Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
27911/18.4T8LSB.L1-2
Relator: PEDRO MARTINS
Descritores: DESERÇÃO
NEGLIGÊNCIA
PREVENÇÃO
AUDIÊNCIA DE PARTE
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 11/05/2020
Votação: UNANIMIDADE COM * DEC VOT
Texto Integral: S
Texto Parcial: N
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: IMPROCEDENTE
Sumário: I - Actua com negligência a parte, representada por advogado, que, depois de propor uma acção, está 17 meses sem requerer nada de útil ao processo, entre eles parti-camente 1 ano sem requerer absolutamente nada, mesmo depois de ter sido notificada de que tinha o ónus de impulsionar o processo requerendo a habilitação dos herdeiros do réu ainda não citado, e quase 10 meses mesmo depois de notificada da suspensão do processo enquanto eles não fossem habilitados e mais de 6 meses mesmo descontando o período de suspensão dos prazos judiciais imposto pela legislação covid-19.
II - Isto sem necessidade de ouvir a autora sobre a verificação ou não da negligência e mesmo sem que daqueles despachos constasse a advertência da possível deserção com extinção da instância (sendo certo, no entanto, que no caso dos autos consta de forma expressa referência ao artigo 281 do CPC).
Decisão Texto Parcial:
Decisão Texto Integral: Acordam no Tribunal da Relação de Lisboa os juízes abaixo identificados:

J-Lda, intentou esta acção a 13/12/2018.
A 04/02/2019, no âmbito da tentativa de citação do réu, a secção juntou aos autos cópia do assento de óbito do réu.
A autora – na pessoa do seu advogado, como sempre – foi notificada desta junção por carta elaborada no próprio dia.
A 30/05/2019, a autora faz o seguinte requerimento:
Não tendo logrado obter, das diligências feitas, qualquer informação acerca de eventuais herdeiros do réu, vem requerer se digne mandar oficiar à Conservatória dos Registos Centrais no sentido de informar se aquele deixou algum testamento.
Por despacho de 03/06/2019 foi indeferido tal requerimento com a seguinte fundamentação:
Não cabe ao tribunal substituir-se às partes nas diligências tendentes à realização dos seus direitos e ao cumprimento dos respectivos ónus.
No que tange concretamente à obtenção de informação ou documento que condicione o eficaz exercício de faculdade ou o cumprimento de ónus ou dever processual, o tribunal só intervém se estiver alegada e demonstrada justificada dificuldade séria em obtê-los – é o que resulta do disposto no art. 7/4 do CPC.
No caso, não só não vem invocada a existência de tal dificuldade séria em obter a informação referida, como a mesma pode ser obtida por qualquer cidadão, como resulta de https://justica.gov.pt/Servicos/Saber-se-existe-testamento.
A 09/07/2019, a autora vem requerer:
A junção de uma certidão da Conservatória dos Registos Centrais declarando que não existe qualquer testamento emitido pelo réu. Mais requer um prazo de 15 dias para tentar de novo apurar a existência de eventuais herdeiros.
Tal requerimento é indeferido por despacho de 11/07/2019, com o seguinte fundamento:
Está a decorrer o prazo para a autora impulsionar os autos. O impulso processual dos autos é um ónus da autora, que tem natureza substantiva, pelo que o prazo que lhe está associado, previsto no art. 281 do CPC, tem natureza substantiva, não cabendo ao tribunal conceder ou deixar de conceder à parte prazo para o efeito.
Este despacho foi notificado por carta elaborada a 11/07/2019.
A 11/09/2019 foi proferido o seguinte despacho:
Suspensão da instância
Face ao teor do assento de óbito, junto aos autos a fl.31, declaro suspensa a instância, nos termos e ao abrigo do disposto nos artigos 269/1-a e 270, ambos do CPC.
A suspensão apenas cessa quando for notificada a decisão que considere habilitado o sucessor da pessoa falecida (art.276/1-a do CPC).
Esse despacho foi notificado à autora por carta elaborada a 17/09/2019.
Desde então, não consta dos autos qualquer outro acto praticado pela autora.       
A 08/07/2020 foi proferido o seguinte despacho:
O processo encontra-se parado há mais de seis meses por negligência do autor em promover os seus termos.
Assim, nos termos e ao abrigo do disposto no artigo 281 do CPC, julga-se a instância deserta.
Notifique e, oportunamente, arquive.
