimento de terceiros relativamente ao negócio jurídico, tem uma finalidade preventiva, visando evitar situações de simulação relativa, difíceis de provar, em prejuízo das legítimas dos descendentes alheios ao negócio (celebração simulada de contratos de compra e venda para realizar doações), em nada contendendo com a acção, de cariz repressivo, tendente à declaração de invalidade por simulação (art.ºs 240.º e seg. do CCiv.).
4 - A declaração de consentimento a que alude o art.º 877.º do CCiv. pode ser prestada verbalmente e é passível de prova através de qualquer meio probatório admitido em direito.
5 - A legitimidade conferida aos interessados, a que aludem os art.ºs 287.º, n.º 1, e 877.º, ambos do CCiv., para anulação da venda a filhos ou netos, pressupõe um direito que é intransmissível hereditariamente, donde que se extinga esse direito por morte do respectivo titular (nos termos do art.º 2025.º, n.º 1, do CCiv.).
6 - Em sede de ónus probatório, o consentimento para a prática de um determinado acto que a lei proíbe tem, em regra, a natureza de facto extintivo do direito; porém, excepcionalmente, no caso de tal facto integrar o conteúdo da pretensão de anulação, o mesmo assume uma natureza constitutiva do direito; na dúvida, os factos devem ser considerados como constitutivos do direito (art.º 342.º, n.º 3, do CCiv.).
(JVA)
Decisão Texto Parcial:
Decisão Texto Integral: Acordam no Tribunal da Relação de Lisboa:

I – Relatório

ALEXANDRE, DINO, ISABEL e FRANCISCO, todos residentes no Funchal, intentaram a presente acção declarativa, sob a forma de processo ordinário, contra JOSÉ e JOÃO e mulher, MARIA também residentes no Funchal, pedindo:
a) a declaração de invalidade da compra e venda titulada pela escritura realizada no dia 12 de Março de 1986, relativa ao prédio urbano descrito sob o n.º ... da freguesia de ..., Conservatória do Registo Predial do Funchal, sendo os vendedores Clementina e Alexandre e os compradores José e João;
b) o cancelamento da transmissão da propriedade relativamente aos RR., a nível fiscal e registral, declarando-se proprietários da fracção os herdeiros de Clementina e Alexandre.
Para tanto, alegaram, em síntese:
- Clementina faleceu em 25-01-1999 e deixou como herdeiros o cônjuge, Alexandre, e o filho Adelino e os netos José e João; o aludido Adelino faleceu no dia 16-01-2010 e deixou como herdeiros o cônjuge e os filhos, os ora AA.; Alexandre faleceu em 28-01-2010, tendo deixado como herdeiros os RR. e os AA.;
- no dia 12-03-1986 foi celebrada escritura de compra e venda relativa ao prédio urbano descrito sob o n.º 26350 em que foram vendedores Clementina e Alexandre e compradores os ora RR., tendo intervindo João como gestor de negócios do filho, João;
- na relação de bens apresentada pelo R. José no âmbito do inventário por óbito de Clementina e Alexandre não foi relacionado o aludido prédio, mas deveria tê-lo sido, porque os AA. nunca consentiram na venda desse prédio pelos seus avós aos RR., seus netos;
- os AA. só tiveram conhecimento da venda quando analisaram as verbas relacionadas no processo de inventário instaurado em 2010.

Regularmente citados, os RR. deduziram contestação/reconvenção alegando, em síntese, que:
- a outorga da escritura pública foi objecto de conversação no seio familiar, entre avós, netos e filhos e todos tomaram conhecimento da venda e a aceitaram;
- desde a data da aquisição, Março de 1986, os RR. vêm possuindo o prédio, pagando os impostos, encargos e despesas com a reparação de muros, desinfestação e limpeza, o que fazem de forma pública e pacífica, à vista de toda a gente e era do conhecimento dos AA.;
- o prédio confina com outros bens do avô dos AA. e RR. e o conhecimento da venda pelos AA. é já de há muitos anos.
Em reconvenção, os RR. sustentaram que já há quase vinte e cinco anos que actuam como proprietários do prédio e de boa-fé, tendo procedido ao registo e à sua inscrição na matriz, pelo que o adquiriram por usucapião.
Concluíram pela improcedência da acção e pela procedência da reconvenção, pedindo, neste âmbito, que seja declarada a sua aquisição do direito de propriedade sobre o prédio actualmente descrito na Conservatória do Registo Predial do Funchal sob o n.º ... e inscrito na matriz sob o art.º 4457.º, por usucapião.

Na réplica, os AA. admitiram que os RR. sejam proprietários do prédio enquanto donatários mas não como compradores.
Os AA. requereram a alteração do seu pedido, deduzindo “um pedido alternativo” ao inicialmente formulado, requerendo, caso fossem declarados os RR. proprietários do prédio em causa, a declaração de que a transmissão operou por via de doação e não de compra e venda, alterando-se em conformidade a inscrição registral relativamente à causa de transmissão para doação.

Na tréplica os RR. sustentaram que adquiriram o prédio por compra e venda e, de todo o modo, estando na sua posse desde então, ocorreu já aquisição originária – por usucapião –, devendo ser julgado improcedente o “pedido alternativo” deduzido.

