Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
1038/19.0T9LRS-A.L1-9
Relator: CALHEIROS DA GAMA
Descritores: VIOLÊNCIA DOMÉSTICA
DECLARAÇÕES PARA MEMÓRIA FUTURA
JUSTIFICAÇÃO DE FALTA A ACTO URGENTE
NOVOS DOCUMENTOS JUNTOS COM O RECURSO
PANDEMIA DA COVID 19-DOENTES DE RISCO
SITUAÇÃO DE EMERGÊNCIA/CALAMIDADE
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 10/01/2020
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Texto Parcial: N
Meio Processual: RECURSO PENAL
Decisão: NÃO PROVIDO
Sumário: I-Os documentos juntos em sede de recurso pelo recorrente deverão ser juntos ainda na primeira instância, para que aí possam ser apreciados e considerados aquando da prolação da decisão de que agora se vem recorrer, e não sendo invocado justo impedimento para tal junção tardia, os mesmos não podem ser considerados em sede recursal ;
II-Quer nos estados de emergência (com medidas mais restritivas de circulação de pessoas), quer nos de calamidade pública, ( artigo 25.º-A, quer do Decreto-Lei n.º 20/2020, de 1 de maio, quer do Decreto-Lei n.º 10-A/2020, de 13 de março- relativos a faltas ao trabalho) as medidas excecionais e temporárias aprovadas de resposta à situação epidemiológica provocada pelo coronavírus SARS-CoV-2 e da doença COVID-19, sempre excluíram do confinamento obrigatório, com proibição de saída do domicílio, as comparências em tribunal em situações urgentes como a dos presentes autos( declarações para memória futura em processo de violência doméstica), salvo se o interveniente processual comprovar atempadamente que sofre de doença ou estado de saude que implique um risco acrescido de agravamento do estado de saúde e mesmo de morbilidade, caso houvesse nessa deslocação a juízo um risco de ser contaminada com o novo coronavírus SARS-CoV-2, como seja pessoas idosas, doentes imunodeprimidos com compromisso do seu sistema imunitário, doentes crónicos, entre os quais figuram os doentes cardiovasculares, ou seja doentes de risco, coisa que não sucedeu no caso em apreço, não tendo sido junto atempadamente (ou não) comprovativo médico de tal estado.
Decisão Texto Parcial:
Decisão Texto Integral: Acordam, em conferência, na 9a Secção (Criminal) do Tribunal da Relação de Lisboa:

I – Relatório
1. No âmbito do processo de inquérito com o NUIPC 1038/19.0T9LRS, a correr termos nos serviços do Ministério Público da Procuradoria da República da Comarca de Lisboa Norte - Departamento de Investigação e Acção Penal – 5ª Secção de Loures, em que se investigam, com natureza urgente, factos susceptíveis de integrarem a prática de crimes de violência doméstica agravados,  no dia 6 de julho de 2020 e ao início da diligência para tomada de declarações para memória futura à menor ofendida JJ, foi constatado não estar a mesma presente, bem como faltar MM, mãe da referida criança, tendo a Mmª Juíza do Tribunal Judicial da Comarca de Lisboa Norte – Juízo de Instrução Criminal de Loures – Juiz 2, declarada aberta a mencionada diligência e de imediato proferido o seguinte despacho (como resulta da respetivo Auto de fls. 305 e seguinte do processo principal, com certidão a fls. 9 e seguintes dos presentes autos em separado):
“Pese embora a alegação por parte da ilustre advogada da ofendida MM que esta não pode comparecer por causa do confinamento obrigatório decorrente do covid 19 e da menor ter problemas cardíacos consigna-se que a situação de confinamento não prevalece perante convocatória para a prática de atos judicial em processo de inquérito de natureza urgente e que relativamente à menor não existe nenhum comprovativo médico que ateste de alguma forma a existência dos alegados problemas cardíacos sendo certo que a Ilustre advogada não representa legalmente a menor declarante.
