Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
17408/19.0T8SNT-F.L1-1
Relator: MANUELA ESPADANEIRA LOPES
Descritores: SUSPENSÃO DE ENTREGA JUDICIAL
CASA DE MORADA DE FAMÍLIA
LEIS TEMPORÁRIAS COVID19
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 03/21/2023
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Texto Parcial: N
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: PROCEDENTE
Sumário: I–Do disposto no artº 6º-E, nº7, alínea b), da Lei nº 1-A/2020, de 19/3, resulta que a suspensão das diligências de entrega judicial da casa de morada de família em processo executivo e de insolvência opera ope legis.

II–Não tendo o aludido normativo sido revogado, nem se podendo concluir pela respectiva caducidade, o mesmo mantém-se actualmente em vigor.

Decisão Texto Parcial:
Decisão Texto Integral: Acordam as Juízas na Secção do Comércio do Tribunal da Relação de Lisboa:


I.–Relatório


V… e mulher  M… G… apresentaram-se à insolvência, tendo, por sentença proferida em 14/11/2019 e transitada em julgado, sido declarados insolventes.

A insolvente tinha sido anteriormente casada com o ora apelante M… V…

Foi apreendido à ordem do processo de insolvência o seguinte imóvel:
- fracção autónoma designada pelas letras BC, correspondente ao 2º andar B, do prédio urbano destinado a habitação e arrecadação, sito na Rua …, descrita na Conservatória do Registo Predial de Q... sob o nº … , freguesia de …, concelho de S____ e inscrita na matriz predial urbana sob o art. … do Serviço de Finanças S____.

A fracção em causa encontrava-se inscrita na Conservatória do Registo Predial a favor da insolvente M… G… e de M… V…, à data da inscrição casados um com o outro. 

Por despacho de 20/04/2020, foi determinada a citação do ex-cônjuge da Insolvente, para, no prazo de 20 (vinte) dias, requerer a separação de bens ou juntar comprovativo da pendência de acção em que a separação já tivesse sido requerida, sob pena de o não fazendo se prosseguir com a venda do bem comum, tudo nos termos dos artºs 740º do Código de Processo Civil e 141º, n.ºs 1, al. b), e 3, do CIRE.

O ora apelante M… V… veio requerer, por apenso aos autos de insolvência, inventário para partilha dos bens comuns do casal, tendo aí sido relacionada a fracção supra identificada.

Identificou-se ali como tendo residência na Rua …, Q... .

Em 13 de Dezembro de 2021 foi proferida no apenso de inventário a seguinte sentença:
“Nos presentes autos de inventário para separação de meações a correr termos sob o n.º … instaurados por M… V…, nos termos do art.º 1135º do Código de Processo Civil, com fundamento em que foi cônjuge da Insolvente M… G… e existe um bem comum, homologo pela presente sentença a partilha constante do mapa de partilha elaborado em 05.11.2021, cabendo metade do preço que venha a ser obtido com a venda do bem imóvel ao processo de insolvência de M… G… e a outra metade do preço que venha a ser obtido ao processo de execução instaurado contra o aqui Requerente e Cabeça de Casal M… V…, que corre termos no J1, do Juízo de execução de …, sob o processo n.º …, sendo ambos solidariamente responsáveis pelo passivo, que será liquidado nos termos que venham a ser definidos no apenso de reclamação e graduação de créditos (relativamente à metade do preço recebido que couber ao processo de insolvência) e nos termos que venham a ser definidos no processo de execução instaurado contra o aqui Requerente e Cabeça de Casal M… V… (relativamente à outra metade do preço obtido com a venda do imóvel).”  Tal sentença transitou em julgado. 
  
Em 10/08/2022 o Administrador da Insolvência remeteu um e-mail ao Ilustre Mandatário do ora apelante, solicitando que o mesmo, no prazo de 10 dias, informasse qual a data previsível para entrega do imóvel.

Em 08/09/2022 foi proferido o seguinte despacho nos autos de execução n.º … a correr termos no J1, do Juízo de Execução de …:
“Defere-se a venda do imóvel na totalidade, nos autos de insolvência.”

Em 10/10/2022, o ora apelante apresentou no apenso de liquidação requerimento, requerendo a suspensão da entrega do imóvel ao abrigo do disposto no artº 6.º-E, n.º 7, al. b), da Lei n.º 1-A/2020, de 19 de Março, na redacção em vigor.