A ampliação do pedido foi admitida e teve lugar a realização de audiência preliminar, sendo seleccionada a matéria de facto assente e controvertida, que não foi objecto de reclamação.
Procedeu-se à realização da audiência de julgamento, tendo sido decidida a matéria de facto, pela forma que consta de fls. 175 a 177, sem qualquer reclamação.
Foi depois proferida sentença, a qual, considerando improcedentes a acção e a reconvenção, absolveu os RR. dos pedidos principal e alternativo contra si deduzidos e absolveu os AA./Reconvindos do pedido reconvencional formulado (cfr. fls. 180 e segs.).

Desta sentença vieram os AA. interpor o presente recurso (fls. 192 e segs.), apresentando as seguintes
Conclusões (após convite à respectiva correcção – cfr. fls. 249 e segs.)
1. - O presente recurso tem como objecto toda a matéria de direito da sentença proferida nos presentes autos, que culminou na absolvição dos Recorridos dos pedidos formulados pelos Recorrentes, por insuficiência de prova;
2. - Resulta que, com o devido respeito, o tribunal a quo revelou uma incorrecta interpretação e aplicação do direito face aos factos que constituem a matéria provada;
3. - Clementina e Alexandre eram avós dos Recorridos e igualmente avós dos Recorrentes;
4. - A compra e venda constante da escritura foi assim uma venda de avós (Clementina e Alexandre) para netos (os recorridos);
5. - Nos termos do art.º 877.º, n.º 1, do CCiv., os avós não podem vender a netos, sem o consentimento dos outros netos;
6. - Os Recorrentes nunca consentiram nesta venda;
7. - Nos termos do n.º 2 do citado artigo, a venda feita com violação do n.º 1 é anulável, dentro do prazo de um ano a contar do conhecimento da celebração do contrato, anulabilidade que os Recorrentes requerem;
8. - Esta compra e venda só veio ao conhecimento dos Recorrentes quando estes se viram confrontados com o processo de inventário;
9. - Não resta aos Recorrentes outra alternativa, para fazer valer os seus direitos, que não seja o recurso a esta via;
10. - Acresce que o tribunal a quo desvalorizou a ratio do art.º 877.º do C.C., não sancionando a actuação dos Recorridos, por desconforme com os requisitos legais;
11. - A sentença baseia-se unicamente na escritura de compra e venda, viciada que está, e contrariamente às regras de experiência, titula-a como válida para fazer valer um direito de propriedade com base numa compra e venda ferida de um formalismo fundamental, especialmente formulado para impedir vendas simuladas a filhos ou netos;
12. - Não podem os Recorridos beneficiar de um título viciado para se arrogarem de um título de propriedade, o qual prejudica os Recorrentes na sua legítima, violando claramente a ratio do artigo 877º do C.C.;
13. - A escritura de compra e venda faz, nos termos do art.º 371.º do C.C., prova plena de que os Recorridos não procuraram e não quiseram obter o consentimento, sendo aliás a prática corrente dos actos notariais que a autorização conste do próprio acto, precisamente para o Notário não “validar” compras e vendas anuláveis;
14. - Fizeram os Recorrentes prova da inexistência de qualquer consentimento face à alegada compra e venda, consentimento o qual é exigido nos termos do art.º 877º do C.C., sem o qual, expõe esse negócio à anulabilidade;
15. - Os Recorrentes satisfizeram o seu ónus de prova, de um facto inexistente, que não conseguiram os Recorridos refutar;
16. - Os Recorrentes gozam de uma presunção juris et de jure, a qual o Tribunal a quo não considerou e deveria considerar;
17. - A presunção juris et de jure é absoluta, como tal, não pode ser ilidida, porque não admite prova em contrário;
18. - Pelo que, consideram os Recorrentes, por todo o exposto, que resulta evidente quer da prova documental (escritura pública sem consentimento, inexistência de qualquer prova em sentido contrário apresentada pelos Recorridos), quer da respectiva presunção juris et de jure, que deve a sentença ser revogada na parte em que absolve os Recorridos dos pedidos contra eles deduzidos;
19. - Por tais motivos, deve a decisão recorrida ser revogada e por via disso:
- ser decretada inválida a compra e venda titulada pela escritura realizada no dia 12 de Março de 1986, relativa ao prédio urbano descrito sob o n.º ... da freguesia de ..., Conservatória do Registo Predial do Funchal, sendo os vendedores Clementina e Alexandre, e os compradores José e João;
- ser cancelada a transmissão da propriedade relativamente aos RR., a nível fiscal e registral, declarando-se proprietários da dita fracção os herdeiros de Clementina e Alexandre;
- serem os Recorridos condenados no pagamento de custas e procuradoria;
20. - Foram violados os art.ºs 350.º, n.ºs 1 e 2, 2.ª parte, 371.º e 877.º, todos do CCiv., e o art.º 659.º, n.º 3, do CPCiv..

