Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
1004/09.3TBAGH.L1-8
Relator: ILÍDIO SACARRÃO MARTINS
Descritores: INEPTIDÃO DA PETIÇÃO INICIAL
DECISÃO SURPRESA
PRINCÍPIO DO CONTRADITÓRIO
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 04/07/2016
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: N
Texto Parcial: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: PROCEDENTE
Sumário: -Desenhando o autor na petição inicial uma autêntica acção de reivindicação, com a causa de pedir e os pedidos que a caracterizam, não haverá lugar à ineptidão inicial com qualquer dos fundamentos previstos no artigo 186º do actual Código de Processo Civil.
-Como assinala Lebre de Freitas, no plano das questões de direito, veio a revisão proibir a decisão-surpresa, isto é, a decisão baseada em fundamento que não tenha sido previamente considerado pelas partes.
-Antes de decidir com base em questão (de direito material ou de direito processual) de conhecimento oficioso que as partes não tenham considerado, o juiz deve convidá-las a sobre ela se pronunciarem seja qual for a fase do processo em que tal ocorra.
-No plano das questões de direito, o princípio do contraditório exige que, antes da sentença, às partes seja facultada a discussão efectiva de todos os fundamentos de direito em que a decisão se baseie.
(Sumário elaborado pelo Relator)
Decisão Texto Parcial: Acordam os Juízes, no Tribunal da Relação de Lisboa.


I-RELATÓRIO:


A... e mulher M... intentaram contra J...[1] acção de reivindicação com processo sumário, pedindo que a acção seja julgada procedente e, em consequência:

a)declarar-se serem os autores os legítimos donos do prédio rústico inscrito na matriz sob o artigo 2295 da freguesia das Doze Ribeiras e descrito na Conservatória do Registo Predial  de Angra do Heroísmo sob o nº 1904/20051121 e a posse do réu insubsistente, ilegal e de má fé;
b)condenar-se este a reconhecer aos autores aquele direito de propriedade e a restituir-lhe o prédio;
c)condenar-se ainda o réu no pagamento da quantia de € 2.000,00, referente aos dois anos de ocupação indevida e € 1.000,00 por cada ano em que se mantenham à posse do prédio, ou duodécimos dessa verba se até à entrega definitiva não perfizer um ano completo, além dos juros, após citação, sobre a supra referida verba, a título de frutos que os mesmos deixaram de usufruir.

Em síntese, alegaram que são donos do mencionado prédio e que o réu o ocupa sem qualquer título que legitime a sua ocupação, recusando-se a sair do mesmo.

Tal prédio, devidamente explorado, como se propunha fazer o autor, poderia render-lhes € 1.000,00 por ano, pelo que, durante os últimos dois anos, os autores já perderam uma quantia superior a € 2.000,00.

Contestou o réu, arguindo a excepção dilatória de ilegitimidade passiva, alegando que desde há cerca de 15 anos, que o deixou de fazer de renda o prédio em causa, face à sua idade na altura - 71 anos – e por motivos de saúde, tendo passado o seu filho J... a fazê-lo de renda, pelo menos desde 1994, explorando o prédio , cultivando-o com milho, roçando-o e criando nele gado, pagando as respectivas rendas no final de cada ano agrícola.

O réu, na qualidade de arrendatário do prédio desde 1958 até há cerca de 15 anos, ou seja, durante 35 anos, de forma ininterrupta, foi quem explorou o prédio.

Por despacho de 11-10-2010 foi fixada à causa o valor de € 9.500,00.                                                                                                                                                                  
Por despacho de 16-12-2014 foram as partes notificadas nos termos e para os efeitos do disposto no nº 4 do artº 5º da Lei nº 41/2013, de 26 de Junho.

No despacho saneador foi julgada inepta a petição inicial, determinando a extinção e a absolvição da instância dos réus habilitados J... e J...