O credor Banco …, SA, pronunciou-se no sentido da não atendibilidade da pretensão do ex-cônjuge da insolvente.

Em 03/12/2022 foi proferido despacho pela Mmª Juíza a quo, indeferindo a requerida suspensão da entrega do imóvel, com fundamento na caducidade do art.º 6-º.E, n.º 7, al. b), da Lei n.º 1-A/2020, de 19 de Março, na redacção dada pela Lei n.º 13-B/2021, de 5 de Abril, por força da cessação da situação de alerta.
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Inconformado com tal decisão, veio o ex-cônjuge da insolvente e executado nos autos de execução n.º … a correr termos no J1, do Juízo de Execução de …, interpor recurso, formulando as seguintes CONCLUSÕES:
i.-A resposta à pandemia COVID-19 obrigou a uma produção legislativa altamente profusa a partir do mês de Março do ano 2020;
ii.-A Lei n.º 16/2020, de 29 de Maio, veio aditar à Lei n.º 1-A/2020 de 19/03, o artigo 6.º-A, que sob a epígrafe “Regime processual transitório e excecional”, veio introduzir, no seu n.º 6, al. b), a suspensão dos actos a realizar em sede de processo executivo ou de insolvência relacionados com a concretização de diligências de entrega judicial da casa de morada de família;
iii.-Não obstante diversas revogações e aditamentos de artigos à dita Lei n.º 1-A/2020 de 19/03, foi sempre mantida a norma que obriga à suspensão dos actos a realizar em sede de processo executivo ou de insolvência relacionados com a concretização de diligências de entrega judicial da casa de morada de família;
iv.-Na versão introduzida pela Lei n.º 13-B/2021, de 5 de Abril, e que se mantém em vigor, o artigo 6.º-E da Lei n.º 1-A/2020 de 19/03, estabelece um regime de suspensão dos actos a realizar em sede de processo executivo ou de insolvência relacionados com a
concretização de diligências de entrega judicial da casa de morada de família, fazendo tal suspensão operar «no decurso do período de vigência do regime excecional e transitório previsto no presente artigo»;
v.-A redacção da Lei nada prevê quanto à fixação de uma data para cessação da produção de efeitos da referida suspensão;
vi.-A norma em causa versa sobre matéria reservada à Assembleia da República (reserva relativa do artigo 165.º da CRP), pelo que salvo autorização expressa nesse sentido, não poderia um decreto-lei revogar este regime de suspensão;
vii.-O Governo em exercício apresentou no passado mês de Novembro de 2022 uma proposta de lei para a revogação do regime de suspensão sob análise – Proposta de Lei n.º 45/XV/1, disponível para consulta pública na página web do Parlamento;
viii.-Existe a clara percepção pública de que os procedimentos de despejo – tal como os actos de entrega das casas de morada de família –, se encontram “suspensos”;
ix.-Ademais, ainda que as normas constantes do artigo 6.º-E da Lei n.º 1-A/2020, de 19 de Março sejam entendidas como sendo excepcionais ou de vigência temporária, as mesmas adoptaram uma formulação no mínimo dúbia;
x.-Uma vez que o facto de que a Lei faz depender a vigência de uma parte das suas normas ainda não terá ocorrido ou sido inequivocamente declarado (e sendo que não poderia naturalmente ser utilizado um subterfúgio legal de revogação de uma lei da reserva relativa da AR através de uma mera declaração ou diploma emitido pelo Governo), terá que se entender pela manutenção em vigor das normas em causa;
xi.-Termos em que deve a decisão em causa ser revogada, sendo substituída por outra que ordene a suspensão da entrega da casa de morada de família do Recorrente até que seja revogada a norma constante do artigo 6.º-E, n.º 7, al. b), da Lei n.º 1-A/2020, de 19 de Março, na sua redacção actual.
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Não foram apresentadas contra-alegações.
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A Mmª Juíza a quo proferiu despacho admitindo o recurso, como apelação e com efeito devolutivo.
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Foram colhidos os vistos das Exmªs Adjuntas.
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II–Objecto do recurso

É entendimento uniforme que é pelas conclusões das alegações de recurso que se define o seu objecto e se delimita o âmbito de intervenção do tribunal ad quem (artigos 635º, nº 4 e 639º, nº 1, do Código de Processo Civil), sem prejuízo das questões cujo conhecimento oficioso se imponha (artigo 608º, nº 2, ex vi do artigo 663º, nº 2, do mesmo Código). Acresce que os recursos não visam criar decisões sobre matéria nova, sendo o seu âmbito delimitado pelo conteúdo do acto recorrido.
Assim, em face das conclusões apresentadas pelo recorrente, importa decidir se o despacho que indeferiu a suspensão da entrega do imóvel apreendido nos autos requerida pelo apelante deve ser revogado e substituído por outro que declare suspensa a entrega de tal imóvel.
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III–Fundamentação

A)–De Facto
Encontram-se provados, com interesse para a decisão a proferir, os factos que constam do relatório que antecede e cujo teor se dá por reproduzido.
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B)–O Direito
A Lei n.º 1-A/2020, de 19 de Março, que veio estabelecer medidas excepcionais e temporárias de resposta à situação epidemiológica provocada pelo coronavírus SARS-CoV-2 e da doença COVID-19, na redacção introduzida pela Lei n.º 4-A/2020, de 6 de Abril, previa que:
“Art. 7º
Prazos e diligências
(…)
2 - O regime previsto no presente artigo cessa em data a definir por decreto-lei, no qual se declara o termo da situação excecional.
(…)
6 - Ficam também suspensos:
a)-O prazo de apresentação do devedor à insolvência, previsto no n.º 1 do artigo 18.º do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas;
b)-Quaisquer atos a realizar em sede de processo executivo, designadamente os referentes a vendas, concurso de credores, entregas judiciais de imóveis e diligências de penhora e seus atos preparatórios, com exceção daqueles que causem prejuízo grave à subsistência do exequente ou cuja não realização lhe provoque prejuízo irreparável, nos termos previstos no n.º 2 do artigo 137.º do Código de Processo Civil, prejuízo esse que depende de prévia decisão judicial. (…)”.

O referido art. 7º foi revogado pela Lei n.º 16/2020, de 29 de Maio, que aditou à Lei n.º 1-A/2020, de 19 de Março, o art. 6º-A, que, no que aqui importa, previa o seguinte:
“Regime processual transitório e excecional
(…)
6- Ficam suspensos no decurso do período de vigência do regime excecional e transitório:
a)- O prazo de apresentação do devedor à insolvência, previsto no n.º 1 do artigo 18.º do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas, aprovado em anexo ao Decreto-Lei n.º 53/2004, de 18 de março;
b)- Os atos a realizar em sede de processo executivo ou de insolvência relacionados com a concretização de diligências de entrega judicial da casa de morada de família;
c)- As ações de despejo, os procedimentos especiais de despejo e os processos para entrega de coisa imóvel arrendada, quando o arrendatário, por força da decisão judicial final a proferir, possa ser colocado em situação de fragilidade por falta de habitação própria ou por outra razão social imperiosa;
d)- Os prazos de prescrição e de caducidade relativos aos processos e procedimentos referidos nas alíneas anteriores;
e)- Os prazos de prescrição e de caducidade relativos aos processos cujas diligências não possam ser feitas nos termos da alínea b) do n.º 2, da alínea b) do n.º 3 ou do n.º 7.
(…)”.

O referido art. 6º-A foi revogado pela Lei n.º 4-B/2021, de 1 de Fevereiro, que aditou à Lei n.º 1-A/2020, de 19 de Março, o art. 6º-B, que previa, na parte aqui relevante, o seguinte:
“Artigo 6.º-B
Prazos e diligências
(…)
11- São igualmente suspensos os atos a realizar em sede de processo executivo ou de insolvência relacionados com a concretização de diligências de entrega judicial da casa de morada de família ou de entrega do locado, designadamente, no âmbito das ações de despejo, dos procedimentos especiais de despejo e dos processos para entrega de coisa imóvel arrendada, quando, por requerimento do arrendatário ou do ex-arrendatário e ouvida a contraparte, venha a ser proferida decisão que confirme que tais atos o colocam em situação de fragilidade por falta de habitação própria ou por outra razão social imperiosa.
(…)”

A Lei n.º 13-B/2021, de 5 de Abril, que procedeu à décima alteração à referida Lei n.º 1-A/2020, veio determinar a Cessação do regime de suspensão de prazos processuais e procedimentais adoptado no âmbito da pandemia da doença COVID-19, entrou em vigor no dia 6 de Abril de 2021 - artigo 7º. Esta mesma lei, ao mesmo tempo em que revogou os artigos 6.º-B e 6.º-C da Lei n.º 1-A/2020, de 19 de Março, veio também aditar à Lei n.º 1-A/2020, de 19 de Março, o artigo 6.º-E, com a seguinte redacção:
“Artigo 6.º-E
Regime processual excepcional e transitório
1– No decurso da situação excepcional de prevenção, contenção, mitigação e tratamento da infecção epidemiológica por SARS-CoV-2 e da doença COVID-19, as diligências a realizar no âmbito dos processos e procedimentos que corram termos nos tribunais judiciais, tribunais administrativos e fiscais, Tribunal Constitucional, Tribunal de Contas e demais órgãos jurisdicionais, tribunais arbitrais, Ministério Público, julgados de paz, entidades de resolução alternativa de litígios e órgãos de execução fiscal regem-se pelo regime excepcional e transitório previsto no presente artigo.
2–As audiências de discussão e julgamento, bem como outras diligências que importem inquirição de testemunhas, realizam-se:
(...)
7–Ficam suspensos no decurso do período de vigência do regime excepcional e transitório previsto no presente artigo:
a)- O prazo de apresentação do devedor à insolvência, previsto no n.º 1 do artigo 18.º do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas, aprovado em anexo ao Decreto-Lei n.º 53/2004, de 18 de Março;
b)- Os actos a realizar em sede de processo executivo ou de insolvência relacionados com a concretização de diligências de entrega judicial da casa de morada de família;
c)- Os actos de execução da entrega do local arrendado, no âmbito das acções de despejo, dos procedimentos especiais de despejo e dos processos para entrega de coisa imóvel arrendada, quando o arrendatário, por força da decisão judicial final a proferir, possa ser colocado em situação de fragilidade por falta de habitação própria ou por outra razão social imperiosa;
(...)
8–Nos casos em que os actos a realizar em sede de processo executivo ou de insolvência referentes a vendas e entregas judiciais de imóveis sejam susceptíveis de causar prejuízo à subsistência do executado ou do declarado insolvente, este pode requerer a suspensão da sua prática, desde que essa suspensão não cause prejuízo grave à subsistência do exequente ou dos credores do insolvente, ou um prejuízo irreparável, devendo o tribunal decidir o incidente no prazo de 10 dias, ouvida a parte contrária.
(...)
A Lei n.º 13-B/2021, de 5 de Abril,  apesar de revogar a Lei nº 4-B/2021, de 1 de Fevereiro, veio, assim, no essencial, manter - agora no artº Artigo 6.º-E, nº 7, alíneas b) e c) -  a suspensão já anteriormente decretada pelo nº 11 do Artº 6-B, da Lei n.º 1-A/2020, de 19 de Março - com a redacção introduzida pela referida Lei n.º 4-B/2021,de 1 de Fevereiro.

Do disposto no artº 6-E, nº7, alínea b), supra citado, resulta que a suspensão das diligências de entrega judicial da casa de morada de família em processo executivo e de insolvência opera ope legis. Pelo contrário, a suspensão de actos de execução da entrega do local arrendado, apenas terá lugar quando se revele que os referidos actos podem colocar o “obrigado” em situação de fragilidade por falta de habitação própria ou por outra razão social imperiosa, cabendo, neste caso, ao arrendatário o ónus de requerer e provar os factos concretos de onde resulte que, a concretizar-se a entrega do arrendado, ele ficará na aludida “situação de fragilidade por falta de habitação própria” ou que há uma "outra razão social imperiosa" também justificava da não entrega do locado - cfr neste sentido, entre outros, Ac. do Tribunal da Relação de Guimarães, de 10/3/2022, Processo nº 2822/19.0T8VCT-A.G1, o qual pode ser consultado in www.dgsi.pt

Face ao que resulta dos autos, encontra-se demonstrado que a fracção autónoma em causa nos autos se trata da casa de morada de família do apelante. É ali que o mesmo tem o centro da organização doméstica e social da respectiva família, recebendo a respectiva correspondência, conforme resulta dos autos de inventário instaurados por apenso e também do relatório do Administrador da Insolvência apresentado nos termos do artº 155º do CIRE do qual consta: “De acordo com a visita de 03/01/2020, o imóvel está ocupado pelo ex-cônjuge (MVLP) da insolvente”

O apelante é executado no Processo de Execução n.º … que corre termos no J1, do Juízo de execução de …,  processo esse à ordem do qual o imóvel foi penhorado, tendo aí sido determinado que a venda do mesmo seria efectuada nos autos de insolvência da sua ex-cônjuge, a ora insolvente.  
    
Importa, então, decidir se, conforme entendeu o tribunal a quo, ocorreu a caducidade do artigo art.º 6.º-E em questão, ou se tal norma ainda se mantém em vigor, ou seja, se a suspensão da entrega da fracção requerida pelo apelante/executado nos referidos autos tem fundamento legal.

Consta do preambulo do DL 66-A/2022, de 30 de Setembro, que o mesmo veio proceder “à clarificação dos decretos-leis que ainda se encontram em vigor, bem como à eliminação das medidas que atualmente já não se revelam necessárias, através da determinação expressa de cessação de vigência de decretos-leis já caducos, anacrónicos ou ultrapassados pelo evoluir da pandemia.
Importa, contudo, garantir que as alterações promovidas a legislação anterior à pandemia pelos decretos-leis agora revogados não são afetadas. Assim, clarifica-se que a revogação promovida pelo presente decreto-lei tem os seus efeitos limitados aos decretos-leis aqui previstos, não afetando alterações a outros diplomas introduzidas por estes que agora se revogam. Desta forma, ganha-se em clareza e certeza jurídica, permitindo aos cidadãos saber — sem qualquer margem para dúvidas — qual a legislação relativa à pandemia da doença COVID-19 que se mantém aplicável. (…)”.

O artº 6º E, nº 7, da Lei 1-A/2020 não é visado/atingido pelo DL 66-A/2022. Dispõe o artº 1º deste diploma:
“O presente decreto-lei:
a)-Considera revogados diversos decretos-leis aprovados no âmbito da pandemia da doença COVID-19, determinando expressamente que os mesmos não se encontram em vigor, em razão de caducidade, revogação tácita anterior ou revogação pelo presente decreto-lei;
(…)”
Constam a seguir elencados os diplomas que são revogados pelo aludido decreto lei, não estando ali referido o referido artº 6º-E, nº 7.

No que respeita à cessação da vigência da lei, estabelece o artº 7º do C. Civil:
1- Quando se destine a ter vigência temporária, a lei só deixa de vigorar se for revogada por outra lei.
2-A revogação pode resultar de declaração expressa, da incompatibilidade entre as novas disposições e as regras precedentes ou da circunstância de a nova lei regular toda a matéria da lei anterior.
3-A lei geral não revoga a lei especial, excepto se outra for a intenção inequívoca do legislador.
(…)”
Diz Baptista Machado, in Introdução ao Direito e ao Discurso Legitimador, Almdida, 25ª reimpressão, págs 165, 166:
«Como modo de cessação da vigência da lei o artº 7º apenas prevê a caducidade e a revogação. Outras formas possíveis seriam o desuso e o costume contrário. Já sabemos, porém, que o nosso legislador não quis reconhecer ao costume o valor de fonte de direito.
A caducidade strito sensu dá-se por superveniência de um facto (previsto pela própria lei que se destina a vigência temporária) ou pelo desaparecimento, em termos definitivos, daquela realidade que a lei se destina a regular. É frequente estabelecer-se numa lei que o regime nela estabelecido será revisto dentro de certo prazo. Passado o prazo sem que se verifique revisão, não cessa a vigência de tal lei por caducidade: ela continua em vigor até à sua substituição.
A revogação, essa pressupõe a entrada em vigor de uma nova lei (segundo o nosso legislador). A revogação pode ser expressa ou tácita, total (ab-rogação) ou parcial (derrogação). É expressa quando consta de declaração feita na lei posterior (fica revogado…), e tácita quando resulta da incompatibilidade entre as disposições novas e antigas, ou ainda quando a nova lei regula toda a matéria da lei anterior – substituição global (artº 7º, 2). Porém, nos termos do artº 7º, 3, a lei geral posterior não revoga a lei a lei especial anterior, salvo se “outra for a intenção inequívoca do legislador”.»   

Como se viu, não ocorreu a revogação expressa, nem tão pouco resulta que tenha tido lugar a revogação tácita da alínea b) do artº 6º-E, nº 7.

É certo que, como o legislador expressamente declarou, as normas deste artigo consubstanciam um regime excepcional e temporário, mas, salvo o devido respeito por opinião contrária, não é possível afirmar que a “situação excecional de prevenção, contenção, mitigação e tratamento da infeção epidemiológica por SARS-CoV-2 e da doença COVID-19”, já tenha deixado de existir de modo a que se conclua pela caducidade das aludidas normas.

Do facto de já haver cessado o estado de emergência - o qual se iniciou nos termos do Decreto do Presidente da República n.º 14-A/2020, de 18 de Março, tendo sido objecto de diversas renovações -, de calamidade - estado que foi decretado pela Resolução do Conselho de Ministros n.º 33-A/2020, de 30 de Abril, aprovada ao abrigo do artigo 19.º da Lei de Bases da Proteção Civil, aprovada pela Lei n.º 27/2006, de 3 de Julho, prorrogado por diversas vezes, mas também já cessado -, bem como o período de estado de alerta - estado v.g. decretado e regulamentado através de Resolução do Conselho de Ministros n.º 73-A/2022, de 30 de Agosto e para vigorar até às 23:59 h do dia 30 de Setembro de 2022 -, não resulta automaticamente a aludida caducidade. Da lei não resulta que o regime do artº 6º-E, nº 7, als. b) e c) da Lei nº 1-A/2020, de 19/03, se destinasse a vigorar apenas enquanto vigorasse quaisquer dos aludidos estados e também não se pode dizer que a situação pandémica e os efeitos que da mesma resultaram e que estiveram subjacentes ao estabelecimento deste regime excepcional e temporário de tutela do direito à habitação tenham desaparecido totalmente.

Assim e tal como se entendeu no Acórdão desta Relação de 13/10/2022, relator: António Santos, o qual pode ser consultado in www.dgsi.pt:
“(…) nada permite concluir que a alínea c), do nº 7, do artº 6º-E, da Lei n.º 1-A/2020, de 19 de Março, e aditado pela Lei n.º 13-B/2021, de 5 de abril, não se encontra já em vigor, por ter a sua vigência cessado por aplicação do artº 7º, nºs 1 e/ou 2, do CC”, também não se pode concluir que a alínea b) do mesmo nº 7 tenha caducado. 
Como se refere também no mesmo acórdão: “(…) em rigor, não consubstancia a Lei n.º 1-A/2020, de 19 de Março uma lei temporária [limitada a um determinado período de vigência, ou porque o tempo seja nela prefixado ou se circunscreva a duração de certo acontecimento previamente identificado]”.

Acresce que as dúvidas que se suscitam acerca da eventual caducidade do referido artigo 6º-E, nº 7, al. b) da Lei nº 1-A/2020 suscitar-se-ão de igual modo em relação ao disposto na alínea a) do mesmo normativo, o qual consagrou a suspensão do prazo de apresentação do devedor à insolvência, previsto no nº1 do artigo 18º do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas, situação em que a necessidade de segurança jurídica assume também enorme relevância, considerando as consequências que podem resultar para o devedor da não apresentação atempada à insolvência.

A propósito da necessária segurança jurídica e porque com ele também concordamos, transcrevemos parte da fundamentação do Acórdão da Relação de Lisboa de 23/02/2023, proferido no Proc. 16142/12.7T2SNT-F.L1-6, relator: Eduardo Petersen Silva e que pode também ser consultado in www.dgsi.pt:
“É verdade que passaram vários meses desde a publicação do Decreto-Lei 66-A/2022 e que a evolução relativamente à pandemia aparentemente é positiva, mas entendemos não alterar o juízo sobre a não caducidade do artigo 6º E da Lei n.º 1-A/2020, de 19 de Março, e aditado pela Lei n.º 13-B/2021, de 5 de Abril por uma razão, a saber, porque com um legislador que legisla com o propósito específico de clarificar a legislação que já caducou, seguramente mais munido de informação relevante em termos sanitários do que os tribunais, e portanto que legisla em função da certeza e segurança jurídica, terá esse legislador ponderado mesmo que a norma em vigor não tinha deixado de ter um fundamento factual a que se referir/aplicar, não cabendo então ao tribunal introduzir um elemento de incerteza na mesma apreciação, devendo outrossim em benefício da segurança jurídica esperar-se que o legislador venha a produzir nova legislação em que revogue as normas da legislação “pandémica” que já não tenham correspondência com a situação de facto real. É que, renova-se, o artigo 7º do Código Civil estabelece, na parte que aqui nos interessa, que1. Quando se não destine a ter vigência temporária, a lei só deixa de vigorar se for revogada por outra lei.
2. A revogação pode resultar de declaração expressa, da incompatibilidade entre as novas disposições e as regras precedentes ou da circunstância de a nova lei regular toda a matéria da lei anterior. Nenhuma destas situações ocorre no presente caso.”

Diga-se ainda que a Exposição de Motivos que consta da Proposta de Lei nº 45/XV, aprovada em Conselho de Ministros de 29/09/2022 e relativamente à qual já foi emitido Parecer pela Comissão de Assuntos Constitucionais, Direitos, Liberdades e Garantias – cfr https://www.parlamento.pt/ - é clara no sentido do supra exposto e que defendemos:
“Face ao desenvolvimento da situação epidemiológica num sentido positivo, observado nos últimos meses, assistiu-se à redução da necessidade de aprovação de novas medidas e de renovação das já aprovadas. Concomitantemente, importa ter presente que a legislação relativa à pandemia da doença COVID-19 consubstanciou-se num número significativo de leis com medidas aprovadas com o desidrato de vigorar durante um período justificado de tempo. Neste contexto, através da presente proposta de lei, procede-se à clarificação das leis que ainda se encontram em vigor, bem como à eliminação das medidas que atualmente já não se revelam necessárias, através da determinação expressa de cessação de vigência de leis já caducas, anacrónicas ou ultrapassadas pelo evoluir da pandemia. Desta forma, ganha-se em clareza e certeza jurídica, permitindo aos cidadãos saber - sem qualquer margem para dúvidas - qual a legislação relativa à pandemia da doença COVID-19 que se mantém aplicável. Adicionalmente, na sequência da revogação da Lei n.º 1-A/2020, de 19 de março, determina-se que os prazos para apresentação à insolvência apenas iniciam a respetiva contagem com a entrada em vigor da presente lei.”

No artigo 1.º, define-se o objecto do diploma, daí decorrendo que o mesmo “considera revogadas diversas leis aprovadas no âmbito da pandemia da doença COVID-19, determinando expressamente que as mesmas não se encontram em vigor, em razão de caducidade, revogação tácita anterior ou revogação pela presente lei”e no artigo 2.º,sob a epígrafe “norma revogatória”,são enunciados os diplomas que a proposta de lei considera revogados, constando logo da alínea a) “A Lei n.º 1-A/2020, de 19 de março, na sua redação atual, que estabelece medidas excecionais e temporárias de resposta à situação epidemiológica provocada pelo coronavírus SARS-CoV-2 e da doença COVID-19, com exceção do artigo 5.º;
Entendendo o próprio Governo a necessidade de afirmar de forma peremptória que, na sequência da revogação da Lei n.º 1-A/2020, de 19 de março, determina-se que os prazos para apresentação à insolvência apenas iniciam a respetiva contagem com a entrada em vigor da presente lei”, ou seja, tomando posição clara quanto à não caducidade anterior da a) do nº 7 do artº 6º-E da Lei nº 1-A/2020, não se vê como se poderá sustentar tal caducidade relativamente à alínea b) do mesmo normativo.

Pelo exposto, não tendo o artigo 6º-E, nº7, al. b) da Lei nº 1-A/2020 sido revogado e nem se podendo concluir pela respectiva caducidade, não se pode manter a decisão que indeferiu a suspensão da entrega do imóvel requerida pelo apelante, esclarecendo-se que está em causa apenas a suspensão da entrega e não das diligências para venda.
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IV–Decisão

Nestes termos, julga-se procedente a apelação e em consequência, revoga-se a decisão recorrida, que se substitui por outra, de suspensão da entrega da fracção apreendida nos autos enquanto vigorar o disposto no artigo 6º-E, nº7, al. b) da Lei nº 1-A/2020, de 19/3, aditado pela Lei nº 13-B/2021, de 5 de Abril.     
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Custas pela massa insolvente, fixando-se a taxa de justiça em 2 Ucs. 
Registe e Notifique.


Lisboa, 21/03/2023



Manuela Espadaneira Lopes
Paula Cardoso
Renata Linhares de Castro