Os RR./Apelados contra-alegaram (fls. 217 e segs.), pronunciando-se sobre as questões suscitadas em sede de recurso, e interpuseram recurso subordinado, nesta sede formulando as seguintes
Conclusões
1. - Nos presentes autos os Recorridos formularam, em sede reconvencional, o pedido de declaração da sua aquisição do direito de propriedade sobre o prédio hoje descrito na Conservatória do Registo Predial do Funchal sob o n.º ... e inscrito na matriz sob o artigo 4457, por usucapião, no qual decaíram porquanto considerou o Tribunal a quo que “Tendo os réus adquirido a propriedade do prédio por via da celebração do contrato de compra e venda a invocada usucapião em sede de pedido reconvencional não pode ter aqui o efeito de um facto constitutivo pois que tal significaria uma aquisição dupla do mesmo direito por quem já é seu titular”;
2. - Tendo os Recorrentes interposto recurso da decisão do Tribunal a quo na parte que considerou que os Recorridos adquiriram o imóvel por via da celebração do contrato de compra e venda, cuja motivação ficou aqui devidamente contra alegada e, não obstante sustentarem os Recorridos a improcedência de tal recurso, importa acautelar, por imperativos de patrocínio apenas, a possibilidade do Venerando Tribunal considerar o mesmo procedente, ainda que em tal não se conceda, e assim, sindicar junto deste Tribunal a apreciação, subsidiariamente, do pedido reconvencional em que decaiu;
3. - Ora, nos termos do artigo 1316.º do CCiv. a aquisição do direito de propriedade não tem lugar apenas pela via contratual, podendo verificar-se também por sucessão por morte, usucapião, acessão e demais modos previstos na lei, sendo que a aquisição por usucapião depende, nos termos do artigo 1287.º do Código Civil de dois requisitos (i) a posse do direito de propriedade, (ii) mantida por certo lapso de tempo;
4. - Quanto ao requisito da posse ficou provado que são os Recorridos que ocupam o imóvel em causa nos presentes autos, que suportam as despesas com a desinfestação e limpeza do prédio, contratando trabalhadores para esse efeito, logo ficou demonstrado o corpus, e, bem assim, que os Recorridos cuidam do prédio como se seus donos fossem e fazem-no na convicção de serem efectivamente seus donos, o que bem demonstra que os Recorridos actuam com intenção idêntica à de um titular, logo ficou também demonstrado o animus;
5. - Bem como ficou provado que a posse dos Recorridos era “à vista de toda a gente, designadamente, contratando trabalhadores para procederem à sua limpeza” e que a mesma foi adquirida por efeito da escritura pública descrita no n.º 6 dos Factos provados da sentença recorrida, não há dúvida que a posse dos Recorridos é pública e pacífica;
6. - Em suma, ficou provado nos autos a posse do imóvel pelos Recorridos, revestindo tal posse as características legais e jurisprudencialmente exigidas para efeitos de aquisição por usucapião;
7. - Ademais, estando os Recorridos de boa fé, tendo os Recorrentes, como ficou demonstrado e resulta do facto descrito no ponto 14 dos Factos provados da Decisão recorrida, inscrito a aquisição da posse sobre o imóvel no registo predial (ou seja, tratando-se de posse registada) e tendo ainda baseado a sua aquisição no contrato de compra e venda plasmado escritura pública descrita no n.º 6 dos Factos provados da sentença recorrida (isto é, sendo a sua posse titulado), o lapso temporal, segundo requisito da usucapião, necessário para os Recorridos usucapirem era apenas de 10 anos desde a data da aquisição e registo;
8. - Ora, o contrato de compra e venda remonta a 12 de Março de 1986 (cfr. facto descrito no n.º 6 dos Factos provados da sentença recorrida) e o registo data de 4 de Abril do mesmo ano (cfr. facto descrito no n.º 10 dos Factos provados da sentença recorrida), mantendo-se a posse até à presente data (cfr. factos n.ºs 13 e 14 da Sentença recorrida), pelo que não podem restar dúvidas que também este segundo requisito se encontra preenchido, estando os Recorridos na posse do referido prédio há mais de dez anos;
9. - Termos em que considerando o Venerando Tribunal o recurso interposto pelos Recorrentes procedente, o que de modo algum se concede ou concebe, deverá ser apreciado o pedido reconvencional formulados pelos Recorridos e na sequência alterada a decisão recorrida sobre o mesmo, considerando-se o mesmo procedente, por provado.
Concluem por:
a) dever o presente recurso ser julgado totalmente improcedente, por não provado, proferindo-se Acórdão que confirme a douta Sentença Recorrida;
b) caso assim não se entenda, dever ser apreciada e julgada totalmente procedente a questão objecto do recurso subordinado interposto, devendo, em consequência, alterar-se a decisão recorrida por outra que declare que a porção de terreno com suas benfeitorias, com a área de 500 m2, destinada a construção urbana, sito na Rua ..., freguesia de ..., concelho do Funchal, a confinar a Norte com a Travessa do ..., Sul com Maria João, Leste com Alexandre ... e Oeste com Maria ... e outros, actualmente inscrito na matriz predial respectiva sob o artigo 4457, descrito na Conservatória competente, actualmente, sob o n.º .../... da freguesia de ..., Funchal foi adquirida pelos aqui Recorridos por usucapião.

O recurso foi admitido como de apelação, a subir imediatamente, nos próprios autos e com efeito meramente devolutivo, sendo também admitido o recurso subordinado interposto (cfr. fls. 242), tendo então sido ordenada a remessa dos autos a este Tribunal ad quem.
Remetidos, assim, os autos a este Tribunal da Relação, foi formulado convite a ambas as partes recorrentes a completar/esclarecer as suas conclusões de recurso (n.º 3 do art.º 685.º-A do CPCiv.), ao que apenas os AA. acederam (cfr. fls. 249 e segs.), tendo sido mantido o regime e efeito fixados em matéria de recurso. 
Colhidos os vistos, e nada obstando ao conhecimento do mérito do recurso, cumpre apreciar e decidir.

II – Âmbito do Recurso
Perante o teor das conclusões formuladas pelas partes recorrentes – as quais (exceptuando questões de conhecimento oficioso não obviado por ocorrido trânsito em julgado) definem o objecto e delimitam o âmbito do recurso, nos termos do disposto nos art.ºs 660.º, n.º 2, 661.º, 672.º, 684.º, n.º 3, 685.º-A, n.º 1, todos do Código de Processo Civil (doravante CPCiv.) –, constata-se que o thema decidendum, incidindo sobre a decisão da matéria de direito, consiste em saber, no essencial:
1.- se a declaração de consentimento pelos descendentes, a que alude o art.º 877.º, n.º 1, do CCiv., constitui formalismo fundamental ou condição de validade do contrato na venda a filhos ou netos;
2. - se ocorre presunção juris et de jure de inexistência de consentimento ante o silêncio da escritura pública de compra e venda nesta matéria;
3.- a quem cabia prestar tal consentimento e quem tem legitimidade para propor acção de anulação;
4.- se o direito potestativo de anulação do contrato é neste caso transmissível hereditariamente;
5. - sobre quem impendem os ónus da alegação e da prova em matéria desse consentimento.

III – Fundamentação
A) Matéria de facto
Na 1.ª instância foi considerada a seguinte factualidade como provada:
1. - No dia 25 de Janeiro de 1999 faleceu Clementina, no estado de casada com Alexandre, tendo deixado como únicos herdeiros o cônjuge (Alexandre), o filho Adelino e os netos José e João (alínea A)).
2. - No dia 16 de Janeiro de 2010 faleceu Adelino, sem testamento ou doação por morte, tendo deixado como únicos herdeiros o cônjuge, com quem era casado no regime da separação de bens, e os filhos, os quais são os ora Autores (alínea B)).
3. - Em 28 de Maio de 2010, faleceu Alexandre, no estado de viúvo, tendo deixado como herdeiros os netos José, João, Alexandre, Dino, Isabel e Francisco (alínea C)).
4. - Corre termos no Tribunal Judicial do Funchal (…) um Processo de Inventário, sendo os inventariados Clementina e Alexandre (alínea D)).
5. - O requerente deste processo de inventário foi o neto José, que sendo o mais velho de todos os herdeiros ocupa o cargo de cabeça de casal (alínea E)).
6. - No dia 12 de Março de 1986 foi celebrada uma escritura de compra e venda relativa a uma porção de terreno com suas benfeitorias, com a área de 500 m2, destinada a construção urbana, sito na Rua ..., freguesia de ..., concelho do Funchal, a confinar a Norte com a Travessa do ..., Sul com Maria João, Leste com Alexandre e Oeste com Maria ... e outros, omisso na matriz predial cadastral e descrito na Conservatória do Registo Predial do Funchal sob o n.º ..., a fls. 87v, do Livro B-72 sendo os vendedores Clementina e Alexandre e os compradores José, casado no regime da comunhão geral com Maria e João, casado no regime da comunhão geral com Maria (alínea F)).
7. - João interveio neste acto como gestor de negócios do seu filho João (alínea G)).
8. - A compra e venda referida em 7. foi ratificada pelo gestido conforme documento junto a fls. 79 e 80 dos autos e cujo teor se dá aqui por integralmente reproduzido para todos os efeitos legais (alínea H)).
9. - No Processo de Inventário referido em 4., pelo cabeça de casal José foi apresentada a relação dos bens deixados por óbito dos avós Clementina e Alexandre onde não foi relacionado o prédio identificado em 6. (alínea I)).
10. - O prédio referido em 6., inscrito na matriz predial respectiva sob o artigo 4457, encontra-se registado na Conservatória competente, actualmente, sob o n.º .../... da freguesia de ..., Funchal, encontrando-se inscrito a favor de João e José pela Ap. 2 de 1986/04/04 (alínea J)).
11. - O prédio identificado em 6. não consta da Relação de Bens apresentada por óbito da avó Clementina, falecida a 25 de Janeiro de 1999, no âmbito do processo de imposto sucessório n.º 10595 do Serviço de Finanças do concelho do Funchal 2 (alínea L)).
12. - Da escritura referida em 6. não consta qualquer menção relativa à existência de consentimento à venda por parte dos autores (ponto 1.).
13. - Desde pelo menos o ano de 1987 os réus suportam as despesas com a desinfestação e limpeza do prédio referido em F) e dele assim cuidam como se seus donos fossem (ponto 5.).
14. - O prédio referido em 6. confina com outros bens do avô dos AA. e dos réus e aqueles sabiam que eram estes quem o ocupava, o que faziam à vista de toda a gente, designadamente, contratando trabalhadores para procederem à sua limpeza, na convicção de serem seus donos, tendo procedido à respectiva inscrição matricial do prédio, suportando os impostos prediais desde 1995 (ponto 6.).
15. - Alexandre nasceu em 11 de Novembro de 1964 e é filho de Adelino e de Maria Irene (documento de fls. 169 p.p.).
16. - Francisco nasceu em 12 de Agosto de 1972 e é filho de Adelino e de Maria Irene (documento de fls. 161 p.p.).
17. - Isabel nasceu em 10 de Setembro de 1968 e é filha de Adelino e de Maria Irene (documento de fls. 164 p.p.).
18. - Dino nasceu em 9 de Dezembro de 1965 e é filho de Adelino e de Maria Irene (documento de fls. 166 p.p.).

B) O Direito
1. - Se a declaração de consentimento pelos descendentes constitui formalismo fundamental ou condição de validade do contrato na venda a filhos ou netos.
Os aqui AA. pretendem que se declare a invalidade, anulando-a, da venda efectuada considerando que houve violação do disposto no art.º 877.º do CCiv..
Estabelece este dispositivo legal (com a epígrafe “venda a filhos ou netos”) que:
“1. Os pais e avós não podem vender a filhos ou netos, se os outros filhos ou netos não consentirem na venda; o consentimento dos descendentes, quando não possa ser prestado ou seja recusado, é susceptível de suprimento judicial.
“2. A venda feita com quebra do que preceitua o número anterior é anulável; a anulação pode ser pedida pelos filhos ou netos que não deram o seu consentimento, dentro do prazo de um ano a contar do conhecimento da celebração do contrato, ou do termo da incapacidade, se forem incapazes.
“3. A proibição não abrange a dação em cumprimento feita pelo ascendente” (sic.).
Os AA. alegaram que, sendo netos dos declarantes vendedores (Clementina e Alexandre), a venda (de avós para outros netos, os RR.) foi realizada sem o conhecimento e consentimento de tais aqui AA. (netos) – cfr. art.ºs 19.º a 21.º, 23.º e 25.º a 29.º, todos da p. i..
Assim, perante venda realizada em 1986, em vida do filho dos vendedores e pai dos AA. – Adelino, falecido apenas em 16/01/2010 –, vêm os demandantes (netos dos vendedores), ainda em 2010, alegar nestes autos que tão-só souberam da compra e venda nesse mesmo ano de 2010, uma vez confrontados com processo de inventário, também instaurado em 2010, em que são inventariados os vendedores, sendo que a vendedora faleceu em 1999 e o vendedor, por sua vez, em 28/05/2010 (quatro meses após o óbito daquele seu filho e pai dos AA.).
Os AA. enfatizam que faltou à venda, escriturada no distante ano de 1986, não o consentimento de seu pai (filho dos doadores e vivo ao tempo da venda, apenas tendo falecido, recentemente, em Janeiro de 2010), mas o conhecimento e consentimento deles próprios, os aqui AA., enquanto netos, perante venda a outros netos (cfr. art.ºs 22.º, 23.º e 25.º a 29.º, todos da p. i., e art.ºs 4.º e 5.º da réplica).
Contudo, não se provou que a aludida venda tivesse sido efectuada sem o conhecimento e consentimento dos AA. – ou do seu dito pai –, apenas se provando, onde se perguntava se os AA. nunca consentiram na venda, que da escritura de compra e venda não consta qualquer menção relativa à existência de consentimento (seu) à venda (cfr. ponto 1. da base instrutória e respectiva resposta restritiva).
Também não se provou, por seu lado, o conhecimento da venda por tais AA. apenas na pendência de processo de inventário em 2010 (cfr. respostas negativas aos pontos 2. a 4. da mesma base instrutória) ou sequer o conhecimento pelo pai deles (matéria esta não alegada).
Ora, o consentimento em causa, a que alude o art.º 877.º do CCiv., pode ser prestado verbalmente, nada impondo que o seja por escrito, nem que conste da escritura de compra e venda.
O contrato de compra e venda ao tempo apenas podia ser celebrado por escritura pública (cfr. art.º 875.º do CCiv.), sendo que a ausência de consentimento não determinava a nulidade de tal contrato, mas apenas a sua anulabilidade.
Donde que o contrato de compra e venda de imóvel a filhos ou netos produza, uma vez firmado, os seus efeitos, os quais apenas serão atingidos, retroactivamente, se o negócio for anulado, nos termos do disposto no art.º 289.º, n.º 1, do CCiv.. Doutro modo, não sendo actuado o direito à anulação, o contrato permanece, mantendo-se a salvo da invalidade, logo, é tratado como válido, isto é, como se não fosse afectado pelo vício que o tornava anulável, falando-se então em “sanação ou convalidação do contrato” ([1]).
Assim, «não exigindo a lei nenhuma forma especial para a prestação do consentimento (artigo 364.º/1 do Código Civil) nem sequer exigindo a lei que o contrato de compra e venda a filhos e netos, sob pena de nulidade, careça do consentimento das pessoas para tanto legitimadas, não se vê que seja sustentável a argumentação dos recorrentes no sentido de que o consentimento constitui cláusula essencial do negócio de compra e venda.
«No seu entender, a ausência dessa cláusula da escritura de compra e venda implicaria a prova, logicamente necessária, "do reverso dessa realidade", ou seja, a prova de que não houve consentimento.
«No entanto, não se nos afigura que assim se deva entender, pois, ainda que a lei fulminasse com nulidade o contrato de compra e venda a filho ou neto sem consentimento, impor-se-ia apenas declarar tal nulidade desde que a lei exigisse a redução a escrito dessa manifestação de vontade independentemente de ela constituir ou não cláusula essencial do contrato.
«Com efeito, se a lei exigisse forma escrita para o consentimento, da ausência de documento não se retiraria que não houve consentimento verbal, retirar-se-ia apenas que não houve consentimento escrito» ([2]).
Donde que, se pode dizer-se que sem o dito consentimento está em causa a validade do negócio, certo é também que a falta do mesmo consentimento apenas implica um vício de anulabilidade, sanável se não for tempestivamente exercido – e por quem tem legitimidade para o fazer, o titular do direito, aquele em cujo interesse a anulabilidade é estabelecida (art.º 287.º, n.º 1, do CCiv.) – o direito potestativo de anulação, caso em que o contrato fica convalidado e tudo se passa como se de nenhum vício tivesse sofrido ab initio.
Acresce que tem sido entendimento acolhido na doutrina e na jurisprudência do STJ o de que o consentimento para a venda em causa “pode ser provado por qualquer meio de prova admitido em direito. Não é exigida forma especial para o consentimento, mesmo estando em causa a alienação de parte de um prédio urbano” ([3]).
Posto isto, podendo o consentimento em causa ser prestado mesmo verbalmente e podendo a prova desse consentimento fazer-se através de qualquer meio probatório admitido em direito, não é de acolher a tese dos aqui Apelantes no sentido de que a declaração de consentimento pelos descendentes constitui formalismo fundamental ou condição inultrapassável de validade do contrato.

2. - Se ocorre presunção juris et de jure de inexistência de consentimento ante o silêncio da escritura pública de compra e venda nesta matéria
Do que ficou exposto também já se torna claro que não é defensável, a nosso ver, que o silêncio da escritura pública de compra e venda a filhos ou netos em matéria de consentimento dos descendentes implique, de per si, uma presunção juris et de jure de inexistência desse consentimento.
Quer dizer, se, como dito, quanto ao aludido consentimento, ocorre liberdade de forma da respectiva declaração (art.º 219.º do CCiv.), a qual pode, por isso, assumir simples forma verbal, e se a respectiva prova pode ser feita através de qualquer meio de prova admitido em direito, tais liberdades de exteriorização da declaração de consentimento e de prova dessa declaração logo afastam/prejudicam a pretendida presunção inilidível, a qual só poderia sustentar-se num regime, que não é o nosso, de exigência formal da declaração de consentimento no próprio corpo da escritura de compra e venda (cfr. art.ºs 349.º e seg. do CCiv.).
Assim, o silêncio da escritura de compra e venda dos autos em matéria de consentimento dos descendentes dos vendedores, longe de constituir campo para a operância de uma presunção inilidível de inexistência de consentimento, abre, diversamente, espaço para a prova através de qualquer meio de probatório admitido em direito, designadamente a prova testemunhal, termos em que do teor da dita escritura nada pode retirar-se em matéria de prestação de tal consentimento, a não ser que o mesmo não figura nessa escritura.
Improcedem, pois, as conclusões dos Apelantes em contrário.

3.- A quem cabia prestar o consentimento e quem tem legitimidade para propor acção de anulação
Como também já referido, constata-se da factualidade provada que o pai dos AA. e filho dos vendedores, Adelino, faleceu em 16/01/2010, muito depois, assim, da realização da venda, já que esta teve lugar em 12/03/1986.
Assistia naturalmente a tal Adelino a legitimidade, perante o que estabelece o art.º 877.º, n.º 2, do CCiv., para propor acção de anulação dentro do prazo de um ano a contar do seu conhecimento da celebração do contrato, no caso de não ter dado o seu consentimento para a venda, enquanto filho (herdeiro legitimário) dos vendedores (cfr. art.ºs 2157.º e 2133.º a 2135.º, todos do CCiv.), qualidade essa de filho que lhe valia, em sua vida, ser o titular (com preterição dos seus próprios filhos, netos dos vendedores) do poder de dar, ou recusar, tal consentimento.
Não desencadeou Adelino acção judicial tendente ao exercício do direito à anulação da controvertida venda, vindo agora, após a sua morte, os filhos dele fazê-lo (os aqui AA.).
Como dito na sentença recorrida, dúvidas não restam de que a razão de ser da proibição constante do normativo do n.º 1 do art.º 877.º do CCiv. foi a de obstar à prática de vendas simuladas em prejuízo das legítimas dos descendentes (filhos ou netos) nos casos em que se entende que a simulação seria mais difícil de provar, isto é, de evitar que, através de doações encobertas, se lesassem tais legítimas, pretendendo-se assegurar a intangibilidade das legítimas dos descendentes (cfr. fls. 185) ([4]).
Ora, assim sendo, claro se torna que ao tempo da venda o herdeiro legitimário dos vendedores era o dito Adelino, filho daqueles, situação que se manteve até à sua morte, e não os seus filhos (netos dos vendedores), que só passaram a ser herdeiros do seu avô após a morte do seu pai.
Assim, sendo o discutido direito à anulação de contrato um direito potestativo, o mesmo era encabeçado pelo dito Adelino (e não pelos seus descendentes), por ser ele o cabeça de estirpe e, por isso, a pessoa imediatamente interessada em evitar diminuições simuladas da legítima, com os inerentes prejuízos patrimoniais.
Como dispõe o art.º 287.º, n.º 1, do CCiv., a legitimidade para arguir a anulabilidade apenas cabe às pessoas em cujo interesse a lei a estabelece, donde que essa legitimidade fosse efectivamente conferida àquele Adelino (cfr. art.º 877.º, n.º 2, do mesmo Cód.), não cabendo, em vida dele, aos seus filhos ([5]).
É fora de dúvida, pois, que o consentimento teria de ser prestado pelo pai dos AA./Apelantes, Adelino, enquanto cabeça da estirpe, e não pelos seus filhos em vida daquele – só assim não sucederia se o óbito daquele tivesse sido anterior ao dos seus progenitores, caso em que aqueles filhos, para esse efeito, tomariam a posição dele, representando-o.
Assim, o dispositivo legal do art.º 877.º do CCiv., que estabelece uma limitação ao basilar princípio da liberdade contratual (art.º 405.º do CCiv.), no concernente à liberdade de estipulação ou celebração de contratos, princípio ancorado na ideia de autonomia privada, enraizada esta no valor da autodeterminação indi­vidual e na própria dignidade da pessoa humana, limitação essa traduzida na exigência do consentimento de terceiros relativamente à celebração de negócio jurídico, tem uma finalidade preventiva, visando evitar situações de simulação relativa, difíceis de provar, em prejuízo das legítimas dos descendentes – os ditos cabeças de estirpe, com preferência de grau de parentesco, no chamamento à sucessão, a que alude o art.º 2135.º do CCiv. – alheios ao negócio (celebração simulada de contratos de compra e venda para realizar doações), em nada contendendo, porém, com a acção, já de cariz repressivo, tendente à declaração de invalidade por simulação, reservada para os casos em que ocorra intuito de enganar e prejudicar terceiros, os outros herdeiros (cfr. art.ºs 240.º e seg. do CCiv.).
De referir ainda que o direito de anulação caducava no prazo de um ano a contar do conhecimento da celebração do contrato de compra e venda, sendo que não se provou tal facto extintivo, cujo ónus da alegação e prova impendia sobre os RR. (cfr. art.º 342.º, n.º 2, do CCiv.).

4. - Se o direito potestativo de anulação do contrato é neste caso transmissível hereditariamente
Segundo o disposto no art.º 2025.º, n.º 1, do CCiv., “não constituem objecto de sucessão as relações jurídicas que devam extinguir-se por morte do respectivo titular, em razão da sua natureza ou por força da lei”.
Como vem referido no aludido Ac. do STJ de 29/05/2012 (Cons. Salazar Casanova), “estão em causa três fontes de intransmissibilidade: a natureza do direito, a lei e a convenção”, sendo que o art.º 877.º do CCiv. «não assenta na presunção de que tais vendas seriam simuladas e, portanto, anuláveis, pois, como salienta Antunes Varela, “a lei não presume que todas as vendas de pais a filhos ou de avós a netos, sem consentimento dos demais, sejam simuladas. A sua ratio não é de raiz concreto-individual, nem estritamente repressiva, alicerçada na convicção sistemática, generalizada, de que em todos esses casos pai e filho (arvorados em vendedor e comprador) se conluiaram no intuito de iludir as legítimas dos outros filhos. A intenção da lei consiste em evitar - é coisa diferente - as vendas simuladas entre pais e filhos, com o fim altamente reprovável de lesar as expectativas sucessórias dos outros filhos, assentes na própria lei (e não na vontade dos pais). A sua finalidade, ao instituir o mecanismo do assentimento prévio dos outros filhos, é de carácter essencialmente preventivo”».
E prossegue o mesmo aresto do STJ: “Pode sustentar-se que a lei, prescrevendo a anulabilidade e limitando a invocação da invalidade aos interessados que integrem as categorias acima referidas, prescreve um regime de intransmissibilidade, devendo, assim, por força da lei, haver-se por extinto o direito de pedir a anulação por morte do respectivo titular”, solução que se compreende já que um dos fundamentos de intransmissibilidade é o de evitar que o direito tenha existência mais longa que a do respectivo titular ([6]). “Ora precisamente porque estamos face a um direito potestativo, de natureza preventiva – que não afasta a possibilidade de se intentar acção de simulação se efectivamente houve a intenção de prejudicar os herdeiros (…) – direito esse que o interessado em vida pode entender não querer exercer por sentir que não houve prejuízo, não nos parece que não seja aceitável a ideia da intransmissibilidade desse direito”.
A questão é, pois, a da “intransmissibilidade do direito à anulação por se dever considerar extinto por morte do respectivo titular (artigo 2025.º/1 do Código Civil). Aceite a natureza preventiva deste artigo 877.º do Código Civil e a possibilidade de os herdeiros intentarem acção de simulação, parece que, ficando assim salvaguardado o risco derivado de actos praticados que lhes sejam prejudiciais, as vantagens da intransmissibilidade superaram as de uma acção de anulação”. E conclui, assim, o mesmo douto aresto do STJ que “a não haver intransmissibilidade, a procedência da acção pode verificar-se, como se disse, muitos anos volvidos, considerada a venda impugnada, não se justificando efectivamente um estado de incerteza causado por uma transacção que não violou nenhuma regra que pudesse justificar a procedência de uma acção de simulação. E se a lei limitou aos interessados mencionados no artigo 877.º do Código Civil a legitimidade substantiva para proporem a acção de anulação do artigo 877.º/2 do Código Civil o campo previsional deste preceito exclui a transmissibilidade do direito à anulação nos casos em que o decesso do titular desse direito foi posterior à venda, valendo apenas a assinalada representação para os casos em que o decesso se verificou em momento anterior à transacção visto que então, para esse efeito, se impõe a chamada dos filhos que representam o progenitor falecido” (sic.).
Concorda-se, em tese geral, com este entendimento, mormente num caso como o dos autos, em que o titular do direito potestativo à anulação tão-só veio a falecer mais de 23 anos após a outorga, por seus pais, da escritura de compra e venda, sendo a acção apenas intentada, já por seus filhos, após tal falecimento, 24 anos depois da realização dessa escritura.
Conclui-se, por isso, in casu pela intransmissibilidade do direito à anulação, por se dever considerar o mesmo extinto por morte do respectivo titular, o que logo imporia a improcedência da acção.

5. - Sobre quem impendem os ónus da alegação e prova quanto ao consentimento a que alude o art.º 877.º do CCiv.
Mas mesmo que assim não se entendesse, sempre a acção teria de improceder, ante agora a validade dos argumentos, já expendidos na sentença recorrida, e que devem aqui ser acolhidos, quanto à matéria do ónus da prova da ausência de consentimento.
Como salientado em tal sentença, na doutrina Pires de Lima e Antunes Varela defendem que, tratando-se de uma acção de anulação, “cabe aos autores o ónus da alegação [e] da prova dos factos constitutivos do seu direito (potestativo) de anulação” ([7]), competindo-lhes a demonstração de que a venda foi efectuada sem o consentimento dos demais descendentes (cfr. fls. 185 dos autos, onde é citada outra doutrina no mesmo sentido).
No mesmo sentido também se inclinou o aludido Ac. do STJ de 29/05/2012, o qual, após citar diversa doutrina e jurisprudência, concluiu que se justifica aplicar aqui o disposto no art.º 342.º, n.º 3, do CCiv., segundo o qual, “em caso de dúvida, os factos devem ser considerados como constitutivos do direito”, sendo que “a anulação não pode ser decretada apenas com a mera alegação da venda de pais a filhos” e o consentimento é exigido, não apenas como pressuposto da legitimidade substantiva, mas também como facto constitutivo do direito à anulação da compra e venda.
Cabia, nesta perspectiva, aos demandantes, ao intentarem acção de anulação, o ónus da alegação e prova dos factos constitutivos do seu pretendido direito de anulação, pelo que tinham de demonstrar que a venda foi efectuada sem o consentimento dos demais descendentes ([8]), mormente de seu pai (art.º 342.º, n.ºs 1 e 3, do CCiv.).
Ora, vista a factualidade provada (e a não provada), é líquido que tal demonstração não foi conseguida, ficando por se saber se, finalmente, a venda foi, ou não, consentida pelo descendente Adelino (ou pelos filhos deste, os aqui AA., após o óbito de seu pai).
Donde a necessária improcedência da acção, como, aliás, já explicitado na sentença recorrida.
Não merecem acolhimento, assim, as conclusões dos Apelantes em contrário, devendo improceder totalmente a Apelação.
O recurso subordinado da contraparte foi deduzido, manifestamente, tão-só para o caso de proceder o recurso dos AA./Apelantes (cfr. contra-alegações dos RR./Apelados de fls. 217 e segs.).
Assim, improcedendo, como improcede, aquele recurso dos Apelantes, prejudicada logo fica a apreciação do recurso subordinado.
Considera-se, por isso, prejudicada tal apreciação, termos em que se não conhece desse recurso subordinado.
IV – (…)

V – Decisão
Pelo exposto, acordam os juízes deste Tribunal da Relação em julgar:
a) improcedente a Apelação e, em consequência, manter a decisão recorrida;
b) prejudicada a apreciação do recurso subordinado, dele, por isso, não conhecendo.
Custas da apelação pelos AA./Apelantes.
Escrito e revisto pelo relator – texto redigido sem aplicação da grafia do (novo) Acordo Ortográfico da Língua Portuguesa.

Lisboa, 13 de Dezembro de 2012

José Vítor dos Santos Amaral
Fernanda Isabel Pereira
Maria Manuela Gomes
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([1]) Cfr. Ac. do STJ de 29-05-2012, Proc. 4146/07.6TVLSB.L1.S1 (Cons. Salazar Casanova), disponível na base de dados do ITIJ, em www.dgsi, pt, aresto que cita, por sua vez, Revista de Legislação e de Jurisprudência, Ano 111.º, 1978-1979, anotação de Vaz Serra ao Ac. do STJ de 07-07-1977 (Rodrigues Bastos), pág. 148.
([2]) Sic. Ac. referido do STJ de 29-05-2012.
([3]) Cfr. Raul Ventura, O Contrato de Compra e Venda, pág. 273; Pedro Romano Martinez, Direito das Obrigações - Contratos, 2.ª ed., pág. 59; e Ac. do STJ de 12-03-2002, Proc. 02A2997 (Cons. Pinto Monteiro), in www.dgsi.pt, todos citados pelo aludido Ac. do STJ de 29-05-2012.
([4]) Assim também o Ac. do STJ de 27/11/2007, Proc. 07B3618 (Cons. Santos Bernardino), disponível em www.dgsi.pt. 
([5]) Esclarecem, a este propósito, Pires de Lima e Antunes Varela que “estão previstas no n.º 1 duas hipóteses: a de os pais venderem aos filhos e a de os avós venderem aos netos. Se venderem aos filhos, é necessário o consentimento dos outros filhos, mas não, em princípio, o consentimento dos netos. Os pais são os cabeças de estirpe e as pessoas imediatamente interessadas em evitar diminuições simuladas das legítimas. Somente se algum filho tiver falecido, é que passa tal filho, para este efeito, a ser representado pelos seus descendentes. Pela mesma razão, se é feita a venda a um neto, e existem filhos que representem outras estirpes, são os cabeças dessas estirpes e, portanto, os filhos que devem dar o seu consentimento, e não os netos, filhos desses filhos. O que parece de exigir, conjuntamente, é o consentimento dos irmãos do comprador” (cfr. Código Civil Anotado, Vol. II, 3.ª ed., Coimbra Editora, Coimbra, 1986, págs. 170 e seg., com itálico aditado). Neste sentido, cfr., na jurisprudência, o Ac. da Rel. Lisboa de 26/06/2008, Proc. 6575/2008-6 (Rel. Fernanda Isabel Pereira), disponível em www.dgsi.pt.
([6]) O texto cita Inocêncio Galvão Telles (Direito das Sucessões, Noções Fundamentais, 2.ª ed., pág. 67).
([7]) Vide Código Civil Anotado, Vol. II, cit., pág. 171.
([8]) Cfr. neste sentido o Ac. da Rel. Lisboa de 26/06/2008, antes citado.