A 28/09/2020, a autora recorre deste despacho – para que seja revogado e substituído por outra que notifique a autora para promover o andamento dos autos ou requerer o que tiver por conveniente sob pena de a instância ser julgada extinta por deserção -, terminando as suas alegações com as seguintes conclusões (que se transcrevem com um mínimo de simplificações):
A) A autora propôs a presente acção contra o réu, que se apurou entretanto ter falecido.
B) Consultada a CRC foi obtida a informação de que o réu não havia deixado qualquer testamento.
C) Mercê disso, a autora desenvolveu diligências no sentido de apurar se o falecido tinha deixado herdeiros.
D) Inicialmente na terra dos seus pais, sem sucesso.
E) Mais recentemente através de familiares da ex-mulher, que procurou localizar.
F) Entretanto sobreveio o quadro de pandemia com todas as limitações que introduziu, mas que também suspendeu os prazos processuais – o que foi totalmente ignorado.
G) O tribunal a quo, por despacho de 11/09/2019, e face ao teor do assento de óbito, declarou suspensa a instância, nos termos e ao abrigo do disposto nos artigos 269/1-a e 270 do CPC. A suspensão apenas cessa quando for notificada a decisão que considere habilitado o sucessor da pessoa falecida (artigo 276/1-a do CPC).
H) Para além das contingências referidas, tal despacho induziu em erro a autora, já que inculcava uma suspensão do processo até surgir um sucessor – que tudo indica que será o Estado.
I) Surpreendentemente e em sentido contrário, foi proferido no dia 08/07/2020 um despacho considerando que por o processo se encontrar parado há mais de 6 meses, julgava a instância deserta.
J) E considerou nesse despacho que os autos ficaram a aguardar por mais de 6 meses o impulso processual, por negligência da autora.
K) …mas sem previamente a ouvir de forma a avaliar se essa falta de impulso era efectivamente imputável a comportamento negligente.
L) Foi assim uma decisão-surpresa que de forma desproporcionada extingue a instância sem cuidar de atingir uma justa composição do litígio e dos interesses em presença.
M) Cabe ao juiz, por força do art. 6 do CPC dirigir activamente o processo, determinando após a audição das partes a adopção de mecanismos de simplificação e agilização processual respeitando os princípios da igualdade das partes e do contraditório, determinar a regularização da instância e quando tal consista em acto a praticar pelas partes, convidá-las a fazê-lo.
N) A omissão dessa formalidade que a lei prescreve, ou seja, a de ouvir previamente as partes para o exercício do contraditório e para a prática de qualquer acto, representa uma irregularidade e produz a nulidade da decisão (art. 195 do CPC), na medida em que, como é inquestionável, na ausência das razões e argumentação das partes, mercê dessa omissão, a irregularidade cometida influiu no exame e decisão da causa.
O) Na verdade, o decurso do prazo de 6 meses de suspensão da instância sem impulso das partes não implica ipso facto a negligência das partes, não é uma razão objectiva que baste apenas por si para determinar a negligência das partes.
P) O juiz a quo decretou a deserção da instância, fundando a sua decisão no art. 281 do CPC.
Q) O regime do CPC, na redacção da reforma de 2013, além de ter encurtado para seis meses o prazo, até aí de dois anos, concedido à parte para impulsionar os autos, sem que fosse extinta a instância por deserção, eliminou também a figura da interrupção da instância, ou seja, a instância fica deserta logo que o processo esteja sem impulso processual da parte durante mais de seis meses sem passar pelo patamar intermédio da interrupção da instância.
R) Por assim ser, na actual lei adjectiva a deserção da instância não é automática pelo simples decurso do prazo, como acontecia na lei anterior, pois que, para além da falta de impulso processual há mais de seis meses é também necessário que essa falta se fique a dever à negligência das partes em promover o seu andamento (artigo 281/1 do CPC).
S) E não sendo automática a referida deserção, o tribunal, antes de proferir o despacho a que se refere o art. 281/4 do CPC, deve ouvir as partes por forma a melhor avaliar se a falta de impulso processual é, efectivamente, imputável a comportamento negligente das partes.
T) Tendo em conta a profundidade da alteração dos institutos em causa (interrupção e deserção), os efeitos graves da mesma resultantes (extinção da instância), e o evidente propósito do legislador em obstar que possa ocorrer grave prejuízo dos direitos das partes resultantes da aplicação da reforma de 2013 do CPC, bem como o facto de se ter de aquilatar do comportamento negligente da parte na omissão do impulso processual, não pode o tribunal proferir despacho a declarar a deserção da instância sem, previamente, dar às partes a possibilidade de se pronunciarem sobre a questão.
U) O tribunal a quo, ao decidir como decidiu, não só incorreu em nulidade da decisão nos termos do art. 195 do CPC como incorre em erro de julgamento e viola a lei, e nomeadamente os artigos 6 e 281/1-3 do CPC.
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Questão a decidir: se a instância não devia ter sido julgada deserta.
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Os factos que interessam a esta decisão são os que constam do relatório que antecede.
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Decidindo:
A autora – representada por mandatário judicial - sabe, desde 07/02/2019 (dia útil e 3º dia posterior à data da carta elaborada para notificação: art. 248/1 do CPC) que, querendo que o processo prosseguisse, tinha que promover a habilitação dos herdeiros do réu (artigos 351/1-2, 269/1-a, 270/1, todos do CPC).
Até 08/07/2020, 17 meses, a autora nada fez de útil: os dois requerimentos que fez a 30/05/2019 e 09/07/2019 não tinham razão de ser e foram indeferidos e no último despacho esclareceu-se que a autora tinha o ónus de impulsionar o processo.
E desde a notificação deste último despacho, a 15/07/2019 (2ª feira, 1º dia útil depois dos 3 posteriores à data da carta), até 08/07/2020 decorreu quase um ano em que a autora não fez absolutamente nada.
Para além disso, a instância foi declarada formalmente suspensa por despacho de 11/09/2019, notificado à autora a 20/09/2019 (dia útil - 3º dia posterior ao da carta) e desde então a autora continuou a nada fazer nos autos.
Se retirarmos a este período de inactividade, o tempo em que, por força da legislação covid-19, os prazos judiciais estiveram suspensos, isto é, de 09/03/2020 a 02/06/2020, ambos os dias inclusive, temos os seguintes períodos de inactividade, no processo: de 21/09/2019 a 08/03/2020 e de 03/06/2020 a 07/07/2020, todos os dias inclusive, o que dá 205 dias, isto é, 6 meses e 25 dias.
[a legislação covid-19 a que se fez referência é a seguinte: art. 10 da Lei 1-A/2020, de 19/03: A presente lei produz efeitos à data da produção de efeitos do DL 10-A/2020, de 13/03; o art. 37 do DL 10-A/2020, que dispõe: “o presente DL produz efeitos no dia da sua aprovação [que foi 12/03/2020], com excepção do disposto nos artigos 14 e 16 [14 - justo impedimento, justificação de faltas – 15: encerramento de instalações], que produz efeitos desde 09/03/2020 […]; art. 5 da Lei 4-A/2020, de 06/04: norma interpretativa: o artigo 10 da Lei 1-A/2020, de 19/03, deve ser interpretado no sentido de ser considerada a data de 09/03/2020, prevista no artigo 37 do DL 10-A/2020, de 13/03, para o início da produção de efeitos dos seus artigos 14. a 16, como a data de início de produção de efeitos das disposições do artigo 7 da Lei 1-A/2020, de 19/03; o art. 8 da Lei 16/2020, de 29/05: norma revogatória: são revogados o artigo 7 e os n.ºs 1 e 2 do artigo 7-A da Lei 1-A/2020, de 19/03, na sua redacção actual; por último, o art. 10 da Lei 16/2020, de 29/05, dispõe: Entrada em vigor: A presente lei entra em vigor no quinto dia seguinte ao da sua publicação [que foi 29/05, pelo que o 5.º dia foi 03/06]]
Posto isto,
Diz o art. 281 do CPC, na parte que importa, que: 1: […] considera--se deserta a instância quando, por negligência das partes, o processo se encontre a aguardar impulso processual há mais de seis meses. Acrescenta o n.º 4: A deserção é julgada no tribunal onde se verifique a falta, por simples despacho do juiz ou do relator.                                  
Por regra, o impulso processual, no decorrer do processo, não incumbe às partes, como decorre do art. 6/1 do CPC, pois que, para que lhes incumba, terá de haver alguma norma – ou despacho judicial acrescente-se - que o imponha.
Isto é, como dizem Lebre de Freitas e Isabel Alexandre, CPC anotado, Coimbra Editora, 3ª edição, 2014, pág. 22, só excepcionalmente cabe às partes o ónus de impulso processual subsequente. O autor não tem constantemente de impulsionar o desenvolvimento do processo, ideia contrária à anteriormente defendida na prática dos tribunais.
