Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
672/17.7IDLSB.L1-5
Relator: ARTUR VARGUES
Descritores: INTERESSE EM AGIR
VÍCIOS DA SENTENÇA
ERRO NOTÓRIO NA APRECIAÇÃO DA PROVA
ILICITUDE
FALTA DE CONSCIÊNCIA
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 10/30/2018
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: N
Texto Parcial: S
Meio Processual: RECURSO PENAL
Decisão: PROVIDO
Sumário: Se, em alegações orais, o MºPº manifesta a “sua dificuldade em conceber a condenação e afirma que esse entendimento é susceptível de resultar de uma eventual “limitação” sua”, reconhecendo, assim, implicitamente, a admissibilidade de uma solução jurídica oposta, não se pode dizer que tenha pedido ou impetrado a absolvição dos arguidos, pelo que não se pode concluir que, ao interpor recurso, esteja a incorrer em venire contra factum proprium ou a ofender princípios da boa-fé e lealdade processuais possuindo ele, no caso em apreço, interesse processual em agir.

– Apresenta-se como contraditório dar como provado que a sociedade, por decisão do seu gerente, não remeteu à Administração Fiscal o pagamento respeitante ao montante apurado a título de IVA devido, com referência ao quarto trimestre de 2016 no valor de € 8.882,86 e que o não fez devido às dificuldades económicas que, em momento anterior, começou a atravessar, tendo afetado o dinheiro do IVA que recebeu dos clientes ao pagamento de fornecedores, considerando simultaneamente como não provado que a sociedade arguida não procedeu ao pagamento, nos prazos devidos, com o inequívoco e bem-sucedido propósito de o arguido singular alcançar para a sociedade, em nome e no interesse de quem atuavam, uma vantagem patrimonial indevida, consubstanciada na posse e utilização em benefício próprio de quantia que não era sua, fazendo-a sua e dando-lhe o destino que entendeu, bem sabendo que os montantes em causa pertenciam à administração tributária, a quem estava obrigado a entregar, e que ao atuar da forma descrita o fazia sem autorização e contra a vontade desta entidade, a quem causava um prejuízo patrimonial equivalente àquele montante.

– Também é incompatível e contraditório afirmar-se, por um lado, que o arguido JF, enquanto sócio gerente da sociedade arguida, decidiu não remeter à Administração Fiscal o pagamento respeitante ao montante apurado a título de IVA devido a dificuldades económicas e, por outro, considerar como não provado que tenha agido de modo voluntário, livre e consciente, por si e enquanto legal representante da sociedade arguida, em nome e no interesse de quem actuou.

– Se o arguido é sócio gerente de uma sociedade, estando ciente de que tinha de remeter à Administração Fiscal o pagamento respeitante ao montante apurado, a título de IVA devido, e, não estando perante uma situação em que ocorreu uma neo-criminalização da omissão dessa conduta (concretamente tendo em atenção o montante em dívida), pois há já largos anos que esta é proibida e legalmente punida, pelo que o cidadão comum de Portugal há muito que o não ignora e muito menos quem exerce aquelas funções, haverá de concluir-se que, ao dar como não provado que o arguido sabia que a sua descrita conduta era proibida e como tal punida pela lei penal, incorreu a decisão revidenda no vício de erro notório na apreciação da prova, vício que deterina o reenvio do processo para novo julgamento, se não for possível decidir da causa - artigo 426º, nº 1 do CPP.
Decisão Texto Parcial:Acordam na 5ª Secção do Tribunal da Relação de Lisboa


IRELATÓRIO:


1.– Nos presentes autos com o NUIPC 672/17.7IDLSB, da Comarca de Lisboa Oeste – Sintra - Instância Local – Secção Criminal - Juiz 3, em Processo Comum, com intervenção do Tribunal Singular, foram os arguidos “HH , Lda” e JF  absolvidos, por sentença de 08/03/2018, do crime de abuso de confiança fiscal, p. e p. pelo artigo 105º, nºs 1, 2 e 4, alíneas a) e b), do Regime Geral das Infracções Tributárias, aprovado pela Lei nº 15/2001, de 05/06, por que vinham acusados.

2.– O Ministério Público não se conformou com o teor da decisão e dela interpôs recurso, tendo extraído da motivação as seguintes conclusões (transcrição):

