Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
577/18.4PCLRS.L1-9
Relator: PAULA CRISTINA JORGE PIRES
Descritores: FORMA NEGLIGENTE
REJEIÇÃO DA ACUSAÇÃO
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 10/09/2021
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: N
Texto Parcial: S
Meio Processual: RECURSO PENAL
Decisão: PROVIDO
Sumário: Quando constam na acusação (e para além de nela estarem perfectibilizados os elementos subjectivos do tipo, neste caso na forma negligente), que: “naquela ocasião o arguido fez uma fogueira a fim de confecionar uma refeição, contudo, face ao vento, ao tempo quente, à acentuada inclinação do talude e à presença de ervas secas por via da regeneração natural das espécies e que constituíam fonte de combustível e material altamente inflamável com a aproximação de uma chama, as chamas da fogueira propagaram-se para além da mesma, numa área de 2 hectares, queimando caniçais, silvas, mato, ervas e hortas que aí existiam, (pois o arguido não está acusado de ter feito uma fogueira; está acusado de ter feito uma fogueira e de, com o seu comportamento -negligência grosseira- ter provocado um fogo em 2 hectares de terreno) designadamente uma pertença de BB, inexistem dúvidas que o arguido está bem acusado da prática de um crime de incêndio florestal na forma negligente, nos termos do art. 274º, nº1, 4 e 5 do C.P. , pelo que a acusação não poderia ser rejeitada  nos termos do art. 311º nº2 al. a) e nº3 al. d) do C.P.P por ser manifestamente infundada.
Decisão Texto Parcial:Acórdão deliberado na 9º secção criminal do Tribunal da Relação de Lisboa
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I. RELATÓRIO
O MINISTÉRIO PÚBLICO, no âmbito do processo acima referenciado, veio interpor recurso do despacho da Mma Juíza proferido em 23/10/2020 que rejeitou a acusação, - nos termos do art. 311º nº2 al. a) e nº3 al. d) do C.P.P., e art. 274º, nº1,4 e 5 do C.P., proferida contra o arguido AA, acusado, nos termos do artº 274º nº 1, 4 e 5 do C.P. de um crime de incêndio florestal, - por entender que os factos descritos na acusação e que delimitam o objecto do processo não constituem crime, mas antes sim, eventualmente, uma contra-ordenação p.p. pelo art. 39º do D.L 310/2002 de 18/12 e art. 47º do mesmo diploma legal.
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I.1. DESPACHO RECORRIDO que se transcreve
«O Ministério Público deduziu acusação nos presentes autos contra AA, imputando-lhe a prática, de um crime de incêndio florestal, p. e p. pelo art.274º nºs 1, 4 e 5 do C.Penal.
Prescreve o art. 274º do Código Penal que:
Quem provocar incêndio em terreno ocupado com floresta, incluindo matas, ou pastagem, mato, formações vegetais espontâneas ou em terreno agrícola, próprios ou alheios, é punido com pena de prisão de 1 a 8 anos (nº1).
Se a conduta prevista no n.º 1 for praticada por negligência, o agente é punido com pena de prisão até três anos ou com pena de multa (nº4).
Se a conduta prevista no número anterior for praticada por negligência grosseira ou criar perigo para a vida ou para a integridade física de outrem, ou para bens patrimoniais alheios de valor elevado, o agente é punido com pena de prisão até cinco anos (nº5).
Da acusação constam, designadamente, os seguintes factos:
“No dia 19 de Agosto de 2018, pelas 18h30/18h45, o arguido encontrava-se num terreno baldio composto de caniçais, silvados, ervas anuais e hortas sito nas traseiras do lote ………, na Estrada Militar, Frielas concelho de Loures, onde explorava uma horta e que confina com um talude.
Naquela ocasião o arguido fez uma fogueira (sublinhado nosso) a fim de confecionar uma refeição, contudo, face ao vento, ao tempo quente, à acentuada inclinação do talude e à presença de ervas secas por via da regeneração natural das espécies e que constituíam fonte de combustível e material altamente inflamável com a aproximação de uma chama, as chamas da fogueira propagaram-se para além da mesma, numa área de 2 hectares, queimando caniçais, silvas, mato, ervas e hortas que aí existiam, designadamente uma pertença de BB.
(...)
O arguido tinha conhecimento das condições climatéricas que se verificavam bem como das características do terreno, do que nele se encontrava e das suas características inflamáveis (sublinhado nosso) bem como dos terrenos contíguos e da proximidade de habitações e de que existiam pessoas no seu interior.
Ao proceder da forma temerária supra descrita, o arguido foi o único responsável pela propagação das chamas e pela destruição, pela queima (sublinhado nosso), dos caniçais, ervas anuais, silvados, mato e hortas, actuando com manifesta imprudência, irresponsabilidade e leviandade e omitindo os especiais deveres de cuidado inerentes ao uso do fogo que sobre si recaíam e de que era capaz, aos quais sabia estar obrigado e que no caso se impunham observar, atentas as circunstâncias e características do local e do tempo que se fazia sentir e que bem conhecia.
De modo a evitar um resultado que podia e devia ter previsto mas que não configurou como possível, o arguido podia e devia ter omitido a realização da fogueira, tanto mais que sabia no verão é proibido o uso do fogo em áreas idênticas bem como que em terreno inclinado, rodeado por vegetação, alguma já seca por via da regeneração natural das espécies, em dia quente e seco, existia no local material altamente inflamável com a aproximação de uma chama e que facilmente se propagaria, colocando em risco as habitações e a vida e integridade física de terceiros.
(...)”
Como se decidiu no Ac do TRE de 23-02-2013, relatado pelo Exmo. Sr. Desembargador João Gomes de Sousa, para o tipo penal do artigo 274º, o incêndio florestal, são essenciais os conceitos de «atear fogo» e «incêndio». O atear fogo será um dos elementos que delimita negativamente o tipo penal. Quem ateia fogo não causa, ipso facto, incêndio. O tipo penal exige um mais! Por isso que se imponha determinar em termos de facto se estamos perante atear fogo ou se já estamos perante incêndio, tendo presente que será a tónica do excesso que delimitará os dois conceitos.
Ora, tendo em conta os factos descritos na acusação e ainda que os mesmos viessem a resultar provados na sua totalidade em sede de audiência de julgamento, não se poderia concluir que estivéssemos perante um incêndio na acepção do preceito legal.
Como se refere de uma forma pragmática no citado aresto, “o que é fogo, fogueira, queima e queimada não é incêndio” (sublinhado nosso).
Os factos descritos na acusação dizem respeito à actuação do arguido de fazer uma fogueira que por via de factores da natureza (vento, tempo quente...), as chamas daquela se propagaram.
Os factos constantes da acusação não se integram, assim, no conceito legal. A actuação do arguido seria eventualmente susceptível de ser integrada no art.39º do DL 310/2002 de 18 de Dezembro que poderia fazer o arguido incorrer em responsabilidade contraordenacional (art.47º do mesmo diploma legal), para cuja
apreciação e decisão são responsáveis as entidades administrativas.