Por isso, é normalmente ao juiz que cumpre dirigir activamente o processo e providenciar pelo seu andamento célere, promovendo oficiosamente as diligências necessárias ao normal prosseguimento da acção.
Há casos, no entanto, em que a lei impõe esse impulso às partes. É o que acontece precisamente no caso da habilitação de partes falecidas no decurso do processo.
Segundo o art. 269/1-a do CPC, a instância suspende-se quando falecer ou se extinguir alguma das partes […]. Segundo o art. 270/1 do CPC, junto ao processo documento que prove o falecimento ou a extinção de qualquer das partes, suspende-se imediatamente a instância, salvo hipóteses que não interessam ao caso dos autos. Segundo o art. 276/1-a do CPC, a suspensão por uma das causas previstas no n.º 1 do artigo 269 cessa: no caso da alínea a, quando for notificada a decisão que considere habilitado o sucessor da pessoa falecida ou extinta; Segundo o art. 351/1 do CPC, a habilitação dos sucessores da parte falecida na pendência da causa, para com eles prosseguirem os termos da demanda, pode ser promovida tanto por qualquer das partes que sobreviverem como por qualquer dos sucessores […]
Destas normas decorre, pois, o ónus, para a autora, de promover a habilitação dos sucessores do réu falecido, se quiser que o processo prossiga, pois que os sucessores do réu não fazem ainda parte do processo ou podem nem sequer existir, nem naturalmente terão interesse no seu prosseguimento.
Ónus que não pode ser suprido pelo tribunal, porque não pode ser este a decidir pela autora o prosseguimento do processo contra os sucessores.                
*
Assim sendo, cabia à autora requerer a habilitação dos sucessores do réu, se quisesse que o processo prosseguisse, deixando de estar suspenso. E estando a autora representada por advogado ela não podia deixar de saber que assim era.
Ora, durante mais de 6 meses, a autora nada fez nesse sentido.
*
Estando a autora representada por advogado e tendo omitido, durante 6 meses, a prática do ónus processual que lhe era imposto sob pena de deserção da instância, e nem sequer tendo vindo aos autos, antes dos 6 meses, esclarecer porque é que não o fazia, não pode deixar de ser entender que ela actuou com negligência.
Neste sentido, o ac. do TRP de 27/09/2018, proc. 21005/15.1T8PRT.P1, lembra que Lebre de Freitas diz, a propósito do princípio da auto-responsabilização das partes que vigora no processo civil e que surge associado ao princípio da preclusão: “A omissão continuada da actividade da parte, quando a esta cabe um ónus de impulso processual subsequente, tem efeitos cominatórios, que podem consistir, designadamente, na deserção da instância.”
E Miguel Teixeira de Sousa, no comentário ao ac. do TRP de 02/02/2015, publicado em 10/02/2015 sob jurisprudência 75 no blog do IPPC, lembra que “a falta de impulso pode[…] ser, ela mesma, sinónima de negligência da parte.”
*
Estão, assim, preenchidos os pressupostos da deserção da instância por negligência da autora, como foi dito no despachado recorrido, não havendo, por isso, falta de fundamentação do mesmo que pudesse provocar a sua nulidade (arts. 615/1-b e 613/3, ambos do CPC).
A autora, no recurso, diz ter feito diligências no sentido de apurar se o falecido tinha deixado herdeiros. Mas não há prova nenhuma de que as tivesse feito e era ela que tinha o ónus de vir dar notícia do que tinha feito no processo, antes do decurso do prazo de 6 meses, para justificar o facto de estar inerte.
A autora diz que o tribunal ignorou que entretanto sobreveio o quadro de pandemia com todas as limitações que introduziu e que também suspendeu os prazos processuais, mas di-lo sem qualquer razão como já se viu, pois que, os mais de 6 meses de inércia da autora subsistem mesmo descontando o período da suspensão imposta pela legislação covid-19.
Queixa-se a autora de o despacho do tribunal, de 11/09/2019, a ter “induzido em erro já que inculcava uma suspensão do processo até surgir um sucessor – que tudo indica que será o Estado.” Mas o despacho limita-se a invocar as normas legais que o justificavam e não podia inculcar o que a autora diz, tanto mais que a autora está, repete-se, representada por advogado.
Por outro lado, várias partes da argumentação da autora, partem de acórdãos que foram proferidos até Fev2015 e foram justificados pela novidade do regime da deserção. No caso dos autos já se passaram mais de 7 anos de vigência do novo regime, o qual já entrou na rotina dos tribunais e dos advogados. Aliás, a norma transitória que aqueles acórdãos invocavam – art. 3/1 da Lei 41/2013, de 26/06 - aponta nesse sentido: ela aplicar-se-ia durante um ano.
*
A autora queixa-se da falta de cumprimento do dever de prevenção e quer que o despacho recorrido seja substituído por um outro que cumpra esse dever, ou seja, que a notifique para promover o andamento dos autos ou requerer o que tiver por conveniente sob pena de a instância ser julgada extinta por deserção.
Repare-se, antes de se prosseguir que, na data do despacho recorrido, ia já para mais para mais de 1 ano e 5 meses que a autora sabia que o réu tinha falecido e que, apesar disso, a autora não demonstrou até hoje, no processo, ter feito o mais pequeno acto que fosse que demonstrasse ter, sequer, procurado saber quem eram os herdeiros do réu, apesar de estar representada por advogado e não poder deixar de saber que o andamento do processo dependia disso, porque apesar de o processo já ter quase dois anos ainda não há réus citados no processo, e isto apesar de já ter sido formalmente notificada por despacho judicial a dizer-lhe que o processo está suspenso à espera da habilitação dos herdeiros do réu.
Por outro lado, é certo que o tribunal não disse expressamente, no despacho referido por último, que a autora tinha que requerer a habilitação sob pena da deserção da instância e que se entende que um tal despacho seria mais completo, apesar de a parte estar representada por advogado (normalmente, deverá, e é costume, dizer-se: faça tal, sob pena da extinção da instância por deserção - parece melhor isto, para sublinhar as consequências desvantajosas, principalmente quando as partes não estiverem representadas por mandatário judicial - ou sem prejuízo do decurso do prazo do disposto no art. 281/1 do CPC.
Mas, para além de esse despacho não ser obrigatório e nem sempre ser necessário, principalmente no caso tipo dos autos, a verdade é que a autora até foi advertida para a possível extinção da instância, pois que no despacho de 11/07/2019 já se faz referência expressa ao art. 281 do CPC.
Relembre-se que a autora está representada por advogado, foi advertida que o processo estava a aguardar o seu impulso processual e que o prazo que estava a correr estava previsto no art. 281 do CPC, e foi-lhe ainda acrescentado, depois, que a cessação da suspensão do processo só ocorreria com a habilitação dos herdeiros do réu. Por isso, ela não podia deixar de saber que o processo só prosseguiria depois de requerer a habilitação e que, como os processos não ficam pendentes para toda a eternidade, que ele seria extinto se não o fizesse (e relembre-se, de novo, a referência ao art. 281 do CPC).
Neste sentido, defendendo a possibilidade mas não a imposição do despacho de prevenção, vão, segundo as citações que são feitas, Ramos de Faria e Luísa Loureiro, Primeiras Notas ao CPC, I, Almedina, 2013, pág. 250, n.º 1 da anotação ao art. 281.
E Miguel Teixeira de Sousa, em comentário ao ac. do TRP de 02/02/2015, 4178/12.2TBGDM.P1 - acórdão que defende que o dever de prevenção, que tinha apoio legal no art. 3 da Lei 41/2013, pode subsistir após o primeiro ano de vigência da reforma do CPC -, lembra que, como a deserção da instância exige que a falta de impulso decorra da negligência das partes, haverá que avaliar, caso a caso, se se justifica o cumprimento pelo tribunal do dever de prevenção; e continua: “procurando exemplificar, poderá haver razões para o cumprimento desse dever se a parte à qual cabe o impulso não estiver representada por advogado ou se esta mesma parte tiver demonstrado, pelo seu anterior comportamento processual, que está interessada na continuação do processo e se, por isso, for surpreendente a falta de impulso processual.
No sentido da desnecessidade de tal despacho, para estes casos de morte de um réu de que têm de ser habilitados os herdeiros para que o processo prossiga, veja-se, por exemplo, o ac. do STJ de 04/02/2020, proc. 21005.15.1T8PRT.P1.S1:
I - Pode dizer-se que o instituto da deserção da instância se reveste de natureza compulsória, destinando-se a constranger a(s) parte(s) a adotar o comportamento devido, até então omitido.
II - O CPC prevê, no art. 281.º, n.ºs 1 e 4, além do decurso do prazo de seis meses, a necessidade de apreciar a existência de omissão negligente de impulso processual das partes.
III - O juiz não tem de se substituir às partes no que respeita ao cumprimento do ónus de promoção do andamento do processo.
IV - Assim, sempre que o impulso processual dependa da parte, esta tem o ónus e o interesse em informar o tribunal acerca da existência de algum obstáculo.
V - A partir do momento em que a instância fica suspensa, tendo as partes sido notificadas dessa suspensão, compete aos interessados promover os termos do processo.
VI - Apesar de se extinguir o direito do demandante de manter constituída a instância, nem o direito de ação e nem o direito subjetivo exercido são afetados pela decisão.
No texto do acórdão consta:
Conforme referido supra, trata-se de saber se, encontrando-se o processo a aguardar impulso processual há mais de seis meses, o Tribunal, antes de julgar deserta a instância, deve ou não proferir despacho prévio que assinale essa cominação.
E mais à frente […]
Por conseguinte, “sempre que o impulso processual dependa da parte, esta tem o ónus e o interesse em informar o tribunal acerca da existência de algum obstáculo e, se for o caso, solicitar a concessão de alguma dilação. Não cabe ao tribunal promover a audição da parte sobre a negligência, tendo em vista a formulação de um juízo sobre as razões da inércia; esta será avaliada em função do que resultar objetivamente no processo”[4].
E depois:
Importa, neste momento, apreciar se o decretamento da deserção da instância, uma vez decorrido o prazo de seis meses por si pressuposto (art. 281.º, n.º 1), deve ou não ser precedido de despacho que assinale essa cominação.
O dever de prevenção do tribunal, que assume como que uma veste assistencial, “vale genericamente para todas as situações em que o êxito da acção a favor de qualquer das partes possa ser frustrado pelo uso inadequado do processo. […]
Diferentemente do que o Recorrente preconiza, não tinha o tribunal, no caso sub iudice, de proceder a qualquer notificação a informar as partes de que corria o prazo de deserção da instância. A partir do momento em que a instância fica suspensa, tendo as partes sido notificadas dessa suspensão, compete aos interessados promover os termos do processo. […]
É que a negligência a que se refere o art. 281.º, n.º 1, do CPC, “é necessariamente a negligência retratada ou espelhada objetivamente no processo (negligência processual ou aparente)” e “[s]e a parte não promove o andamento do processo e nenhuma justificação apresenta, e se nada existe no processo que inculque a ideia de que a inação se deve a causas estranhas à vontade da parte, está apoditicamente constituída uma situação de desinteresse, logo de negligência” [6]. Por outro lado, a “conduta omissiva e negligente da parte onerada com o impulso processual só cessará com a prática do ato que, utilmente, estimule a instância, ou com a superveniência de uma circunstância que subtraia à vontade da parte a possibilidade da sua prática”[7].
Como resulta da matéria de facto provada (que retrata o devir processual observado), decorreu o prazo legal máximo de seis meses previsto no art. 281.º, n.º 1, do CPC, sem que tenha sido requerida ou promovida a habilitação dos herdeiros de AA (omissão do ato de parte) e sem que haja sido levado ao conhecimento do Tribunal qualquer elemento ou circunstância impeditiva do impulso, que permitisse afastar o juízo de negligência refletido nos autos (omissão imputável ao Recorrente, e não a terceiro ou ao Tribunal). Repare-se que nem subsequentemente o Recorrente invocou qualquer justo impedimento ao cumprimento do ónus de impulso processual que sobre si impendia. Impunha-se, por isso, declarar – como se declarou - deserta a instância. Conforme o art. 277.º, al. c), do CPC, a deserção é causa de extinção da instância.
No mesmo sentido, ainda,
O ac. do STJ de 02/06/2020, proc. 139/15.8T8FAF-A.G1.S1:
I - A deserção da instância, nos termos do art. 281.º, n.º 1, do CPC, depende da verificação cumulativa de dois pressupostos: um de natureza objectiva, que se traduz na demora superior a 6 meses no impulso processual legalmente necessário, e outro de natureza subjectiva, que consiste na inércia imputável a negligência das partes.
II - A parte deve promover o andamento do processo sempre que o prosseguimento da instância dependa de impulso seu decorrente de algum preceito legal ou quando, sem embargo da actuação da parte nesse sentido, recaia também sobre o tribunal o dever de cooperação exercendo o dever de gestão processual em conformidade com o disposto no art. 6.º do CPC.
III - Nos casos em que a suspensão da instância é motivada pelo falecimento de alguma das partes na pendência da acção, o impulso processual depende exclusivamente das partes ou dos sucessores dos falecidos, os quais têm o ónus de requerer a respectiva habilitação.
IV - O decurso do prazo de seis meses após a notificação do despacho que suspendeu a instância por óbito de alguma das partes sem que tenha sido requerida a habilitação ou apresentada alguma razão que impedisse ou dificultasse o exercício desse ónus, tem como efeito a extinção da instância, por deserção, independentemente de a instância também ter sido suspensa com outro fundamento.
V - Constituindo a habilitação de sucessores um ónus que, além destes, recai sobre a parte, em face da clareza do início do prazo de seis meses e das respectivas consequências, a declaração de extinção da instância por deserção não tinha que ser precedida de despacho a indicar tal cominação, inexistindo fundamento legal, nomeadamente à luz do princípio do contraditório, para prévia audição das partes com vista a aquilatar da sua negligência.
Este acórdão diz que é esta a interpretação que o STJ tem vindo a sustentar, repetidamente, desde há algum tempo, e cita nesse sentido, sempre para casos de incidente de habilitação de herdeiros, os acórdãos do STJ, de 20/09/2016, proc. 1742/09.0TBBNV-H.E1.S1, de 14/12/2016, proc. 105/14.0TVLSB.G1.S1, e de 25/2/2018, proc. 473/14.4T8SCR.L1.S2.
Ainda neste sentido, mas agora num caso paralelo, vai o acórdão do STJ de 08/03/2018, proc. 225/15.4T8VNG.P1-A.S1:
I. Não obstante o CPC, na redacção dada pela Lei 41/2013, ter posto em destaque o dever do juiz de dar prevalência, tanto quanto possível, a decisões finais de mérito sobre decisões meramente processuais (art. 278/3), o dever de gestão processual, dirigindo activamente o processo e providenciar pelo seu andamento célere (art. 6/1), e de cooperação com as partes, concorrendo para se obter, com brevidade e eficácia, a justa composição do litígio (art. 7/1), isso não pressupõe que o juiz tenha de se substituir às partes no cumprimento do ónus de promoção do andamento do processo.
II. Tendo sido notificado às partes, designadamente ao mandatário do autor, o despacho de suspensão da instância para efeitos de o autor proceder ao registo da acção, não impende sobre o tribunal o dever de fazer constar desse despacho a advertência de que a inércia do autor, por mais de 6 meses, determinaria a deserção da instância, porquanto não só se tornou bem claro ser, exclusivo, ónus do autor providenciar pela feitura desse registo como o mesmo não podia deixar de saber, até porque está representado por advogado, que, em face da decretada suspensão da instância com o dito fundamento, teria que demonstrar a realização do referido registo dentro do prazo de 6 meses estabelecido no art. 281/1 do CPC, a fim de impulsionar o andamento dos autos antes de decorrido este mesmo prazo, sem prejuízo de, justificadamente alegar e provar que, não foi possível fazê-lo sem culpa/ negligência.
Contra, veja-se, Lebre de Freitas e Isabel Alexandre, CPC, vol. 1º, Coimbra Editora, págs. 557; e agora, mais desenvolvidamente, Lebre de Freitas, Da nulidade da declaração de deserção da instância sem precedência de advertência à parte, publicado na ROA, 2018, vol. I/II, págs. 191 a 199, onde se sistematizam assim “os sete requisitos que” “a norma do art. 281/1 do CPC tem”, “dos quais seis evidenciados na letra do seu texto e o último decorrente da sua interpretação à luz dos referidos princípios gerais” (págs. 197-198):
“1. Que lei especial, ou o tribunal por despacho de adequação formal do processo, imponha à parte um ónus de impulso processual subsequente;
2. Que o acto que a parte deva praticar seja por ela omitido;
3. Que o processo fique parado em consequência dessa omissão;
4. Que a omissão se prolongue durante mais de seis meses;
5. Que o processo se mantenha, por isso, parado durante este período de tempo;
6. Que a omissão seja imputável à parte, por dolo ou negligência;
7. Que o juiz alerte a parte onerada para a deserção da instância que ocorrerá se o acto não for praticado (segundo a corrente mais exigente, só a partir da notificação deste despacho de advertência se contando os seis meses).”
Mas, face ao que antecede, nestes casos, em que há um específico ónus processual imposto pela lei às partes, de que a parte foi notificada e não podia deixar de ter conhecimento, não se concorda com este autor quanto ao requisito 7, no pressuposto de que ele se tem de verificar sempre e independentemente das circunstâncias do caso concreto, sendo certo, entretanto, que o dever de prevenção, como foi referido, sempre acabou por ser cumprido no caso dos autos.
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A autora queixa-se ainda de decisão surpresa, por falta de observância do contraditório. Está a invocar o dever de audição prévia de que alguma doutrina e jurisprudência fala, no sentido de o tribunal ouvir sempre as partes sobre a possibilidade da instância ser declarada deserta por negligência da parte onerada em dar o seu impulso processual.       
Tal é a posição de Teixeira de Sousa, num comentário ao acórdão do STJ de 08/03/2018 (publicado em 15/11/2018 no blog do IPPC sob jurisprudência 2018 (115)):
O decretamento da deserção da instância pressupõe que a omissão da parte no impulso processual é negligente (art. 281/1 CPC). O mero decurso do tempo sem que o impulso processual seja realizado não faz presumir a negligência da parte, dado que esta não pode deixar de ser aferida pela omissão de um dever de diligência nesse impulso. Por isso, impõe-se a audição prévia da parte. Como é óbvio, nada obsta ao decretamento da deserção da instância se da explicação fornecida pela parte não resultar uma justificação convincente para a omissão do impulso processual.
É também a posição de muitos acórdãos citados no ac. do TRL de 24/09/2019, 2165/17.3T8CSC.L1.L1-2, para onde se remete de modo a evitar repetições
No entanto, entende-se que o dever de audição prévia não se impõe como regra geral (nesse sentido também o acórdão do TRL acabado de referir, deste colectivo, sendo que nele também se referem muitos outros acórdãos no mesmo sentido e é essa a posição a que adere, embora com um voto de vencido).
Isto com base no facto de o regime jurídico da deserção não prever essa audição e por se entender que o art. 3/3 do CPC não pode ser invocado a seu favor, quer porque ele não rege para esta matéria, quer porque, nos termos em que se entende que a deserção pode ser declarada, nunca a decisão em causa poderá ser uma decisão surpresa.
Ou seja, não haverá violação da norma do art. 3/3 do CPC que é aquela que fala no princípio do contraditório e do da proibição das decisões-surpresa, invocado pela autora nestes autos.
Neste sentido, considera-se que vai a posição de Lebre de Freitas, já que na descrição que faz dos requisitos da decisão da deserção não incluiu qualquer referência à necessidade de audição prévia das partes.
Neste sentido vai também o artigo de Paulo Ramos de Faria, O julgamento da deserção da instância declarativa, publicado na revista Julgar on line – 2015, págs. 18 a 20.
No mesmo sentido, precisamente para os casos de suspensão do processo à espera da habilitação dos herdeiros, tem ido a jurisprudência constante do STJ, já referida acima a propósito do dever de prevenção.
Contra, vejam-se as duas anotações críticas a dois dos acórdãos do STJ citados acima, no blog do IPPC de 02/10/2020, jurisprudência 2020 (65) e 23/10/2020, jurisprudência 2020 (79), com as quais não se concorda pelas razões aduzidas acima.
E a autora não pode invocar a proibição da decisão-surpresa, porque, como já se viu, até foi proferido um despacho com referência ao artigo 281 e a sequência de despachos já transcrita não deixava hipótese para essa surpresa.                                
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Em suma, no caso dos autos entende-se que a negligência da autora resulta claramente demonstrada pelos factos constantes do relatório deste acórdão, nos termos já referidos, e que não ocorreu qualquer violação do dever de prevenção ou de audição prévia. Não se pode estar um ano e 5 meses, na prática, ou 10 meses, ou pelo menos quase 7 meses, sem se cumprir o que a lei impõe que se faça para que um processo ande e sem se vir dizer nada ao processo que justifique o facto.
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Pelo exposto, julga-se o recurso improcedente.
A autora perde as suas custas de parte (por ter decaído no recurso).

Lisboa, 05/11/2020
Pedro Martins

Inês Moura, com a seguinte declaração de voto: Embora tenha anteriormente defendido que a deserção da instância não é automática pelo decurso do prazo de 6 meses, devendo o tribunal ouvir as partes antes de proferir o despacho a que alude art.º 281.º n.º 4 do CPC, considerando a jurisprudência mais recente que não o vem exigindo e a bondade dos argumentos que também sustentam tal entendimento, altero a minha posição e adiro na integra à decisão e fundamentos do acórdão.

Laurinda Gemas