1.– Em face da prova produzida em audiência de discussão e julgamento, é entendimento do Ministério Público que não restam dúvidas que a sociedade arguida não procedeu ao pagamento, nos prazos devidos, com o inequívoco e bem-sucedido propósito dos arguidos singulares de alcançarem para a sociedade, em nome e no interesse de quem actuavam, uma vantagem patrimonial indevida, consubstanciada na posse e utilização em beneficio próprio de quantia que não era sua, fazendo-a sua e dando-lhe o destino que entenderam, bem sabendo que os montantes em causa pertenciam à administração tributária, a quem estavam obrigados a entregar, e que ao actuar da forma descrita o faziam sem autorização e contra a vontade desta entidade, a quem causavam um prejuízo patrimonial equivalente àquele montante.
2.– Igualmente não restam dúvidas que o arguido JF  de modo voluntário, livre e consciente, por si e enquanto legal representante da sociedade arguida, em nome e no interesse de quem actuou, bem sabendo que a sua descrita conduta era proibida e como tal punida pela lei penal.
3.– A luz das regras da experiência comum (regras que se colhem, ao longo dos tempos, da sucessiva repetição de circunstâncias, factos e acontecimentos que se sedimentam no espírito do homem comum como juízos hipotéticos de conteúdo genérico, independentes dos casos individuais em cuja observação se alicerçam, mas para além dos quais têm validade) deviam tais factos ser dados como provados e não como não provados, como aconteceu.
4.– O tribunal a quo não valorou devidamente as declarações do arguido e tal falta de valoração constitui erro na apreciação da prova por que da mesma, apreciada de acordo com as regras da experiência, teria de resultar a convicção de que a sociedade arguida não procedeu ao pagamento, nos prazos devidos, com o inequívoco e bem-sucedido propósito dos arguidos singulares de alcançarem para a sociedade, em nome e no interesse de quem actuavam, uma vantagem patrimonial indevida, consubstanciada na posse e utilização em benefício próprio de quantia que não era sua, fazendo-a sua e dando-lhe o destino que entenderam, bem sabendo que os montantes em causa pertenciam à administração tributária, a quem estavam obrigados a entregar, e que ao actuar da forma descrita o faziam sem autorização e contra a vontade desta entidade, a quem causavam um prejuízo patrimonial equivalente àquele montante, e de que o arguido JF  de modo voluntário, livre e consciente, por si e enquanto legal representante da sociedade arguida, em nome e no interesse de quem actuou, bem sabendo que a sua descrita conduta era proibida e como tal punida pela lei penal.
5.– Não podia igualmente considerar-se, como se considerou na sentença recorrida, que "O arguido JF , estando a cumprir o acordado com a Administração Fiscal, não equacionou que, para si, adviesse qualquer responsabilidade criminal, não obstante saber que estava obrigado a pagar o IVA ao Fisco e que o estava, como está a fazer."
6.– E isso mesmo resulta da sua conduta após a prática dos factos, da sua conduta antes e depois da notificação que lhe foi efectuada nos termos e para os efeitos do disposto na alínea b) do n.º 4 do artigo 105.º do RGIT, e da sua conduta após a notificação da acusação que contra si e contra a sociedade por si representada foi deduzida e do despacho que a recebeu e que agendou dia para a realização da audiência de discussão e julgamento.
7.– A Lei n.º 53-A/2006, de 29 de Dezembro, introduziu uma nova condição de punibilidade relativamente ao crime de abuso de confiança fiscal, que ficou a constar da alínea b) do n.º 4 do artigo 105.º do Regime Geral das Infracções Tributárias: a prestação tributária comunicada à Administração Tributária através da correspondente declaração não ser entregue, bem como o não pagamento dos juros respectivos e do valor da coima aplicável, no prazo de 30 dias após notificação para o efeito.
8.– Como refere Paulo Marques, "infere-se da ratio deste preceito legal que o sistema penal fiscal privilegia e incentiva o cumprimento das obrigações fiscais (principais e/ou acessórias), recorrendo-se aos instrumentos coactivos penais apenas quando a colaboração dos contribuintes não é conseguida num patamar aceitável (Princípio da subsidiariedade do Direito Penal).
9.– Resulta do Acórdão de Uniformização de Jurisprudência do Supremo Tribunal de Justiça n.º 6/2008, de 15/05/2008, que "A exigência prevista na alínea b) do n.º 4 do artigo 105.° do RGIT, na redacção introduzida pela Lei 53-A/2006, configura uma nova condição objectiva de punibilidade que, nos termos do artigo 2.º, n.º 4, do Código Penal, é aplicável aos factos ocorridos antes da sua entrada em vigor. Em consequência, e tendo sido cumprida a obrigação de declaração, deve o agente ser notificado nos termos e para os efeitos do referido normativo (alínea b) do n.º 4 do art. 105º do RGIT."
10.– É entendida como condição objectiva de punibilidade determinada circunstância a que a lei penal atribui o efeito de condicionar a punibilidade de determinados factos criminalmente relevantes.
11.– Assim, o legislador apesar de considerar a conduta do agente, ilícita e culposa, perante a actuação posterior do mesmo agente, na protecção do bem jurídico em causa ou na reparação da lesão provocada, exclui a punibilidade daquela sua conduta.
12.– Sob o ponto de vista dogmático-jurídico, o crime de abuso de confiança fiscal, configura-se como um crime omissivo puro na medida em que o facto típico previsto na norma incriminadora se verifica com a não entrega da prestação tributária, tendo-se por praticada a omissão na data em que termina o prazo para cumprimento da obrigação tributária (cfr. artigo 5.º, n.º 2, do Regime Geral das Infracções Tributárias).
13.– Como vem sendo defendido na jurisprudência "A condição de punibilidade não é a notificação que deve ser feita para pagamento, mas sim a atitude que o contribuinte toma perante este procedimento (de notificação) que agora se exige." (entre outros Acórdão do Tribunal da Relação de Évora de 6/11/2017, processo n.º 2210/07-1, Acórdãos do Tribunal da Relações de Lisboa de 4/11/2015, no processo n.º 97/12.0IDLSB.L1-3, e de 15/02/2018, no processo n.º 688/16.0T9LRS-A.Ll-9, e Acórdão do Tribunal da Relação do Porto de 7/01/2015, no processo n.º 735/09-2TAOAZ.P1).
14.– O ilícito criminal imputado aos arguidos é composto pelos seguintes elementos típicos: O agente esteja obrigado a entregar ao credor tributário (administração fiscal) determinada prestação tributária de valor superior a € 7.500; essa prestação tributária tenha sido deduzida nos termos da lei tributária; o agente não proceda à entrega de tal prestação, e o faça dolosamente, sob qualquer uma das modalidades do dolo: directo, necessário ou eventual.
15.– Para além disso, exige-se ainda a verificação de duas condições objectivas de punibilidade da conduta: que o agente não proceda à entrega da prestação após terem decorrido mais de 90 dias sobre o termo do prazo legal de entrega da prestação (alínea a), e que a prestação que tiver sido comunicada à administração tributária através da correspondente declaração não for paga, acrescida dos juros respectivos e do valor da coima aplicável, no prazo de 30 dias após notificação para o efeito (alínea b).
16.– E isso aconteceu, mostrando-se preenchidos os elementos típicos objectivos e subjectivos do tipo de ilícito em análise, bem como se mostra preenchida a condição objectiva de punibilidade.
17.– Os arguidos deviam ter uma conduta positiva e activa junto da administração tributária para liquidar tais montantes, de forma a excluir a punibilidade das suas condutas, mas apenas se mostra documentada actividade dos arguidos junto da administração tributária no sentido de celebrarem um acordo com vista ao pagamento, em vinte e quatro meses, dos montantes em causa. Não resulta que tenham procedido ao pagamento integral da quantia de imposto em dívida, juros e coima aplicável. E é essa cumulação a única capaz de obstar à verificação da condição objectiva de punibilidade.
18.– Os arguidos não pagaram a totalidade da quantia em causa, juros e coima aplicável, celebrando apenas acordo para pagamento em prestações do imposto e juros durante o período de vinte e quatro meses e procederam, no prazo dos 30 dias subsequentes à notificação, ao pagamento de uma das prestações. Tal é insuficiente para impedir a verificação da condição objectiva de punibilidade que, face ao não pagamento nos moldes exigidos, se verificou. A não ser assim, estaria encontrada a fórmula para, ao contrário do previsto na lei, os arguidos se eximirem de processos criminais. Bastava aguardar pela notificação e fazer um plano de pagamento no decurso do prazo ali subjacente.
19.– Não se concorda com a douta sentença quando refere que ao aceitar o acordo de pagamento e o pagamento da primeira prestação, a Administração Fiscal deu sem efeito a notificação efectuada nos termos e para os efeitos do disposto na alínea b) do n.º 4 do artigo 105.º do Regime Geral das Infracções Tributárias.
20.– Igualmente não se concorda que, ao aceitar o pagamento e prosseguir com o processo criminal, a Administração Fiscal actuou em venire contra factum proprium.
21.– Resulta do n.º 1 do artigo 40.º do Regime Geral das Infracções Tributárias que "adquirida notícia do crime se procede a inquérito sob a direcção do Ministério Público, com as finalidades e nos termos do disposto no Código de Processo Penal".
22.– O Ministério Público dirige o inquérito (artigo 53º do Código de Processo Penal) que compreende o conjunto de diligências que visam investigar a existência de um crime, determinar os seus agentes e a responsabilidade deles e descobrir e recolher as provas, em ordem à decisão sobre a acusação (n.º 1 do artigo 262.º do Código de Processo Penal).
23.– Aos órgãos da administração tributária cabem, durante o inquérito, os poderes e funções que o Código de Processo Penal atribui aos órgãos e às autoridades de polícia criminal (artigo 40.º, n.º 2, do Regime Geral das Infracções Tributárias).
24.– As relações jurídico-tributárias são as estabelecidas entre a administração tributária, agindo como tal e a quem é dado o direito de exigir o cumprimento das obrigações tributárias, e as pessoas singulares e colectivas e outras entidades legalmente equiparadas a estas (artigo 1.º, n.º 2, da Lei Geral Tributária).
25.– No caso em apreço, estabeleceu-se uma relação jurídica entre a administração tributária e o sujeito passivo HH, Lda., representada por JF , no âmbito da qual o sujeito passivo entregou, no dia 14 de Fevereiro de 2017, a declaração periódica de Imposto sobre o Valor Acrescentado relativa ao quarto trimestre de 2016, obrigação decorrente do disposto na alínea c) do n.º 1 do artigo 29.º e da alínea b) do n.º 1 do artigo 41.º do Código do Imposto sobre o Valor Acrescentado.
26.– No entanto, não a fez acompanhar do respectivo meio de pagamento, conforme se encontrava obrigado nos termos do n.º 1 do artigo 27.º do referido diploma, verificando-se a não entrega nos cofres do Estado de Imposto sobre o Valor Acrescentado no montante de € 8.882,86, cujo prazo de pagamento terminou no dia 14 de Fevereiro de 2017.
27.– Em face disso, no uso das competências conferidas pela alínea b) do artigo 59° do Regime Geral das Infracções Tributárias e nos termos e para os fins consignados no n.º 1 do artigo 57.º do mesmo diploma legal, foi levantado o competente auto de notícia, a que foi atribuído o n.º 20170092540/2017, que deu origem ao processo contra-ordenacional n.º 35572017060000031773.
28.– Posteriormente, decorridos 90 dias sobre o termo do prazo de pagamento e verificados os elementos objectivos do tipo de ilícito (cfr. artigo 105.º, n.º 1, do Regime Geral das Infracções Tributárias), foi instaurado processo de inquérito e determinada a suspensão do processo contra-ordenacional.
29.– Instaurado processo de inquérito, o mesmo prosseguiu os seus termos.
30.– Os arguidos decidiram apresentar plano de pagamento em prestações da quantia respeitante ao imposto, juros e coima aplicável, o que foi aceite pela administração tributária.
31.– A par da responsabilidade criminal tem sempre o sujeito passivo a sua responsabilidade tributária. Daí que o despacho de encerramento de inquérito em nada interfira com a obrigação de pagamento de imposto, assim como o pagamento do imposto em nada interfere com a responsabilidade criminal. Isto a menos que o pagamento do imposto, juros e coima aplicável ocorra no prazo previsto na alínea b) do n.º 4 do artigo 105.º do Regime Geral das Infracções Tributárias, uma vez que, em tal situação, o referido pagamento tem a virtualidade de fazer com que não se verifique a condição objectiva de punibilidade ínsita em tal previsão legal.
32.– Assim, ao aceitar o acordo de pagamento e o pagamento da primeira prestação, a Administração Fiscal não deu sem efeito a notificação efectuada nos termos e para os efeitos do disposto na alínea b) do n.º 4 do artigo 105.º do RGIT. Tal nem é juridicamente possível.
33.– Não deu nem o podia dar. A notificação foi válida e regularmente efectuada e a única possibilidade de que os arguidos dispunham de impedir a verificação da condição objectiva de punibilidade era o pagamento integral. E sublinha-se pagamento integral do imposto, juros e coima aplicável. A letra da lei não admite nem suscita dúvidas, é clara na sua previsão e na sua intenção.
34.– Qualquer outro pagamento que não o integral nos termos referidos (que não se vislumbra por que não deva ser aceite) não é bastante para afastar a verificação da condição objectiva de punibilidade, que se verificou.
35.– A tal acresce que a administração tributária não tem o ónus de decidir o destino do processo criminal, não sendo a si que compete prosseguir ou não com um processo criminal. O inquérito criminal encontrava-se instaurado, em investigação, cabendo decidir dos respectivos trâmites ao Ministério Público, autoridade judiciária que, como se disse, dirige o inquérito.
36.– E assim foi. Conhecido o plano de pagamentos e requerida pelos arguidos a suspensão provisória do processo, o Ministério Público decidiu, pelos fundamentos do despacho de fls. 360, não determinar a aplicação de tal instituto de consensualização ao inquérito. Mais decidiu proferir despacho de acusação.
37.– Os arguidos foram notificados destes despachos e dos mesmos não reagiram. Estavam, assim, os arguidos bem cientes da sua conduta e de que o pagamento que se encontravam a efectuar, em cumprimento da obrigação tributária que detinham, em nada colidia com a sua responsabilidade criminal por um crime que se verificou nos seus elementos objectivos e subjectivos, não tendo os arguidos impedido a verificação da condição objectiva de punibilidade que apenas não se verificava na referida condição de pagamento integral de imposto, juros e coima.
38.– Bem sabiam os arguidos dessa condição e dos termos da mesma. Bem sabiam os arguidos da sua obrigação de pagar o imposto, os juros e a coima. E bem sabiam os arguidos que pagamento em vinte e quatro prestações alcançado mais de um ano e meio depois de vencida a obrigação de pagar e pagamento integral no prazo de 30 dias não é a mesma coisa. Tanto assim que optaram pela segunda e não pela primeira.
39.– O desconhecimento da lei não aproveita a ninguém, não se podendo os arguidos escudar no mesmo, que de resto não se verificou.
40.– Daí que entendamos ser de concluir que, ao aceitar ao pagamento e prosseguir com o processo criminal, não actuou a Administração Fiscal actuou em venire contra factum propríum. Aliás, a ser assim, violaria a administração tributária a lei....

Termos em que deverá o presente recurso ser julgado procedente e, em consequência, ser revogada a douta sentença recorrida e substituída por outra que:
Valorando as declarações do arguido e da testemunha considere provado que: a sociedade arguida não procedeu ao pagamento, nos prazos devidos, com o inequívoco e bem-sucedido propósito dos arguidos singulares de alcançarem para a sociedade, em nome e no interesse de quem actuavam, uma vantagem patrimonial indevida, consubstanciada na posse e utilização em benefício próprio de quantia que não era sua, fazendo-a sua e dando-lhe o destino que entenderam, bem sabendo que os montantes em causa pertenciam à administração tributária, a quem estavam obrigados a entregar, e que ao actuar da forma descrita o faziam sem autorização e contra a vontade desta entidade, a quem causavam um prejuízo patrimonial equivalente àquele montante, e agiu o arguido JF de modo voluntário, livre e consciente, por si e enquanto legal representante da sociedade arguida, em nome e no interesse de quem actuou, bem sabendo que a sua descrita conduta era proibida e como tal punida pela lei penal,
Condene o arguido JF  pela prática, em autoria material e na forma consumada, de um crime de abuso de confiança fiscal, previsto e punido pelos artigos 6.º e 105.º, n.ºs 1, 2, 4, alíneas a) e b), e 7, do Regime Geral das Infracções Tributárias, e
Considere a sociedade arguida HH , Lda. responsável por um crime de abuso de confiança fiscal, previsto e punido pelos artigos 7.º e 105.º, n.ºs 1, 2, 4, alíneas a) e b), e 7, do Regime Geral das Infracções Tributárias.

3.– Os arguidos responderam à motivação de recurso, sustentando que deve ser rejeitado por manifesta improcedência, uma vez que nas alegações orais, finda a produção da prova em audiência de julgamento, o Ministério Público pugnou pela sua absolvição, pelo que não tem, in casu, interesse em agir, carecendo, por isso, também de legitimidade para recorrer.

Subsidiariamente, pugnam por ser negado provimento ao recurso.

4.– Nesta Relação, o Exmº Procurador-Geral Adjunto emitiu parecer no sentido de ser concedido provimento ao recurso.

5.– Foi dado cumprimento ao disposto no artigo 417º, nº 2, do CPP, não tendo sido apresentada resposta.

6.– Procedeu-se à realização de audiência por, dada a absolvição dos arguidos em sede de 1ª instância e tendo sido o recurso interposto pelo Ministério Público, existir a possibilidade de serem eles condenados por este Tribunal da Relação e se afigurar necessário que, pessoalmente e na presença dos respectivos mandatários, se pronunciassem, querendo, sobre as questões da sua culpabilidade ou inocência e a eventualidade da condenação.

Cumpre apreciar e decidir.

II–FUNDAMENTAÇÃO.

1.–Âmbito do Recurso

O âmbito do recurso é delimitado pelas conclusões que o recorrente extrai da respectiva motivação, havendo ainda que ponderar as questões de conhecimento oficioso, mormente os vícios enunciados no artigo 410º, nº 2, do CPP – neste sentido, Germano Marques da Silva, Curso de Processo Penal, III, 2ª edição, Editorial Verbo, pág. 335; Simas Santos e Leal Henriques, Recursos em Processo Penal, 6ª edição, Edições Rei dos Livros, pág. 103, Ac. do STJ de 28/04/1999, CJ/STJ, 1999, tomo 2, pág. 196 e Ac. do Pleno do STJ nº 7/95, de 19/10/1995, DR I Série A, de 28/12/1995.

No caso em apreço, atendendo às conclusões da motivação de recurso, as questões que se suscitam são as seguintes:

Impugnação da matéria de facto/erro de julgamento.

Enquadramento jurídico-penal da conduta dos arguidos.

2.–A Decisão Recorrida

O Tribunal a quo deu como provados os seguintes factos (transcrição):

1- A sociedade HH , Lda. tinha a sua sede na Rua R. no Cacém.
2- Era titular do número de contribuinte fiscal … e encontrava-se enquadrada no regime normal de periodicidade trimestral de imposto sobre o valor acrescentado (IVA).
3- A sua gerência cabia JF , que agia em nome e interesse da sociedade, dirigia a sua atividade, celebrava contratos com fornecedores e clientes e efetuava recebimentos e pagamentos.
4- Por força das regras alusivas ao IVA, a sociedade arguida estava obrigada a enviar trimestralmente aos serviços da Administração Fiscal uma declaração relativa às operações efetuadas no exercício da sua atividade no decurso do trimestre precedente, designadamente com indicação do IVA devido ou do crédito existente quanto ao mesmo e dos elementos que serviram de base ao respetivo cálculo.
5- Simultaneamente com a declaração referida, a sociedade arguida estava obrigada a proceder à entrega do montante de IVA devido.
6- A sociedade liquidou e recebeu dos respetivos clientes o IVA relativo a serviços prestados aos mesmos e procedeu ao preenchimento e ao envio à Administração Fiscal das respetivas declarações trimestrais.
7- Porém, devido às dificuldades económicas que, em momento anterior, começou a atravessar, a sociedade, por decisão do seu gerente, não remeteu à Administração Fiscal o pagamento respeitante ao montante apurado a título de IVA devido, com referência ao quarto trimestre de 2016 no valor de € 8.882,86.
8- Não o tendo feito até ao dia 15 do mês posterior ao trimestre a que respeitava o imposto em causa, nem nos 90 dias que lhes seguiram.
9- Os arguidos foram notificados no dia 18 de Julho de 2017 para procederem ao pagamento dos referidos montantes não entregues, acrescido dos respetivos juros de mora e do valor da coima aplicável, no prazo de 30 dias a contar da referida notificação.

Mais se provou que:
10- O arguido confessou integralmente e sem reservas os factos acima descritos.
11- A conduta do arguido deveu-se às dificuldades financeiras com que se debelou, tendo afetado o dinheiro do IVA que recebeu dos clientes ao pagamento de fornecedores.
12- A sociedade arguida continua a laborar.
13-Por despacho de 16.08.2017, a Autoridade Tributária autorizou a sociedade arguida ao pagamento do montante do IVA supra referido em 24 prestações, acordo que está a ser cumprido, tendo pago já a quantia de € 1.850,60, com a 1.ª prestação liquidada no dia 16.08.2017. 14-O arguido vive com a companheira, em casa arrendada, cuja renda mensal é de € 400,00.
14-Aufere mensalmente € 650,00. A companheira aufere mensalmente € 650,00.
15- Tem uma filha menor, que vive com a mãe, pagando àquela € 100,00 mensais a título de pensão de alimentos.
16- O arguido tem o 12.º ano de escolaridade.
17- Os arguidos não têm antecedentes criminais.

Quanto aos factos não provados, considerou como tal (transcrição):

1- Os arguidos nada pagaram;
2- A sociedade arguida não procedeu ao pagamento, nos prazos devidos, com o inequívoco e bem-sucedido propósito dos arguidos singulares de alcançarem para a sociedade, em nome e no interesse de quem atuavam, uma vantagem patrimonial indevida, consubstanciada na posse e utilização em benefício próprio de quantia que não era sua, fazendo-a sua e dando-lhe o destino que entenderam, bem sabendo que os montantes em causa pertenciam à administração tributária, a quem estavam obrigados a entregar, e que ao atuar da forma descrita o faziam sem autorização e contra a vontade desta entidade, a quem causavam um prejuízo patrimonial equivalente àquele montante.
3- Agiu o arguido JF  de modo voluntário, livre e consciente, por si e enquanto legal representante da sociedade arguida, em nome e no interesse de quem atuou, bem sabendo que a sua descrita conduta era proibida e como tal punida pela lei penal.

Fundamentou a formação da sua convicção nos seguintes termos (transcrição):
(…)

Apreciemos.

Questão prévia

Defendem os arguidos na sua resposta à motivação de recurso que o Ministério Público/recorrente carece de legitimidade e de interesse em agir para a interposição de recurso da sentença absolutória, porquanto nas alegações orais em audiência de julgamento “não indicou a pena, nem a medida a aplicar, pronunciando-se, isso sim, no sentido da absolvição.”

De acordo com o estabelecido na alínea a), do nº 1, do artigo 401º, do CPP, o Ministério Público tem legitimidade para recorrer de quaisquer decisões, ainda que no exclusivo interesse do arguido, sendo que, conforme consagrado no seu nº 2, “não pode recorrer quem não tiver interesse em agir”.

A problemática em causa coloca-se, pois, no âmbito do interesse em agir e não da legitimidade, pois esta, indubitavelmente, está presente.

O Supremo Tribunal de Justiça no seu Acórdão nº 2/2011, de 16/12/2010, D.R. I Série, nº 19, de 27/01/2011, fixou jurisprudência nos seguintes termos: “em face das disposições conjugadas dos artigos 48º a 53º, e 401º, do Código de Processo Penal o Ministério Público não tem interesse em agir para recorrer de decisões concordantes com a sua posição anteriormente assumida no processo”.

Tendo-se procedido à audição das aludidas alegações orais, na gravação disponibilizada pelo tribunal a quo, resulta ter a Digna Magistrada do Ministério Público dito o seguinte:

Eu tenho alguma dificuldade em integrar isto em matéria criminal porque há aqui um cidadão, qualquer que ele seja, que se dirige à administração e pese embora exista um processo-crime pendente se encontra numa situação de facto de regularização da dívida. O tribunal em minha opinião vai ter muita dificuldade em fixar o valor em dívida (…) eu não estou a ver, tenho alguma dificuldade, talvez por limitação minha, em considerar aqui uma possível condenação do arguido. Nestes termos peço justiça.

Ora, como se alcança do transcrito, a dita magistrada não pugnou nas suas alegações orais pela absolvição dos arguidos, não a impetrou, o que manifesta é a sua dificuldade em conceber a condenação, o que se lhe não equipara.

E, também vero é que logo afirma que esse entendimento é susceptível de resultar de uma eventual “limitação” sua, reconhecendo, assim, implicitamente, a admissibilidade de uma solução jurídica oposta.

Nestes termos, não se pode concluir por obliterar o recorrente os princípios da boa-fé e lealdade processuais, por ao interpor recurso venire contra factum proprium, possuindo ele, no caso em apreço, interesse processual em agir.

Impugnação da matéria de facto/erro de julgamento

Conforme estabelecido no artigo 428º, nº 1, do CPP, os Tribunais da Relação conhecem de facto e de direito, de onde resulta que, em regra e quanto a estes Tribunais, a lei não restringe os respectivos poderes de cognição.