Não se conformando com tal despacho, dele recorreu o autor, tendo formulado as seguintes CONCLUSÕES:

1ª–O tribunal a quo aplicou à decisão recorrida o novo Código de Processo Civil.
2ª–A sentença recorrida é nula, por violação do artigo 5º nº 3 da Lei 41/2013, de 26 de Junho, atendendo a que as normas reguladoras dos actos processuais da fase dos articulados não são aplicáveis às acções pendentes na data de entrada em vigor do Código de Processo Civil, aprovado em anexo à referida lei.
3ª–Ora, no caso dos autos, a fase dos articulados terminou no ano de 2010, pelo que se concluiu pela não aplicação do novo regime processual, face ao atrás exposto.
4ª–Por outro lado, a sentença recorrida fez indevida e errada interpretação dos autos e da lei, violando, nomeadamente os artigos 152º, 186º/2alª c) e b) e 590º/3 do CPC.
5ª–Pois, resulta da fundamentação que “ não são alegados factos essenciais que permitiriam a compreensão cabal sobre a causa eficiente dos pedidos dos autores recorrentes”.
6ª–Julgando inepta a petição inicial, determinando a extinção e a absolvição da instância dos réus habilitados com o fundamento de falta de alegação de factos constitutivos do direito a que os recorrentes se arrogam na petição inicial.
7ª–Salvo melhor entendimento, o recorrente logrou alegar factos essenciais que permitem a compreensão cabal sobre a causa eficiente dos seus pedidos.
8ª–No caso dos autos, entendemos não dever considerar inepta a petição, mas quanto muito - o que se admite por dever de patrocínio – o ter-se eventualmente alegado pouca matéria factual necessária, ou que a mesma tenha sido deficientemente concretizada.
9ª–O recorrido na sua contestação, não arguiu a ineptidão da petição inicial, que revelou compreender, o que só pode ser interpretado como tendo alcançado o pedido e interesse em contestar, só não tendo impugnado os documentos juntos pelo recorrente.
10ª–O tribunal, por seu turno, só veio a decidir pela mencionada ineptidão da petição inicial, depois de já haver sido confrontado com o processo e já numa altura em que nada o fazia prever.
11ª–Entendem os recorrentes que, de modo deficiente e cabal, foram alegados os factos estruturantes da causa de pedir, subjacente ao pedido deduzido, obstando consequentemente a que a petição inicial seja entendida como inepta, ferindo, assim, de nulidade todo o processado.
12ª–Por outro lado, sempre se podia questionar se, no caso concreto, antes de ser proferida a decisão em crise, o juiz deveria conceder às partes a oportunidade de se pronunciarem sobre a questão, afastando, assim, a existência de uma decisão surpresa, na medida em que a douta decisão em causa padece igualmente de vícios por se traduzir numa “decisão surpresa” por ter sido proferida no fim dos articulados, numa altura em que era esperado o despacho-saneador, ou a marcação da data para a audiência prévia.
13ª–Vícios esses que consubstanciam verdadeiras nulidades, capazes de influenciar a apreciação e decisão da causa e que expressamente se argúem, nos termos do artº 615º do CPC.
14ª–Estando, assim, a decisão recorrida ferida de nulidade.
15ª–A finalidade do processo civil é uma sentença de mérito e deve ser atingida com a maior economia de meios que for possível.
16ª–Devendo, em consequência, a mesma ser revogada e substituída por outra que designe data para a audiência prévia ou, em alternativa, ser proferido despacho saneador ou, ainda, considerando-se assente ter havido apenas mera alegação de factos, deveria ser proferido despacho a convidar a recorrente a suprir as insuficiências na exposição ou concretização da matéria de facto alegada, nos termos do artº 591º do CPC, tudo ao abrigo dos princípios da cooperação e da economia processual.

Termina, pedindo que a decisão recorrida seja revogada, devendo a acção prosseguir seus termos.

Não houve contra-alegações.

Dispensados os vistos, cumpre decidir.

II-FUNDAMENTAÇÃO.

A)Fundamentação de facto.
A matéria de facto a considerar é a que resulta do relatório que antecede.

B)Fundamentação de direito.
As questões colocadas e que este tribunal deve decidir, nos termos dos artigos 663º nº 2, 608º nº 2, 635º nº 4 e 639º nºs 1 e 2 do novo Código de Processo Civil, aprovado pela Lei nº 41/2013, de 26 de Junho, aplicável por força do seu artigo 5º nº 1, em vigor desde 1 de Setembro de 2013, são as seguintes:
- Ineptidão da petição inicial;
- Decisão surpresa.

INEPTIDÃO DA PETIÇÃO INICIAL.
Como já se referiu, no despacho saneador foi julgada inepta a petição inicial, determinando a extinção e a absolvição da instância dos réus habilitados J... e J...

O fundamento substancial da julgada ineptidão da petição inicial consiste no facto de não terem sido alegados factos essenciais que permitam a compreensão cabal sobre a causa eficiente dos pedidos dos autores.

Segundo o disposto no artigo 186º nº 2 do NCPC, diz-se inepta a petição:
a)Quando falte ou seja ininteligível a indicação do pedido ou da causa de pedir;
b)Quando o pedido esteja em contradição com a causa de pedir.

Quer a doutrina, quer a jurisprudência, têm distinguido claramente a situação da petição inepta da daquela simplesmente irregular ou deficiente, no sentido de que só a falta ou a ininteligibilidade absolutas do pedido ou da causa de pedir acarretam a ineptidão.

Assim, já Alberto dos Reis defendia que “…Importa não confundir petição inepta com petição simplesmente deficiente… Quando a petição, sendo clara e suficiente quanto ao pedido e à causa de pedir, omite facto ou circunstâncias necessários para o reconhecimento do direito do autor, não pode taxar-se de inepta; o que então sucede é que a acção naufraga...”[2].

Por seu lado, também a jurisprudência se tem pronunciado em igual sentido, podendo citar-se, entre outros, o Acórdão da Relação de Lisboa de 18.02.1980, no qual se defendeu que “…Não é inepta, mas simplesmente irregular ou deficiente a petição em que o autor exprime correctamente o pedido e a causa de pedir mas omite factos positivos e concretos necessários para o reconhecimento do seu direito…”[3] e no Acórdão da Relação de Évora de 13.06.1991, no qual se pode ler “…O que acarreta a ineptidão da petição inicial é a falta de causa de pedir e não a insuficiência dos factos alegados para a integrar…”[4].

No Acórdão da Relação de Coimbra de 14.02.1995, em que se sufragou o entendimento de que “…As deficiências substanciais traduzidas na incompleta ou insuficiente articulação dos factos podem não obstar a que se conheça a causa de pedir (e, por isso, não dar lugar a ineptidão da petição inicial) mas terão antes como consequência a improcedência da acção…”[5].

Também é igual o entendimento contido no Acórdão do STJ de 19.11.2002, onde se pode ler “…A mera deficiência da causa de pedir, traduzida na omissão de facto necessário ao reconhecimento do direito do autor, não acarreta a ineptidão da petição inicial, conduzindo antes ao soçobro da acção…”[6] e o mesmo se diga do Acórdão do STJ de 15.01.2003, no qual se afirma que “…A ininteligibilidade do pedido ou da causa de pedir consiste na sua indicação em termos verdadeiramente obscenos ou ambíguos, por forma a não se saber, concreta e precisamente, o que pede o autor e com base em que é que o pede. É pelo conteúdo da petição inicial que se afere da sua ineptidão quanto ao pedido e causa de pedir (falta ou ininteligibilidade) e não pelo entendimento que o réu faz da sua viabilidade, nomeadamente do entendimento da validade jurídica que […] atribui ao pedido do autor e aos factos em que este o funda, por constituir defesa por impugnação e levar, se aceite, à improcedência do pedido…”[7], ou, ainda, o Acórdão da Relação de Évora de 29.04.2004, no qual se sublinhou que situações mais graves em que o vício da petição inicial corresponde a uma verdadeira ineptidão, é motivada por “…ausência de causa de pedir, pela sua ininteligibilidade, pela contradição ente causas de pedir ou entre a causa de pedir e o pedido…”[8]
 
Estes ensinamentos ao abrigo do antigo Código de Processo Civil mantêm plena actualidade, pois o artigo 186º mantém o regime anteriormente previsto no CPC-95/96[9].

Ora, procedendo à análise da factualidade exposta pelos autores, verifica-se que os mesmos desenharam com suficiente clareza uma acção de reivindicação contra o falecido réu, prevista no artigo 1311° do Código Civil, segundo o qual:

“1.O proprietário pode exigir judicialmente de qualquer possuidor ou detentor da coisa o reconhecimento do seu direito de propriedade e a consequente restituição do que lhe pertence".
“2.Havendo reconhecimento do direito de propriedade, a restituição só pode ser recusada nos casos previstos na lei”.

A acção de reivindicação deverá ser exercida pelo proprietário não possuidor contra o detentor ou possuidor que não é proprietário, incumbindo ao autor demonstrar que tem o direito de propriedade sobre a coisa reivindicada e que esse direito se encontra na posse ou detenção de outrem.

Entre os casos em que é lícito negar-se ao proprietário a restituição da coisa podem apontar-se o direito de retenção, o penhor, o usufruto, a locação, o comodato e qualquer outra relação obrigacional que confira a posse ou a detenção da coisa por parte do não proprietário.

Assim, provada a propriedade da coisa, a entrega desta só será recusada, se o demandado (o possuidor ou detentor) invocar (e provar) que lhe assiste a posse ou a detenção da coisa em virtude de uma relação obrigacional ou real que impeça o exercício pleno da propriedade, facto que, a ser alegado, constituirá excepção peremptória ao direito invocado pelo autor[10].

A alegação e a prova do direito de propriedade sobre a coisa reivindicada incumbem ao autor (artº 342º nº 1 do Código Civil), que terá de socorrer-se dos factos que demonstrem a aquisição originária do domínio, como a usucapião, ou a acessão ou a aquisição derivada (artº 1316º do Código Civil).

No caso dos autos mostra-se já provado que os autores são donos e legítimos proprietários do bem reivindicado, conforme consta da certidão da Conservatória do Registo Predial de Angra do Heroísmo – doc. fls 14, referido no artigo 7º da petição inicial.

Por outro lado, o réu alegou que ocupa o prédio reivindicado como arrendatário rural do mesmo e que é susceptível de ser oposto ao pedido de reivindicação feito pelos proprietários, ora apelantes, desde que demonstre, por contrato escrito, a existência de tal qualidade.

Ou seja, na acção de reivindicação, provada a propriedade dos autores sobre a coisa reivindicada, cabe aos réus, ora habilitados, o ónus da prova da existência de qualquer título ou causa legítima que fundamente a recusa de entrega do imóvel rústico.

Finalmente, uma breve referência ao pedido de indemnização formulado pelos autores nos artigos 15º, 16º, 17º e 18º da petição inicial.

Com os pedidos próprios da acção de reivindicação (reconhecimento do direito de propriedade e restituição da coisa) podem cumular-se outros pedidos acessórios, v.g. o pedido de indemnização.

A ocupação pelo réu, sem título, de um prédio que pertence aos autores é fundamento para a sua condenação no pagamento de uma quantia, a título de privação do uso; na verdade, a privação do uso de um bem decorrente de ocupação ilícita importa, em regra, na existência de um dano de que o lesado deve ser compensado.

Ainda que não se tenha provado que durante o período de privação o proprietário teria arrendado o imóvel por uma determinada quantia, não está afastado o seu direito de indemnização que considere o valor locativo do imóvel e, se necessário, pondere as regras da equidade.

A privação do uso de uma coisa, inibindo o proprietário ou detentor de exercer sobre a mesma os inerentes poderes, constitui um perda patrimonial que deve ser considerada, tudo se resumindo à detecção do método mais adequado para a quantificação da indemnização compensatória.

A prova da ocorrência de danos, concreta e directamente imputáveis à privação, é solução que se justifica quando o lesado pretenda obter o ressarcimento dos lucros cessantes, pelos benefícios que deixou de obter, nos termos do artigo 564º nº 1 do CC.

A ocupação ilícita de um prédio rústico, a ser provada, é causadora de dano para o proprietário, que consiste em ter sido temporariamente privado do gozo pleno e exclusivo dos direitos de uso e fruição, origina a obrigação de indemnizar.

Chegados aqui, podemos concluir que, demonstrada que se mostra desenhada na petição inicial (com excesso de articulados, é certo) uma acção de reivindicação com o correspondente pedido de indemnização, não haverá lugar à apontada ineptidão da petição inicial, como aconteceu no despacho recorrido.

Como facilmente se constata, o pedido e a causa de pedir encontram-se perfeitamente delineados, de tal modo que o réu não arguiu a ineptidão, o que significa que o réu interpretou convenientemente a petição inicial – NCPC artigo 186º nº 3, a contrario.

Finalmente, uma breve a actual referência ao actual espírito e filosofia do novo Código de Processo Civil.

Além do mais, importa ainda mencionar que o espírito e a filosofia que estão subjacentes ao Código de Processo Civil também apontam para a conveniência de interpretar a petição inicial de modo a que a acção possa ser aproveitada, evitando a absolvição da instância por razões meramente formais e sem que tal justificação se vislumbre como efectivamente necessária.

De facto, a filosofia subjacente ao Código de Processo Civil – concretizada por diversos modos em várias disposições legais – visa assegurar, sempre que possível, a prevalência do fundo sobre a forma, pretendendo que o processo e a respectiva tramitação possam ter a maleabilidade necessária para que possa funcionar como um instrumento (e não como um obstáculo) para alcançar a verdade material e a concretização dos direitos das partes, como claramente se evidencia no preâmbulo do Dec-Lei nº 329-A/95 de 12/12 (note-se que toda essa filosofia foi reafirmada e até reforçada no CPC actualmente vigente), quando ali se diz que as linhas mestras do processo assentam, designadamente na “Garantia de prevalência do fundo sobre a forma, através da previsão de um poder mais interventor do juiz…”; quando ali se refere que “visa, deste modo, a presente revisão do Código de Processo Civil torná-lo moderno, verdadeiramente instrumental no que toca à perseguição da verdade material, em que nitidamente se aponta para uma leal e sã cooperação de todos os operadores judiciários, manifestamente simplificado nos seus incidentes, providências, intervenção de terceiros e processos especiais, não sendo, numa palavra, nem mais nem menos do que uma ferramenta posta à disposição dos seus destinatários para alcançarem a rápida, mas segura, concretização dos seus direitos”; quando se alude ao “…objectivo de ser conseguida uma tramitação maleável, capaz de se adequar a uma realidade em constante mutação…” e quando se afirma que o processo civil terá que ser perspectivado “…como um modelo de simplicidade e de concisão, apto a funcionar como um instrumento, como um meio de ser alcançada a verdade material pela aplicação do direito substantivo, e não como um estereótipo autista que a si próprio se contempla e impede que seja perseguida a justiça, afinal o que os cidadãos apenas pretendem quando vão a juízo[11].

Nesta conformidade, procedem as conclusões 1ª a 11ª das alegações de recurso, não havendo ineptidão da petição inicial, restando ao tribunal de primeira instância proceder com o andamento dos autos com vista ao apuramento dos factos conducentes à procedência ou improcedência da acção, podendo aproveitar as sugestões que expostas  na conclusão 16ª.

DECISÃO SURPRESA.

De qualquer forma, nunca o tribunal poderia proferir uma decisão daquela natureza.
Efectivamente, o artigo 3º do Código de Processo Civil, prescreve, quanto à necessidade do pedido e da contradição:

1.“O tribunal não pode resolver o conflito de interesses que a acção pressupõe sem que a resolução lhe seja pedida por uma das partes e a outra seja devidamente chamada para deduzir oposição.
2.Só nos casos excepcionais previstos na lei se podem tomar providências contra determinada pessoa sem que esta seja previamente ouvida.
3.O juiz deve observar e fazer cumprir, ao longo de todo o processo, o princípio do contraditório, não lhe sendo lícito, salvo caso de manifesta desnecessidade, decidir questões de direito ou de facto, mesmo que de conhecimento oficioso, sem que as partes tenham tido a possibilidade de sobre elas se pronunciarem.

Como assinala Lebre de Freitas[12] “no plano das questões de direito, veio a revisão proibir a decisão-surpresa, isto é, a decisão baseada em fundamento que não tenha sido previamente considerado pelas partes (...) Antes de decidir com base em questão (de direito material ou de direito processual) de conhecimento oficioso que as partes não tenham considerado, o juiz deve convidá-las a sobre ela se pronunciarem seja qual for a fase do processo em que tal ocorra ”.

No plano das questões de direito, o princípio do contraditório exige que, antes da sentença, às partes seja facultada a discussão efectiva de todos os fundamentos de direito em que a decisão se baseie.

Tratando-se de um fundamento de direito na disponibilidade exclusiva das partes, a possibilidade de discussão resulta naturalmente da sua invocação (necessária) pelo interessado e do direito de resposta da parte contrária. Mas a proibição da chamada decisão-surpresa tem sobretudo interesse para as questões, de direito material ou de direito processual, de que o tribunal pode conhecer oficiosamente: se nenhuma das partes as tiver suscitado, com concessão à parte contrária do direito de resposta, o juiz – ou o relator do tribunal de recurso – que nelas entenda dever basear a sua decisão, seja mediante o conhecimento do mérito da causa seja no plano meramente processual, deve previamente convidar ambas as partes a sobre elas tomarem posição, só estando dispensado de o fazer em casos de manifesta desnecessidade (artº 3º nº 3)[13].

O artigo 3º do Código de Processo Civil não retira ao tribunal a plena liberdade de dizer o direito com independência; o que trata é apenas de evitar, proibindo-as, as decisões-surpresa.

E o mesmo se passa com o actual Código de Processo Civil. Segundo Paulo Ramos de Faria e Ana Luísa Loureiro[14]: “ O respeito pelo princípio do contraditório é postulado pelo direito a um processo equitativo, previsto no nº 4 do artigo 20º da CRP. Este princípio é hoje entendido como a garantia dada à parte, de participação efectiva na evolução da instância, tendo a possibilidade de influenciar todas as decisões e desenvolvimentos processuais com repercussões sobre o objecto da causa (…). O juiz pode decidir uma questão com base numa norma não invocada pelas partes (artº 5º nº 3), mas não sem que antes estas tenham tido a possibilidade de se pronunciar sobre esse enquadramento jurídico (nº 3). Esta possibilidade só pode surgir depois de a potencial relevância da norma para a decisão resultar clara na acção. Para tanto, se necessário, o tribunal deverá proporcionar um contraditório específico sobre a questão. Isto vale para a decisão liminar, como vale para o despacho saneador, como vale para a sentença final. Para que o tribunal deva proceder à audição complementar das partes não basta, pois, que pretenda aplicar uma norma por estas não invocada. É necessário que o enquadramento legal realizado seja manifestamente diferente do sustentado pelos litigantes. Deverá ser uma subsunção notada pela sua originalidade, pelo seu carácter invulgar e singular, objectivamente considerado”.

Defendendo uma mais ampla proibição da decisão surpresa, no plano das questões de direito, ver Lebre de Freitas[15].

Assim, procedem as conclusões 12ª a 16ª das alegações de recurso.

CONCLUINDO.

-Desenhando o autor na petição inicial uma autêntica acção de reivindicação, com a causa de pedir e os pedidos que a caracterizam, não haverá lugar à ineptidão inicial com qualquer dos fundamentos previstos no artigo 186º do actual Código de Processo Civil.
-Como assinala Lebre de Freitas, no plano das questões de direito, veio a revisão proibir a decisão-surpresa, isto é, a decisão baseada em fundamento que não tenha sido previamente considerado pelas partes.
-Antes de decidir com base em questão (de direito material ou de direito processual) de conhecimento oficioso que as partes não tenham considerado, o juiz deve convidá-las a sobre ela se pronunciarem seja qual for a fase do processo em que tal ocorra.
-No plano das questões de direito, o princípio do contraditório exige que, antes da sentença, às partes seja facultada a discussão efectiva de todos os fundamentos de direito em que a decisão se baseie.

III-DECISÃO.

Atento o exposto, julga-se totalmente procedente a apelação, revogando-se o despacho recorrido, a fim de se proceder em conformidade com o agora decidido.
Custas pela parte vencida a final.

Lisboa, 7/4/2016


Ilídio Sacarrão Martins
Teresa Prazeres Pais
Carla Mendes


[1]Por falecimento do réu ocorrido em 09 de Janeiro de 2012, no estado de viúvo, foi proferida sentença em 27 de Maio de 2014, que declarou habilitados para com eles prosseguirem os autos principais, seus filhos J... e J...
[2]REIS, Alberto dos, Comentários ao CPC, 2.º - 372.
[3]BMJ, 300.º - 439.
[4]BMJ, 408.º - 665.
[5]BMJ, 444.º - 718.
[6]Rel. Cons. Garcia Marques, disponível em www.dgsi.pt .
[7]AD, 502.º - 1537.
[8]Rel. Des. Bernardo Domingos, disponível em www.dgsi.pt.
[9]Paulo Ramos de Faria e Ana Luísa Loureiro, “Primeiras Notas ao Novo Código de Processo Civil, Os Artigos da Reforma”, 2014-2ª Edição, Volume I, pág 201.
[10]Cfr Ac. STJ de 02.12.1986, in BMJ 362º-537.
[11]Nosso acórdão de 16-04-2015, processo nº 4933-13.6TCLRS.L1-8, in www.dgsi.pt/jtrl
[12]Código de Processo Civil Anotado, Volume I, pág. 9.
[13]Lebre de Freitas, ob cit. pág. 96-105.
[14]Ob cit, pág. 31 a 33.
[15]Introdução ao Processo Civl – Conceito e Princípios Gerais à Luz do Novo Código, Coimbra Editora, 2013, pág. 133 e segs.

Decisão Texto Integral: