Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
1970/20.8TXLSB-B.L1-9
Relator: FERNANDO ESTRELA
Descritores: PERDÃO DA PENA
TRÂNSITO EM JULGADO
CUMPRIMENTO DE PENA
LEI DE CARÁCTER EXCEPCIONAL E TEMPORÁRIO
REGIME EXCECIONAL DE FLEXIBILIZAÇÃO DA EXECUÇÃO DAS PENAS
COVID 19
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 04/08/2021
Votação: MAIORIA COM * VOT VENC
Texto Integral: S
Texto Parcial: N
Meio Processual: RECURSO PENAL
Decisão: NÃO PROVIDO
Sumário: I-Não se aplica o perdão de pena ao arguido que foi condenado em pena de prisão (subsidiária) e estando recluso em Estabelecimento prisional em cumprimento de pena, quando o despacho que tornou exequível a pena de prisão subsidiaria transitou em julgado em 30.09.2020, ou seja, após a entrada em vigor da Lei 9/2020, de 10- 04 (cfr. Art. n.° 7, al. b) da citada lei 9/2020).
Com voto de vencido em sentido contrário, na qual se entende que, em suma, perante uma situação de reclusão, posterior à data de entrada em vigor da Lei 9/2020, mas no decurso da sua vigência, deve a pena do recluso ser objeto de apreciação por parte do tribunal de execução de penas para  se aferir da aplicabilidade do perdão da pena, uma vez que a suspensão da execução da pena é, reconhecidamente, uma pena de substituição, fixada aquando da elaboração da sentença, mas que poderá vir a ser revogada, conforme o previsto no art.º 56.º do C. Penal. E, porque assim é, podendo a revogação implicar o cumprimento da pena de prisão fixada na respectiva sentença, tendo esta transitado em julgado em data anterior à da entrada em vigor da Lei n.º 9/2020, tem toda a razão de ser a compreensão da referida pena, também, no perdão previsto na mesma Lei, seja no respeito pelo princípio da igualdade.
Decisão Texto Parcial:
Decisão Texto Integral: Acordam na 9.ª Secção do Tribunal da Relação de Lisboa:

I – No proc.º n.º 871/070TSFUN, do Juízo Local Criminal do Funchal, Juiz 1, por sentença, transitada em julgado em 30/05/2018, foi o arguido AA condenado, pela prática de um crime de cheque sem provisão, na pena de seis meses de prisão, suspensa na sua execução pelo período de um ano, sob a condição de indemnização à demandante civil no montante fixado, pena que foi revogada por despacho de 09/07/2020, o qual transitou em julgado em 30/09/2020.
Em 01/12/2020 o arguido entrou em cumprimento de pena, situação em que se encontra actualmente.
Em 09/12/2020 requereu o arguido junto do Tribunal de Execução de Penas de Lisboa, a aplicação da Lei n.° 9/2020, de 10 de Abril, pretendendo ver-lhe perdoada a pena em que foi condenado, tendo o pedido sido indeferido por despacho de 4.1.2021 da Sra. Juiz do TEP (Juiz 4).
II – Inconformado, o arguido AA interpôs recurso, formulando as seguintes conclusões:
a) Vem o presente recurso interposto do despacho que indeferiu o pedido de aplicação do perdão de pena, previsto na Lei 9/2020 de 20.04 e consequente restituição do recorrente à liberdade.
b) Constituiu singelo fundamento da decisão recorrida a asserção de que...uma vez que o despacho que tornou exequível a pena de prisão subsidiaria transitou em julgado em 30.09.2020, ou seja, após a entrada em vigor da Lei 9/2020, de 10-04 (cfr. Art. ° 2.°, n. ° 7, al. b) da citada lei 9/2020)."
c) Porém, enquadrando a questão, devemos ter por certo que "O perdão previsto no art. 2.° da lei n.° 9/2020, de 10-04, verificados que sejam os demais requisitos legais, deve ser aplicado não só a condenados que estejam em reclusão à data da entrada em vigor daquele diploma (11-04-2020), mas também a condenados que, no decurso da vigência da mesma Lei, venham a ficar naquela situação." - inter alia os Acs. RP de 25.11.2020, 21.10.2020, 28.10.2020 e da RC de 16.12.2020, 28.10.2020, 07.10.2020, 30.09.2020, todos in www.dgsi.pt )
d) S.d.r., nenhuma razão assiste ao tribunal a quo, já que como decorre do artigo 2.°/1 da Lei 9/2020 de 11.04, o que tem de estar transitado em julgado é a decisão condenatória e não o despacho que ordena o cumprimento da pena!
e) O recorrente está preso porque na decisão de 04.12.2020 e que determinou o cumprimento da pena, decidiu-se que a sentença condenatória transitou no dia 30.05.2018!
f) Nos feitos submetidos a julgamento não podem os tribunais aplicar normas que infrinjam o disposto na Constituição ou os princípios nela consignados. - Artigo 204. ° da Constituição.
g) O legislador, em 29 de maio de 2020, veio afirmar que a Lei n.º 9/2020, se mantinha em vigor." - Ac. da RC de 28.10.2020, processo 10/18 in www.dgsi.pt.
h) "Perante uma situação de reclusão, posterior à data de entrada em vigor da Lei 9/2020, mas no decurso da sua vigência, deve a pena do recluso ser objeto de apreciação por parte do tribunal de execução de penas para aferir da aplicabilidade do perdão." - Ac. da RP de 28.10.2020, processo 262/16 in www.dgsi.pt .
i) Ao não aplicar o referido perdão a quem ainda não era recluso à data da publicação da referida lei, ou a quem, como no caso sub judice, não se mostrasse proferido e transitado naquela altura o despacho que ordena o cumprimento da pena prisão efetiva, viola-se intencionalmente o constitucionalmente proclamado direito de igualdade.
j) Deste modo, visando a lei 9/2020 de 11.04, evitar a disseminação da doença da COVID 19 no meio prisional e consequentemente proteger a saúde dos reclusos e demais agentes do meio prisional, apodítico é que direito à vida e à saúde do recorrente, como o de qualquer outro cidadão, não vale menos do que o de quem era recluso à data da publicação da referida lei!
k) A interpretação da norma pelo tribunal a quo, faz subverter a ratio da lei, na medida em que com a finalidade de proteger o direito à vida e saúde de quem já era recluso não se alivia momentaneamente os números da população prisional para, em ato contínuo, voltar a sobrelotar as cadeias, ali colocando quem não era recluso e que se o fosse - só por essa circunstância - já seria merecedor da "medida de clemência".
1) A norma constante no artigo 2.º/7 da Lei 9/2020 de 10.04 é inconstitucional, por violar o princípio da igualdade constante no artigo 13.° da Constituição, na parte em que restringe a concessão do perdão aos condenados em cumprimento de pena à da entrada em vigor da referida lei.
m) É também inconstitucional, por violar o artigo 29.º/4 da Constituição, a norma constante no artigo 2.°/1 da Lei 9/2020 de 10.04, na interpretação de que para efeitos de aplicação do perdão ali previsto, o trânsito em julgado se conta não a contar do trânsito da decisão condenatória, mas da data do trânsito em julgado do despacho que revoga a suspensão da pena e ordena o cumprimento da mesma.
n) O perdão genérico de penas não é uma medida de clemência, mas antes, uma medida de caráter pragmático e que consistiu no uso uma técnica legislativa (que à face dos institutos vigentes [amnistia, perdão genérico ou indulto] se apresentou como a mais adequada) que visa proteger a vida e a saúde de quem vive ou venha a viver no meio prisional durante a situação de pandemia,
o) Destarte, não se apresenta materialmente justificada, do ponto de vista constitucional e dos princípios estruturantes do Estado de Direito a distinção de que só abrange as situações existentes à data da publicação da referida lei.
p) Como bem sublinhado por eminentes constitucionalistas importa salientar ainda que neste caso concreto «A inconstitucionalidade radica não na concessão do perdão de penas a uns, mas na não concessão do mesmo perdão de penas a outros.» Cfr. J. J. Gomes Canotilho e Vital Moreira, in ob. cit., pág. 344
Nestes termos e nos melhores de direito,
E sempre com a mui douto suprimento de vossas excelências, venerandos juízes desembargadores, deve ser concedido provimento ao presente recurso, e, consequentemente revogado o despacho recorrido, ordenando-se a imediata restituição do requerente à liberdade
por aplicação do perdão de penas constantes da Lei 9/2020 de 10.04. (...)
III – Em resposta, veio o Ministério Público na 1.ª Instância dizer, concluindo, que a decisão recorrida não padece de qualquer vício, nem foi violada qualquer disposição legal ou constitucional pelo que o recurso, deve ser julgado totalmente improcedente e a decisão recorrida ser mantida na íntegra por conforme ao Direito, assim se fazendo a acostumada JUSTIÇA!
IV – Transcreve-se a decisão recorrida.
Despacho de 4 de janeiro de 2021
Indefere-se o pedido formulado pelo condenado, no sentido de lhe ser aplicado o perdão de pena, uma vez que o despacho que tornou exequível a pena de prisão subsidiaria transitou em julgado em 30.09.2020, ou seja, após a entrada em vigor da Lei 9/2020, de 10- 04 (cfr. Art. n.° 7, al. b) da citada lei 9/2020).
(...)
V – Nesta Relação a Exma. Procuradora-Geral Adjunta pronunciou-se no sentido da improcedência do recurso interposto.
VI – Cumpre decidir.
1. O âmbito do recurso é delimitado pelas conclusões do recorrente (cf., entre outros, os Acs. do STJ de 16.11.95, de 31.01.96 e de 24.03.99, respectivamente, nos BMJ 451° - 279 e 453° - 338, e na CJ (Acs. do STJ), Ano VII, Tomo I, pág. 247, e cfr. ainda, arts. 403° e 412°, n° 1, do CPP).
2. O recurso será julgado em conferência, atento o disposto no art.º 419.º n.º 3 alínea b) do C.P.Penal.
3. O arguido recluso veio interpor recurso da decisão proferida Sra. Juiz do TEP, de 4.1.2021, que indeferiu o seu pedido de aplicação do perdão de pena, previsto na Lei 9/2020, de 10.4 ao seu caso, com o fundamento em que o despacho que tornou exequível a pena de prisão transitou em julgado em 30.9.2020, ou seja, após a entrada em vigor da Lei 9/2020, de 10.4.
4. Decidindo.
Confirma-se o despacho recorrido com os argumentos elencados e que reproduzem a lapidar argumentação das Exmas Procuradora da República da 1.ª instância e Procuradora-Geral Adjunta nesta Relação, merecendo o nosso inteiro acordo e que se subscrevem, a saber:
“O recluso AA interpôs recurso da decisão proferida pela Sra. Juiz de Direito, em 4.1.2021, que indeferiu o seu pedido de aplicação do perdão de pena, previsto na Lei 9/2020, de 10.4 ao seu caso, com o fundamento em que o despacho que revogou a suspensão da execução da pena e tornou exequível a pena de prisão transitou em julgado em 30.9.2020, ou seja, após a entrada em vigor da Lei 9/2020, de 10.4.
O arguido foi condenado por sentença proferida no dia 25.11.2010, transitada em julgado em 30.05.2018, por prática de um crime de emissão de cheque sem provisão, na pena de seis meses, suspensa na respectiva execução por um ano na condição de durante esse prazo efectuar o pagamento da indemnização.
Acontece, porém, que a suspensão da execução de pena de prisão foi revogada por despacho de 9.07.2020, vindo o mesmo arguido a iniciar o cumprimento de tal pena de prisão no dia 1.12.2020.
De acordo com a liquidação da pena, o arguido/recorrente foi detido para cumprimento de pena em 1.12.2020 e o termo da pena ocorre em 1.6.2021.
O requerente veio solicitar nos autos a aplicação da Lei 9/2020, de 10.4., tendo o seu requerimento sido alvo do despacho ora recorrido, que indeferiu a pretensão do recorrente, com o fundamento em que o despacho que tornou exequível a pena de prisão transitou em julgado em 30.9.2020, ou seja, após a entrada em vigor da Lei 9/2020, de 10.4 (cfr. art° 2° n°7, al. b) da citada Lei 9/2020).
Nos termos do art.° 2.° Lei 9/2020, de 10.4:
1 - São perdoadas as penas de prisão de reclusos condenados por decisão transitada em julgado, de duração igual ou inferior a dois anos.
2 - São também perdoados os períodos remanescentes das penas de prisão de reclusos condenados por decisão transitada em julgado, de duração superior à referida no número anterior, se o tempo que faltar para o seu cumprimento integral for igual ou inferior a dois anos, e o recluso tiver cumprido, pelo menos, metade da pena.(...)
7 - O perdão a que se referem os n. ºs 1 e 2 é concedido a reclusos cujas condenações tenham transitado em julgado em data anterior à da entrada em vigor da presente lei e sob a condição resolutiva de o beneficiário não praticar infração dolosa no ano subsequente, caso em que à pena aplicada à infração superveniente acresce a pena perdoada.
Em primeiro lugar, porque se é certo que a sentença condenatória que aplicou a pena em execução no P.280/15.7T9CLD transitou em julgado antes da entrada em vigor da Lei 9/2020, o despacho que determinou a revogação da suspensão da execução da pena e que determinou a sua exequibilidade da pena de prisão, só transitou em julgado após a entrada em vigor dessa lei.
Assim sendo, o recorrente só assume o estatuto de condenado em pena de prisão efetiva, e como tal, de potencial recluso já depois da entrada em vigor da Lei 9/2020.
Como tal, não se enquadra, a nosso ver, no espírito da lei a aplicação do perdão de penas, a condenados que não são reclusos à data da sua entrada em vigor, e que nunca o poderiam ser, uma vez que não estão, nesse momento, condenados em pena de prisão efetiva, mas apenas numa pena de substituição, que ainda não está convertida em prisão efetiva.
Ou seja, o uso legal da expressão recluso reporta-se a pessoas cuja decisão condenatória já transitou em julgado e a quem foi aplicada pena suscetível de ser executada em estabelecimento prisional, por reporte à datada entrada em vigor da lei 9/2020.
Como tal, entendemos, que a decisão recorrida fez uma interpretação correta do disposto no n°7° do art°2° da Lei 9/2020, de 10.4. e que essa interpretação não viola o disposto no art°29°,n°4 da CRC, conforme alegado pelo recorrente, já que tal norma constitucional não se reporta a situações de perdão de pena.
Em segundo lugar, a posição jurídica de que o perdão só pode incidir sobre penas relativas a pessoas condenadas, por sentença transitada em julgado em data anterior à da entrada em vigor do Regime excecional de flexibilização da execução das penas e das medidas de graça, no âmbito da pandemia da doença COVID-19, que no momento da sua aplicação se encontrem efetivamente recluídas, ou seja, em efetivo cumprimento de pena de prisão em estabelecimento prisional, tem sido defendida por vária jurisprudência dos tribunais superiores.
A título de exemplo, o acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra de 9.9.2020, proferido no proc. n° 178/20.7TXCBR-B.CI, relatora Des. Rosa Pinto, assim sumariado: "O perdão previsto no artigo 2° da Lei n.° 9/2020, de 10 de Abril, só pode ser aplicado a reclusos, condenados por sentença transitada em julgado em data anterior à da sua entrada em vigor, excluindo os condenados que não tenham ainda ingressado fisicamente no estabelecimento prisional".
Ou ainda o acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra de 28.10.2020 proferido no P.109/20.4TXCBR-B.C1, no qual se refere que esta posição merece concordância já que se trata de uma lei de carácter excepcional e temporário justificado pela existência de uma situação de infecção pandémica (vírus SARS-CoV-2) que conduziu à declaração do estado de emergência no país, pelo que não consente qualquer interpretação analógica ou extensiva.
E ainda mais recentemente o acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra de 3.2.2021 proferido no P.109/20.4TXCBR-B.C1.
Veja-se ainda neste sentido a posição de Nuno Brandão, em estudo publicado na Revista Julgar - A libertação de reclusos em tempos de COVID-19, Um primeiro olhar sobre a Lei n° 9/2020, de 10.4, Julgar online, abril de 2020 e o Parecer n°10/2020 do Conselho Consultivo da Procuradoria-Geral da República, no seu ponto 7.
Em terceiro lugar, e quanto à invocada que invocada inconstitucionalidade da norma constante no artigo 2.°/7 da Lei 9/2020 de 10.04, por violar o princípio da igualdade constante no artigo 13.° da Constituição, na parte em que restringe a concessão do perdão aos condenados em cumprimento de pena à da entrada em vigor da referida lei, apontamos decisão em sentido contrário proferida, por exemplo, no acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra de 3.2.2021 proferido no P.109/20.4TXCBR-B.C1., que citamos (...)
Acresce que, este entendimento (de o perdão se aplicar apenas a reclusos que se encontrem a cumprir pena de prisão no momento da sua entrada em vigor) não viola o princípio constitucional da igualdade.
Como sublinha Maia Gonçalves «as medidas de graça, como providências de excepção, constam de normas que devem ser interpretadas e aplicadas nos seus precisos termos, sem ampliações nem restrições que nelas não venham expressas».
No mesmo sentido, o Ac. do STJ (fixação de jurisprudência) de 25-10-2001 (proc. n. ° 00P3209) - sendo excepcionais as normas que estabelecem perdões, não comportando, por isso mesmo, aplicação analógica (artigo 11.° do CC), nem admitindo interpretação extensiva ou restritiva, devem ser interpretadas nos exactos termos em que estão redigidas, impondo-se, assim, uma interpretação declarativa, em que "não se jaz mais do que declarar o sentido linguístico coincidente com o pensar legislativo".
Sendo, assim, insusceptíveis de interpretação extensiva (não pode concluir-se que o legislador disse menos do que queria), de interpretação restritiva (entendendo-se que o legislador disse mais do que queria) e afastada em absoluto a possibilidade de recurso à analogia, impõe-se uma interpretação declarativa, em que «não se faz mais do que declarar o sentido linguístico coincidente com o pensar legislativo» - Francesco Ferrara, Interpretação e Aplicação das Leis, Coimbra, 1978, p. 147.
Na interpretação declarativa «o intérprete limita-se a eleger um dos sentidos que o texto directa e claramente comporta, por ser esse aquele que corresponde ao pensamento legislativo» - Baptista Machado, Introdução ao Direito e ao Discurso Legitimador, Almedina, 1983, p. 185.
Como decidiu o Tribunal Constitucional (Ac. n. ° 39/88, de 9 de Fev. - DR n.º 52/1988, Série I, de 03-03-1988):
«O princípio da igualdade não proíbe, pois, que a lei estabeleça distinções. Proíbe, isso sim, o arbítrio; ou seja: proíbe as diferenciações de tratamento sem fundamento material bastante, que o mesmo é dizer sem qualquer justificação razoável, segundo critérios de valor objectivo, constitucionalmente relevantes. Proíbe também  se tratem por igual situações essencialmente desiguais. E proíbe ainda a discriminação; ou seja: as diferenciações de tratamento fundadas em categorias meramente subjectivas, como são as indicadas, exemplifi cativam ente, no n. º2 do artigo 13.º
Respeitados estes limites, o legislador goza de inteira liberdade para estabelecer tratamentos diferenciados.
O princípio da igualdade, enquanto proibição do arbítrio e da discriminação, só é, assim, violado quando as medidas legislativas contendo diferenciações de tratamento se apresentem como arbitrárias, por carecerem de fundamento material bastante.»
Por sua vez, pode ler-se no Acórdão n. ° 149/93, de 28 de Janeiro, do mesmo Tribunal, in www.tribunalconstitucional.pt:
«Pode-se considerar que é já vasta e consolidada a jurisprudência constitucional sobre o sentido e o alcance do princípio da igualdade (cfr., entre outros, os Acórdãos n°s 39/88 - publicado no Diário da. República, 1 Série, de 3 de Março de 1988 -, 157/88 - publicado no mesmo local e série, de 26 de Julho de 1988 -, 76/85, 142/85, 309/85 e 186/90, - todos publicados no Diário da República II Série, respectivamente, de 8 de Junho de 1985, de 7 de Setembro de 1985, de 11 de Abril de 1986 e de 12 de Setembro de 1990 -, 400/91 publicado no Diário da República, 1 Série, de 15 de Novembro de 1992 e finalmente o Acórdão n° 226/92, publicado no Diário da República, II Série, de 12 de Setembro de 1992, neste último caso versando especificamente a temática do presente processo, cujo desenvolvimento, aliás, seguiremos no essencial.
Da assinalada jurisprudência decorre que, vistas as coisas na óptica da igualdade em sentido material, e enquanto princípio vinculador do próprio legislador, se exige que a lei dê tratamento igual ao que for essencialmente igual e trate de forma distinta o que for dissemelhante. O princípio da igualdade não comporta, pois, uma proibição absoluta de discriminações no tratamento legal de uma dada matéria, mas tão-somente que essas discriminações sejam arbitrárias ou irrazoáveis, isto é, desprovidas de fundamento material bastante.
Neste contexto, citando o que se escreveu no Acórdão n° 400/91, "o princípio da igualdade funciona, pois, como um limite objectivo da discricionariedade legislativa, proibindo a adopção de medidas que estabeleçam distinções discriminatórias, ou seja, desigualdades de tratamento materialmente infundadas, sem qualquer fundamento razoável ou sem qualquer justificação objectiva e racional, proíbe, em termos gerais, o arbítrio legislativo."»
Por conseguinte, atendendo aos objectivos da citada Lei n. ° 9/2020 (prevenir o risco de alastramento da infeção epidemiológica por SARS-CoV-2 e da doença COVID-19), não se vislumbra que a circunstância de o perdão se aplicar apenas a reclusos que se encontrem a cumprir pena de prisão no momento da sua entrada em vigor constitua uma desigualdade de tratamento arbitrária por materialmente infundada, desprovida de fundamento razoável ou sem qualquer justificação objectiva e racional, razão por que, a nosso ver, não se mostra violado o princípio constitucional da igualdade. (,..)
No mesmo sentido, veja-se o Parecer n°10/2020 do Conselho Consultivo da Procuradoria-Geral da República, no seu ponto 8.(da resposta do M.P. da 1.ª instância).
É consabido, e sendo jurisprudência pacífica, que a doutrina acompanha, o entendimento de que a pena de prisão suspensa na sua execução tem natureza autónoma relativamente à pena de prisão substituída, de tal sorte que é a pena de prisão suspensa que é executada e não a pena de prisão substituída, com todas as consequências legais, mormente no que concerne ao perdão a que se reporta o n.º 2 do artigo 2.° da Lei 9/2020, de 10.04.
No caso vertente, nos termos reafirmados na resposta apresentada pela Exm.ª Magistrada do Ministério Público junto da 1.ª instância, "o recorrente só assumiu o estatuto de condenado em pena de prisão efetiva, e como tal, de potencial recluso já depois da entrada em vigor da Lei 9/202, de 10.04".
Saliente-se, aliás, que o sentido da douta decisão recorrida está em consonância com a jurisprudência maioritária que tem sido adoptada sobre a temática em análise, por via da qual tem sido perfilhado o entendimento (vd. Acórdãos do Tribunal da Relação de Coimbra, datado de 30.09.2020 - Proc.° n.° 175/20.2TXCHR-BC1, disponível in www.dgsi.pt; de 14.10.2020 - Proc.º n° 175/20.2TXCBR-B.C1, disponível in www.dgsi.pt, bem como os Acórdãos do Tribunal da Relação de Lisboa, datado de 16.09.2020 - Proc.° n.º 1896/10.3TXCBR-AB, disponível in
www.dgsi.pt, de 14.10.2020 - Proc.° n.º 259/18.7GLSNT.L1-3, disponível in www.dgsi.pt ), em conformidade com a Exposição de Motivos da Proposta de Lei n° 23/XIV, de que a Lei n° 9/2020, de 10.4, em resposta a Recomendação da Exmª Provedora de Justiça n.°4/B2020, de 26.3, foi gizado o regime excepcional de flexibilização da execução e das medidas de graça, no âmbito da pandemia da doença COVID-19, prevendo-se, nomeadamente, um perdão parcial de penas de prisão. Porém, este perdão beneficia apenas "os reclusos cujas condenações tenham transitado em julgado em data anterior à da entrada em vigor da lei em referência, em 11.04.2020.”
Com efeito, explicita o artigo 2.º, n.° 7, a Lei n° 9/2020, de 10.4, que:
"O perdão a que se referem os n.°s 1 e 2 é concedido a reclusos cujas condenações tenham transitado em julgado em data anterior à da entrada em vigor da presente lei e sob a condição resolutiva de o beneficiário não praticar infração dolosa no ano subsequente, caso em que à pena aplicada à infração superveniente acresce a pena perdoada.". (do parecer da PGA).
Assim, é de manter o despacho recorrido.
Não foram violados quaisquer normas legais e/ou constitucionais maxime o artigo 2.º, n.° 7, a Lei n° 9/2020, de 10.4, e os art.ºs 13.º, 29.º/4 , e 204. ° da Constituição.
VI - Pelo exposto, nega-se provimento ao recurso interposto pelo arguido
mantendo-se na íntegra a decisão recorrida.
Custas pelo arguido recorrente, sendo de 3UC a taxa de justiça.
(Acórdão elaborado e revisto pelo relator - vd art.º 94.º n.º2 do C.P.Penal)

Lisboa, 8 de abril de 2021
Fernando Estrela, juiz adjunto
Alexandre Trigo Mesquita, juiz Pres. Secção

Segue o VOTO VENCIDO do Exmo juiz desembargador Almeida Cabral
Vencido, pelos fundamentos seguintes:
O arguido/recorrente foi condenado, pela prática de um crime de “cheque sem provisão”, na pena de seis meses de prisão, cuja execução ficou suspensa pelo período de um ano, condicionada, contudo, ao pagamento de um montante indemnizatório.
Esta decisão condenatória transitou em julgado em 30/05/2018.
Porém, por não haver cumprido a obrigação imposta, a pena de substituição veio a ser revogada por despacho de 09/07/2020, o qual transitou em julgado em 30/09/2020, havendo o arguido/recorrente entrado em cumprimento de pena em 01/12/2020.
Em 09/12/2020 requereu o mesmo junto do Tribunal de Execução de Penas de Lisboa o perdão da pena imposta, à luz do preceituado no art.º 2.º da Lei n.º 9/2020, de 10 de Abril, pretensão que lhe foi indeferida pelo tribunal “a quo”, com o argumento de que “o despacho que tornou exequível a pena de prisão subsidiaria transitou em julgado em 30.09.2020, ou seja, após a entrada em vigor da Lei 9/2020”.
Ora, dispõe o art.º 2.º, n.º 1 da citada Lei que “São perdoadas as penas de prisão de reclusos condenados por decisão transitada em julgado, de duração igual ou inferior a dois anos”.
Todavia, por força do disposto no seu n.º 7, este perdão só é concedido a reclusos cujas
condenações tenham transitado em julgado em data anterior à entrada em vigor da mesma Lei,
o que ocorreu em 11 de Abril de 2020.
Relativamente a condenações em penas de substituição, o que aqui está em causa, segundo o n.º 5 do referido art.° 2.°, “o mesmo perdão só será aplicado se houver lugar à revogação da suspensão”.
Deste modo, reportados ao caso dos autos, dúvidas entendemos não existirem de que o arguido/recorrente haveria, mesmo, de ter beneficiado do perdão da pena em que foi condenado.
Desde logo, as “condenações” previstas no citado n.° 7 só podem ser aquelas proferidas nas respectivas sentenças/acórdãos, como bem se prevê nos artºs. 97.º, n.º 1, al. a) e 375.º do C.P.P., pois que se está perante decisões (necessariamente condenatórias) que conheceram do objecto de processo.
Depois, a não se entender assim, acolhendo-se, designadamente, a tese sufragada na decisão recorrida, ficava-se sem se saber quando e em que circunstâncias, afinal, teria aplicação o previsto no n.º 5 do aqui em causa art.º 2.º.
Ora, a suspensão da execução da pena é, reconhecidamente, uma pena de substituição, fixada aquando da elaboração da sentença, mas que poderá vir a ser revogada, conforme o previsto no art.º 56.º do C. Penal. E, porque assim é, podendo a revogação implicar o cumprimento da pena de prisão fixada na respectiva sentença, tendo esta transitado em julgado em data anterior à da entrada em vigor da Lei n.º 9/2020, tem toda a razão de ser a compreensão da referida pena, também, no perdão previsto na mesma Lei, seja no respeito pelo princípio da igualdade, invocado pelo arguido, seja porque esta é, no essencial, uma condenação igual às demais, com a única diferença de que a sua execução ficou suspensa, seja, ainda, por se considerar ser esta a única forma de se poder compreender e implementar o regime de excepção em causa, que teve como finalidade única evitar ou atenuar os efeitos causados pela Covid 19. Daí, no nosso modo de ver, a razão de ser do citado n.º 5.
Deste modo, sendo a pena em que o arguido/recorrente foi condenado de seis meses de prisão e havendo a respectiva sentença transitado em julgado em 30/05/2018, isto é, bem antes da entrada em vigor da Lei n.º 9/2020, mostram-se preenchidos os dois pressupostos
fundamentais para que a mesma pena pudesse ser declarada perdoada.
Por isso, concederia provimento ao recurso, declarando perdoada a pena de seis meses
de prisão em que o arguido/recorrente foi condenado.

Lisboa, 08/04/2021
Almeida Cabral – Relator vencido