A matéria de facto pode ser sindicada por duas vias: no âmbito dos vícios previstos no artigo 410º, nº 2, do CPP, no que se denomina de “revista alargada”, cuja indagação tem que resultar da decisão recorrida, por si mesma ou conjugada com as regras da experiência comum, não sendo por isso admissível o recurso a elementos àquela estranhos para a fundamentar, como, por exemplo, quaisquer dados existentes nos autos, mesmo que provenientes do próprio julgamento – neste sentido, por todos, Ac. do STJ de 05/06/2008, Proc. nº 06P3649 e Ac. do STJ de 14/05/2009, Proc. nº 1182/06.3PAALM.S1, in www.dgsi.pt. - ou através da impugnação ampla da matéria de facto, a que se reporta o artigo 412º, nºs 3, 4 e 6, do mesmo diploma legal.

O recorrente coloca em causa a factualidade vertida nos pontos 2 e 3 dos factos dados como não provados na decisão revidenda, apelando, entre o mais, para as declarações do arguido JF  prestadas no decurso da audiência de julgamento, assim demonstrando que pretende prevalecer-se da modalidade de impugnação ampla da matéria de facto.

Nesta modalidade, a apreciação não se restringe ao texto da decisão, alargando-se à análise do que se contém e pode extrair da prova (documentada) produzida em audiência, mas sempre confinada aos limites fornecidos pelo recorrente no cumprimento do ónus de especificação imposto pelos nºs 3 e 4, do artigo 412º, do CPP.

Mas, vejamos, antes de mais, se a decisão revidenda não padece de algum dos aludidos vícios, desde logo, o de contradição insanável da fundamentação.

O vício de contradição insanável da fundamentação ou entre a fundamentação e a decisão, elencado no artigo 410º, nº 2, alínea b), do CPP, como se salienta no Ac. do STJ de 29/10/2015, Proc. nº 230/10.7JAAVR.P1.S1, disponível em www.dgsi.pt, ocorre quando se dá como provado e não provado determinado facto, quando ao mesmo tempo se afirma ou nega a mesma coisa, quando simultaneamente se dão como assentes factos contraditórios e ainda quando se estabelece confronto insuperável e contraditório entre a fundamentação probatória da matéria de facto ou contradição entre a fundamentação e a decisão, quando a fundamentação justifica decisão oposta ou não justifica a decisão.

Ou seja, resulta da oposição entre factos provados entre si incompatíveis; entre a matéria de facto provada e a não provada; quando se dá como provado um determinado facto e da motivação da convicção resulta, face à valoração probatória e ao raciocínio dedutivo explanado, que seria outra a decisão de facto correcta.

O tribunal considerou como não provado:

2– A sociedade arguida não procedeu ao pagamento, nos prazos devidos, com o inequívoco e bem-sucedido propósito dos arguidos singulares de alcançarem para a sociedade, em nome e no interesse de quem atuavam, uma vantagem patrimonial indevida, consubstanciada na posse e utilização em benefício próprio de quantia que não era sua, fazendo-a sua e dando-lhe o destino que entenderam, bem sabendo que os montantes em causa pertenciam à administração tributária, a quem estavam obrigados a entregar, e que ao atuar da forma descrita o faziam sem autorização e contra a vontade desta entidade, a quem causavam um prejuízo patrimonial equivalente àquele montante.
3– Agiu o arguido JF  de modo voluntário, livre e consciente, por si e enquanto legal representante da sociedade arguida, em nome e no interesse de quem atuou, bem sabendo que a sua descrita conduta era proibida e como tal punida pela lei penal.

E, concomitantemente, considerou como provado que a sociedade liquidou e recebeu dos respetivos clientes o IVA relativo a serviços prestados aos mesmos e procedeu ao preenchimento e ao envio à Administração Fiscal das respetivas declarações trimestrais – ponto 6 dos factos provados.
Porém, devido às dificuldades económicas que, em momento anterior, começou a atravessar, a sociedade, por decisão do seu gerente, não remeteu à Administração Fiscal o pagamento respeitante ao montante apurado a título de IVA devido, com referência ao quarto trimestre de 2016 no valor de € 8.882,86; A conduta do arguido deveu-se às dificuldades financeiras com que se debelou, tendo afetado o dinheiro do IVA que recebeu dos clientes ao pagamento de fornecedores- pontos 7 e 10.
Não o tendo feito até ao dia 15 do mês posterior ao trimestre a que respeitava o imposto em causa, nem nos 90 dias que lhes seguiram – ponto 8.

Pois bem, apresenta-se como contraditório dar como provado que a sociedade, por decisão do seu gerente, não remeteu à Administração Fiscal o pagamento respeitante ao montante apurado a título de IVA devido, com referência ao quarto trimestre de 2016 no valor de € 8.882,86 e que o não fez devido às dificuldades económicas que, em momento anterior, começou a atravessar, tendo afetado o dinheiro do IVA que recebeu dos clientes ao pagamento de fornecedores, considerando simultaneamente como não provado que a sociedade arguida não procedeu ao pagamento, nos prazos devidos, com o inequívoco e bem-sucedido propósito dos arguidos singulares (esta menção será certamente por mero lapso, pois nestes autos apenas figura como acusado um arguido pessoa singular) de alcançarem para a sociedade, em nome e no interesse de quem atuavam, uma vantagem patrimonial indevida, consubstanciada na posse e utilização em benefício próprio de quantia que não era sua, fazendo-a sua e dando-lhe o destino que entenderam, bem sabendo que os montantes em causa pertenciam à administração tributária, a quem estavam obrigados a entregar, e que ao atuar da forma descrita o faziam sem autorização e contra a vontade desta entidade, a quem causavam um prejuízo patrimonial equivalente àquele montante.

Como incompatível é afirmar-se, por um lado, que o arguido JF  enquanto sócio gerente da “HH” decidiu não remeter à Administração Fiscal o pagamento respeitante ao montante apurado a título de IVA devido a dificuldades económicas e por outro considerar como não provado que tenha agido de modo voluntário, livre e consciente, por si e enquanto legal representante da sociedade arguida, em nome e no interesse de quem actuou.

Como se decidiu no Ac. do STJ de 18/03/2004, Proc. nº 03P3566, citado por Vinício Ribeiro, Código de Processo Penal, Notas e Comentários, Coimbra Editora, 2008, págs. 914/915, a contradição insanável da fundamentação ou entre a fundamentação e a decisão, apenas se verificará quando, analisada a matéria de facto, se chegue a conclusões irredutíveis entre si e que não possam ser ultrapassadas ainda que com recurso ao contexto da decisão no seu todo ou às regras da experiência comum.

Ora, as contradições verificadas são perfeitamente ultrapassáveis, de onde resulta que se não mostram insanáveis, cumprindo apenas considerar a aludida factualidade constante dos factos não provados como provada.

O tribunal a quo deu também como não provado que o arguido tinha conhecimento que a sua descrita conduta era proibida e como tal punida pela lei penal.

O vício de erro notório na apreciação da prova – previsto na alínea c), do nº 2, do artigo 410º, do CPP – está presente quando um homem médio, perante o teor da decisão recorrida, por si só ou conjugado com o senso comum, facilmente se dá conta de que o tribunal violou as regras da experiência ou de que efectuou uma apreciação manifestamente incorrecta, desadequada, baseada em juízos ilógicos, arbitrários ou mesmo contraditórios.

E também se verifica este vício quando se violam as regras sobre prova vinculada ou das leges artis.

Como se salienta no Ac. R. do Porto de 02/02/2011, Proc. nº 339/09.0GBMTS.P1, disponível em www.dgsi.pt, e temos vindo a sustentar sistematicamente neste Tribunal da Relação de Lisboa, ocorre esse vício quando “se dá como provada uma série de factos que violam as regras da experiência comum e/ou juízos lógicos e/ou que são contraditados por documentação com prova plena sem ser invocada a sua falsidade.

A materialidade em causa é conformadora da consciência da ilicitude, momento constitutivo do dolo (não do tipo de ilícito, mas do de culpa), acrescendo, como seu momento emocional, ao conhecimento de todas as circunstâncias do facto (elemento intelectual) e à vontade de realizar o facto típico (elemento volitivo), que são elementos do dolo do tipo, traduzindo-se na indiferença ou oposição da vontade do agente aos valores protegidos pela norma (tipo de culpa doloso) – cfr. Figueiredo Dias, Direito Penal, Parte Geral, Tomo I, A Doutrina geral do Crime, 2ª Edição Coimbra Editora, pág. 350 - ou, no entendimento de Hans Jesckeck, Tratado de Derecho Penal, vol. I, pág. 624, na exigência de que o agente, no momento do cometimento do facto saiba que o seu comportamento viola as exigências da vida em comunidade, que é proibido para o direito.

Tratando-se de factos inerentes à dimensão subjectiva, do foro psicológico, que são quase sempre indemonstráveis de forma naturalística – na ausência de confissão dos agentes – têm de se extrair das circunstâncias objectivas que rodearam a sua prática e da ausência ou afastamento das causas que os possam excluir, conferidas com as máximas da experiência e da lógica e as presunções judiciais admissíveis.

O arguido é sócio gerente de uma sociedade, estando ciente de que tinha de remeter à Administração Fiscal o pagamento respeitante ao montante apurado a título de IVA devido e não estamos perante uma situação em que ocorreu uma neo-criminalização da omissão dessa conduta (concretamente tendo em atenção o montante em dívida), pois há já largos anos que esta é proibida e legalmente punida, pelo que o cidadão comum de Portugal há muito que o não ignora e muito menos quem exerce aquelas funções.

Tudo conjugado, temos de concluir que, ao dar como não provado que o arguido sabia que a sua descrita conduta era proibida e como tal punida pela lei penal, incorreu a decisão revidenda no vício de erro notório na apreciação da prova.

Este vício determina o reenvio do processo para novo julgamento, se não for possível decidir da causa - artigo 426º, nº 1 do CPP.

Ora, constam dos autos todos os elementos que o permitem sanar, como vimos.

Deste modo, sendo possível evitar o reenvio do processo para novo julgamento, cumpre apenas dar como provada tal factualidade.

Termos em que, ainda que por fundamentos diferentes dos constantes da motivação de recurso, este procede nesta parte, ficando prejudicado o conhecimento da questão da impugnação da matéria de facto/erro de julgamento suscitada.

Enquadramento jurídico-penal da conduta dos arguidos

Nos termos do artigo 2º, nº 1, do RGIT, constitui infracção tributária todo o facto típico, ilícito e culposo declarado punível por lei tributária anterior, considerando-se praticada a infracção no momento e no lugar em que o agente actuou ou devia ter actuado, sendo que, no que concerne a infracções tributárias omissivas, consideram-se praticadas na data em que termine o prazo para o cumprimento dos respectivos deveres tributários – artigo 5º, nºs 1 e 2.

Dispõe-se no artigo 105º, do RGIT:

“1.- Quem não entregar à administração tributária, total ou parcialmente, prestação tributária de valor superior a (euro) 7500, deduzida nos termos da lei e que estava legalmente obrigado a entregar é punido (…).
2- Para os efeitos do disposto no número anterior, considera-se também prestação tributária a que foi deduzida por conta daquela, bem como aquela que, tendo sido recebida, haja obrigação legal de a liquidar, nos casos em que a lei o preveja.
(…)
4- Os factos descritos nos números anteriores só são puníveis se:
a)- Tiverem decorrido mais de 90 dias sobre o termo do prazo legal de entrega da prestação;
b)- A prestação comunicada à administração tributária através da correspondente declaração não for paga, acrescida dos juros respectivos e do valor da coima aplicável, no prazo de 30 dias após notificação para o efeito.”

O bem jurídico protegido neste normativo é o património fiscal do Estado relativo às receitas fiscais provenientes das prestações tributárias (deduzidas por conta da administração tributária ou recebidas em nome dela) pelas quais o Estado visa a prossecução dos fins para que se orienta o sistema fiscal tal como o define a Constituição da República Portuguesa, ou seja, a satisfação das necessidades financeiras do Estado e outras entidades públicas e a repartição justa dos rendimentos e da riqueza – cfr. Ac. R. do Porto de 18/02/2009, Proc. nº 0846954, que pode ser lido em www.dgsi.pt.

Trata-se de um crime omissivo puro que se consuma no momento em que o agente não entregou a prestação tributária que devia. Isto é, consuma-se no momento em que o mesmo não cumpre a obrigação tributária a que estava adstrito – vd. Ac. do STJ de 10/10/2007, Proc. nº 07P2077, consultável no mesmo sítio - e específico, porquanto, primacialmente, o destinatário da norma é aquele sobre quem impende a dever de proceder à entrega da prestação, sem prejuízo da aplicabilidade do regime de comunicabilidade enunciado nos artigos 28º e 29º, do Código Penal ex vi artigo 3º, alínea a), do RGIT, como salientam Carlos Adérito Teixeira e Sofia Gaspar, Comentário das Leis Penais Extravagantes, vol. II, UCE, 2011, pág. 470.

É, pois, elemento constitutivo do tipo objectivo deste crime que o agente esteja legalmente obrigado a entregar à administração fiscal a prestação tributária em dívida.

Face à factualidade dada definitivamente como assente, demonstrada está essa obrigação relativamente ao arguido JF , pois se provaram factos que conduzem à conclusão que exerceu efectivamente (no plano fáctico, praticando actos próprios de gestão e, no plano jurídico, por ser gerente) poderes de gestão da sociedade arguida no período temporal em causa, tendo o domínio funcional dos factos referentes ao exercício das obrigações fiscais desta e podendo, por força dele, optar pelo cumprimento ou incumprimento das obrigações tributárias.

E, provado se mostra também que:

O arguido, agindo em nome e no interesse da sociedade arguida “HH , LDA”, bem como no próprio interesse, enviou à Administração Fiscal a declaração periódica relativa a Imposto sobre o Valor Acrescentado referente ao 4º trimestre de 2016, sendo o valor do imposto a entregar ao Estado de 8.882,86 euros, não fazendo acompanhar tal declaração do pertinente meio de pagamento.

Tal montante não foi entregue ao Estado pelos arguidos no prazo legal, nem nos 90 dias subsequentes e notificados que foram para procederem ao pagamento da quantia devida, acrescida dos juros e da coima respectiva, abstiveram-se de o fazer na sua totalidade.

O arguido sabia que essa quantia, cobrada aos clientes a título de IVA, não lhe pertencia ou à sociedade arguida e que deveria ser entregue nos cofres do Estado no prazo legal.

Ao não entregar nos cofres do Estado o montante de IVA mencionado, integrando-o na esfera patrimonial da sociedade arguida, agiu o arguido JF  de forma livre e com o propósito concretizado de prejudicar o Estado e de obter vantagem patrimonial a que não tinham direito, resultado que representou, bem sabendo que tal conduta era proibida.

Mas, refere-se na sentença recorrida o seguinte:

Os arguidos foram notificados no dia 18 de Julho de 2017 para procederem ao pagamento dos referidos montantes não entregues, acrescido dos respetivos juros de mora e do valor da coima aplicável, no prazo de 30 dias a contar da referida notificação.
Por despacho de 16.08.2017, a Autoridade Tributária autorizou a sociedade arguida ao pagamento do montante do IVA supra referido em 24 prestações, que o arguido está a cumprir, tendo pago já a quantia de € 1.850,60, sendo que a 1.ª prestação foi liquidada naquele mesmo dia, altura em que estava em curso o prazo atinente à condição objetiva de punibilidade da conduta, prevista no art.º 105.º, n.º 4, alínea b) do RGIT.
A Administração Fiscal, in casu, atuou em venire contra factum proprium, não se eximindo de avançar com o procedimento criminal quando os arguidos estavam a fazer o pagamento em prestações do imposto devido, não devendo ter-se por cumprida, no sentido de lhe ser atribuída eficácia jurídica, a condição objetiva de punibilidade prevista no artigo 105.º, n.º 4, al. b) do RGIT, pois que, no decurso desse prazo, ao permitir aos arguidos o pagamento da dívida em prestações, ter-se-á que concluir que acabou por revogar, ainda que implicitamente, a notificação a que alude o artigo 105.º, n.º 4, alínea b) do RGIT.
Em bom rigor, ao autorizar o pagamento da dívida em prestações, permitindo, nesse mesmo dia 16.08.2017, aos arguidos, a liquidação da 1.ª prestação, a AT, implicitamente, revogou a notificação em curso para pagamento do total da dívida, nos termos e para os efeitos do art.º 105.º, n.º 4, al. b) do RGIT, não se encontrando, por conseguinte, verificada a condição objetiva de punibilidade do tipo legal de crime.

Só que, a condição de punibilidade não é a notificação para pagamento, mas o comportamento que o contribuinte adopta perante ela, liquidando a quantia em causa (condição de não punibilidade).

Ora, o acordo de pagamento em prestações celebrado com a Administração Fiscal foi realizado no âmbito do processo de execução fiscal relativo à não entrega no prazo legalmente estabelecido da quantia devida a título de imposto (conforme resulta de fls. 83 e 350 dos autos, esse plano de pagamento mostra-se alicerçado no estabelecido no artigo 196º do Código de Procedimento e de Processo Tributário, que concerne precisamente “às dívidas exigíveis em processo executivo”) e em nada contende com a verificação do crime e a sua punibilidade, porquanto não ocorreu sequer, com esse plano, o pagamento integral do imposto em dívida com o acréscimo dos juros respectivos e do valor da coima aplicável.

E, enquanto se não mostrar esse montante global pago, não existe pagamento total da dívida, mas apenas parcial, o que se traduz num não pagamento.

A dívida fiscal não se confunde com o crime fiscal, que visa sancionar o comportamento criminal, no caso traduzido na falta de entrega da quantia retida.

Face ao que, compulsando a factualidade que provada se encontra, mostram-se preenchidos os elementos objectivos e subjectivos do tipo legal de crime por que foram os arguidos acusados, bem como as condições objectivas de punibilidade, pelo que cumpre conceder provimento ao recurso pelo Ministério Público interposto.

Importa agora apurar das penas aplicáveis.

O crime de abuso de confiança fiscal, previsto no artigo 105º, nº 1, do Regime Geral das Infracções Tributárias, é punido com pena de prisão até 3 anos ou multa até 360 dias no que concerne às pessoas singulares.

Quanto às pessoas colectivas, cumpre ter em atenção o estabelecido no artigo 12º, do RGIT:

“1- As penas principais aplicáveis aos crimes tributários cometidos por pessoas singulares são a prisão até oito anos ou a multa de 10 até 600 dias.

2- Aos crimes tributários cometidos por pessoas colectivas, sociedades, ainda que irregularmente constituídas, e outras entidades fiscalmente equiparadas é aplicável a pena de multa de 20 até 1920 dias.

3- Sem prejuízo dos limites estabelecidos no número anterior e salvo disposição em contrário, os limites mínimo e máximo das penas de multa previstas nos diferentes tipos legais de crimes são elevados para o dobro sempre que sejam aplicadas a uma pessoa colectiva, sociedade, ainda que irregularmente constituída, ou outra entidade fiscalmente equiparada.”

De onde, para a “HH , Lda” a moldura penal abstracta no que tange à pena de multa será de 20 a 720 dias.

Estabelece o artigo 70º, do Código Penal, aplicável por força do artigo 3º, do RGIT, que “se ao crime forem aplicáveis, em alternativa, pena privativa e pena não privativa da liberdade, o tribunal dá preferência à segunda sempre que esta realize de forma adequada e suficiente as finalidades da punição”.

Tais finalidades estão definidas no artigo 40º, nº 1, do mesmo Código, a saber: a protecção dos bens jurídicos e a reintegração do agente na sociedade.

Esta protecção implica a utilização da pena como instrumento de prevenção geral, quer com o escopo de dissuadir a prática de crimes, através da intimidação das outras pessoas face ao sofrimento que com a pena se inflige ao delinquente (prevenção geral negativa), quer para manter e reforçar a confiança da comunidade na validade e na força de vigência das normas do Estado na tutela de bens jurídicos e assim no ordenamento jurídico-penal (prevenção geral positiva).

Quanto à reintegração do agente na sociedade, reporta-se à prevenção especial ou individual de socialização, ou seja, ao entendimento de que a pena é um instrumento de actuação preventiva sobre o agente, com o escopo de evitar que, no futuro, cometa novos crimes.

O arguido JF  não tem antecedentes criminais e confessou integralmente e sem reservas os factos imputados, pelo que se entende que a aplicação de uma pena de multa acautelará de forma suficiente e adequada as finalidades da punição.

Nos termos do artigo 71º, do mesmo Código, para a determinação da medida da pena tem de se atender à culpa do agente, às exigências de prevenção e bem assim às circunstâncias que, não fazendo parte do tipo de crime, deponham a favor ou contra ele, sendo que, no caso em apreço, por imposição do artigo 13º, do RGIT, cumpre ainda ter em consideração o prejuízo causado pelo crime.

De acordo com estes princípios, o limite superior da pena é o da culpa do agente. O limite abaixo do qual a pena não pode descer é o que resulta da aplicação dos princípios de prevenção geral positiva, segundo os quais a pena deve neutralizar o efeito negativo do crime na comunidade e fortalecer o seu sentimento de justiça e de confiança na validade das normas violadas, além de constituir um elemento dissuasor.

A pena tem de corresponder às expectativas da comunidade.

Daí para cima, a medida exacta da pena é a que resulta das regras de prevenção especial de socialização. É a medida necessária à reintegração do indivíduo na sociedade, causando-lhe só o mal necessário. Dirige-se ao condenado para o afastar da delinquência e integrá-lo nos princípios dominantes na comunidade. – cfr. Ac. do STJ de 23/10/1996, in BMJ, 460, 407 e Figueiredo Dias, Direito Penal Português - As Consequências Jurídicas do Crime, Aequitas, Editorial Notícias, págs. 227 e segs.

Para a determinação da medida da pena da arguida sociedade, cumpre atender:

Ao grau de ilicitude do facto, que se apresenta médio/baixo, tendo em atenção o montante da quantia não entregue e o valor a partir do qual opera a incriminação.

A intensidade do dolo, que é directo.

Os sentimentos manifestados no cometimento do crime e os fins ou motivos que o determinaram, a saber, a afectação da quantia não entregue ao pagamento de fornecedores, como provado se mostra.

As condições económicas da sociedade arguida, actualmente ainda em situação de laboração.

A conduta posterior aos factos, relevando que está a cumprir o acordo com a Autoridade Tributária de pagamento em prestações do montante do imposto em dívida, tendo já pago a quantia de 1.850,60 euros.

O facto de a sociedade arguida não ter antecedentes criminais.

O prejuízo causado com a conduta que ascende à quantia de, pelo menos, 8.882,86 euros.

As exigências de prevenção geral nos crimes tributários e particularmente no que concerne, como no caso em apreço, à não entrega de quantia relativa ao IVA, são muito intensas, atendendo à elevada frequência com que são praticados e a considerável margem de impunidade de que as condutas ilícitas dessa natureza continuam a beneficiar, sendo certo que estes crimes, pela sua repercussão negativa nos objectivos fundamentais do Estado de Direito, desde logo, na prossecução das finalidades constitucionais de uma melhor “justiça distributiva”, vêm assumindo gravidade crescente a que urge dar resposta firme, importando ainda ter em atenção que na actividade económica a pena de multa constitui um factor de risco que, mediante um cálculo de custos e benefícios, poderá ser vantajoso assumir por parte do agente económico que pretende defraudar o Estado – cfr. Silva Dias citado no Ac. R. do Porto de 08/03/2006, Proc. nº 0111339, em www.dgsi.pt.

Ou, como salienta o nosso STJ no seu Ac. de 21/12/2006, Proc. nº 06P2946, que pode ser lido no mesmo sítio, “é sabido que a fuga aos impostos é um dos elementos que mais tem concorrido para o imparável descalabro financeiro do Estado Português ou, sob outro prisma, o seu pagamento pontual surge como condição da subsistência deste, certo que de tais aspectos não se mostra totalmente consciencializado o cidadão comum. E, porque assim é, a reacção penal não se compadece com a adopção de penas simbólicas que perpetuam um sentimento de impunidade, ou pecuniárias, pois não levam à interiorização, por parte do agente, da responsabilidade pelo acto danoso, subestimando-o (Acórdãos de 17-04-02, Proc. n.º 160/02 e de 19-10-05, Proc. n.º 2321/05, qualquer deles da 3.ª Secção). Muito pelo contrário, desvalorizando a ilicitude que lhe está subjacente, adensam um sentimento generalizado de quase despenalização, que perpassa transversalmente à comunidade: conclusão esta que se espelha na frequência e na amplitude que vai assumindo a violação dos deveres fiscais, reforçadas pela progressiva desvalorização do acto punitivo e facilitada pela má consciência cívica em matéria fiscal.”

Assim, face ao exposto, reputa-se como adequado e suficiente aplicar à sociedade arguida a pena de 100 dias de multa.

Quanto ao arguido JF , o grau de ilicitude dos factos afigura-se médio/baixo, atento o montante do imposto não entregue e actuou com dolo directo.

Os fins ou motivos que o determinaram à actuação criminosa foram as dificuldades financeiras sentidas pela sociedade, sendo a afectação da quantia não entregue ao pagamento de fornecedores.

Tem situação económica, familiar e profissional, estável e não averba antecedentes criminais, o que milita a seu favor.

Confessou integralmente e sem reservas os factos de que se encontra acusado e encontra-se a regularizar a dívida fiscal mediante cumprimento de um plano de prestações.

As necessidades de prevenção geral são significativas, pelos motivos retro enunciados.

Tudo visto, consideramos adequado e suficiente aplicar ao arguido a pena de 80 dias de multa.

No que tange ao quantitativo diário das multas, consagra-se no artigo 15º, do RGIT, que “cada dia de multa corresponde a uma quantia entre (euro) 1 e (euro) 500, tratando-se de pessoas singulares, e entre (euro) 5 e (euro) 5000, tratando-se de pessoas colectivas ou entidades equiparadas, que o tribunal fixa em função da situação económica e financeira do condenado e dos seus encargos” – nº 1.

Quanto ao valor diário da multa para a arguida pessoa colectiva, ponderando a manutenção da laboração e o encargo retro sofrido que suporta, é de fixar em 10,00 euros (no montante global de 1.000,00 euros).

No que tange ao arguido, atendendo aos rendimentos e despesas apuradas, a composição do seu agregado familiar e as obrigações dele decorrentes, entende-se adequado fixar o quantitativo diário em 5,00 euros (perfazendo a quantia total de 400,00 euros).

É que, conforme salientado nos Acs. do STJ de 02/10/1997, CJ/STJ, 1997, III, pág. 183 e da Relação de Coimbra de 17/04/2002, CJ, 2002, II, pág. 57, a aplicação de uma pena de multa deve sempre significar a verdadeira função de uma pena e, nessa medida, tem que constituir um real sacrifício para o condenado. Só assim este poderá sentir o juízo de censura que a condenação significa, bem como só assim se dará satisfação às exigências de prevenção, realizando as finalidades da punição, sendo certo que, por outro lado, não pode deixar, quanto à pessoa singular, de lhe ser assegurado o mínimo necessário e indispensável à satisfação das suas necessidades básicas e do seu agregado familiar.

III–DISPOSITIVO.

Nestes termos, acordam os Juízes da 5ª Secção desta Relação em conceder provimento ao recurso pelo Ministério Público interposto e, em consequência.

A)Alteram a matéria de facto dada como não provada, passando a constar dos factos provados o seguinte:

A sociedade arguida não procedeu ao pagamento, nos prazos devidos, com o inequívoco e bem-sucedido propósito dos arguidos singulares de alcançarem para a sociedade, em nome e no interesse de quem actuavam, uma vantagem patrimonial indevida, consubstanciada na posse e utilização em benefício próprio de quantia que não era sua, fazendo-a sua e dando-lhe o destino que entenderam, bem sabendo que os montantes em causa pertenciam à administração tributária, a quem estavam obrigados a entregar, e que ao actuar da forma descrita o faziam sem autorização e contra a vontade desta entidade, a quem causavam um prejuízo patrimonial equivalente àquele montante.

Agiu o arguido JF de modo voluntário, livre e consciente, por si e enquanto legal representante da sociedade arguida, em nome e no interesse de quem actuou, bem sabendo que a sua descrita conduta era proibida e como tal punida pela lei penal.

B)– Revogam a decisão recorrida, na parte em que absolve os arguidos HH , LDA” e JF  do crime de abuso de confiança fiscal, p. e p. pelo artigo 105º, nºs 1, 2 e 4, alíneas a) e b), do Regime Geral das Infracções Tributárias, aprovado pela Lei nº 15/2001, de 05/06, por que vinham acusados;

C)Condenam a arguida HH , Lda”, pela prática de um crime de abuso de confiança fiscal, p. e p. pelos artigos 7º, nº 1 e 105º, nºs 1, 2 e 4 alíneas a) e b), do Regime Geral das Infracções Tributárias, aprovado pela Lei nº 15/2001, de 05/06, na pena de 100 (cem) dias de multa, à razão diária de 10,00 (dez) euros, no montante global de 1.000,00 (mil) euros;

D)– Condenam o arguido JF , pela prática de um crime de abuso de confiança fiscal, p. e p. pelos artigos 6º, nº 1 e 105º, nºs 1, 2 e 4 alíneas a) e b), do Regime Geral das Infracções Tributárias, aprovado pela Lei nº 15/2001, de 05/06, na pena de 80 (oitenta) dias de multa, à razão diária de 5,00 (cinco) euros, no montante global de 400,00 (quatrocentos) euros.

Sem tributação.



Lisboa, 30 de Outubro de 2018


                                  
(Artur Vargues) – (Consigna-se que o presente acórdão foi elaborado e integralmente revisto pelo primeiro signatário – artigo 94º, nº 2, do CPP)
                                  
(Jorge Gonçalves)                                          
(Filomena Gil)
Decisão Texto Integral: