Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
3264/20.0T8VFX.L1-1
Relator: MANUELA ESPADANEIRA LOPES
Descritores: SOCIEDADE COMERCIAL POR QUOTAS
TRIPLE OPTION
QUOTA INDIVISA
ACÇÃO DE EXCLUSÃO DE SÓCIO
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 02/08/2022
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Texto Parcial: N
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: PROCEDENTE
Sumário: I–O falecimento de um sócio pode, em tese, dar origem à chamada triple option: ou a sociedade se dissolve; ou amortiza ou adquire a quota do falecido aos herdeiros; ou continua a sua existência integrando como seus sócios os herdeiros do falecido.

II–Havendo pluralidade de herdeiros e enquanto a herança permanecer indivisa, passa a verificar-se a contitularidade da participação social, expressamente contemplada e regulada nos arts. 222º a 224º e 303º CSC.

III–A lei privilegia o exercício dos direitos dos contitulares, não em conjunto, mas através de um representante comum, tendo lugar a designação deste, antes de mais, por lei. Será esse o caso do c. de casal quando a quota faz parte de comunhão hereditária.

IV–Por força do nº 6 do artº 223º do CSC, no caso de a quota integrar comunhão hereditária, o c. de casal não pode praticar actos que envolvam a redução dos direitos dos sócios, excepto quando o testamento, todos os contitulares ou o tribunal lhe atribuírem poderes especiais para o efeito.

V–O n.º 1 do art.º 257.º do C.S.C. consagra como princípio básico o da livre destituição dos gerentes de uma sociedade por quotas, podendo o c. de casal, como representante da quota indivisa, mesmo sem que lhe terem sido atribuídos poderes especiais e desde que a sociedade não tenha apenas dois sócios, votar a destituição de gerente.

VI–Pode igualmente, nessa mesma qualidade, votar a nomeação de gerente e a instauração de acção de restituição da posse e de condenação do pagamento de indemnização contra sócio que ocupe, sem consentimento da sociedade, imóvel da propriedade desta, não sendo tais deliberações abusivas.

VII–Nas sociedades por quotas, os sócios apenas podem ser excluídos dessa qualidade nas situações previstas nos arts. 241º e 242º do CSC, ou seja, “nos casos e termos previstos na lei”, nas situações respeitantes à pessoa ou ao comportamento do sócio fixados no contrato que confiram à sociedade esse poder de exclusão, mediante deliberação social (n.º 1 do art. 241º), ou, por decisão judicial, a ser proferida em acção proposta pela sociedade contra o sócio cuja exclusão é pretendida, tendo como fundamento a existência de “comportamento desleal ou gravemente perturbador do funcionamento da sociedade”, que “lhe tenha causado ou possa vir a causar-lhe prejuízos relevantes”.

VIII–A instauração dessa acção de exclusão de sócio terá de ser autorizada pela assembleia geral da sociedade.

IX–A deliberação social que exclua sócio fora do âmbito definido no artigo 241º é nula, por ofensa de preceito legal não derrogável - artigo 56º, nº 1, alínea d), do Código das Sociedades Comerciais.


(Sumário elaborado pela Relatora)

Decisão Texto Parcial:
Decisão Texto Integral: Acordam as Juízas na Secção do Comércio do Tribunal da Relação de Lisboa:


I.–Relatório


G… e mulher C…, casados sob o regime da comunhão de adquiridos, residentes em …, instauraram a presente acção declarativa contra a sociedade M…, Lda, com sede em C…, peticionando a anulação das deliberações tomadas na Assembleia Geral de 30 de Outubro de 2020.

Invocaram que foi ali deliberado:
a)-destituir o sócio G… do cargo de gerente da sociedade;
b)-eleger nova gerente da sociedade, M…;
c)-excluir judicialmente de sócio G…;
d)-instaurar acção contra o sócio G… destinada a ressarcir os danos por este provocados e a restituição da posse do património da sociedade.
Votaram a favor da deliberação 2/3 do capital social. Destes, metade, um terço do total, integra herança, de que o A. é herdeiro. Todavia, o cabeça-de-casal seu irmão, também sócio, decidiu unilateralmente o sentido de voto da herança.
Concluíram pela anulabilidade das deliberações, por aplicação do disposto no artigo 58º, nº1, al b), do Código das Sociedades Comerciais: “(…) apropriadas para satisfazer o propósito de um dos sócios de conseguir, através do exercício do direito de voto, vantagens especiais para si ou para terceiros, em prejuízo da sociedade ou de outros sócios ou simplesmente de prejudicar aquela ou estes, a menos que se prove que as deliberações teriam sido tomadas mesmo sem os votos abusivos;”.
Assim não se entendendo, sustentaram que há abuso de direito, nos termos do artigo 334.º do Código Civil, ou a nulidade prevista no artigo 56.º/1, al. d), do Código das Sociedades Comerciais.
A R. contestou, tendo-se defendido por excepção, invocando a ilegitimidade activa do cônjuge do sócio, C…, por aplicação do disposto no artigo 8.º do Código das Sociedades Comerciais.  
Sustentou que os direitos sociais - que não impliquem actos de disposição da participação social - inerentes à quota cuja titularidade pertence à herança indivisa de G… são, por lei, exercidos pelo cabeça-de-casal de tal herança, tendo este legitimidade para, enquanto representante comum dessa quota, deliberar em nome dessa quota e no sentido em que o fez na assembleia objecto da presente acção.
O c. de casal não exerceu o seu direito de voto em Abuso de Direito.

Realizou-se audiência prévia, com os seguintes fins:
- Realização de tentativa de conciliação;
- Facultar aos AA. a pronúncia sobre a exceção da ilegitimidade ativa da A. C…;
- Facultar às partes a discussão de facto e de direito, quando o juiz tencione conhecer imediatamente, no todo, do mérito da causa.”.

Foi proferido despacho saneador, tendo sido julgada procedente a excepção dilatória de ilegitimidade da A. C… e absolvida a R. da instância quanto ao pedido formulado.

Foi proferida sentença, tendo a acção sido julgada totalmente improcedente e a R. absolvida do pedido.
***

Inconformado o A. interpôs recurso, sendo que nas respectivas alegações surgem identificadas “CONCLUSÕES” que não cumprem o ónus de síntese imposto pelo art. 639º, nº 1 do CPC, pelo que, com vista a suprir a referida deficiente prestação processual do recorrente, passam-se a reproduzir as mesmas expurgadas dos pontos que são repetição de outros ou mera transcrição dos factos provados e daqueles onde constam transcritos normativos legais:
A)-O presente recurso é interposto da sentença, proferida nos presentes autos, que decidiu não anular as deliberações sociais tomadas na Assembleia Geral da sociedade realizada a 30 de Outubro de 2020, deliberações essas que, conforme consta nos pontos 15 e 16 da Fundamentação de Facto da douta sentença de que agora se recorre, foram:
(i)- aprovadas com os votos do sócio Â… e da sócia “Herança aberta por óbito de G…”, tendo contado com o voto contra do ora A., que juntou declaração de voto, sendo que (ii) o sentido de voto da Herança aberta por óbito de G… foi unilateralmente decidido pelo sócio Â…, enquanto cabeça-de-casal da Herança aberta por óbito de G…
B)-Com base em um facto que não foi objecto de escalpelização nas peças processuais produzidas pelas partes, nem de prova, a douta sentença invoca disposições legais que não têm aplicação ao que se discute nos presentes autos.
C)-É verdade que o Recorrente e a sua família habitam em uma das moradias de que a sociedade é proprietária, conforme decorre dos pontos 9 e 10 da Fundamentação de Facto.
D)-E mesmo admitindo que, conforme referido no ponto 11 da Fundamentação de Facto, não existe qualquer deliberação formal da sociedade que titule o aqui Recorrente a habitar tal imóvel, isso não é, por si só, argumento suficiente para se concluir, como se faz na douta sentença, que tal conduta viola o disposto no artigo 64.º/1, do Código das Sociedades Comerciais, e suscita a aplicação dos artigos 186.º/1, al. a), 257.º e 75.º, do aludido diploma.
E)-O facto de não existir um documento que titule a legitimidade de um sócio e gerente de uma sociedade habitar um determinado imóvel dessa mesma sociedade não é, por si só, razão para se concluir que esse sócio e gerente violou os deveres previstos nas alíneas a) e b) do n.º 1 do artigo 64.º do Código das Sociedades Comerciais (CSC).
F)-Para se poder concluir nesse sentido há que, em sede própria, escalpelizar, discutir e fazer prova se a inexistência de tal título, só por si, consubstancia uma concreta e objectiva violação de tais deveres, escalpelização e prova que, nestes autos, não ocorreu.
G)-A eventual violação dos deveres previstos no n.º 1 do artigo 64.º do CSC por parte do aqui Recorrente não foi objecto de discussão e de produção de prova nos presentes autos, razão pela qual não se compreende a invocação do artigo 64.º n.º 1 do CSC e a consequente defesa, na douta sentença, da aplicabilidade dos artigos 186.º n.º 1, alínea a) e do artigo 75.º do CSC.
H)-Os presentes autos tiveram na sua origem o que a douta sentença refere nos pontos 15 e 16 da Fundamentação de Facto, ou seja, o facto de as deliberações sociais terem sido aprovadas com os votos do sócio Â… e da sócia “Herança aberta por óbito de G…”, tendo contado com o voto contra do ora A., que juntou declaração de voto, sendo que o sentido de voto da Herança aberta por óbito de G… foi unilateralmente decidido pelo sócio Â…, enquanto cabeça-de-casal da Herança aberta por óbito de G…
I)-Estes autos prendem-se com o seguinte: saber se um cabeça-de- casal, que é contitular, em partes iguais com o seu irmão e aqui Recorrente, de uma quota pertencente à herança do pai de ambos, pode decidir, unilateralmente, o sentido de voto da quota dessa herança, especialmente quando o sentido de voto dessa quota, que é de ambos em partes iguais, tem como consequência a destituição de um gerente, o aqui Recorrente e a hipotética exclusão do mesmo de sócio da sociedade, caso competente acção para o efeito venha a ser instaurada.
J)-Estes autos não cuidam de saber se os deveres previstos no n.º 1 do artigo 64.º do CSC foram violados pelo aqui Recorrente.
K)-Essa aferição terá de ser feita noutra sede, noutro processo judicial. Ou, no limite, teria de ter sido feita neste processo, o que não ocorreu.
L)-Considere-se ou não haver abuso de direito na forma como a quota da herança foi utilizada pelo cabeça-de-casal para conseguir a maioria necessária para aprovação das
deliberações cuja anulação se peticiona, a verdade é que a presente acção devia sempre ter sido julgada procedente.
M)-O fundamento das deliberações tomadas na Assembleia Geral de 30 de Outubro de 2020 foi o entendimento, a percepção, a opinião, a sensibilidade, o “acho que” da única pessoa que tinha interesse nessas deliberações para, com elas, poder controlar a sociedade, “sob a capa” de que o facto de o seu irmão, igualmente sócio e gerente da sociedade, habitar desde há vários anos um dos imóveis pertencente à mesma – sendo que só agora isso incomodou o outro sócio e cabeça-de-casal da herança – causar prejuízos avultados à sociedade.
N)-E a douta sentença, ao bastar-se com tal entendimento, com tal percepção, com tal opinião, com tal sensibilidade, com o simples “acho que” da única pessoa que tinha interesse nessas deliberações – o sócio e cabeça-de-casal Â… – decidiu, erradamente e salvo melhor opinião, não anular as deliberações que foram tomadas com base na subjectividade da opinião de um interessado directo – o sócio Â… - nessas mesmas deliberações.
O)-Não tendo existido tal decisão prévia sobre a procedência ou não dos fundamentos apresentados pela sociedade para tomar as deliberações cuja anulação se peticiona, a douta sentença deve ser revogada por tudo o que até agora se expôs.
P)-Entende o Recorrente que, para além das razões vertidas supra e que concluem pelo pedido de revogação da douta sentença, outra existe - concretamente a forma abusiva como o cabeça-de-casal utilizou o cargo para, em claro abuso de direito, tomar as deliberações na Assembleia de 30 de Outubro de 2020 – para que a revogação da douta sentença ocorra.
Q)-A douta sentença faz uma sumula das normas jurídicas aplicáveis à contitularidade de uma quota social como fonte sucessória, das normas jurídicas aplicáveis à herança indivisa, das normas jurídicas aplicáveis ao modo como é deferido o cargo da cabeça-de-casal e das normas jurídicas aplicáveis à forma de representação de uma quota social detida por mais do que uma pessoa procurando, igualmente, fazer a ligação de todas estas normas e aplicá-las ao caso sub judice.
R)-A quota que era do pai dos sócios G… e Â… transmitiu-se, por aplicação das regras gerais da sucessão, aos dois herdeiros legais, ou seja, aos dois únicos descendentes do titular originário da quota.
S)-Como, mais uma vez, bem refere a douta sentença, de acordo com o artigo 223.º, n.º 1 do CSC, o cabeça-de-casal é o representante comum dos herdeiros perante a
sociedade.
T)-Relativamente à representação dos herdeiros por parte do cabeça-de-casal, a douta sentença, depois de fazer referência ao n.º 1 do artigo 223º do CSC, limita-se a convocar para a sua fundamentação os números 5 e 6 do referido artigo 223º, olvidando fazer a interpretação e a aplicação do princípio subjacente ao n.º 6 do artigo 223.º do CSC à situação concreta.
U)-A aplicação do princípio subjacente ao n.º 6 do artigo 223.º do CSC à situação concreta é essencial para se compreender a razão pela qual o Recorrente entende que o cabeça-de-casal da herança exerceu o direito de voto que cabe à quota da herança de forma abusiva.
V)-Decorre da habilitação de herdeiros do titular da quota agora representada pelo cabeça-de-casal Â…, que o mesmo não deixou testamento e também não consta dos autos qualquer documento que consubstancie a atribuição, por parte dos contitulares da quota ou por parte do Tribunal, de poderes de disposição ao representante comum, o cabeça-de-casal Â…
W)-Não se verificando qualquer das situações previstas na parte inicial do referido n.º 6 do artigo 223.º do CSC, aplica-se o seguinte: não é licito ao representante comum – no caso sub judice ao cabeça-de-casal, Â… – praticar actos que importem a redução dos direitos dos sócios.
X)-Importa analisar as regras do CC relativas à representação, bem como as relativas aos direitos e obrigações do cabeça-de-casal de uma herança, para se compreender como a douta sentença faz uma incorrecta interpretação, conjugação e, consequentemente, uma errada aplicação das normas legais que regulam estas situações ao caso concreto.
Y)-O princípio geral da representação vertido no artigo 258.º do CC não deixa margem para dúvidas no tocante ao facto de a actuação do representante, em nome do representado, dever respeitar os limites dos poderes que lhe competem.
Z)-Mesmo respeitando que a douta sentença entenda balizar os poderes de representação e de administração do cabeça-de-casal entre os poderes do curador da herança jacente (art. 2048º do C.Civ.), no limite inferior, e os poderes do administrador dos bens comuns do casal (arts. 1678º a 1682º do C.Civ.), no limite superior, o que o Recorrente não tem dúvida é que, mesmo com esse balizamento, extrapola manifestamente os limites de representação que compete ao cabeça-de-casal enquanto representante de uma quota detida em comum e em parte iguais por dois contitulares, quem votar em representação dessa quota num sentido que, de uma forma objectiva, leva à diminuição dos direitos de um outro sócio na sociedade.
AA)-Foi isso que fez o cabeça-de-casal da herança e representante da quota comum, Â…
AB)-Decorre da certidão comercial junta aos autos que o aqui Recorrido é sócio e gerente da sociedade desde a sua constituição.
AC)-Desde 17 de Janeiro de 2007, ou seja, há mais de 14 anos, que o Recorrente sempre teve a possibilidade de, por direito próprio, pois para tal foi nomeado, ter uma voz activa na gestão e na definição dos destinos da sociedade enquanto gerente da mesma.
AD)-Conforme resulta da certidão comercial da sociedade, os seus sócios fundadores entenderam que os gerentes deviam ser os três sócios.
AE)-Tal como a dado passo da douta sentença se refere ser importante indagar o pensamento legislativo do legislador para se compreender a razão de ser das normas jurídicas, o mesmo princípio tem de ser aplicado à interpretação da vontade real dos sócios quando uma sociedade é constituída com três quotas de igual valor, uma pertencente ao pai e as outras duas, pertencentes, cada uma, a cada um dos seus dois únicos filhos.
AF)-Também não pode deixar de se interpretar e de se procurar compreender a razão que levou os sócios a decidir que, desde a constituição da sociedade, a gerência coubesse a todos os três sócios e a que a vinculação da sociedade ocorresse com a assinatura de dois dos três gerentes, sem que tais decisões tenham alguma vez sido alteradas.
AG)-A douta sentença, embora expresse o entendimento de que é necessário indagar qual o pensamento do legislador, não cuidou de indagar qual o pensamento dos sócios fundadores da sociedade. E devia tê-lo feito.
AH)-Quem lida diariamente com as vicissitudes da constituição e da conformação dos direitos e deveres dos sócios e gerentes de uma sociedade familiar, como é a sociedade Recorrida, facilmente compreende que o pensamento dos sócios aquando da sua constituição – ou, no caso concreto, o pensamento do sócio já falecido e pai do Recorrente G… e do cabeça-de-casal da herança, Â… – foi o de criar uma estrutura societária que fosse igualitária entre os dois filhos, quer no que diz respeito à detenção da sociedade, quer no que concerne à gestão da mesma.
AI)-O que o sócio e cabeça-de-casal Â… fez na Assembleia Geral de 30 de Outubro de 2020 foi, construindo e alegando uma pretensa factualidade, que em nenhum momento ou por qualquer meio idóneo para o efeito logrou demonstrar – nem nos presentes autos, nem fora deles - exercer abusivamente um direito de voto pertencente à quota da herança que, como está reconhecido na douta sentença, é uma quota comum e,, consequentemente pertencente em partes iguais ao seus dois titulares.
AJ)-Sendo que a forma como exerceu esse direito em representação da quota comum teve como único e exclusivo objectivo reduzir, diminuir os direitos – nomeadamente os de gerência – que, enquanto sócio e em posição de absoluta igualdade com todos os outros sócios, o aqui Recorrente G… sempre teve desde a constituição da sociedade.
AK)-Tratou-se, pois, de uma representação manifestamente abusiva.
AL)-Não se integrando o exercício do direito de voto que cabe a uma herança em nenhum dos casos previstos nos artigos 2088.º, 2089.º e 2090.º do Código Civil, o mesmo terá de ser integrado na previsão e na regra do artigo 2091.º do referido diploma legal.
AM)-Assim, o direito de voto que cabe a uma herança só pode ser exercido por todos os herdeiros, conforme previsto no já referido n.º 1 do artigo 2091.º do Código Civil.
AN)-Em uma votação em que a Herança participe, será o cabeça-de-casal a representar a Herança e, consequentemente, os herdeiros da mesma.
AO)-No entanto, nessa votação o cabeça-de-casal tem a obrigação de, em representação da herança, votar no sentido que a maioria dos herdeiros decidir que a herança deve votar.
AP)-Aliás, é precisamente isso que se retira do artigo 222.º do CSC, convocado pela douta sentença para a sua fundamentação, mas do qual é feita tábua rasa das suas disposições fundamentais, nomeadamente do n.º 4 do mencionado artigo legal e do princípio a ele subjacente.
AQ)-O número 4 do artigo 222.º do CSC, que tem como epígrafe “(Direitos e obrigações inerentes a quota indivisa), contém o princípio básico que deve estar subjacente a qualquer votação de uma quota detida por mais do que um titular, qual seja, a de que não sendo exigida a unanimidade dos titulares da quota comum, deverá prevalecer a decisão da maioria sobre o sentido de voto de quem representar a quota indivisa na votação.
AR)-E nem o facto de, no início da referida norma, se prever que esta regra se aplica no caso de impedimento do representante faz com que o entendimento seja diferente.
AS)-Se a norma obriga a que, havendo impedimento do representante da quota, a pessoa que venha a substituir esse representante tenha de respeitar a posição da maioria dos contitulares da quota, por que razão há-de ser diferente o princípio do respeito pela vontade da maioria quando o representante não está impedido?
AT)-Sob pena de a democracia ser diferente consoante o representante esteja ou não impedido, o príncipio do respeito pela maioria não pode, em circunstância alguma, ser violado quando estamos perante o exercício de um direito de uma quota que é da titularidade de mais do que uma pessoa.
AU)-Na Assembleia Geral do passado dia 30 de Outubro de 2020 ocorreu uma inaceitável e censurável violação da supra referida regra, com o objectivo de causar dano e prejuízo a um herdeiro de uma das quotas e titular de outra quota e gerente da sociedade aqui Recorrida.
AV)-O sócio Â… utilizou, de forma absolutamente abusiva, a sua condição de cabeça-de-casal da herança para obter a maioria necessária para deliberar:
(i)- a exclusão judicial de sócio do seu irmão G… que, juntamente com Â…, são os únicos herdeiros da herança do pai de ambos, G…;
(ii)- a destituição do cargo de gerente do seu irmão G… que, juntamente com Â…, são os únicos herdeiros da herança do pai de ambos, G…;
(iii)- a nomeação de um novo gerente da sociedade
(iv)- a instauração de uma acção contra o seu irmão e sócio, G…
AW)-Tal utilização do cargo de cabeça-de-casal é manifestamente abusiva e, consequentemente, ao contrário do que fez a douta sentença de que agora se recorre, tem de ser impedida e censurada.
AX)-Se tal censura e revogação da sentença não ocorrer, permitir-se-á uma situação aberrante, qual seja, a de uma pessoa, por desempenhar um cargo – o de cabeça-de-casal - poder utilizar o direito de voto que cabe a uma quota de uma herança cuja titularidade é desse cabeça-de-casal e do seu único irmão, em partes iguais, para retirar a esse irmão todos os direitos que o mesmo tem como gerente e sócio da sociedade.
AY)-Sendo a quota da herança propriedade de ambos em partes iguais, se tal fosse possível significaria que o cabeça-de-casal, simplesmente por sê-lo, poderia representar a quota de que o seu irmão também é proprietário para conseguir a maioria necessária para o excluir de sócio, para o destituir de gerente, para lhe instaurar uma acção e para nomear novo gerente para a sociedade.
AZ)-Na prática, aplicando o que supra se referiu ao caso sub judice, se se admitisse que o cabeça-de-casal pode decidir unilateralmente o sentido de voto da quota da herança, tal significaria que o sócio G…, sendo comproprietário dessa mesma quota, não teria outra solução senão a de se resignar, pela intervenção do seu representante, à sua auto-exclusão de sócio, à sua auto-destituição como gerente, à instauração contra si próprio de uma acção judicial e à nomeação de um novo gerente para a sociedade que ele não conhece e que não quer que o seja.
BA)-É que os actos praticados pelo representante têm o mesmo efeito jurídico que teriam se fossem praticados pelo representado.
BB)-Estaríamos perante uma situação aberrante! O sócio e cabeça-de-casal, com o supra referido expediente, conseguiria uma maioria que nunca iria conseguir – dada a distribuição do capital social - se não tivesse decidido unilateralmente o sentido de voto da quota pertencente à herança e que é da titularidade, em partes iguais, desse cabeça-de-casal e do seu irmão e também sócio!
BC)-Como o Direito e a Lei não são nem podem ser aberrantes, nenhuma das deliberações tomadas na Assembleia Geral de 30 de Outubro de 2020, podem ser aceites e validadas como fez a douta sentença de que se recorre.
BD)-Na opinião do Recorrente, a douta sentença, de forma absolutamente errada, desconsiderou o disposto no art.58º, nº1, b), do CSC, considerando que o mesmo não tem aplicabilidade à situação em apreço nos presentes autos.
BE)-Por tudo o que se disse anteriormente, resulta claro que o sócio e cabeça de casal da herança, Â…, votando como votou, utilizando um voto que não lhe pertence em exclusivo, mas sim a si e a outro sócio, seu irmão, em partes iguais, pretendeu, simultaneamente, conseguir vantagens especiais para si e prejudicar o outro sócio, aqui Recorrente.
BF)-Resultando igualmente evidente que tais deliberações não teriam sido tomadas se não fosse o voto abusivo, realidade que a douta sentença pura e simplesmente desconsiderou.
BG)-Detendo cada um dos sócios uma quota com o valor nominal de € 2.000,00 (dois mil euros) e sendo a quota actualmente pertencente à herança igualmente de € 2.000,00, caso o sócio Â… não tivesse utilizado abusivamente o voto que cabe à quota da herança, as deliberações nunca teriam sido tomadas, uma vez que o sócio Â… não conseguiria a maioria necessária para aprovar tais deliberações.
BH)-As deliberações tomadas na Assembleia Geral de dia 30 de Outubro de 2020 devem ser anuladas e a douta sentença de que agora se recorre deve se revogada, decidindo-se pela procedência da presente acção.
BI)-Ao ter actuado como actuou na Assembleia Geral objecto dos presentes autos, o sócio da sociedade e cabeça-de-casal da herança, Â…, conseguiu a façanha de violar, em toda a linha, o disposto no artº 334º do C.Civil.
BJ)-Excedeu todos os limites impostos pela boa-fé porquanto, escudado numa aparente legalidade pelo facto utilizar um cargo que lhe pertence - o de cabeça de casal de uma herança e, consequentemente de representante da quota de que essa herança é titular no capital social da Recorrida - decidiu afastar o seu irmão da gestão da sociedade, utilizando para o efeito e com base no cargo de cabeça-de-casal que desempenha a quota de que ambos são comproprietários, em partes iguais.
BK)-Excedeu igualmente os limites impostos pelos bons costumes uma vez que, se a sua actuação não é admissível contra um qualquer comproprietário de uma quota – aliás como decorre do princípio básico constante do n.º 4 do artigo 222.º do CSC – muito menos o é quando esse comproprietário é do seu sangue, é o seu irmão, herdeiro consigo dessa quota pertencente ao pai de ambos.
BL)-Muito mal andaríamos se uma sociedade civilizada visse ou aceitasse esta actuação como sendo um costume...! Muito menos se a visse como um bom costume...!
BM)-Finalmente, e por tudo o que supra se disse, também não restam quaisquer dúvidas que a actuação do sócio e cabeça-de-casal, Â…, excedeu manifestamente o fim social e económico do seu direito.
BN)-O direito e dever de Â… enquanto cabeça-de-casal da herança, na qual se inclui a quota de que a herança é titular na sociedade Recorrida, é administrar a herança com diligência e zelo, em benefício de todos os herdeiros.
BO)-Ao utilizar o cargo de cabeça-de-casal para, manifesta e inquestionavelmente, prejudicar um outro herdeiro, para mais utilizando um direito – o direito de voto da herança – relativamente a uma quota de que esse outro herdeiro também é proprietário, Â… excedeu manifestamente o fim económico e social do seu direito.
BP)-É que, como se disse anteriormente, a alegada violação, por parte do aqui Recorrente, dos deveres previstos no artigo 64.º do CSC, a ter existido, tem de ser provada e decretada em momento anterior à tomada das deliberações, especialmente do modo que foram tomadas na Assembleia Geral de 30 de Outubro de 2020.
BQ)-Se tal violação estivesse demonstrada e, consequentemente, decretada a violação dos deveres constantes do artigo 64.º do CSC, ainda se poderia compreender – no âmbito da defesa do superior interesse dos direitos e interesses da sociedade – que o cabeça de casal tenha actuado como actuou.
BR)-Não estando minimamente demonstrada a violação, por parte do aqui Recorrente G…, a violação dos deveres previstos no artigo 64.º do CSC, a actuação do cabeça-de-casal enquanto representante da quota que pertence em comum e partes iguais a G… e a Â… é, por tudo o que se disse, intolerável e inaceitável.
Terminou peticionando que seja dado provimento ao recurso, revogada a sentença recorrida e, em consequência, julgada a acção totalmente procedente e decretada a anulação de todas as deliberações sociais tomadas na Assembleia Geral de 30 de Outubro de 2020 da sociedade Recorrida.
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A Recorrida apresentou Contra-Alegações, CONCLUINDO:
1.–Foi proferida em 1ª instância uma sentença inicial que julgou totalmente improcedente a ação de anulação de deliberação social interposta pelos AA.
2.–Tal decisão foi recorrida pelo A. marido, não tendo este contudo impugnado validamente a matéria de facto dada como provada.
3.–Os pontos em apreciação no presente recurso são i) a ilegitimidade da representação da quota titulada pela herança indivisa do sócio falecido pelo cabeça-de-casal e ii) existência de abuso de direito no exercício do direito de voto nas deliberações havidas;
4.–A sentença recorrida pugnou pela legitimidade da representação da quota pelo cabeça-de-casal da herança, sendo esta, aliás, a posição unânime da jurisprudência nesta matéria, ao considerar que, no caso de uma quota social cuja titularidade pertence a uma herança indivisa, a representação daquela cabe ao cabeça-de-casal, excepto se o testamento dispuser de forma diversa;
5.–Nesse sentido veja -se o Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães de 04-05-2017, consultado na Base de Dados do Ministério da Justiça.
6.–Transpondo para estes autos os ensinamentos constantes deste aresto, facilmente se conclui que os direitos sociais - que não impliquem actos de disposição da participação social - inerentes à quota cuja titularidade pertence à herança indivisa do Sr. G… são, por lei, exercidos pelo cabeça-de-casal de tal herança, neste caso o Sr. Â…,
7.–Tendo este legitimidade para, enquanto representante comum dessa quota, deliberar em nome dessa quota e no sentido em que o fez na assembleia objeto da presente acção;
8.–O que o Recorrente alega é que, na sua opinião, o cabeça-de-casal votou no sentido que o prejudica a ele Recorrente, enquanto herdeiro, mas isso não é passível de se discutir nesta acção, que é de anulação de deliberação social.
9.–A representação da quota cabe ao cabeça-de-casal e este, para representar a herança, não tem que ter autorização ou homologação dos restantes herdeiros para decidir o respectivo sentido de voto.
10.–É exactamente esse tipo de discussão e impasse que o legislador quer evitar ao expressamente prever a interação da sociedade comercial com apenas uma pessoa como representante de uma quota pertencente a vários titulares ou a uma herança indivisa.
11.–Os AA. concluíam na p.i. pela anulabilidade das deliberações, por aplicação do disposto no artigo 58.º/1, al b), do Código das Sociedades Comerciais.
12.–E subsidiariamente pela aplicação do artigo 334.º do Código Civil, ou, finalmente, pela verificação da nulidade prevista no artigo 56.º/1, al. d), do Código das Sociedades Comerciais.
13.–Para que se verifique o abuso de direito previsto no artigo 58.º/1, al b), do Código das Sociedades Comerciais, é necessário que com tal deliberação o propósito do sócio seja (i) obter vantagens especiais para si ou para terceiros, (ii) em prejuízo da sociedade ou de outros sócios ou (iii) simplesmente para prejudicar aquela ou estes;
14.–A sentença entende que não se mostra identificado nas deliberações tomadas prejuízo para a sociedade ou para sócios;
15.–Outrossim, analisando os resultados de deliberação contrária ou ausência de deliberação para o interesse societário, concluir-se-ia que se manteria na gerência o A. ora Recorrente, ocupante de parte do património da sociedade, sem título para tal.
16.–Sendo que tal conduta viola o disposto no artigo 64.º/1, do Código das Sociedades Comerciais, e suscita a aplicação dos artigos 186.º/1, al. a), 257.º e 75.º, do aludido diploma.
17.–Ao contrário do que se infere das alegações de recurso, é ao A. Recorrente que incumbe o ónus da prova de que a deliberação é abusiva, e o Recorrente não alegou qualquer facto que permitisse concluir nesse sentido.
18.–O Recorrente limitou-se a alegar generalidades sobre o facto de, com tal deliberação, os interesses individuais do Recorrente, que não se confundem com os seus interesses de sócio, serem afectados com tal deliberação.
19.–E de tão evidente que se tornou nestes autos essa rede de malha larga que o Recorrente pretende entre os seus interesses pessoais e os interesses da sociedade e dos outros sócios, que a sentença recorrida não pode deixar de valorizar na sua decisão os factos provados em 10) e 11). Isto é, que o Recorrente e mulher que foi A. ocupam um imóvel da sociedade sem autorização da sociedade para tal.
Peticionou que o recurso ser julgado improcedente e mantida a sentença proferida.
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II– Objecto do Recurso

É entendimento uniforme que é pelas conclusões das alegações de recurso que se define o seu objecto e se delimita o âmbito de intervenção do tribunal ad quem (artigos 635º, nº 4 e 639º, nº 1, do Código de Processo Civil), sem prejuízo das questões cujo conhecimento oficioso se imponha (artigo 608º, nº 2, ex vi do artigo 663º, nº 2, do mesmo Código). Acresce que os recursos não visam criar decisões sobre matéria nova, sendo o seu âmbito delimitado pelo conteúdo do acto recorrido.
Assim, em face das conclusões apresentadas pelo apelante, importa decidir se as deliberações aprovadas em Assembleia Geral da R. – sociedade por quotas - enfermam de invalidade, o que passa por apreciar:
- da representação da herança integrante de participação social perante a sociedade;
- dos pressupostos da destituição de gerente;
- das pressupostos da exclusão de sócio e  
- se as deliberações foram aprovadas em “abuso de direito”.
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III–Fundamentação

A)– De Facto

Na decisão que proferiu o tribunal recorrido considerou como provados os seguintes factos:
1.–A sociedade M…, Lda, pessoa coletiva n.º …, tem sede na Rua …  
2.–Tem por objecto: “Compra e venda de imóveis, rústicos e urbanos, e revenda dos adquiridos para esse fim, urbanizações, edificações e exploração de empreendimentos turísticos e imobiliários. Venda de materiais de construção. Arrendamento de bens imobiliários e gestão e administração de propriedades rústicas e urbanas.”.
3.–Obriga-se com a intervenção conjunta de dois gerentes
4.–A sociedade tem o capital social de € 6 000,00 (seis mil euros) – documento 1 junto com a petição inicial.
5.–Registou-se a aquisição de quota social com o valor nominal de € 2.000,00 (dois mil euros), representativa de 1/3 do capital social da sociedade, a favor do A., casado sob o regime de comunhão de adquiridos com C…
6.–Para além da quota do A., existem outras duas quotas, a saber: uma quota, com o valor nominal de € 2.000,00 (dois mil euros), cujo titular é Â…, irmão do A., e outra quota com o valor nominal de € 2.000,00 (dois mil euros), cujo titular é, actualmente, a Herança aberta por óbito de G…, pai dos dois sócios Â… e G…, que são os seus únicos herdeiros.
7.–Na data da constituição da sociedade, foram designados gerentes os três sócios, pai e dois filhos.
8.–Registou-se a cessação da gerência do pai com o óbito.
9.–A sociedade é titular do rendimento tributável de três bens imóveis, duas moradias e um terreno – documentos juntos com a petição inicial.
10.–O A. e cônjuge ocupam uma das moradias.
11.–Inexiste decisão da gerência ou dos sócios nesse sentido.
12.–No dia 30 de Outubro de 2020, na sequência da convocatória remetida pelo sócio Â… – documento 2 junto com a petição inicial -, ocorreu uma Assembleia Geral Extraordinária da sociedade R..
13.–A Assembleia Geral Extraordinária teve lugar nas instalações de sociedade de advogados que representa o sócio Â… – documento 3 junto com a petição inicial.

14.–Foi deliberado:
a)-destituir o sócio G… do cargo de gerente da sociedade, “com efeitos imediatos e por justa causa”, “por violação grave dos seus deveres de gerente. Com efeito, o aludido Senhor G…, sem autorização ou qualquer título, ocupou e ocupa gratuita e abusivamente um imóvel propriedade da sociedade (…) inscrito na matriz sob o número 9868 (…). Tal ocupação impede o arrendamento a terceiro ou a venda, o que tem ocasionado avultados prejuízos à sociedade pois este imóvel, um outro idêntico e ainda um lote de terreno para construção são os únicos bens desta sociedade, a qual neste momento e em face da atuação do gerente ora destituído, gera prejuízos anuais. (…)” ;
b)-eleger como nova gerente da sociedade a Sra. D. M…;
c)-excluir judicialmente de sócio G…, “em virtude do seu comportamento de ocupação e utilização de um imóvel propriedade da sociedade, de forma gratuita e não consentida, recusando-se a entregar devoluto de pessoas e bens tal imóvel apesar de bem saber que a sociedade tem prejuízos com a sua atividade, só passíveis de serem invertidos se a sociedade conseguisse arrendar este imóvel ocupado ou, no limite, vender o mesmo”;
d)-instaurar acção contra o sócio G… destinada a ressarcir os danos por este provocados e a restituição da posse do património da sociedade.
15.–As deliberações supra referidas foram aprovadas com os votos do sócio Â… e da sócia “Herança aberta por óbito de G…”, tendo contado com o voto contra do ora A., que juntou declaração de voto.
16.–O sentido de voto da Herança aberta por óbito de G… foi unilateralmente decidido pelo sócio Â…, enquanto cabeça-de-casal da Herança aberta por óbito de G… – documento 1 junto com a contestação.
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B)–O Direito

Invocou o A., ora recorrente, para fundamentar a sua pretensão de anulação das deliberações sociais tomadas na Assembleia Geral de 30 de Outubro de 2020 da sociedade R., que o sócio e cabeça de casal da herança, Â…, votou “utilizando um voto que não lhe pertence em exclusivo, mas sim a si e a outro sócio, seu irmão, em partes iguais” e que o mesmo pretendeu, “simultaneamente, conseguir vantagens especiais para si e prejudicar o outro sócio, aqui A.”
Sustentou igualmente que tais deliberações não teriam sido tomadas se não fosse o “voto abusivo”, concluindo pela respectiva anulabilidade nos termos do disposto no artº 5º, nº1, b), do CSC.
O tribunal a quo entendeu que os factos provados não permitem concluir que as deliberações adoptadas não serviram os interesses da sociedade, e, por inerência, das respectivas participações sociais, nem tão pouco que o sócio e c. de casal da herança tenha actuado em abuso de direito, nos termos do artigo 334.º do Código Civil. Com estes fundamentos, julgou a acção improcedente, decisão contra a qual se insurge o A., ora apelante.
A R. é uma sociedade por quotas, com o capital social de € 6 000,00 (seis mil euros).
Registou-se a aquisição de quota social com o valor nominal de € 2.000,00 (dois mil euros), representativa de 1/3 do capital social da sociedade, a favor do A., casado sob o regime de comunhão de adquiridos com C… e para além da quota do A., existem outras duas quotas: uma quota, com o valor nominal de € 2.000,00 (dois mil euros), cujo titular é Â…, irmão do A., e outra quota com o valor nominal de € 2.000,00 (dois mil euros), cujo titular é, actualmente, a Herança aberta por óbito de G…, pai dos dois sócios, Â… e G…, que são os seus únicos herdeiros.
Na data da constituição da sociedade, foram designados gerentes os três sócios, pai e dois filhos, tendo-se registado a cessação da gerência do pai com o óbito.
No dia 30 de Outubro de 2020, na sequência da convocatória remetida pelo sócio Â…, ocorreu uma Assembleia Geral Extraordinária da sociedade R., a qual teve lugar nas instalações de sociedade de advogados que representa o sócio Â…

Nessa Assembleia foi deliberado:
a)-destituir o sócio G… do cargo de gerente da sociedade, “com efeitos imediatos e por justa causa”, “por violação grave dos seus deveres de gerente. Com efeito, o aludido Senhor G…, sem autorização ou qualquer título, ocupou e ocupa gratuita e abusivamente um imóvel propriedade da sociedade (…) inscrito na matriz sob o número 9868 (…). Tal ocupação impede o arrendamento a terceiro ou a venda, o que tem ocasionado avultados prejuízos à sociedade pois este imóvel, um outro idêntico e ainda um lote de terreno para construção são os únicos bens desta sociedade, a qual neste momento e em face da atuação do gerente ora destituído, gera prejuízos anuais. (…)” ;
b)-eleger como nova gerente da sociedade a Sra. D. M…;
c)-excluir judicialmente de sócio G…, “em virtude do seu comportamento de ocupação e utilização de um imóvel propriedade da sociedade, de forma gratuita e não consentida, recusando-se a entregar devoluto de pessoas e bens tal imóvel apesar de bem saber que a sociedade tem prejuízos com a sua atividade, só passíveis de serem invertidos se a sociedade conseguisse arrendar este imóvel ocupado ou, no limite, vender o mesmo”;
d)-instaurar acção contra o sócio G… destinada a ressarcir os danos por este provocados e a restituição da posse do património da sociedade.
As deliberações foram aprovadas com os votos do sócio Â… e da sócia “Herança aberta por óbito de G…”, tendo contado com o voto contra do ora A., que juntou declaração de voto e o sentido de voto da Herança aberta por óbito de G… foi unilateralmente decidido pelo sócio Â…, enquanto cabeça-de-casal da herança.
As pessoas colectivas manifestam a sua vontade resolvendo ou deliberando através das suas assembleias ou reuniões de sócios. Como refere Pinto Furtado, Deliberações dos Sócios, 1993, pg. 12, a deliberação é uma declaração colectiva.
Cada sócio tem o direito de se opor a qualquer deliberação ilegal, isto é, que viole ou contrarie a lei geral ou a lei especial do corpo colectivo; tal direito de oposição consiste em pedir que se julgue nula, ou se anule, a deliberação ilegal – cfr Moitinho de Almeida, Anulação e Suspensão de Deliberações Sociais, 4ª Ed., pág. 10.

Estabelece o artº 58º, nº1, do CSC, que:
“São anuláveis as deliberações que:
a)- Violem disposições quer da lei, quando ao caso não caiba a nulidade, nos termos do artigo 56.º, quer do contrato de sociedade;
b)- Sejam apropriadas para satisfazer o propósito de um dos sócios de conseguir, através do exercício do direito de voto, vantagens especiais para si ou para terceiros, em prejuízo da sociedade ou de outros sócios ou simplesmente de prejudicar aquela ou estes, a menos que se prove que as deliberações teriam sido tomadas mesmo sem os votos abusivos;
(…)”

Atento o que resulta das referidas alíneas, são anuláveis as deliberações ilegais que não sejam nulas, as deliberações anti-estatutárias (al. a)) e as que, sem violar disposições específicas da lei ou do estatuto da sociedade, sejam apropriadas para satisfazer o propósito de um sócio (ou sócios) conseguir(em) vantagens especiais para si ou para outrem em prejuízo da sociedade ou de outro(s) sócio(s), ou o propósito de prejudicar(em) aquela ou este(s), salvo se se provar que a mesma deliberação teria sido adoptada sem os votos abusivos (al. b)).

No que concerne a estas últimas «Temos aqui duas espécies de deliberações abusivas: as apropriadas para satisfazer o propósito de alcançar vantagens especiais em prejuízo da sociedade ou de sócios; as apropriadas para satisfazer o propósito tão-só de prejudicar a sociedade ou sócios — as chamadas deliberações emulativas.
As deliberações de uma e outra espécie têm pontos em comum: pressupostos subjectivos  (o "propósito" de um ou mais votantes) e pressupostos objetivos (a deliberação há de ser objetivamente "apropriada" ou apta para satisfazer o propósito).
Mas têm também pontos distintivos. Relativamente às deliberações da primeira espécie, o propósito relevante é o de alcançar vantagens especiais; relativamente às emulativas, o propósito relevante é o de causar prejuízos. É certo que aquelas não dispensam o prejuízo ("em prejuízo da sociedade ou de outros sócios"). Trata-se, porém, de dano resultante da consecução de vantagens especiais; entre aquele e este existe imediata ou mediata conexão causal". Já o prejuízo visado nas deliberações emulativas é indiferente às eventuais não desvantagens, vantagens ou desvantagens dos votantes com propósito emulativo ou de terceiros. Quer tudo isto dizer que o "propósito" exigido nas deliberações da primeira espécie limita-se à consecução de vantagens especiais — não sendo necessário que abarque o prejuízo; e o "propósito" exigido nas deliberações emulativas limita-se à inflição de prejuízo. (…)
"Vantagens especiais" são proveitos patrimoniais (ao menos indiretamente) por deliberação concedidos, possibilitados ou admitidos a sócios e/ou não sócios, mas não a todos os que se encontram perante a sociedade em situação semelhante à dos beneficiados, bem como os proveitos que, quando não haja sujeitos em situação semelhante à daqueles, não seriam (ou não deviam ser) concedidos, possibilitados ou admitidos a quem hipoteticamente ocupasse posição equiparável.
(…)
O enunciado normativo do artº 58º, 1, b), exige, já se viu, “o propósito de um [ou mais] dos sócios”. E demos já a entender que ele significa dolo de um ou mais sócios votantes em determinada proposta deliberativa. Trata-se, pois, de um elemento subjetivo e atual (não virtual) que há-de ser provado por quem impugna a deliberação. Também a referência aos “votos abusivos” na parte final do preceito vai no mesmo sentido» - cfr Código das Sociedades Comerciais em Comentário, Coord. Jorge Coutinho de Abreu, Vol. I, Almedina, págs 713 e 715.

De acordo com o Direito societário, o falecimento de um sócio pode, em tese, dar origem à chamada triple option: ou a sociedade se dissolve; ou amortiza ou adquire a quota do falecido aos herdeiros; ou continua a sua existência integrando como seus sócios os herdeiros do falecido.
Havendo pluralidade de herdeiros e enquanto a herança permanecer indivisa, passa a verificar-se a contitularidade da participação social, expressamente contemplada e regulada nos arts. 222º a 224º e 303º do CSC. Do acervo destas disposições retira-se que a lei privilegia o exercício dos direitos dos contitulares, não em conjunto, mas através de um representante comum.

Dispõem estes normativos:

“Artigo 222.º Direitos e obrigações inerentes a quota indivisa
1- Os contitulares de quota devem exercer os direitos a ela inerentes através de representante comum.
2- As comunicações e declarações da sociedade que interessem aos contitulares devem ser dirigidas ao representante comum e, na falta deste, a um dos contitulares.
3- Os contitulares respondem solidariamente pelas obrigações legais ou contratuais inerentes à quota.
4- Nos impedimentos do representante comum ou se este puder ser nomeado pelo tribunal, nos termos do artigo 223.º, n.º 3, mas ainda o não tiver sido, quando se apresenta mais de um titular para exercer o direito de voto e não haja acordo entre eles sobre o sentido de voto, prevalecerá a opinião da maioria dos contitulares presentes, desde que representem, pelo menos, metade do valor total da quota e para o caso não seja necessário o consentimento de todos os contitulares, nos termos do n.º 1 do artigo 224.º
Artigo 223.º Representante comum
1- O representante comum, quando não for designado por lei ou disposição testamentária, é nomeado e pode ser destituído pelos contitulares. A respectiva deliberação é tomada por maioria, nos termos do artigo 1407.º, n.º 1, do Código Civil, salvo se outra regra se convencionar e for comunicada à sociedade.
2- Os contitulares podem designar um de entre eles ou o cônjuge de um deles como representante comum; a designação só pode recair sobre um estranho se o contrato de sociedade o autorizar expressamente ou permitir que os sócios se façam representar por estranho nas deliberações sociais.
3- Não podendo obter-se, em conformidade com o disposto nos números anteriores, a nomeação do representante comum, é lícito a qualquer dos contitulares pedi-la ao tribunal da comarca da sede da sociedade; ao mesmo tribunal pode qualquer contitular pedir a destituição, com fundamento em justa causa, do representante comum que não seja directamente designado pela lei.
4- A nomeação e a destituição devem ser comunicados por escrito à sociedade, a qual pode, mesmo tacitamente, dispensar a comunicação.
5- O representante comum pode exercer perante a sociedade todos os poderes inerentes à quota indivisa, salvo o disposto no número seguinte; qualquer redução desses poderes só é oponível à sociedade se lhe for comunicada por escrito.
6- Excepto quando a lei, o testamento, todos os contitulares ou o tribunal atribuírem ao representante comum poderes de disposição, não lhe é lícito praticar actos que importem extinção, alienação ou oneração da quota, aumento de obrigações e renúncia ou redução dos direitos dos sócios. A atribuição de tais poderes pelos contitulares deve ser comunicada por escrito à sociedade.
Artigo 224.º Deliberação dos contitulares
1- A deliberação dos contitulares sobre o exercício dos seus direitos pode ser tomada por maioria, nos termos do artigo 1407.º, n.º 1, do Código Civil, salvo se tiver por objecto a extinção, alienação ou oneração da quota, aumento de obrigações, renúncia ou redução dos direitos dos sócios; nestes casos, é exigido o consentimento de todos os contitulares.
2- A deliberação prevista na primeira parte do número anterior não produz efeitos em relação à sociedade, apenas vinculando os contitulares entre si e, para com estes, o representante comum”.

A designação de representante comum pode ter lugar, antes de mais, por lei. Será esse o caso do c. de casal quando a quota faz parte de comunhão hereditária – cfr Acs. do STJ de 4/10/1994, BMJ nº 440º, pág. 504, de 22/01/2009, relator: Custódio Montes e de 06/10/2009, relator: Nuno Cameira, os quais podem ser consultados in www.dgsi.pt e ainda Raúl Ventura, in Sociedade por quotas, Vol. I, Almedina, 2ª edição, pág. 517.      
É consabido que existe contitularidade de direitos sempre que um direito cabe a um tempo a mais de uma pessoa.
As quotas indivisas ficam até à partilha na titularidade dos sucessores dos falecidos sócios, em regime de contitularidade, devendo os contitulares exercer os direitos inerentes às quotas através de um representante comum, nos termos do artº 222º, nº1, do supracitado. Este representante comum representa a quota indivisa, representando os contitulares perante a sociedade para o exercício de direitos inerentes à quota. E esse representante é o cabeça de casal, nos termos do artº 223º, nº1, já referido. Cabendo a este a administração da herança indivisa, tem poderes para exercer todos os direitos sociais no tocante à participação social indivisa, exceptuados os casos do artº 223º, nº6, do CSC, para os quais necessita, como qualquer outro representante comum, que lhe sejam conferidos poderes de disposição. “… tais poderes podem ser atribuídos ao representante comum, em função das situações, por lei, por testamento, pelo tribunal ou por todos os contitulares” - anotação ao artº 223 por Soveral Martins in Código das Sociedades Comerciais em Comentário já citado, Vol. III, pág. 416.
Passemos então a debruçarmo-mos sobre cada umas das deliberações objecto dos autos. 

Foi deliberado, com os votos favoráveis do sócio Â… e da “Herança aberta por óbito de G…”, representada por aquele sócio enquanto cabeça-de-casal:
1- a destituição do sócio G…, ora recorrente, do cargo de gerente da sociedade.
Estabelece o artº 257º, nº1, do CSC que:
1- Os sócios podem deliberar a todo o tempo a destituição de gerentes”.
2- O contrato de sociedade pode exigir para a deliberação de destituição uma maioria qualificada ou outros requisitos; se, porém, a destituição se fundar em justa causa, pode ser sempre deliberada por maioria simples.
3- A cláusula do contrato de sociedade que atribui a um sócio um direito especial à gerência não pode ser alterada sem consentimento do mesmo sócio. Podem, todavia, os sócios deliberar que a sociedade requeira a suspensão e destituição judicial do gerente por justa causa e designar para tanto um representante especial.
(…)
5- Se a sociedade tiver apenas dois sócios, a destituição da gerência com fundamento em justa causa só pelo tribunal pode ser decidida em acção intentada pelo outro.
6- Constituem justa causa de destituição, designadamente, a violação grave dos deveres do gerente e a sua incapacidade para o exercício normal das respectivas funções.
7- Não havendo indemnização contratual estipulada, o gerente destituído sem justa causa tem direito a ser indemnizado dos prejuízos sofridos, entendendo-se, porém, que ele não se manteria no cargo ainda por mais de quatro anos ou do tempo que faltar para perfazer o prazo por que fora designado”.

A livre destituibilidade dos gerentes – sem sequer ser necessário a invocação de justa causa -, carece de ser deliberada pelos sócios em assembleia-geral regularmente convocada, sendo certo que, por força do disposto no nº 5 deste artigo, se a sociedade tiver apenas dois sócios, a destituição da gerência com fundamento em justa causa só pelo tribunal pode ser decidida em acção intentada pelo outro. A contitularidade não se confunde com direito de propriedade ou compropriedade. A quota do falecido pai do recorrente e do sócio Â… integra a herança indivisa e os votos que a estas cabiam são exercidos por este, enquanto cabeça de casal, apenas como representante da herança. Assim e não tendo a sociedade somente dois sócios, conclui-se que o c. de casal, por força do disposto referido artº 223º, podia, sem consentimento expresso do outro titular dessa quota – o ora apelante -, votar a destituição de gerente, no caso do próprio apelante.  Não resulta dos autos que os estatutos sociais exijam “uma maioria qualificada ou outros requisitos”, nem tão pouco que o apelante se trate de um sócio com direito especial à gerência ou que tenha sido nomeado pelo tribunal (nº 3 do citado artigo).
Não se verifica, pois, violação da lei, nem os elementos constantes dos autos permitem concluir por violação do contrato de sociedade no que respeita à deliberação de destituição do apelante de gerente.
E o mesmo se passa relativamente à nomeação da nova gerente, bem como à deliberação respeitante à instauração de acção contra o apelante “destinada a ressarcir os danos por este provocados e a restituição da posse do património da sociedade”. Contrariamente ao alegado pelo recorrente, tais elementos não são de molde a permitir a conclusão que as deliberações em causa tenham sido adoptadas para satisfazer o propósito do sócio Â… conseguir vantagens especiais para si ou para terceiros, em prejuízo da sociedade, do apelante ou com o objectivo de os prejudicar.
Como se viu e uma vez que não se exige justa causa para a destituição e independentemente da existência desta, não se pode concluir que a deliberação de destituição de gerente seja abusiva por vício respeitante ao seu conteúdo. Nada foi invocado em termos da verificação de vícios de procedimento.
Como conclui Coutinho de Abreu em anotação ao artº 257º, ob. cit, vol. IV, pág. 131: “(…) as deliberações de destituição de gerente caraterizadas pelas notas caraterizadoras da hipótese prevista na al. b) do nº 1 do artº 58º não são anuláveis (chame-se-lhes ou não deliberações abusivas) – a regra da destituição livre não é execpcionada nesses casos (casos de inexistência de justa causa para a destituição – inserção nossa). Porque há então destituição sem justa causa, o destituído terá direito a indemnização”.

Também nada resulta no sentido que a nomeação como gerente de M… se trate de uma deliberação abusiva no sentido que ficou referido, o mesmo sucedendo em relação à deliberação relativa à instauração de acção contra o apelante com vista à restituição da posse do imóvel por este ocupado e à condenação no pagamento de indemnização. Pelo contrário, ficou demonstrado que o apelado e cônjuge ocupam uma das moradias propriedade da sociedade, sem que exista decisão da gerência ou dos sócios nesse sentido.
Nos termos do disposto no artº 246º, nº1, g), do CSC, a proposição de acções pela sociedade contra gerentes, sócios ou membros do órgão de fiscalização depende de deliberação dos sócios.   
Invocou o apelante que o facto de não existir um documento que titule ocupação por parte do mesmo de um determinado imóvel da sociedade não é, por si só, razão para se concluir que este violou os deveres previstos nas alíneas a) e b) do n.º 1 do artigo 64.º do Código das Sociedades Comerciais (CSC).
Como se referiu supra, é ao impugnante que cabe a prova dos factos tendentes a concluir que a deliberação é abusiva e nada resulta no sentido que o seja. Os fundamentos de procedência (ou improcedência) do pedido de reivindicação e de condenação no pagamento de indemnização terão que ser discutidos na respectiva acção e não nestes autos, sendo certo que, como se disse, a destituição de gerente pelos sócios é livre.
Atento o que fica referido, relativamente a estas deliberações, não há fundamento para a sua anulabilidade nos termos do disposto nas alíneas a) e b), do referido artº 58º, sendo certo que nada foi invocado no sentido que as mesmas não tenham sido precedidas do fornecimento ao sócio de elementos de informação – alínea c).
Sustentou ainda o apelante que, ao actuar como actuou na Assembleia Geral objecto dos presentes autos, o sócio da sociedade e cabeça-de-casal da herança, Â…, violou o disposto no artº 334º do C.Civil.
De acordo com o disposto no artº 56º, nº1, d), do CSC, são nulas as deliberações dos sócios “cujo conteúdo, diretamente ou por atos de outros órgãos que determine ou permita, seja ofensivo dos bons costumes ou de preceitos legais que não possam ser derrogados, nem sequer por vontade unânime dos sócios”.
O CSC contém disciplina pormenorizada das deliberações inválidas, incluindo as ofensivas (pelo conteúdo) aos bons costumes e as abusivas (estas, como se viu, sancionadas com a anulabilidade nos termos da alínea b) do nº 1 do artº 58º do CSC).

Como se refere no Ac. da RL de 2/11/2017, in www.dgsi.pt, a doutrina e a jurisprudência não se têm manifestado de forma unânime relativamente à questão do abuso de direito em causa neste normativo: 
“Segundo uma tese, o facto de no preceito não se fazer qualquer referência à manifesta contrariedade à boa-fé, aos bons costumes ou ao fim social ou económico do direito, assim como a falta da cominação de ilegitimidade, afasta a possibilidade de actuação do citado artigo 58º nº1, alínea b), do CSC do campo do abuso do direito – v. neste sentido Pedro Pais de Vasconcelos, A Participação Social nas Sociedades Comerciais, 2ª Ed., Almedina, 2006, 153, ou António Menezes Cordeiro, Código das Sociedades Comerciais Anotado, 2009, 228, ao referir que : (…)“O exercício do voto pode, como em qualquer situação jurídica, incorrer em abuso do direito (334º do Código Civil). Para tanto, ele deverá defrontar o núcleo axiológico fundamental do sistema, expresso pela locução boa fé e concretizado através de dois princípios mediantes: (a) a tutela da confiança legítima ; (b) a primazia da materialidade subjacente. O abuso do direito toma corpo em grupos típicos de situações abusivas: venire contra factum proprium, inalegabilidades formais, suppressio, tu quoque e desequilíbrio no exercício. Todos estão profundamente radicados na jurisprudência dos últimos vinte anos. As deliberações sociais podem, por essa via, incorrer em abuso, violando, através de algumas destas figuras (que não são taxativas), o 334º do Código Civil. Quando isso suceda, segue-se o regime da nulidade, por violação de um princípio injuntivo – 56º/1, d). O 58º/1, b), não pretende, objectivamente, ocupar o lugar do 334º do Código Civil; nem faria sentido que, violado este preceito, se seguisse a mera anulabilidade””.
“(…)”

“Seguindo este entendimento, o Ac. TRC de 06.11.2012 (Pº 281/08.1 TBVNO.C1), acessível em www.dgsi.pt., defendeu que as deliberações e os votos abusivos não são identificáveis com o abuso do direito”.
“Outra tese propugna, ao invés, pela aplicabilidade do instituto do abuso do direito no âmbito das deliberações sociais, pelo que haverá que articular o artigo 58º, nº 1, alínea b), do CSC com o artigo 334º do CC, uma vez que o primeiro não prevê taxativamente todas as situações de abuso do direito que daqui possam decorrer. É, por isso, necessário recorrer à cláusula geral do artigo 334º do CC para sancionar os restantes casos que não se enquadram no artigo 58º, nº 1, alínea b), do CSC. Considera, portanto, esta tese que a aplicabilidade de um dos artigos não afasta a aplicabilidade do outro – v. neste sentido, Armando Manuel Triunfante, A Tutela das Minorias nas Sociedades Anónimas – Direitos de Minoria Qualificada ; Abuso de Direito, Coimbra Editora, 2004, 376 e ss.; Jorge Henrique da Cruz Pinto Furtado, Deliberações de Sociedades Comerciais, Almedina, Coimbra, 2005, 656 e ss. que igualmente defende que a aplicabilidade do artigo 58º, nº 1, al. b), do CSC, deve ser patenteada pelo cumprimento de pressupostos previstos pelo artigo 334º do CC, ou seja, para este autor existe articulação entre ambos os artigos; cfr. também do mesmo autor, Curso de Direito das Sociedades, 3ª ed., Almedina, 450 e ainda, a título meramente exemplificativo, Ac. TRP de 17.02.2011 (Pº 117/07.0 TYVNG.P1)”.

Porém, e independentemente da tese perfilhada, a verdade é que, conforme já resulta do que se veio dizendo, os elementos constantes dos autos não são de molde a concluir que as supracitadas deliberações sejam abusivas - que sejam ofensivas dos bons costumes, da boa fé ou do fim social ou económico do direito.   

Nos termos do disposto no artigo 334º do Código Civil: “É ilegítimo o exercício de um direito, quando o titular exceda manifestamente os limites impostos pela boa fé, pelos bons costumes ou pelo fim social ou económico desse direito”.

Pelo instituto do abuso de direito, pretende-se obstar a condutas clamorosamente ofensivas da justiça, que afrontam o sistema jurídico socialmente dominante.

O abuso do direito é um excelente remédio para garantir a supremacia do sistema jurídico e da Ciência do Direito sobre os infortúnios do legislador e sobre as habilidades das partes - cfr Menezes Cordeiro, in Tratado de Direito Civil, I, Parte Geral, Tomo 1, 2ª edição, 2000, pág. 248.  
 
Agir de boa fé é agir com diligência, zelo e lealdade correspondente aos legítimos interesses da contraparte, é ter uma conduta honesta e conscienciosa, uma linha de correcção e probidade a fim de não prejudicar os legítimos interesses da contraparte e não proceder de modo a alcançar resultados opostos aos que uma consciência razoável poderia tolerar.

Os bons costumes entendem-se, por seu turno, como um conjunto de regras de convivência que num dado ambiente e em certo momento as pessoas honestas e correctas aceitam comummente contrários a laivos ou conotações, imoralidade ou indecoro social e finalmente, o fim social ou económico do direito apela a uma interpretação melhorada das normas, que dê valor à dimensão teleológica.

Sobre o abuso do direito importa considerar que: «2. A concepção adoptada de abuso de direito é a objectiva. Não é necessária a consciência de se excederem, com o seu exercício, os limites impostos pela boa fé, pelos bons costumes ou pelo fim social ou económico do direito; basta que se excedaGi esses limites.
Isto não significa, no entanto, que ao conceito de abuso de direito consagrado no artigo 334º sejam alheios factores subjectivos, como por exemplo, a intenção com que o titular tenha agido. A consideração desses factores pode interessar, quer para determinar se houve ofensa da boa fé ou dos bons costumes, quer para decidir se se exorbitou do fim social ou económico do direito.
3.- Exige-se que o excesso cometido seja manifesto. Os tribunais só pode fiscalizar a moralidade dos actos praticados no exercício de direitos ou a sua conformidade com as razões sociais ou económicas que os legitima, se houver manifesto abuso. É esta a lição de todos os autores e de todas as legislações. Manuel de Andrade refere-se aos direitos “exercidos em termos clamorosamente ofensivos da justiça” (...). Vaz Serra refere-se, igualmente, à “clamorosa ofensa do sentimento jurídico socialmente dominante” (...)
7.- O abuso do direito pressupõe logicamente a existência do direito (direito subjectivo ou mero poder lega), embora o titular se exceda no exercício dos seus poderes. A nota típica do abuso do direito reside, por conseguinte, na utilização do poder contido na estrutura do direito para a prossecução de um interesse que exorbita do fim próprio do direito ou do contexto em que ele deve ser exercido: Castanheira Neves, (Questão de facto – Questão de direito (...)» (in Código Civil anotado por Pires de Lima e Antunes Varela, vol I, 3ª ed, pág. 296-298).

Como se sentenciou no douto Ac. do STJ, de 10.12.91, in BMJ, 412-460:
«Nos termos do artigo 334º do Código Civil há abuso de direito e é portanto ilegítimo o seu exercício quando o titular exceda manifestamente os limites impostos pela boa fé, pelos bons costumes ou pelo fim social ou económico desse direito.
Agir de boa fé tanto no contexto deste artigo como no do artigo 762º, nº2, é «agir com diligência, zelo e lealdade correspondente aos legítimos interesses da contraparte, é ter uma conduta honesta e conscienciosa, uma linha de correcção e probidade a fim de não prejudicar os legítimos interesses da contraparte e não proceder de modo a alcançar resultados opostos aos que uma consciência razoável poderia tolerar».
Os bons costumes entendem-se, por seu turno, como um «conjunto de regras de convivência que num dado ambiente e em certo momento as pessoas honestas e correctas aceitam comummente contrários a laivos ou conotações, imoralidade ou indecoro social».
Finalmente, o fim social ou económico do direito, no âmbito dos direitos de crédito – o conteúdo da obrigação desdobra-se no direito à prestação e no dever de prestar – consiste precisamente na satisfação do interesse do credor mediante a realização da prestação por banda do devedor (artigo 397º do Código Civil)...”.

Ensina o Professor Antunes Varela, in “Das Obrigações em Geral”, 7ª edição, pág. 536, que: “Para que o exercício do direito seja abusivo, é preciso que o titular, observando embora a estrutura formal do poder que a lei lhe confere, exceda manifestamente os limites que lhe cumpre observar, em função dos interesses que legitimam a concessão desse poder”.

É preciso, como acentuava M. de Andrade, que o direito seja exercido, em termos clamorosamente ofensivos da justiça - cfr. neste sentido, entre outros, os Acs. do STJ, de 7.1.93, in BMJ, 423-539 e de 21.9.93, in CJSTJ, 1993, III, 19.

Os elementos carreados para os autos não permitem concluir pelo invocado abuso de direito no que concerne às referidas deliberações, uma vez que, como se viu, a destituição de gerente é livre, não havendo factos dos quais resulte que o acto seja ofensivo dos limites impostos pela boa fé, pelos bons costumes ou pelo fim social ou económico do direito. O irmão do apelante é o cabeça de casal da herança do pai e nessa qualidade tem poderes para, em representação da herança, votar a deliberação, tal como tem poderes para votar as deliberações de nomeação de nova gerente e de instauração da aludida acção.         
Também não resulta que estejamos em face de deliberações feridas de nulidade – cfr ao já aludido artº 56º.

No que respeita à deliberação que determinou a exclusão de sócio do apelante, trata-se de uma deliberação que importa, mais que a redução, a extinção do respectivo direito.

A figura da exclusão do sócio encontra-se prevista para as sociedades por quotas nos arts. 241º e 242º do CSC, e tal como sucede com a exoneração de sócio, a exclusão implica a perda da titularidade da quota e a consequente perda da qualidade de sócio por parte do sócio excluído.

Diversamente da exoneração, na exclusão de sócio, a perda da qualidade de sócio não parte da iniciativa unilateral do próprio sócio mas antes da iniciativa da sociedade, contra o desejo ou a inação do sócio excluído – cfr Ac. RL. de 10/02/2009, Proc. 7518/2008-1, in www.dgsi.pt.

A exclusão de sócio apenas pode ter lugar perante razões ponderosas que confiram à sociedade o direito de suprimir essa concreta participação social.

Nas sociedades por quotas, os sócios apenas podem ser excluídos da qualidade de sócio nas situações previstas nos arts. 241º e 242º do CSC, ou seja, “nos casos e termos previstos na lei”, bem como nas situações respeitantes à pessoa ou ao comportamento do sócio fixados no contrato que confiram à sociedade esse poder de exclusão, mediante deliberação social (n.º 1 do art. 241º), ou, por decisão judicial, a ser proferida em acção proposta pela sociedade contra o sócio que pretende ver excluído, acção essa que, no entanto, tem de ser antecedida de deliberação dos sócios aprovando a propositura dessa acção (n.º 2 do art. 242º), nas situações em que a exclusão tem por fundamento um comportamento desleal do sócio para com a sociedade ou gravemente perturbador do funcionamento desta, que causou ou possa vir a causar-lhe prejuízos relevantes (n.º 1 do art. 242º do CSC).

Em termos de “hipóteses legais específicas podem ser excluídos os sócios que: (a) sejam remissos, não realizando, no prazo legal, a entrada a que se encontram obrigados (204º/1 e 2), (b) idem, não efectuando as prestações complementares que lhes caibam (212º/1); c) abusem da informação a que tenham acesso e prejudiquem injustamente a sociedade (214º/6). Em todos estes casos, a exclusão opera por deliberação social” – cfr Código das Sociedades Comerciais Anotado, Cord: António Menezes Cordeiro, Almedina, 2ª edição, 2014, pág. 704. 
      
In casu, a exclusão não podia ser decidida por deliberação social, mas apenas por decisão judicial – artº 242º -, como invocou o apelante.
Assim, esta deliberação é nula face ao disposto no artº 59º, nº 1, al. d) do CSC -  por violação de preceito legal não derrogável.
Acresce que, atento o disposto no artº 223º, nº6, supracitado, o cabeça de casal não tinha poderes para votar a deliberação de exclusão de sócio em representação da herança do falecido pai. Não estava munido de poderes especiais para tal. 
A nulidade é de conhecimento oficioso – artº 286º do CC. -, pelo que não obstante ter sido peticionada a anulabilidade da deliberação pode o tribunal declarar a nulidade.
Há, pois, que declarar nula a deliberação de exclusão do apelante como sócio, improcedendo no mais o recurso.
***

IV–Decisão

Em face do exposto acordam as juízas na Secção do Comércio do Tribunal da Relação de Lisboa em julgar o recurso interposto pelo recorrente parcialmente procedente, revogando-se parcialmente a sentença e, em consequência:
- declara-se nula a deliberação aprovada em Assembleia Geral da R. realizada em 30 de Outubro de 2020 que excluiu o apelante de sócio.
No mais, mantém-se a sentença recorrida.
*
Custas por apelante e apelada na proporção de 2/3 para o 1º e 1/3 para a segunda.
Registe e Notifique.  

                                                           
           
Lisboa,08/02/2022



Manuela Espadaneira Lopes
Paula Cardoso
Renata Linhares de Castro