Dispõe o art. 311º do Código de Processo Penal:
1. Recebidos os autos no tribunal, o presidente pronuncia-se sobre as nulidades e outras questões prévias ou incidentais que obstem à apreciação do mérito da causa, de que possa desde logo conhecer.
2. Se o processo tiver sido remetido para julgamento sem ter havido instrução, o presidente despacha no sentido:
a) De rejeitar a acusação, se a considerar manifestamente infundada;
b) De não aceitar a acusação do assistente ou do Ministério Público na parte em que ela representa uma alteração substancial dos factos, nos termos do nº1 do artigo 284º e do nº4 do artigo 285º, respectivamente.
3. Para efeitos do disposto no número anterior, a acusação considera-se manifestamente infundada:
a) Quando não contenha a identificação do arguido;
b) Quando não contenha a narração dos factos;
c) Se não indicar as disposições legais aplicáveis ou as provas que a fundamentam; ou
d) Se os factos não constituírem crime.
Tendo em conta o supra enunciado, rejeito a acusação deduzida pelo
Ministério Público contra AA, determinando-se o oportuno arquivamento dos autos. (arts.274º nº1, 4 e 5 do Código Penal e 311º
nº2 al.a) e nº3 al. d) do Código de Processo Penal).
Não são devidas custas.
Notifique.
Deposite.»
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I.2. Recurso do MINISTÉRIO PÚBLICO (conclusões que se
transcrevem):
1 – Constitui objecto do presente recurso o despacho proferido em proferido em 23/10/2020, no qual a Mmª. Juiz rejeitou a acusação, nos termos do art. 311º nº2 al. a) e nº3 al. d) do C.P.P., e art. 274º, nº1,4 e 5 do C.P., vindo o arguido AA, acusado, nos termos do artº 274º Nº 1,4 e 5 do C.P. de um crime de incêndio florestal, por entender que os factos descritos na acusação e que delimitam o objecto do processo não constituem crime, mas antes sim, eventualmente, uma contra-ordenação p.p. pelo art. 39ºº do D.L 310/2002 de 18/12 e art. 47º do mesmo diploma legal;
2 - Fundamentou a Mmª Juiz a sua posição da seguinte forma:
O arguido vinha acusado da prática de um crime de incêndio florestal p.p nos termos do artº 274º Nº1,4 e 5 do C.P., por nas circunstâncias de tempo e lugar referidos na acusação o arguido fez uma fogueira a fim de confecionar uma refeição, contudo, face ao vento, ao tempo quente, à acentuada inclinação do talude e à presença de ervas secas por via da regeneração natural das espécies e que constituíam fonte de combustível e material altamente inflamável com a aproximação de uma chama, as chamas da fogueira propagaram-se para além da mesma, numa área de 2 hectares, queimando caniçais, silvas, mato, ervas e hortas que aí existiam, designadamente uma pertença de BB;
3 - Como se decidiu no Ac do TRE de 23-02-2013, relatado pelo Exmo. Sr. Desembargador João Gomes de Sousa, para o tipo penal do artigo 274º, o incêndio florestal, são essenciais os conceitos de «atear fogo» e «incêndio». O atear fogo será um dos elementos que delimita negativamente o tipo penal. Quem ateia fogo não causa, ipso facto, incêndio. O tipo penal exige um mais! Por isso que se imponha determinar em termos de facto se estamos perante atear fogo ou se já estamos perante incêndio, tendo presente que será a tónica do excesso que delimitará os dois conceitos;
4 - Ora, tendo em conta os factos descritos na acusação e ainda que os mesmos viessem a resultar provados na sua totalidade em sede de audiência de julgamento, não se poderia concluir que estivéssemos perante um incêndio na acepção do preceito legal, pois, como se refere de uma forma pragmática no citado aresto, “o que é fogo, fogueira, queima e queimada não é incêndio”;
5 - Os factos descritos na acusação dizem respeito à actuação do arguido de fazer uma fogueira que por via de factores da natureza (vento, tempo quente...), as chamas daquela se propagaram, pelo que os factos constantes da acusação não se integram, assim, no conceito legal, sendo apenas eventualmente susceptível de ser integrada no art.39º do DL 310/2002 de 18 de Dezembro que poderia fazer o arguido incorrer em responsabilidade contra-ordenacional (art.47º do mesmo diploma legal), para cuja apreciação e decisão são responsáveis as entidades administrativas;
6 - Com este fundamento, rejeitou a Mmª Juiz a acusação deduzida pelo Ministério Público contra AA, determinando-se o oportuno Arquivamento dos autos. (arts.274º nº1, 4 e 5 do Código Penal e 311º nº2 al.a) e nº3 al. d) do Código de Processo Penal), posição esta, que salvo o devido respeito, não concordamos;
7 - A fase em que os presentes autos se encontram, em que foi deduzida acusação e não foi requerida a abertura de instrução, ou seja, o processo transitou directamente para a fase de julgamento, esta fase de julgamento, no processo comum (Livro VII do Código de Processo Penal) comporta três subfases: dos actos preliminares (artigos 311.º e segs.), da audiência (artigos 321.º e segs.) e da sentença (artigos 365 e segs.);
8 - A primeira intervenção do juiz é, então, para sanear o processo, sendo este o primeiro de três distintos momentos em que pode conhecer das nulidades e outras questões prévias ou incidentais susceptíveis de obstar à apreciação do mérito da causa, que foi o que foi efectuado pela Mmª Juiz, pronunciando-se sobre nulidades e outras questões prévias ou incidentais que obstem á apreciação do mérito da causa, de que possa desde logo conhecer;
9 -É sabido que tem sido largamente discutido o âmbito dos poderes conferidos pelo artigo 311.º ao juiz de julgamento e, se pode considerar-se pacífico, p. ex., o entendimento de que “não é admissível ao juiz censurar o modo como tenha sido realizado o inquérito e devolver o processo ao Ministério Público para prosseguir a investigação de forma a abranger outros factos e/ou outros agentes, ou, simplesmente, para reformular a acusação”, já não deparamos com a mesma unanimidade quando se procura saber se o juiz (de instrução ou de julgamento) pode determinar a devolução dos autos ao Ministério Público para que proceda ao eventual suprimento de uma nulidade de inquérito ou para que seja sanada a irregularidade concretizada na falta de notificação da acusação ao arguido;
10 -No entanto, o aspecto que tem suscitado maior controvérsia prende-se com o âmbito do poder de sindicância da acusação pelo juiz de julgamento, nomeadamente, se o Juiz pode emitir um juízo sobre a (in)suficiência dos indícios para ter sido deduzida acusação e, portanto, se pode rejeitar a acusação com fundamento em indiciação insuficiente, ou, se o juiz é livre de valorar jurídicopenalmente os factos da acusação e, portanto, se pode modificar a qualificação ou subsunção jurídica desses factos logo no despacho previsto no artigo 311.º do Cód. Proc. Penal ou em qualquer altura até à prolação da sentença, ou, o que deve considerar-se uma acusação manifestamente infundada;
11 -Ora, para respondermos a estas questões não se pode deixar de ter presente a estrutura basicamente acusatória do nosso processo penal (consagrada no art.º 32.º, n.º 5, da CRP) que significa, fundamentalmente, que uma pessoa só pode ser julgada por um crime mediante acusação deduzida por um órgão distinto do julgador, que lhe imputa esse crime, sendo a acusação condição e limite do julgamento, ou seja, sendo a acusação que define e fixa o objecto do processo e, portanto, o objecto do julgamento;
12 – É de notar a importância da separação das diversas fases e respectivas competências, pois que, como adverte Teresa Beleza, mesmo sendo diferentes a entidade que investiga e acusa e a entidade que julga, se esta (a entidade que julga)
puder, livremente, investigar, procurar e acrescentar factos novos para decidir determinada causa, então, a estrutura acusatória do processo será puramente formal, pois acabará por ser o juiz a moldar o objecto do processo;
13 -O objecto do processo é fixado, quando o Ministério Público (ou o assistente, no caso de crimes particulares) deduz acusação ou, abstendo-se o M.º P.º de acusar, com o requerimento de abertura da instrução (RAI) pelo assistente e esta é uma garantia essencial do julgamento independente e imparcial: cabe ao tribunal julgar os factos constantes da acusação e não intrometer-se na definição do thema decidendum, pois como refere o Professor Figueiredo Dias, “segundo o princípio da acusação (...) a actividade cognitória e decisória do tribunal está estritamente limitada pelo objecto da acusação. Deve pois afirmar-se que o objecto do processo penal é o objecto da acusação, sendo esta que, por sua vez, delimita e fixa os poderes de cognição do tribunal (actividade cognitória) e a extensão do caso julgado (actividade decisória). É a este efeito que se chama a vinculação temática do tribunal e é nele que se consubstanciam os princípios da identidade, da unidade ou indivisibilidade e da consunção do objecto do processo penal”.;
14 -A vinculação temática do tribunal, a garantia de que o juiz de julgamento não esteja envolvido na definição do objecto do processo e a garantia de independência do Ministério Público em relação ao juiz na formulação da acusação constituem corolários decisivos do princípio do acusatório de primordial importância;
15 – O objecto do processo, é constituído pelo “facto histórico unitário”, pelos concretos factos que se revelam como uma “tranche de vie”, que formam um acontecimento da vida, delimitado no espaço e no tempo, que se imputam a um indivíduo determinado, sendo esse pedaço de vida que há-de subsumir-se à descrição abstracta de uma proposição penal, de um tipo legal, ou seja, o concreto comportamento atribuído a determinado agente há-de corresponder, ou não, ao comportamento abstractamente previsto na lei penal, ou seja a um determinado tipo de crime;
16 - Importa, no entanto, saber, se no momento em que é feito, ou não o recebimento da acusação, art. 311º do C.P.P., quais os motivos em que a mesma pode ser rejeitada por se considerar manifestamente infundada, sendo que quando o juiz rejeita a acusação por manifestamente infundada considerando que os factos não constituem crime mediante uma interpretação divergente de quem deduziu essa acusação viola o princípio acusatório;
17-Face a este princípio, ao proferir o despacho a que alude o art. 311º, nº 2 CPP , o tribunal só pode rejeitar a acusação por manifestamente infundada, por os factos não constituírem crime, quando a factualidade em causa não consagra de forma inequívoca qualquer conduta tipificadora de um crime, juízo que tem de assentar numa constatação objectivamente inequívoca e incontroversa da inexistência de factos que sustentam a imputação efectuada;
18 -Impede-se, que o juiz quando profere o despacho a que se refere o artigo 311º, tenha um papel equivalente ao sujeito processual “Ministério Público” fazendo um juízo sobre a suficiência ou insuficiência de indícios que sustentam a acusação proferida, explicitando, de modo claro e taxativo, os quatro motivos que podem levar à conclusão de se estar perante acusação manifestamente infundada, sendo que no caso dos autos, sendo descritos na acusação, factos susceptíveis de preencher o tipo legal de crime, pelo qual o arguido vinha acusado, não pode afirmar-se de forma inequívoca, que os factos que dela constam, não constituem crime, mas antes sim contra-ordenação;
19 -A acusação pode vir a improceder, mas esse será um juízo que o tribunal fará na fase própria, o julgamento, e não agora no momento em que é proferido o despacho do art. 311º do C.P.P., devendo a Mmª Juiz, neste momento, limitar-se a marcar data para o efeito, pois face ao texto da acusação não é possível afirmar que os factos nela descritos não constituem crime. ( Neste sentido Ac. TRL de 7/12/2010, proc. nº475/08.0TAAGH.L1-5, relator Vieira Lamim; Ac. De 30/05/2007, proc. nº9563/2006-3, relator Pedro Mourão).
20 - Note-se que na acusação é referido exactamente o contrário do afirmado pela Mmª Juiz, ou seja, de que o que foi debelado pelos diversos bombeiros foi um fogo, não uma mera fogueira e que foi esse fogo provocado de forma negligente pelo arguido que fez arder 2 hectares, que exigiu a intervenção de 9 corporações de bombeiros e que colocou em perigo várias habitações de modo que foi ordenado pela PSP que as pessoas saíssem de casa até o fogo estar debelado, e essa conduta, sem qualquer margem para dúvidas o fazia incorrer na prática de um crime, não de uma contra-ordenação;
21 - Não é uma constatação objectivamente incontroversa de inexistência de factos, nada indica, dos factos relatados na acusação, ao contrário do referido pela Mmª Juiz, salvo o devido respeito, que se trata de uma contraordenação, e mesmo que fossem todos provados em julgamento, mas sim a prática de um crime, como já demonstramos, nem podia fazer tal juízo a Mmª Juiz neste momento processual;
22 - Uma opinião divergente, como a manifestada pela Mmª. Juiz recorrida, apoiada numa análise que a mesma faz, por muito válida que seja, não assegura o princípio do acusatório, conduzindo a uma manifesta interferência no âmbito das competências da entidade a quem cabe acusar, por quem está incumbido do poder de julgar, pois traduz-se na formulação de um pré-juízo pelo juiz de julgamento sobre o mérito da acusação;
23 - Sendo descritos na acusação factos susceptíveis de preencher o tipo legal de crime pelo qual o arguido vinha acusado, não pode afirmar-se de forma inequívoca que os factos que dela constam não constituem crime.
A acusação pode vir a improceder, mas esse será um juízo que o tribunal fará na fase própria, o julgamento, devendo a Mmª Juiz, neste momento, limitar-se a marcar data para o efeito, pois face ao texto da acusação não é possível afirmar que os factos nela descritos não constituem crime. (Neste sentido Ac. TRL de 7/12/2010, proc. nº475/08.0TAAGH.L1-5, relator Vieira Lamim; Ac. De 30/05/2007, proc. nº9563/2006-3, relator Pedro Mourão; Ac. Do TRL de 26/09/2001, proc. nº0075443, Relator Adelino Salgado); (Ac TRP de 18/01/2017, proc. nº984/15.4T9VFR.P1, Relator- Maria Manuela Paupério); (Ac TRP de 18/01/2017, proc.
nº984/15.4T9VFR.P1, Relator- Maria Manuela Paupério);
24 - Deste modo, assentando o nosso processo penal numa estrutura acusatória - artigo 32.º nº 5 da Constituição da República Portuguesa – apresenta uma distinção clara entre a entidade que tem a seu cargo uma fase acusatória e uma outra entidade que julga, em audiência pública e contraditória, os factos objecto dessa acusação.
«O princípio acusatório (...) é um dos princípios estruturantes da constituição processual penal. Essencialmente, ele significa que só se pode ser julgado por um crime precedendo acusação por esse crime por parte de um órgão distinto do julgador, sendo a acusação condição e limite do julgamento. Trata-se de uma garantia essencial do julgamento independente e imparcial. Cabe ao tribunal julgar os factos constantes da acusação e não conduzir oficiosamente a investigação da responsabilidade penal do arguido (princípio do inquisitório).
Estrutura acusatória significa, no plano material, a distinção entre instrução, acusação e julgamento. No plano subjectivo, significa diferenciação entre juiz de instrução (órgão de instrução) e juiz julgador (órgão julgador) e entre ambos e órgão acusador;
25 - A Lei n.º 59/98 de 25 de Agosto, com as alterações que introduziu, permitiu explicitar, de forma clara, as funções dos vários sujeitos processuais determinando, inclusive, a caducidade do Assento do STJ n.º 4/93.
Nesse sentido e com essa intenção estabeleceu-se, normativamente, no artigo 311º nº 3 do Código Processo Penal, as situações que o legislador entendeu poder o juiz sustentar uma rejeição da acusação, sem pôr em causa o modelo acusatório estabelecido;
26 - Estatui o artigo 311º do Código Processo Penal, sob a epígrafe “Saneamento do processo”, em concreto no seu nº2, se o processo tiver sido remetido para julgamento sem ter havido instrução, o presidente despacha no sentido de rejeitar a acusação se a considerar manifestamente infundada – alínea a) -, encontrando-se taxativamente enumerados no nº 3 os casos em que, para efeitos
do nº 2, a acusação se considera manifestamente infundada;
27 - As situações previstas nas alíneas a), b) e c) do nº 3 referido (quando a acusação não contenha a identificação do arguido; não contenha a narração dos factos ou não indique as disposições legais aplicáveis ou as provas que a fundamentam) não suscitam grandes dúvidas sobre o seu conteúdo e configuram casos de nulidade da acusação.
A alínea d) do nº 3 do artigo 311º do Código Processo Penal não se mostra de tão fácil identificação, referindo a lei “se os factos não constituírem crime”;
28 - E, os factos só não constituirão crime quando seja apresentada uma insuficiente descrição fática ou a conduta imputada ao agente não revista relevância penal. Este fundamento, como refere Paulo Pinto de Albuquerque, in Comentário do Código de Processo Penal, pág. 779 “só pode ser aferido diante do texto da acusação, quando faltem os elementos típicos objectivos e subjectivos de qualquer ilícito criminal da lei penal Portuguesa” ;
29 - Para que o juiz possa rejeitar a acusação é necessário que os factos descritos não constituam inequivocamente crime; o entendimento divergente das várias correntes seguidas pela jurisprudência, não se basta para o efeito.
“Ou seja só e apenas quando de forma inequívoca os factos que constam na acusação não constituem crime é que o Tribunal pode declarar a acusação manifestamente infundada e rejeitá-la.
E os factos não constituem crime quando, entre outras situações, se verifica uma qualquer causa de extinção do procedimento ou se a factualidade em causa não consagra de forma inequívoca qualquer conduta tipificadora do crime imputado;
30 - Sublinhe-se que este juízo tem que assentar numa constatação objectivamente inequívoca e incontroversa da inexistência de factos que sustentam a imputação efectuada. Não se trata, nem se pode tratar de um juízo sustentado numa opinião divergente, por muito válida que seja. Só assim, numa interpretação tão restritiva se assegura o princípio do acusatório, na vertente referenciada.”. – Ac. da RC de 25/3/2010, Proc. nº 127/09.3SAGRD.C1 -.
No mesmo sentido se pronuncia Vinício Ribeiro, in Código de Processo Penal, Notas e Comentários, pág. 644 “Assim, por exemplo, o juiz não pode rejeitar a acusação com base no disposto na al. d) do n.º 3 («Se os factos não constituírem crime») se a questão for discutível. Só o poderá fazer se for inequívoco e incontroverso que os factos não constituem crime.” E pacificamente a jurisprudência, v.g. Acs. RL de 15/9/2011, Proc. nº 3769/08.TASNT e de 25/11/2009, Proc. nº 742/08.2 GCMFR, disponíveis, www.pgdl.pt; Ac. R.C. de 12/7/2011, Proc. 66/11.8GAACB.C1, disponível em www.dgsi.pt; Acs RP de 13/7/2011, Proc. nº 6622/10.4TDPRT.P1, de 11/7/2012, Proc. nº 1087/11.6PCMTS.P1, de 15/10/2013, Proc. nº 321/12.0TDEVR.E1 e de 21/10/2015, Proc. nº 658/14.GAVFR.P1; Acs RE de 15/10/2013, Proc. nº 321/12.0TD e de 3/12/2013, Proc. nº 289/4.0EAEVR.E1, todos disponíveis em www.dgsi.pt.; Ac. Do TRP, de 23/11/2016, proc. nº 571/14.4GBOAZ.P1, Relator- Maria Ermelinda Carneiro)
31 -É claro que no caso dos autos, o entendimento manifestado pela Mª Juiz, não é inequívoco e incontroverso, aliás, para nós resulta bastante claro que se encontram indicados na acusação, os factos necessários para o preenchimento do tipo de crime que o arguido vinha acusado, pois que, estão assim discriminados na acusação todos os factos que permitem imputar ao arguido o crime pelo qual foi acusado pelo Ministério Público, pelo que deveria a acusação de ter sido recebida pelo Mª Juiz, não sendo manifestamente infundada;
32 - Na acusação, concretamente no seu art. 1º e 2º é exposto as circunstâncias de tempo e lugar, características do local, condições climatéricas, e motivo de o arguido inicialmente ter realizado uma fogueira que foi com vista a confeccionar uma refeição nesse local e que nesse seguimento queimou caniçais, silvas, mato, ervas e hortas ali existentes , e seguidamente, no seu art. 3º é referido que o arguido com a sua conduta, que havia sido descrita, em que estavam portanto a arder, caniçais, mato, ervas e hortas, deslocaram-se ao local para debelar o fogo (sublinhado nosso), 9 equipas de bombeiros , das várias corporações aí enunciadas, totalizando 81 bombeiros, e que necessitavam de 4 h para debelar o fogo com a ajuda de carros-bomba;
33 - É referido ainda no ponto 4º que o fogo se dirigia na direcção de várias habitações, que ficaram deste modo em perigo e portanto foi ordenado pela PSP a evacuação das mesmas até o fogo ser extinto e que o arguido tinha conhecimento das condições climatéricas da altura, bem como das características do terreno e das suas características inflamáveis bem como dos terrenos contíguos e ainda da proximidade das habitações e de que existiam pessoas no seu interior, sendo assim discriminadas todas as condições ou factores que estiveram implicados na propagação deste fogo;
34 - É ainda referido na acusação que o arguido foi o único responsável pela propagação das chamas e pela destruição de tudo o que se encontra discriminado no art. 7º da acusação e que actuou com manifesta imprudência, irresponsabilidade e leviandade, omitindo os especiais deveres de cuidado inerentes ao uso do fogo que sobre si recaiam e que tinha capacidade de prever e que estava obrigado a fazê-lo e que se impunha atendendo às características do local e tempo, factores que bem conhecia e que deste modo agiu livre, voluntária e conscientemente;
35 - Foi o arguido assim, acusado da prática de um crime de incêndio florestal na forma negligente, sendo certo que, ao analisarmos o preceito legal em causa, o art. 274º, nº1, 4 e 5 do C.P., facilmente concluímos que estão descritos na acusação todos os elementos objectivos e subjectivo do ilícito em causa, sendo ainda de notar que diferentemente do que é referido no art. 272º do CP em que se exige que seja um incêndio de relevo, no art. 274º apenas é feita menção a incêndio, sendo certo que no entanto, atendendo á área ardida, aos meios utilizados necessários para debelar o fogo, sendo precisos 9 corporações e ao perigo para diversas habitações e pessoas que ali residiam, se entenderia, de qualquer modo que se trataria de um incêndio de relevo, mas como já referimos, o preceito não o exige;
36 - Não temos dúvida de que temos o tal “mais” referido no Ac. Citado pela Mmª Juiz no despacho proferido, quer pela área ardida, quer pelos meios utilizados que foram necessários, quer ainda pelo perigo causado;
37 - Por conseguinte, o Ministério Público, e bem acusou o arguido da prática de um crime de incêndio florestal, nos exactos termos em que o fez, pois que, além de estarem na acusação todos os factos necessários para o preenchimento deste tipo legal de crime e portanto a acusação, não poder de modo algum ser considerada manifestamente infundada, pois que descreve factos que integra a prática de um crime, também não poderia a Mmª Juiz fazer a análise que fez, neste momento, diferentemente do Ministério Publico, com base num entendimento jurisprudencial, que como já demonstramos até a acusação está conforme e, portanto, ainda para mais, salvo o devido respeito, fez, não só, uma análise que não podia fazer , como o fez de modo errado;
38 - Deste modo, deveria a Mmª Juiz de ter recebido a acusação nos seus precisos termos e não ter rejeitado a acusação e determinado o oportuno arquivamento dos autos, como fez, e ao não o fazer violou o disposto no art. 274º nº 1, 4 E 5 do C.P. e arts 283º, 311º e 312º do C.P.P., pelo que deve o despacho que ora se recorre ser revogado e substituído por outro que receba a acusação deduzida nos seus precisos termos e designe dia para julgamento.
Nestes termos deve ser dado provimento
ao recurso, revogando-se o despacho recorrido.
*
I.3.1. Resposta do Arguido (conclusões que se reproduzem integralmente).
A) O Douto Despacho, verdadeira Sentença, não padece de qualquer nulidade tendo decidido bem quer de facto quer de Direito;
B) O Ministério Público deduziu Acusação nos presentes autos contra AA, imputando-lhe a prática, de um crime de incêndio florestal, p. e p. pelo art.274º nºs 1, 4 e 5 do C.Penal;
C) O Douto Despacho tendo em atenção os factos que lhe foram levados pela Acusação – de acordo com o Princípio do Acusatório – mas “temperando” o mesmo com a aplicação dos Princípios do in dubio pro reu, da aplicação da Lei Penal Mais Favorável, e da Força Jurídica, decide, e bem, que a actuação do Arguido seria eventualmente, e apenas, susceptível de ser integrada no art.39º do DL 310/2002 de 18 de Dezembro, que poderia fazer o Arguido incorrer em responsabilidade contraordenacional (art.47º do mesmo diploma legal), para cuja apreciação e decisão são responsáveis as entidades administrativas;
D) Ora, os factos indiciários vertidos na Acusação não constituindo tal crime, a única consequência legalmente prevista é a da rejeição da Acusação, o que, e bem, o Despacho decidiu;
E) É também entendimento do Recorrido que a factispécie típica ilícita e culposa do crime de incêndio florestal face aos factos constantes da Acusação não se encontra preenchida;
F) É importante ter presente o decidido no Acórdão do Tribunal de Apelação de Lisboa de 30/01/2007, Proc. nº 10221/2006-5, bem como no Acórdão do Tribunal da Relação do Porto de 27/06/2012, Proc. nº 581/10.0GDSTS.P1, ambos em www.dgsi.pt;
G) A verdade do processo penal ter uma estrutura acusatória não é limite aos Poderes nem cognitivos nem decisórios do Juiz, dado que tal a ocorrer prejudicaria e violaria o Princípio do Direito a Julgamento Equitativo, que vincula as partes e o próprio Tribunal, nomeadamente o n.º 4 do artigo 20.º, n.º 1 e n.º 6 do artigo 29.º e n.º 1, n.º 4, n.º 5 e n.º 10 do artigo 32.º, todos da Constituição da República Portuguesa;
H) O Douto Acórdão proferido pelo Venerando Tribunal da Relação de Évora, proferido no dia 23/02/2016, in www.dgsi.pt, no qual foi Relator o Exmo. Sr. Desembargador João Gomes de Sousa, decidiu que, legalmente, “o que é fogo,
fogueira, queima e queimada não é incêndio”;
I) A Acusação indicia a realização de uma fogueira, não de um incêndio, sendo essa a razão pela qual se concorda com o fundamento de rejeição da Acusação, pois concorda-se que esses mesmos factos não têm a virtualidade da demonstração da existência de responsabilidade criminal do Arguido;
J) Por último, analise-se o Acórdão de Fixação de Jurissprudência n.º 1/2015, publicado in Diário da República n.º 18, Série I, a 27 de Janeiro de 2015;
K) Em face de tudo quanto foi exposto, cabe concluir pela falta manifesta,
completa e absoluta de fundamento do presente Recurso que, assim, deve ser
julgado Improcedente.
Nestes termos e nos demais de Direito, deverá o presente Recurso
ser julgado Improcedente, por não provado, e, em consequência, ser
Confirmada a Decisão do Despacho proferida pelo Tribunal
recorrido, com todos os efeitos legais.
*
I.4. Parecer do MºPº junto da Relação pugnou pela procedência do
recurso.
O arguido respondeu ao aludido Parecer dizendo que discorda
totalmente do mesmo e pugna pela manutenção do despacho recorrido.
*
I.5. Mantêm-se verificados e válidos todos os pressupostos processuais
conducentes ao conhecimento do recurso, ao qual foram, também, correctamente
fixados o efeito e o regime de subida.
*
II - Cumpre apreciar e decidir:
O objecto do recurso está limitado pelas conclusões apresentadas pelo
recorrente (cfr. Acórdão do STJ, de 15/04/2010, in http://www.dgsi.pt), sem prejuízo
da eventual necessidade de conhecer oficiosamente da ocorrência de qualquer dos vícios a que alude o artigo 410º, do Código de Processo Penal nas decisões finais (conhecimento oficioso que resulta da jurisprudência fixada no Acórdão nº 7/95, do STJ, in DR, I Série-A, de 28/12/95).
São as conclusões da motivação que delimitam o âmbito do recurso. Se ficam aquém a parte da motivação que não é resumida nas conclusões torna-se inútil porque o tribunal de recurso só pode considerar as conclusões e se vão além também não devem ser consideradas porque são um resumo da motivação e esta é inexistente (neste sentido, Germano Marques da Silva, Direito Processual Penal Português, Vol. 3, 2015, págs. 335 e 336).
O recorrente MINISTÉRIO PÚBLICO suscita as seguintes questões para apreciação:
- a de saber, se no momento em que é feito, ou não o recebimento da acusação, art. 311º do C.P.P., quais os motivos em que a mesma pode ser rejeitada por se considerar manifestamente infundada, sendo que quando o juiz rejeita a acusação por manifestamente infundada considerando que os factos não constituem crime mediante uma interpretação divergente de quem deduziu essa acusação viola o princípio acusatório;
- e se no caso concreto se constata ou não uma objectiva, inequívoca e
incontroversa inexistência de factos que sustentem a imputação criminal efectuada
na acusação.
*
Vejamos, então, a primeira questão suscitada.
A acusação, através de um concreto enunciado (que evidencia o que
designaremos de fenótipo legal de crime) origina um sistema de lógica combinada  (que classificamos como genótipo legal de crime) onde reside o intransponível limite estabelecido - o objecto do processo.
Tal limite impede, nas situações em que o julgador adquire factos distintos daqueles constantes da narrativa acusatória, a condenação do arguido pela prática de tipo legal de crime diverso ou pela prática do tipo legal de crime imputado agravado (artigos 1º, alínea h), e 359º, nº1, do Código de Processo Penal), casos em que os novos factos não respeitam o sistema de significação estabelecido na acusação (por versarem crime axiologicamente diverso ou crime axiologicamente idêntico associado a um grau de censura agravado) comprometendo, de forma categórica, o exercício do direito de defesa do arguido.
Por idêntico motivo é permitida a livre qualificação jurídica dos factos transportados pela acusação, mesmo que tal operação agrave o limite máximo da sanção aplicável uma vez que a mesma não interfere com o referido sistema de representações, de lógica combinada, não altera o genótipo legal de crime (artigos 339º, nº4, e 358º, nº3, do Código de Processo Penal). Neste caso, apenas caberá salvaguardar, através da sua comunicação antecipada aos sujeitos processuais, a possibilidade do exercício do contraditório (no particular caso do arguido, o princípio da audiência e de defesa, “técnica”, na expressão de Maria João Antunes [Direito Processual Penal, Almedina, 2016, pág.190]).
Nos termos do artigo 32.º da Constituição Política da República Portuguesa:
1 - O processo criminal assegura todas as garantias de defesa, incluindo o recurso.
(...)
5 - O processo criminal tem estrutura acusatória, estando a audiência de julgamento e os atos instrutórios que a lei determinar subordinados ao princípio do contraditório.
Isto significa que a acusação e o julgamento têm que estar sedeados em órgãos diferentes: em ordem a conciliar o interesse público da perseguição criminal e as exigências da imparcialidade, isenção e objetividade do julgamento, a investigação e acusação, por um lado, e o julgamento, por outro, terão que caber a entidades diferentes. Quem acusa não julga e quem julga não pode acusar.
Deste mesmo princípio decorre outra consequência: a de o poder de cognoscibilidade do juiz estar delimitado pelo conteúdo da acusação, sendo esta que determina o objeto do processo. É o chamado princípio da vinculação temática.
"O princípio acusatório” (n.º 5, 1.ª parte) é um dos princípios estruturantes da constituição processual penal. Essencialmente, ele significa que só se pode ser julgado por um crime precedendo acusação por esse crime por parte de um órgão distinto do julgador, sendo a acusação condição e limite do julgamento. Trata-se de uma garantia essencial do julgamento independente e imparcial. Cabe ao tribunal julgar os factos constantes da acusação e não conduzir oficiosamente a investigação da responsabilidade penal do arguido (princípio do inquisitório).
A «densificação» semântica da estrutura acusatória faz-se através da articulação de uma dimensão material (fases do processo) com uma dimensão orgânico-subjectiva (entidades competentes). Estrutura acusatória significa, no plano material, a distinção entre instrução, acusação e julgamento; no plano subjectivo, significa a diferenciação entre juiz de instrução (órgão de instrução) e juiz julgador (órgão julgador) e entre ambos e órgão acusador.
O princípio da acusação não dispensa, antes exige, o controlo judicial  da acusação de modo a evitar acusações gratuitas, manifestamente inconsistentes, visto que a sujeição a julgamento penal é, já de si, um  incómodo muitas vezes oneroso e não raras vezes um vexame. Logicamente, o princípio acusatório impõe a separação entre o juiz que controla a acusação e o juiz de julgamento (cf. Acs TC n.ºs 219/89 e 124/90)." e J. J. Gomes
Canotilho/Vital Moreira, Constituição da República Portuguesa
“... regendo-se o processo penal pelos princípios do acusatório e do contraditório, a necessidade de uma tal demarcação tem subjacentes duas ordens de fundamentos: - um, inerente ao objectivo imediato (....): a comprovação judicial da pretensa indiciação (que, para que se possa demarcar o âmbito do objecto específico desta fase do processo e para que o arguido se possa defender, tem que reportar-se a imputação de factos concretos delimitados); - e, outro, implícito a uma finalidade mediata, mas essencial no caso de se vir a decidir pelo prosseguimento do processo para julgamento: a demarcação do próprio objecto do processo, reflexo da sua estrutura acusatória com a correspondente vinculação temática do Tribunal, que, por sua vez, na medida em que impede qualquer eventual alargamento arbitrário daquele objecto, constituindo uma garantia de defesa do arguido, possibilita a esta a preparação da defesa, assim salvaguardando o contraditório.” (Ac. RL de 19/10/2006, Rec. 7143.06, 9ª Secção).
Dispõe o art. 311º do Código de Processo Penal:
«1. Recebidos os autos no tribunal, o presidente pronuncia-se sobre as nulidades e outras questões prévias ou incidentais que obstem à apreciação do mérito da causa, de que possa desde logo conhecer.