Uma vez que nesta data a menor não compareceu e sendo certo que não existe nenhuma imposição de ser a própria ofendida MM a acompanhar a menor a este Tribunal uma vez que a mesma pode ser trazida por alguém da sua confiança e mediante a autorização da mesma e atento o já referido condena-se MM pela falta injustificada a esta diligência numa multa de 2UC's nos termos dos artigos 116.° e 117.° do Cód. Proc. Penal que são aplicáveis também a esta diligência em concreto.
Por se afigurar que a ofendida continuará a inviabilizar a tomada de declarações à menor e uma vez que os autos de inquérito são da titularidade do Ministério Público determina-se a devolução dos mesmos ao Ministério Público para requerer o que tiver por conveniente.” (fim de transcrição).
2. MM, inconformada com a mencionada decisão, interpôs recurso extraindo da sua motivação as seguintes conclusões:
“1 — A Queixosa e mãe da menor ofendida discorda do despacho de aplicação da multa de 102,00 euros.
2 — A sua mandatária requereu a alteração da data da inquirição para memória futura agendada para 06/07/2020 às 15h tendo em conta que a mandatária se encontrava doente e impossibilitada de comparecer, pelo que invocou Justo Impedimento, e juntou atestado médico que dá como integralmente reproduzido, sendo que também requereu a alteração da outra audiência marcada para o mesmo dia e hora, sendo que a queixosa tem direito a manter o patrocínio na mandatária escolhida.
3 — Informou que a queixosa também não poderia comparecer por se encontrar em confinamento obrigatório por causa do Covid-19 e a menor tem problemas cardíacos, uma morbilidade que tem como risco de agravamento do estado de saúde, nos termos do DL 20/2020 de 1 de Maio e DL 10A/2020 13 Março artigo 25-A, e o facto de ter de se deslocar em transportes públicos existe na possibilidade de vir a contrair Covid 19, sendo que residem ambas em Odivelas, localidade onde foi decretado o confinamento obrigatório por causa do Covid-19 e o estado de Calamidade.
4 — Pelo que justificou a sua não comparência e da menor antes da diligência e a queixosa invocou Justo Impedimento e a menor ter um grave e legítimo impedimento de estar presente, por motivo de doença.
5 — Aplicação da multa é injusta e não tem fundamento.
6 — Acresce que a queixosa aufere o salário mínimo, e tem a menor a seu cargo, pelo que 102,00 euros é uma parte considerável do seu ordenado que vão ser necessários à sua subsistência e da menor.
7 — Do exposto, deve ser anulada a aplicação da multa absolvendo a queixosa da mesma.
8 — Deve assim ser admitido, procedente por provado o presente recurso e queixosa absolvida da aplicação da multa.
Nestes termos e nos mais de Direito, que V.Exa. mui doutamente suprirá, deve ser admitido, procedente por provado o presente recurso e queixosa absolvida da aplicação da multa e anulada a multa.” (fim de transcrição).
3. Foi proferido despacho judicial admitindo o recurso, como se alcança de fls. 349 dos autos principais (fls. 15 do presente recurso em separado).
4. Respondeu o Ministério Público extraindo da sua motivação as seguintes conclusões:
"Concluindo, dir-se-á, pois, que:
1. A queixosa MM, inconformada com o despacho datado de 06/07/2020, que lhe determinou a aplicação de uma multa processual de 2 UC's, veio dele interpor recurso.
2. A Motivação apresentada pela Recorrente e respectivas Conclusões (consabidamente delimitadoras do objecto do recurso) avançam, em síntese, que a sua falta de comparência, na diligência de tomada de declarações para memória futura da menor JJ, agendada para 06/07/2020, às 15h00, se encontrava devidamente justificada.
3. Para o efeito, invocou ter alegado, de forma tempestiva, justo impedimento, por se encontrar em confinamento obrigatório por causa da Covid-19, nos termos do Decreto-lei n.º 20/2020, de 1 de Maio e Decreto-lei n.º 10-A/2020, de 13 de Março, artigo 25.º-A e a menor padecer de problemas cardíacos, bem como pelo facto da sua mandatária se encontrar doente e ter requerido o adiamento da diligência;
4. Não tem razão a Recorrente.
5. No presente inquérito investigam-se factos susceptíveis de integrar a prática de um crime de violência doméstica agravado, p. e p. pelo artigo 152.º, n.º 1, al. c) e n.º 2, al. a) e de um crime de violência doméstica agravado, p. e p. pelo artigo 152.º, n.º 1, alínea d) e n.º 2, alínea a), do Código Penal, o qual, nos termos do disposto no artign 28.º da Lei n.º 112/2009, de 16 de Setembro, reveste natureza urgente.
6. O Ministério Público, entre o mais, requereu a tomada de declarações para memória futura da menor ofendida em moldes presenciais, nos termos do disposto no artigo 7.º, n.º 7, alínea b) da Lei n.º 1-A/2020, de 19 de Março, sendo inviável o recurso a meios à distância (cfr. alínea a) do mesmo preceito), que aportava evidentes prejuízos em termos de imediação, pois que as declarações para memória futura visam uma antecipação da prova a produzir em audiência de julgamento, pelo que tais meios de comunicação à distância reduziriam ainda mais a proximidade do juiz de julgamento com a produção de prova.
7. A diligência foi agendada por 6 (seis) vezes e adiada por 5 (cinco), três das quais devido a impedimento da mandatária da Recorrente:
7.1. 09/03/2020 (adiada por impedimento da mandatária da Recorrente);
7.2. 16/03/2020 (adiada no âmbito do teor da divulgação do CSM nº 69/2020 de 11. de Março de 2020 e o aditamento à mesma de 12 de Março de 2020 que estabeleceram medidas excepcionais de gestão referentes à realização de actos e diligências processuais mercê do estado de emergência de saúde pública decorrente do Coronavírus (SARS-Cov-2 e COVI D19);
7.3. 20/04/2020 (adiada até cessação da situação excepcional de prevenção, contenção, mitigação e tratamento da infecção epidemiológica por SARS-Cov-2 e da doença Covid-19);
7.4. 20/05/2020 (adiada por impedimento da mandatária da Recorrente);
7.5. 17/06/2020 (adiada por impedimento da mandatária da Recorrente);
7.6. 06/07/2020 (não tendo sido realizada devido à falta de comparência da menor, da sua mãe - recorrente e da mandatária desta última).
8. Considerando os sucessivos adiamentos, nomeadamente, mercê da pandemia e atenta natureza urgente dos autos, por despacho datado de 17/06/2020, que designou a data de 06/07/2020, foi solicitada a colaboração da mandatária impossibilitada no sentido de, casu se mantivesse a sua impossibilidade, se fazer representar, se assim o entendesse, por outro colega
na diligência de modo a evitar novo adiamento, o que aquela não tez.

9. Posteriormente, por despacho datado de 30/06/2020, devidamente notificado à ilustre mandatária, foi esta esclarecida que lei impõe que as diligências que envolvam recolha de depoimentos de testemunhas sejam presenciais, mas no caso dos advogados com comprovados problemas de saúde, os mesmos podem ter intervenção à distância e designadamente através do sistema WEBEX, pelo que deveria a Ilustre Advogada, caso assim o pretendesse, comprovar a sua situação clínica impeditiva da sua intervenção presencial e requerer a sua intervenção através de tal sistema.
10. Não obstante, a Ilustre advogada da Recorrente limitou-se a apresentar nova declaração médica comprovativa do seu estado de saúde e a solicitar novamente o adiamento da diligêcia.
11. No entanto, tal requerimento não foi deferido e a Recorrente, apesar de devidamente notificada, não compareceu, nem fez comparecer a menor JJ, inviabilizando a realização da diligência.
12. Acresce que, a existir eventual impedimento, que não existia, seria da mandatária da Recorrente e não desta última.
13. A presença da ilustre advogada, que nem sequer representa a menor, não é imprescindível e muito menos obrigatória, termos em que nem sequer o seu impedimento obstaculizava a comparência da Recorrente.
14. Por outro lado, a condição clínica da menor — a qual apenas foi comprovada, de forma extemporânea, em sede de recurso — que não impede a sua deslocação, não pode, de qualquer mudo, servir de fundamento para a riu realização da diligência, caso contrário, atento o cenário de incerteza que esta pandemia apresenta, a diligência pretendida teria de ser adiada sine die, o que é manifestamente incompatível com a natureza urgente dos presentes autos;
15. Assim, a falta de comparência da Recorrente não se mostra devidamente justificada;
16. Dispõe o artigo 116.°, n.° 1 do Código de Processo Penal que «Em caso de falta injustificada de comparecimento de pessoa regularmente convocada ou notificada, no dia, hora e local designados, o juiz condena o faltoso ao pagamento de uma soma entre 2 UC e 10 UC».
17. Em suma, o despacho recorrido de aplicação de multa processual por falta injustificada da Recorrente não merece qualquer censura, devendo manter-se nos seus precisos termos.
Nestes termos e nos mais de Direito que V. Exas. não deixarão de doutamente suprir,
Deve o recurso apresentado por MM ser julgado totalmente improcedente, por não provado, mantendo-se o despacho sindicado nos seus precisos termos.
Assim decidindo, farão V. Exas. a costumada JUSTIÇA." (fim de transcrição).
5. Subidos os autos, a Exma. Procuradora-Geral Adjunta teve neles “Vista” e emitiu o seguinte parecer:
 “MM interpôs a 27 de julho de 2020 recurso do despacho proferido a 6 de julho de 2020, que a condenou na multa de 2UCS, por falta de comparência da sua filha menor, JJ à diligência designada de declarações para memória futura.
O Ministério Público junto da 1ª instância respondeu ao recurso, defendendo a sua improcedência e a consequente manutenção do decidido.
Aderimos aos seus fundamentos.
Acresce que, na data da diligência em apreço, 6 de julho de 2020, a União das Freguesias de Ramada e Caneças e Odivelas, do concelho de Odivelas estava abrangida pela situação de calamidade, nos termos da Resolução do Conselho de Ministros n.º 51-A/2020, de 26 de junho.
 Aos residentes eram autorizadas as deslocações que visam a participação em atos processuais junto das entidades judiciárias ou em atos da competência de notários, advogados, solicitadores e oficiais de registo – art. 6º, nº 2, r), do anexo a esta Resolução.
Mesmo a entender-se ser aplicável, decorrente da situação de calamidade, a Lei 4-A/2020, de 6 abril, o certo é que esta estabelece no seu art. 7º, nº 7, que os processos urgentes, como é o caso dos autos, continuavam a ser tramitados e realizadas as respetivas diligências.
Ora, cabia à recorrente comprovar tempestivamente e documentalmente a impossibilidade da realização da diligência presencial das declarações para memória futura da menor, fruto dos problemas do foro cardíaco de que padece, para os efeitos do art. 7º, nº 7, al. b) e c), da citada Lei. O que não foi o caso.
Emite-se, pois, parecer no sentido da manutenção do despacho recorrido e pugna-se pela improcedência do recurso.” (fim de transcrição).
6. Foi cumprido o preceituado no art. 417.º, n.º 2, do Código de Processo Penal (doravante CPP), não tendo havido resposta.
7. Efetuado o exame preliminar foi considerado não haver razões para a rejeição do recurso.
8. Colhidos os vistos legais, cumpre agora apreciar e decidir.
II – Fundamentação
1. Questão prévia
Com a motivação do recurso veio a recorrente juntar aos autos dois documentos um dirigido pela ora recorrente ao Hospital de Santa Maria - Centro Hospitalar de Lisboa Norte, E.P.E. e o outro por este emitido e enviado a MM ambos com referência ao episódio de urgência n.º 35556565 que, devido a “queixa” de “erupções cutâneas pruriginosas dispersas pelo corpo desde há 5 dias”, levou a menor JJ àquele nosocômio em 7 de fevereiro de 2019 (onde foi admitida pelas 18h07, tendo alta às 19h12, quando contava 8 anos de idade - tem presentemente 10 anos, pois nasceu em 21 de agosto de 2010), com os quais pretende agora provar que esta sua filha padece dos anteriormente invocados problemas cardíacos.
Entendemos que tais provas tinham que ser juntas ainda na primeira instância, para que aí pudessem ter sido ser apreciadas e consideradas aquando da prolação da decisão de que ora se recorre.
Com efeito, o tribunal ad quem tem de considerar da legalidade e justeza da decisão proferida pelo tribunal a quo, ora sub judice, apenas e tão-só com base nos elementos que estavam à disposição da primeira instância na data em que a prolatou, ou seja em 6 de julho de 2020.
A recorrente MM quando antecipadamente atravessou aos autos requerimento em que logo afirmava que não iria fazer comparecer a sua filha menor JJ à diligência agendada para 6 de julho de 2020, onde a esta, enquanto ofendida, seriam tomadas declarações para memória futura à menor JJ, justificando que o faria por se estar a viver em situação de confinamento no quadro da pandemia da Covid-19 e a criança ter problemas cardíacos, situação de doença que constituiria um risco acrescido de agravamento do estado de saúde e mesmo de morbilidade caso fosse nessa deslocação a juízo contaminada com o novo coronavírus SARS-CoV-2, devia ter logo apresentado documento(s) que o comprovasse a invocada doença cardíaca.
Não o tendo feito nessa ocasião dispunha ainda MM de 3 (três) dias para o fazer após a adiada diligência de 6 de julho de 2020 e o despacho condenatório nela proferido, apresentando nova justificação da falta ou completando a anteriormente apresentada, sobretudo ao naquela decisão se ter nomeadamente exarado como fundamento para aplicação da multa pela não comparência da sua filha JJ “que relativamente à menor não existe nenhum comprovativo médico que ateste de alguma forma a existência dos alegados problemas cardíacos”.
Faculdade de que também não se socorreu.
Finalmente, só seria admissível a sua junção nesta Relação se a recorrente tivesse alegado que não lhe foi possível juntar esses documentos anteriormente.
Contudo, não só não o fez, como daqueles documentos resulta claramente que dispunha dos mesmos desde fevereiro de 2019, ou seja há mais de 15 (quinze) meses.
Assim sendo, o tribunal ad quem tem de considerar da legalidade e justeza da decisão proferida pelo tribunal a quo, ora sub judice, apenas e tão-só com base nos elementos que estavam à disposição da primeira instância na data em que a prolatou, ou seja em 6 de julho de 2020.
Conforme se refere no Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 21 de março de 2012, proferido no âmbito do Proc. 130/10.0JAFAR. F1.S1, disponível in www.dgsi.pt “(…) o processo, diga-se, não é um palco onde, sem qualquer limite temporal, se podem praticar quaisquer actos, e a esmo, sem submissão a regras ou limites, sob pena de se afectar o encadeamento lógico em que se traduz em ordem a atingir-se um objectivo final predefinido.
 (…) importa ter presente que a função do recurso no quadro institucional que nos rege é a de remédio para correcção de erros “in judicando ou in procedendo” em que tenha incorrido a instância recorrida” (fim de transcrição).
Termos em que, se indefere, por extemporânea, a junção dos documentos ora oferecidos pela recorrente e que constam de fls. 339 a 342 dos autos principais (fls. 5 a 8 do presente recurso em separado).
2. Conforme entendimento pacífico dos Tribunais Superiores, são as conclusões extraídas pelo recorrente, a partir da respetiva motivação, que operam a fixação e delimitação do objeto dos recursos que àqueles são submetidos, sem prejuízo da tomada de posição sobre todas e quaisquer questões que, face à lei, sejam de conhecimento oficioso e de que ainda seja possível conhecer (cfr., entre outros, os Acs. do STJ de 16.11.95, de 31.01.96 e de 24.03.99, respetivamente, nos BMJ 451.° - pág. 279 e 453.° - pág. 338, e na Col (Acs. do STJ), Ano VII, Tomo 1, pág. 247, e cfr. ainda, arts. 403.° e 412.°, n.° 1, do CPP).
A questão suscitada pela recorrente, que deverá ser apreciada por este Tribunal Superior, é, em síntese, a de que perante o seu confinamento obrigatório em razão da Covid-19 e a circunstância da menor ter problemas cardíacos, o que é comorbilidade de risco de agravamento do estado de saúde, nos termos do Decreto-Lei n.º 20/2020, de 1 de maio, e Decreto-Lei n.º 10-A/2020, de 13 de março, artigo 25-A, e o facto de ter de se deslocar em transportes públicos existindo a possibilidade de vir a contrair Covid 19, sendo que residem ambas em Odivelas, localidade onde foi decretado o confinamento obrigatório por causa do Covid-19 e o estado de Calamidade, tendo justificado a sua não comparência e da menor antes da diligência invocando justo impedimento e quanto à filha menor um grave e legítimo impedimento de estar presente, por motivo de doença, na aplicação da multa é injusta e não tem fundamento, pugnando para que seja anulada. Alega ainda a recorrente que aufere o salário mínimo, e tem a menor a seu cargo, pelo que o montante da multa em que foi condenada cosntitui uma parte considerável do seu ordenado, que vai ser necessário à sua subsistência e da criança.
3. Vejamos se assiste razão à recorrente.
Antes de mais, convém esclarecer que, contrariamente ao que alega a recorrente MM (vd., entre outras, as suas primeira e sexta conclusões), a multa que lhe foi aplicada não o foi no montante de 102,00 € (cento e dois euros), mas sim de 204,00 € (duzentos e quatro euros), que é aquele a que correspondem 2 UC’s.
Também convém desde logo aqui precisar que, pese embora o que vem invocado no recurso (vd. segunda conclusão) e resposta a este apresentada pelo Ministério Público (vd. oitava a décima conclusões), todas as situações de alegado justo impedimento da Ilmª Advogada mandatária da recorrente para não ter comparecido à diligência para tomada de declarações para memória futura à menor ofendida JJ, nas diversas datas que para anteriormente o efeito estiveram marcadas, são, com o devido respeito e salvo melhor opinião, absolutamente irrelevantes por, ao não estarem abrangidas no âmbito da decisão recorrida, não fazerem parte do thema decidendum.
Igualmente importa assinalar que o artigo 25.º-A, quer do Decreto-Lei n.º 20/2020, de 1 de maio, quer do Decreto-Lei n.º 10-A/2020, de 13 de março, invocado pela recorrente, é inaplicável ao caso ora em apreço, porquanto o que ali se estabeleceu em ambos os diplomas é um regime excecional de proteção aos trabalhadores imunodeprimidos e doentes crónicos, entre os quais figuram os doentes cardiovasculares, os quais podem justificar a falta ao trabalho mediante declaração médica, desde que não possam desempenhar a sua atividade em regime de teletrabalho ou através de outras formas de prestação de atividade (cfr. n.º 1).
Dito isto, avancemos.
Considera este tribunal ad quem que seria relevante, em termos de justificar a não comparecência à diligência agendada para 6 de julho de 2020 com o objectivo de, enquanto ofendida, tomar declarações para memória futura à menor JJ, no quadro da pandemia da Covid-19,  a circunstância desta ter problemas cardíacos, situação de doença que constituiria um risco acrescido de agravamento do estado de saúde e mesmo de morbilidade caso fosse nessa deslocação a juízo contaminada com o novo coronavírus SARS-CoV-2.
Com efeito, a Direção-Geral de Saúde, no seu site institucional (in https://covid19.min-saude.pt/quem-esta-em-risco/), entende que: “Os grupos de Risco para COVID 19 incluem:
· Pessoas idosas;
· Pessoas com doenças crónicas – doença cardíaca, pulmonar, neoplasias ou hipertensão arterial, entre outras;
· Pessoas com compromisso do sistema imunitário (a fazer tratamentos de quimioterapia, tratamentos para doenças auto-imunes (artrite reumatóide, lúpus, esclerose múltipla ou algumas doenças inflamatórias do intestino), infeção VIH/sida ou doentes transplantados).” (fim de transcrição com negritos nossos).
Contudo, como doutamente se consignou no despacho recorrido “relativamente à menor não existe nenhum comprovativo médico que ateste de alguma forma a existência dos alegados problemas cardíacos”.
Essa era a situação existente à data da prolação da decisão revidenda, bem como é a atual, porquanto, mesmo posteriormente ao despacho recorrido podendo e devendo apresentar um comprovativo médico que atestasse de alguma forma a existência dos alegados problemas cardíacos não o fez tempestivamente.
Com efeito, como dissemos em sede de questão prévia, MM dispunha ainda de 3 (três) dias para o fazer após a adiada diligência de 6 de julho de 2020 e o despacho condenatório nela proferido, para apresentar tal comprovativo médico relativamente à menor sua filha JJ, o que não fez.  
Portanto, a recorrente MM não demonstrou, como lhe competia e tempestivamente, a existência de problemas de saúde da menor sua filha JJ que constituíssem risco acrescido perante a contaminação pelo SARS-CoV-2 e susbequente doença, a Covid-19.
Acresce que, a sua saída do domicílio, sito na Rua …………………… Odivelas, onde ambas (mãe e filha) residem, para irem ao Juízo de Instrução Criminal de Loures do Tribunal Judicial da Comarca de Lisboa Norte em vista da menor prestar declarações para memória futura, em processo de natureza urgente (como são aqueles em que, como é o caso do presente, se investigam factos susceptíveis de integrarem a prática de crimes de violência doméstica), não estava impedida pelas medidas de decorrentes da pandemia em curso.
Atente-se que à data de 6 de julho de 2020 já Portugal não vivia em situação de estado de emergência – os três sucessivos períodos de estado de emergência decorreram de 22 de março a 2 de maio de 2020 – mas tão só em situação de calamidade pública.
Contudo, quer nos estados de emergência (com medidas mais restritivas de circulação de pessoas), quer nos de calamidade pública, as medidas excecionais e temporárias aprovadas de resposta à situação epidemiológica provocada pelo coronavírus SARS-CoV-2 e da doença COVID-19, sempre excluíram do confinamento obrigatório, com proibição de saída do domicílio, as comparências em tribunal em situações como a dos presentes autos.
Como doutamente assinalou a Exma. Procuradora-Geral Adjunta no seu parecer, na data da diligência em apreço, 6 de julho de 2020, a União das Freguesias de Ramada e Caneças e Odivelas, do concelho de Odivelas estava abrangida pela situação de calamidade, nos termos da Resolução do Conselho de Ministros n.º 51-A/2020, de 26 de junho.
 Aos residentes eram autorizadas as deslocações que visassem a participação em atos processuais junto das entidades judiciárias ou em atos da competência de notários, advogados, solicitadores e oficiais de registo – art. 6.º, n.º 2, r), do anexo a esta Resolução.
Mesmo a entender-se ser aplicável, decorrente da situação de calamidade, a Lei 4-A/2020, de 6 abril, o certo é que esta estabelece no seu art. 7.º, n.º 7, que os processos urgentes, como é o caso dos autos, continuavam a ser tramitados e realizadas as respetivas diligências.
Ora, cabia à recorrente comprovar tempestivamente e documentalmente a impossibilidade da realização da diligência presencial das declarações para memória futura da menor, fruto dos problemas do foro cardíaco de que dizia padecer, para os efeitos do art. 7º, nº 7, al. b) e c), da citada Lei. O que não foi o caso.
Na verdade, o n.º 7, do art. 7.º, da Lei n.º 1-A/2020, de 19 de março, na redação que lhe foi dada pela Lei n.º 4-A/2020, de 6 de abril (indo no mesmo sentido os subsequentes diplomas aprovados neste domínio), estabeleceu que:
“Os processos urgentes continuam a ser tramitados, sem suspensão ou interrupção de prazos, atos ou diligências, observando-se quanto a estes o seguinte:
a) Nas diligências que requeiram a presença física das partes, dos seus mandatários ou de outros intervenientes processuais, a prática de quaisquer atos processuais e procedimentais realiza-se através de meios de comunicação à distância adequados, designadamente teleconferência, videochamada ou outro equivalente;
b) Quando não for possível a realização das diligências que requeiram a presença física das partes, dos seus mandatários ou de outros intervenientes processuais, nos termos da alínea anterior, e esteja em causa a vida, a integridade física, a saúde mental, a liberdade ou a subsistência imediata dos intervenientes, pode realizar-se presencialmente a diligência desde que a mesma não implique a presença de um número de pessoas superior ao previsto pelas recomendações das autoridades de saúde e de acordo com as orientações fixadas pelos conselhos superiores competentes (…)”(fim de transcrição).
A diligência em causa, como resulta do Auto (Adiamento) de fls. 10, a comparecerem todos os necessários e convocados intervenientes estes seriam em número total de apenas oito (Juíza, Procuradora-Adjunta, Escrivã-Auxiliar, Técnica do GAV, menor/ofendida, mandatária da respetiva mãe, arguido e sua defensora), no máximo e estando todos presentes em simultâneo, logo dentro das referidas recomendações, desde que fosse acautelada a existência de sala de dimensão suficiente para que todos os intervenientes tivessem uma distância entre si de 2 metros e, bem assim, que dispusessem dos prescritos equipamentos de proteção individual e fosse assegurada a indispensável higienização destas e do espaço (cfr., entre outras, as sugestões e orientações dadas pelo Conselho Superior da Magistratura aos Senhores Juízes, nos termos do art.º 7.º da Lei 1-A/2020, de 19.03, com a alteração estabelecida pela Lei 4-A/2020, de 06.04, com base no parecer emitido pelo GAVPM, contidas na DIVULGAÇÃO n.º 103/2020, consultável em https://www.paced-paloptl.com/uploads/publicacoes_ficheiros/csm.pdf), não havendo elementos nos autos que permitam extrair qualquer conclusão de que assim não sucederia in casu ou assim não se procedeu.
Destarte, não se verificando in casu justo, grave, legal e/ou legítimo impedimento, o recurso terá de improceder.
Uma última nota, perante o que alega a recorrente na sua sexta conclusão.
Preceitua o artigo 116.º, n.º 1, do CPP que: “Em caso de falta injustificada de comparecimento de pessoa regularmente convocada ou notificada, no dia, hora e local designados, o juiz condena o faltoso ao pagamento de uma soma entre 2 UC e 10 UC.
Assim, ao ter o tribunal a quo fixado o quantum da condenação em multa da ora recorrente em duas Unidades de Conta, fê-lo pelo mínimo legal, pelo que, perante isso, tal não nos merece censura, nem colide com a alegada situação pessoal do ponto de vista económico de MM.
III – Decisão
Pelo exposto, acordam os Juízes na 9ª Secção Criminal da Relação de Lisboa, em negar provimento ao recurso interposto por MM, confirmando-se integralmente a decisão recorrida.
Custas pela recorrente, fixando-se a taxa de justiça no mínimo.
Notifique nos termos legais.

Lisboa, 1 de outubro de 2020
Calheiros da Gama
Abrunhosa de Carvalho