2. Se o processo tiver sido remetido para julgamento sem ter havido instrução, o presidente despacha no sentido:
a) De rejeitar a acusação, se a considerar manifestamente infundada;
b) De não aceitar a acusação do assistente ou do Ministério Público na parte em que ela representa uma alteração substancial dos factos, nos termos do nº1 do artigo 284º e do nº4 do artigo 285º, respectivamente.
3. Para efeitos do disposto no número anterior, a acusação considera-se
manifestamente infundada:
a) Quando não contenha a identificação do arguido;
b) Quando não contenha a narração dos factos;
c) Se não indicar as disposições legais aplicáveis ou as provas que a fundamentam; ou
d) Se os factos não constituírem crime.»
As situações previstas nas alíneas a), b) e c) do nº 3 referido (quando a acusação não contenha a identificação do arguido; não contenha a narração dos factos ou não indique as disposições legais aplicáveis ou as provas que a fundamentam) não suscitam grandes dúvidas sobre o seu conteúdo e configuram casos de nulidade da acusação.
A alínea d) do nº 3 do artigo 311º do Código Processo Penal não se mostra de tão fácil identificação, referindo a lei “se os factos não constituírem crime”;
E, os factos só não constituirão crime quando seja apresentada uma insuficiente descrição fática ou a conduta imputada ao agente não revista relevância penal. Este fundamento, como refere Paulo Pinto de Albuquerque, in Comentário do Código de Processo Penal, pág. 779 “só pode ser aferido diante do texto da acusação, quando faltem os elementos típicos objectivos e subjectivos de qualquer ilícito criminal da lei penal Portuguesa” ;
Para que o juiz possa rejeitar a acusação é necessário que os factos descritos não constituam inequivocamente crime; o entendimento divergente das várias correntes seguidas pela jurisprudência, não se basta para o efeito.
“Ou seja só e apenas quando de forma inequívoca os  factos que constam na acusação não revistam relevância  penal é que o Tribunal pode declarar a acusação  manifestamente infundada e rejeitá-la.
E os factos não constituem crime quando, entre outras situações, se verifica uma qualquer causa de extinção do procedimento ou se a factualidade em causa não consagra de forma inequívoca  qualquer conduta tipificadora do crime imputado.
Sublinhe-se que este juízo tem que assentar numa constatação objectivamente inequívoca e incontroversa da inexistência de factos que  sustentam a imputação efectuada. Não se trata, nem se pode tratar de um juízo  sustentado numa opinião divergente, por muito válida que seja. Só assim,  numa interpretação tão restritiva se assegura o princípio do acusatório, na vertente referenciada.”. – Ac. da RC de 25/3/2010, Proc. nº 127/09.3SAGRD.C1 -.
Passemos, então à segunda questão; aquela que verdadeiramente importa para a boa decisão dos presentes autos de Recurso.
Será que a acusação proferida nos presentes autos não consagra de forma inequívoca qualquer conduta tipificadora do crime imputado? É o que defende e se decidiu no despacho recorrido.
Julgamos, desde já, que o conclui/defende/decide sem razão.
O Ministério Público deduziu acusação nos presentes autos contra AA, imputando-lhe a prática, de um crime de incêndio florestal, p. e p. pelo art.274º nºs 1, 4 e 5 do C.Penal.
Estatui o art. 274º do Código Penal, no que aqui interessa, que:
Quem provocar incêndio em terreno ocupado com floresta, incluindo matas, ou pastagem, mato, formações vegetais espontâneas ou em terreno agrícola, próprios ou alheios, é punido com pena de prisão de 1 a 8 anos (nº1).
Se a conduta prevista no n.º 1 for praticada por negligência, o agente é punido com pena de prisão até três anos ou com pena de multa (nº4).
Se a conduta prevista no número anterior for praticada por negligência grosseira ou criar perigo para a vida ou para a integridade física de outrem, ou para bens patrimoniais alheios de valor elevado, o agente é punido com pena de prisão até cinco anos (nº5).
Da acusação constam, designadamente, os seguintes factos:
No dia 19 de Agosto de 2018, pelas 18h30/18h45, o arguido encontrava-se num terreno baldio composto de caniçais, silvados, ervas anuais e hortas sito nas traseiras do lote ………, na Estrada Militar, Frielas concelho de Loures, onde explorava uma horta e que confina com um talude.
Naquela ocasião o arguido fez uma fogueira a fim de confecionar uma refeição, contudo, face ao vento, ao tempo quente, à acentuada inclinação do talude e à presença de ervas secas por via da regeneração natural das espécies e que constituíam fonte de combustível e material altamente inflamável com a aproximação de uma chama, as chamas da fogueira propagaram-se para além da mesma, numa área de 2 hectares, queimando caniçais, silvas, mato, ervas e hortas que aí existiam, designadamente uma pertença de BB.
(...)
O arguido tinha conhecimento das condições climatéricas que se verificavam bem como das características do terreno, do que nele se encontrava e das suas características inflamáveis bem como dos terrenos contíguos e da proximidade de habitações e de que existiam pessoas no seu interior.
Ao proceder da forma temerária supra descrita, o arguido foi o único responsável pela propagação das chamas e pela destruição, pela queima, dos caniçais, ervas anuais, silvados, mato e hortas, actuando com manifesta imprudência, irresponsabilidade e leviandade e omitindo os especiais deveres de cuidado inerentes ao uso do fogo que sobre si recaíam e de que era capaz, aos quais sabia estar obrigado e que no caso se impunham observar, atentas as circunstâncias e características do local e do tempo que se fazia sentir e que bem conhecia.
De modo a evitar um resultado que podia e devia ter previsto mas que não configurou como possível, o arguido podia e devia ter omitido a realização da fogueira, tanto mais que sabia no verão é proibido o uso do fogo em áreas idênticas bem como que em terreno inclinado, rodeado por vegetação, alguma já seca por via da regeneração natural das espécies, em dia quente e seco, existia no local material altamente inflamável com a aproximação de uma chama e que facilmente se propagaria, colocando em risco as habitações e a vida e integridade física de terceiros.
Os bens jurídicos protegidos pela incriminação são a vida, a integridade física
e o património de outrem, a que acresce a tutela do próprio ecossistema florestal.
Os tipos objetivos de incêndio florestal consistem em:
(i) Provocar incêndio em terreno ocupado com floresta, incluindo matas, ou pastagem, mato, formações vegetais espontâneas ou em terreno agrícola, próprios ou alheios (nº 1);
(ii) Provocar incêndio em tais terrenos, próprios ou alheios, desse modo criando perigo para a vida ou para a integridade física de outrem ou para bens patrimoniais alheios de valor elevado (nº 2);
(iii) Impedir o combate a incêndio, ação pela qual o agente impossibilita, dolosamente e durante um período de tempo significativo, a atuação dos meios de combate (nº 6);
(iv) Dificultar a extinção do incêndio, designadamente destruindo ou tornando inutilizável o material destinado ao seu combate, ação pela qual o atrasa, diminui a sua eficácia ou o impossibilita, dolosamente e durante um determinado lapso temporal (nº 7) .
Para a realização do tipo previsto no nº 1 mostra-se suficiente a ação de causar incêndio, pelo que o crime consuma-se independentemente da criação de uma situação de perigo concreto para um bem jurídico, configurando um crime de perigo abstrato e doloso, sob qualquer modalidade de dolo.
Nos termos do n° 4 deste preceito legal, “se a conduta prevista no n° 1 for praticada com negligência, o agente é punido com prisão até três anos ou com pena de multa”, ora se prevendo um crime negligente, sob qualquer modalidade de negligência, consagrada no artº 15º do Código Penal.
Caso se verifique negligência grosseira, no sentido da especial aptidão ou perigo intolerável de ocorrência do resultado, o nº 5, 1ª parte, eleva a pena até cinco anos de prisão.
O despacho recorrido estriba-se no Acórdão do TRE de 23-02-2016 (a referência a 2013 será certamente lapso), relatado pelo Exmo. Sr. Desembargador João Gomes de Sousa, que concluiu que “para o tipo penal do artigo 274º, o incêndio florestal, são essenciais os conceitos de «atear fogo» e «incêndio». O atear fogo será um dos elementos que delimita negativamente o tipo penal. Quem ateia fogo não causa, ipso facto, incêndio. O tipo penal exige um mais! Por isso que se imponha determinar em termos de facto se estamos perante atear fogo ou se já estamos perante incêndio, tendo presente que será a tónica do excesso que delimitará os dois conceitos.”
No caso subjudice está o arguido acusado de ter feito uma fogueira (como acontecia no acórdão em que se estriba o despacho recorrido)? Não! O arguido está acusado de ter feito uma fogueira e, consequentemente, ter provocado um incêndio. Arderam descontroladamente 2 hectares (20 mil metros).
O tal “mais” que se exige e que não estava nos factos dados como provados no aludido acórdão do TRE, estão claramente presentes no caso subjudice.
Note-se que na acusação é referido que o que foi debelado pelos diversos bombeiros foi um fogo, não uma mera fogueira e que foi esse fogo provocado de forma negligente pelo arguido que fez arder 2 hectares, que exigiu a intervenção de 9 corporações de bombeiros e que colocou em perigo várias habitações de modo que foi ordenado pela PSP que as pessoas saíssem de casa até o fogo estar debelado, e essa conduta, sem qualquer margem para dúvidas faz o arguido incorrer na prática de um crime (aquele por que vem acusado), não de uma contra-ordenação.
Na acusação, concretamente no seu art. 1º e 2º é exposto as circunstâncias de tempo e lugar, características do local, condições climatéricas, e motivo de o arguido inicialmente ter realizado uma fogueira que foi com vista a confeccionar uma refeição nesse local e que nesse seguimento queimou caniçais, silvas, mato, ervas e hortas ali existentes , e seguidamente, no seu art. 3º é referido que o arguido com a sua conduta, que havia sido descrita, em que estavam portanto a arder, caniçais, mato, ervas e hortas, deslocaram-se ao local para debelar o fogo, 9 equipas de bombeiros , das várias corporações aí enunciadas, totalizando 81 bombeiros, e que necessitavam de 4 h para debelar o fogo com a ajuda de carros-bomba;
É referido ainda no ponto 4º que o fogo se dirigia na direcção de várias habitações, que ficaram deste modo em perigo e portanto foi ordenado pela PSP a evacuação das mesmas até o fogo ser extinto e que o arguido tinha conhecimento das condições climatéricas da altura, bem como das características do terreno e das suas características inflamáveis bem como dos terrenos contíguos e ainda da proximidade das habitações e de que existiam pessoas no seu interior, sendo assim discriminadas todas as condições ou factores que estiveram implicados na propagação deste fogo;
É ainda referido na acusação que o arguido foi o único responsável pela propagação das chamas e pela destruição de tudo o que se encontra discriminado no art. 7º da acusação e que actuou com manifesta imprudência, irresponsabilidade e leviandade, omitindo os especiais deveres de cuidado inerentes ao uso do fogo que sobre si recaiam e que tinha capacidade de prever e que estava obrigado a fazê-lo e que se impunha atendendo às características do local e tempo, factores que bem conhecia e que deste modo agiu livre, voluntária e conscientemente;
Foi o arguido assim, acusado da prática de um crime de incêndio florestal na forma negligente, sendo certo que, ao analisarmos o preceito legal em causa, o art. 274º, nº1, 4 e 5 do C.P., facilmente concluímos que estão descritos na acusação todos os elementos objectivos e subjectivo do ilícito em causa,  sendo ainda de notar que diferentemente do que é referido no art. 272º do CP em que se exige que seja um incêndio de “relevo”, no art. 274º apenas é feita menção a incêndio, sendo certo que no entanto, atendendo à área ardida, aos meios utilizados necessários para debelar o fogo, sendo precisos 9 corporações e ao perigo para diversas habitações e pessoas que ali residiam,  se entenderia, de qualquer modo que se trataria de um incêndio de relevo, mas  o preceito não o exige.
Tudo isto para concluirmos que o arguido não está acusado de ter feito uma fogueira; está acusado de ter feito uma fogueira e de, com o seu comportamento (negligência grosseira) ter provocado um fogo em 2 hectares de terreno.
Não temos dúvida que temos o tal “mais” referido no Ac. Citado pela Mmª Juiz no despacho recorrido, quer pela área ardida, quer pelos meios utilizados que foram necessários, quer ainda pelo perigo causado.
Tudo para concluirmos que o Ministério Público, e bem acusou, o arguido da prática de um crime de incêndio florestal, nos exactos termos em que o fez, pois que, se encontram na acusação todos os factos necessários para o preenchimento do tipo legal de crime.
Logo, a acusação, não pode, de modo algum, ser considerada manifestamente infundada, pois que descreve factos que integram a prática de um crime.
E, assim, sendo, deveria a Mmª Juíza ter recebido a acusação nos seus precisos termos e nunca tê-la rejeitado e determinado o oportuno arquivamento dos autos, como fez.
E ao não o fazer violou o disposto no art. 274º nº 1, 4 E 5 do C.P. e arts 283º, 311º e 312º do C.P.P., pelo que se determina a revogação do despacho recorrido e a sua substituição por outro que receba a acusação deduzida nos seus precisos termos e designe dia para julgamento.
*
III. DISPOSITIVO
Nos termos expostos, concede-se provimento ao recurso e em consequência
revoga-se o despacho recorrido, devendo ser substituído por outro que, ao abrigo
dos arts. 311º e 312º do CPP, ordene o recebimento da acusação e a designação de
data para julgamento.
Sem Custas.
D.N.
*
Lisboa, 7 de Outubro de 2021
Paula Cristina Jorge Pires
Maria José Caçador
Decisão Texto Integral: