Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
18588/16.2T8LSB-DA.L1-1
Relator: FÁTIMA REIS SILVA
Descritores: DISPENSA DE SIGILO PROFISSIONAL
REVISOR OFICIAL DE CONTAS
PRINCÍPIO DA DESCOBERTA DA VERDADE MATERIAL
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 01/12/2021
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Texto Parcial: N
Meio Processual: INCIDENTE
Decisão: IMPROCEDENTE
Sumário: 1 – No incidente de quebra de segredo profissional em processo civil, ao aplicar o princípio da prevalência do interesse preponderante, com as devidas adaptações em relação à previsão da lei processual penal, o tribunal superior deve ter como critério a imprescindibilidade do meio de prova para a descoberta da verdade, sendo de adaptar as demais circunstâncias enumeradas na lei (gravidade do crime e necessidade de proteção de bens jurídicos) concretamente aos interesses feitos valer em contraponto aos valores tutelados pelo sigilo.
2 – Por regra, em processo civil, estaremos ante interesses privados, mas não necessariamente, sendo os interesses feitos valer no incidente de qualificação da insolvência simultaneamente o interesse público de regulação e segurança do tráfego jurídico, mediante a punição dos comportamentos caraterizados como qualificadores da insolvência, e os interesses privados ressarcitórios dos credores do devedor.
3 – O segredo profissional de Revisor Oficial de Contas, previsto no art. 84º do Estatuto da Ordem dos Revisores Oficiais de Contas funciona, em primeira linha como proteção da reserva e dos interesses dos visados, como, por exemplo, o segredo de negócio das entidades a quem prestam serviços, mas serve também a garantia de confiança instrumental ao exercício de funções de auditoria e fiscalização que constituem o núcleo da sua função.
4 – O segredo profissional de supervisão a que está obrigado o Banco de Portugal nos termos do artigo 80º do Regime Geral das Instituições de Crédito e Sociedades Financeiras tutela ainda o direito à reserva da intimidade da vida privada protegido pelo segredo bancário, e relativamente ao qual apresenta zonas de sobreposição, mas, em primeira linha protege o interesse público na efetividade ou eficácia da supervisão, essencial à estabilidade do sistema financeiro, bem jurídico constitucionalmente previsto nos termos do art. 101º da CRP.
5 – Na fase do incidente de quebra de sigilo em que intervém o tribunal superior o cumprimento dos requisitos de admissão do meio de prova em causa já foi verificado pelo tribunal de primeira instância, estando tal decisão coberta pelo caso julgado formal. Mas tal não afasta a necessidade de reflexão pelo tribunal superior sobre os mesmos elementos no exercício da ponderação concreta prevista nos arts. 135º nº3 do CPP e 417º nº4 do CPC, que exige que os concretos elementos pedidos sejam confrontados com os interesses protegidos pelo sigilo.
6 – O pedido de revelação por inteiro das comunicações entre duas entidades, limitadas apenas por uma finalidade geral (relativas à preparação de contas consolidadas) não se mostrando, no concreto, imprescindível para a descoberta da verdade e encerrando uma potencialidade muito séria de devassa de temas de todo não relacionados ou úteis para os termos da causa, não justifica a quebra do sigilo profissional.
7 – A produção de um meio de prova que não se destina à prova de factos, mas antes à corroboração de conclusões extraídas de factos e que constituirá, quanto muito, um meio de prova indireto, podendo concorrer para formar a convicção do tribunal, mas não a podendo por si só sustentar, não se mostra imprescindível para a descoberta da verdade, não justificando a quebra do sigilo profissional.
Decisão Texto Parcial:
Decisão Texto Integral: Acordam as Juízas da 1ª Secção Cível do Tribunal da Relação de Lisboa

1. Relatório
Por sentença de 21/07/2016, transitada em julgado, foi determinado o prosseguimento da liquidação judicial de Banco Espírito Santo, SA.
A Comissão Liquidatária do Banco Espírito Santo, SA (doravante BES) veio, nos termos e para os efeitos do disposto no nº1 do art. 188º do CIRE, apresentar parecer sobre a qualificação da insolvência do BES, propondo a qualificação da insolvência como culposa e a afetação de trezes pessoas singulares, entre as quais B e C.
Citados os requeridos, C veio deduzir oposição, na qual requereu, entre outras diligências, a notificação do Conselho de Administração do Banco de Portugal para “efeitos de junção do relatório completo de auto-avaliação (ou de outra natureza) relativamente à avaliação e conduta do Banco de Portugal, na supervisão do Banco Espírito Santo, S.A., nomeadamente no final de 2013 e 2014, incluindo quanto à aplicação das medidas de resolução (elaborado pela Comissão de Avaliação às Decisões e à Actuação do Banco de Portugal na Supervisão do Banco Espírito Santo)”, para prova dos factos alegados nos capítulos 6.3, 7.1, 7.3. e 8.3.3. e arts. 610 e 618 a 620 da oposição por si deduzida.
B deduziu igualmente oposição, pedindo, entre outras diligências, a notificação do Banco de Portugal “para juntar aos autos o Relatório da Boston Consulting sobre a sua actuação no caso da resolução do BES, o que se requer” por dele não dispor e para prova de toda a matéria de facto alegada na oposição.
A Comissão Liquidatária do BES (doravante Comissão Liquidatária ou CL) respondeu às oposições deduzidas por todos os requeridos e, neste articulado, requereu, entre outras diligências, a notificação, ao abrigo do disposto no art. 423º do CPC, aplicável ex vi art. 17º do CIRE, da X & Associados – Sociedade de Revisores Oficiais de Contas, SA para vir aos autos juntar “toda a informação e comunicações trocadas com a X Angola (…) relativa às contas do BESA (…) para efeitos de preparação das contas do BES (para prova dos factos alegados no capítulo 9 do Parecer e III.5 da presente resposta);”
Por despacho de 08/07/20, o tribunal determinou a notificação, por ofício:
- do Banco de Portugal para vir juntar aos autos “a) O relatório da Boston Consulting sobre a sua actuação no caso da resolução do Banco Espírito Santo, S.A.; b) O relatório identificado sob o ponto 2 dos “Pedidos de informações e Documentos a Terceiros” formulados pelo proposto afectado, Dr.º C, na sua oposição apresentada no incidente de qualificação;”
- da X & Associados, Sociedade de Revisores Oficiais de Contas, S.A., e a X ANGOLA, nos termos requeridos pela Comissão Liquidatária do Banco Espírito Santo, S.A.  em Liquidação, na sua resposta às oposições em sede de incidente de qualificação (Ponto iii) Notificação de Intervenientes e Terceiros Para Junção de Documentos e Prestação de Informações).
X & Associados – Sociedade de Revisores Oficiais de Contas, SA, (doravante X) por requerimento de 23/07/2020, veio “informar V. Exa., ao abrigo do disposto no art. 417º, nº3, al. c) do Código de Processo Civil, e no artigo 84º, nºs 1 e 6 do Estatuto da Ordem dos Revisores Oficiais de Contas, aprovado pela Lei nº 140/2015, de 7 de setembro, que as referidas informações e comunicações estão abrangidas pelo seu segredo profissional, pelo que se encontra impedida de as juntar ao processo.”
A Comissão Liquidatária, notificada, veio alegar serem as informações e comunicações solicitadas à X “de fundamental importância para a descoberta da verdade material em concreto para a prova da factualidade alegada no capítulo 9 do Parecer de qualificação da insolvência e no capítulo III.5 da Resposta às Oposições”. Requereu, para salvaguarda dos deveres de sigilo invocados, a constituição de um apenso confidencial destinado a permitir a junção dos elementos aos autos, acessível apenas ao tribunal e aos intervenientes processuais. Invocando a proporcionalidade, adequação e necessidade de obtenção dos elementos em apreço e a preponderância do interesse da Comissão Liquidatária no exercício do seu direito à tutela jurisdicional efetiva e do direito à prova, em defesa dos legítimos interesses da massa insolvente e dos respetivos credores, requereu seja ordenado o levantamento do segredo profissional invocado pela X, nos termos do disposto no art. 135º nº3 do CPP, aplicável ex vi arts. 417º nº4 do CPC e 17º do CIRE.
O Banco de Portugal (doravante BdP) veio informar não haver registo nem conhecimento “de qualquer documento intitulado “Relatório da Boston Consulting”, apenas se encontrando na posse do Banco de Portugal o documento designado “Comissão de Avaliação das Decisões e Atuação do Banco de Portugal na Supervisão do Banco Espirito Santo – Relatório Final”, datado de 30 de abril de 2015 e que, quanto a este, se encontra “legalmente vinculado ao dever de segredo previsto no artigo 80.º, n.º 1, do Regime Geral das Instituições de Crédito e Sociedades Financeiras (“RGICSF”), no artigo 60º da respetiva Lei Orgânica e no artigo 37º dos Estatutos do Sistema Europeu de Bancos Centrais e do BCE”.
Declarou que a informação se mantém reservada e que os documentos judicialmente requeridos contêm informações sensíveis, legalmente protegidas em diferentes regimes jurídicos e, invocando o dever legal de segredo, deduz, nos termos do nº2 do art. 80º do RGCISF, escusa quanto à junção do relatório solicitado.
B veio indicar ser o Relatório da Boston & Consulting o identificado no nº2 do requerimento do BdP e considerando ilegítima a escusa deduzida e imputando ao BdP a intenção de ocultar a realidade das suas próprias responsabilidades na criação ou agravamento da situação de insolvência do BES.
Pede seja julgada ilegítima a escusa deduzida pelo BdP e, subsistindo dúvidas, seja ordenada a subida do incidente ao Tribunal da Relação de Lisboa para que “tendo em conta a imprescindibilidade do referido Relatório para o esclarecimento da realidade, decida da ilegitimidade da escusa, ou da prevalência do interesse da descoberta da verdade, libertando o BdP do invocado “dever de segredo” que, no caso vertente, protege unicamente os seus próprios interesses.”
C veio pronunciar-se e, no tocante à escusa deduzida pelo BdP, considerou ser a escusa intempestiva e ilegítima, inexistindo qualquer relação de confiança que impeça a junção dos documentos, que o tribunal já decidiu que os documentos confidenciais devem ser juntos em suporte físico e autuados em apensos confidenciais, estarem preenchidas duas das três circunstancias previstas no nº3 do art. 80º do RGICSF como exceção ao dever de segredo, e, caso assim se não entenda, que seja suscitado o incidente de quebra de segredo nos termos do disposto nos arts. 135º nº3 e 182º nº2 do CPP, aplicáveis ex vi arts. 417º nº4 do CPC e 17º do CIRE.
Alega que o direito de defesa do requerido, os interesses da descoberta da verdade e da realização de justiça prevalecem sobre o segredo de supervisão que possa ser invocado, que não protege a intimidade da vida privada, prevalecendo o direito à tutela jurisdicional efetiva.
Formula vários pedidos e, a final requer: “Caso se entenda que a escusa do Banco de Portugal em juntar os documentos indicados no ponto A) - I). a) e b) do Despacho de 8 de Julho de 2020 se afigura legítima (sem conceder), então, nos termos do disposto no artigo 135.º, n.º 3, do CPP ex vi artigo 182.º, n.º 2, do CPP ex vi artigo 417.º, n.º 4, do CPC e artigo 17.º do CIRE, requer-se que o Tribunal da Relação de Lisboa determine a quebra de segredo invocado pelo Banco de Portugal, a promover pela 1.ª Instância, nos termos e com base nos fundamentos acima expostos.”
 Por despacho de 15/09/2020, o tribunal decidiu, quanto à escusa deduzida pela X:
“Porém, a nosso ver, no caso, os elementos em questão terão interesse para a boa decisão da causa atento o alegado por alguma das partes nos seus articulados, em particular a Comissão Liquidatária do Banco Espírito Santo, S.A.  Em Liquidação e o Dr.º C.
Nesta medida, considerando-se legítima a recusa da X & ASSOCIADOS, Sociedade de Revisores Oficiais de Contas, S.A., entende-se que o levantamento do sigilo deverá ser ordenado pelo Venerando Tribunal da Relação de Lisboa nos termos do artigo 417.º, n.ºs 3, alínea c) e 4, do Código de Processo Civil.”
E quanto à escusa deduzida pelo Banco de Portugal, entendendo, face aos elementos dos autos, que o documento denominado “Relatório da Boston Consulting” é o documento designado pelo BdP como “Comissão de Avaliação das Decisões e Atuação do Banco de Portugal na Supervisão do Banco Espirito Santo – Relatório Final”, datado de 30 de abril de 2015, decidiu:
“Nesta medida, considerando-se legítima a recusa do Banco de Portugal, entende-se que o levantamento do sigilo deverá ser ordenado pelo Venerando Tribunal da Relação de Lisboa nos termos do artigo 417.º, n.ºs 3, alínea c) e 4, do Código de Processo Civil.”
A decisão que julgou legítimas as escusas deduzidas, transitou em julgado.
Foram colhidos os vistos.
Cumpre apreciar.
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2. Objeto do incidente
A questão essencial a decidir é saber se deve, ou não, ser ordenado o levantamento do sigilo profissional invocado:
- pela X & Associados – Sociedade de Revisores Oficiais de Contas, SA;
- pelo Banco de Portugal.
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3. Fundamentos de facto:
Os factos com relevância para a decisão do incidente são os constantes do relatório.
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4. Fundamentos de direito
4.1. Aspetos gerais do regime do sigilo
O presente incidente de levantamento de sigilo bancário é extraído do apenso de qualificação de insolvência de um processo de liquidação de instituição de crédito, o qual se regula pelas regras do Decreto-Lei n.º 199/2006 de 25/10, na sua versão atual[1], nos termos de cujo art. 8º nº1, em tudo o que não esteja previsto neste diploma, se aplicam as normas do CIRE.
Por sua vez, nos termos do art. 17º nº1 do CIRE, é direito subsidiário o Código de Processo Civil, em tudo o que não contrarie as disposições do CIRE.
Abreviadamente, os presentes autos regem-se, em primeira linha pelo Decreto-Lei n.º 199/2006, no mais não previsto, pelo CIRE e, nas matérias não previstas neste, pelo CPC, sendo a aplicação sucessiva do direito subsidiário sempre com respeito pelas regras do direito aplicável, também sucessivamente.
Percorrendo os diplomas, não encontramos senão no Código de Processo Civil um regime legal geral de instrução do processo, o qual deve ser aplicado sem contrariar as regras do CIRE e apenas no que não esteja previsto no Decreto-Lei n.º 199/2006.
É seguindo este percurso que chegamos ao disposto no nº1 do art. 417º do CPC, que tem por epígrafe “Dever de cooperação para a descoberta da verdade”, «Todas as pessoas, sejam ou não partes na causa, têm o dever de prestar a sua colaboração para a descoberta da verdade, respondendo ao que lhes for perguntado, submetendo-se às inspeções necessárias, facultando o que for requisitado e praticando os atos que forem determinados.»
Trata-se de uma importante concretização do dever de cooperação, respeitante ao plano da cooperação material no domínio da prova (dos factos)[2] aplicável às partes e a terceiros, previsto no art. 7º do CPC como um dos princípios bailares de processo civil, corporizando na instrução do processo o comando constitucional do art. 20º da Constituição da República Portuguesa. O art. 20º da CRP garante a todos o direito de acesso à justiça e aos tribunais, desenhado nas suas várias vertentes, entre as quais o direito à decisão da causa «mediante processo equitativo.» - cfr. nº4 do art. 20º da CRP.
O princípio do processo equitativo tem sido densificado, pela doutrina e pela jurisprudência, através de outros princípios, citados por Gomes Canotilho e Vital Moreira[3], que vão desde o direito à igualdade de armas ou direito à igualdade de posições no processo, ao direito de defesa e ao direito ao contraditório, ao direito a prazos razoáveis de ação ou de recurso, à exigência de fundamentação das decisões, ao direito à decisão em prazo razoável, ao direito ao conhecimento dos dados processuais, ao direito à prova até ao direito a um processo orientado para a justiça material.
O dever de cooperação instrutório liga-se umbilicalmente aos direitos à prova e à defesa, que compreendem a possibilidade de cada uma das partes apresentar as provas destinadas a demonstrar os factos alegados e, correspondentemente, a infirmar os factos alegados pela outra parte, mas conexiona-se com as demais dimensões deste direito porque orientado para a descoberta da verdade.
Trata-se porém, de um direito que sofre limitações, como decorre do regime legal.
O dever de cooperação para a descoberta da verdade tem dois limites: “o respeito pelos direitos fundamentais, imposto pela Constituição e referido nas alíneas a) e b) do nº3 (cf. os arts. 25-1 CP, 26-1 CP e 34-1 CP)”[4] do art. 417º do CPC; e “o respeito pelo direito ou dever de sigilo, a que se refere a alínea c) do nº3”, do mesmo art. 417º do CPC.
Nos termos dos nºs 2, 3 e 4 do art. 417º do CPC:
«2 - Aqueles que recusem a colaboração devida são condenados em multa, sem prejuízo dos meios coercitivos que forem possíveis; se o recusante for parte, o tribunal aprecia livremente o valor da recusa para efeitos probatórios, sem prejuízo da inversão do ónus da prova decorrente do preceituado no n.º 2 do artigo 344.º do Código Civil.
3 - A recusa é, porém, legítima se a obediência importar:
a) Violação da integridade física ou moral das pessoas;
b) Intromissão na vida privada ou familiar, no domicílio, na correspondência ou nas telecomunicações;
c) Violação do sigilo profissional ou de funcionários públicos, ou do segredo de Estado, sem prejuízo do disposto no n.º 4.
4 - Deduzida escusa com fundamento na alínea c) do número anterior, é aplicável, com as adaptações impostas pela natureza dos interesses em causa, o disposto no processo penal acerca da verificação da legitimidade da escusa e da dispensa do dever de sigilo invocado.»
Este nº4 remete para o disposto nos arts. 135º e ss.[5] do Código de Processo Penal, preceito no qual se dispõe, sob a epígrafe “Segredo profissional” que:
«1 - Os ministros de religião ou confissão religiosa e os advogados, médicos, jornalistas, membros de instituições de crédito e as demais pessoas a quem a lei permitir ou impuser que guardem segredo podem escusar-se a depor sobre os factos por ele abrangidos.
2 - Havendo dúvidas fundadas sobre a legitimidade da escusa, a autoridade judiciária perante a qual o incidente se tiver suscitado procede às averiguações necessárias. Se, após estas, concluir pela ilegitimidade da escusa, ordena, ou requer ao tribunal que ordene, a prestação do depoimento.
3 - O tribunal superior àquele onde o incidente tiver sido suscitado, ou, no caso de o incidente ter sido suscitado perante o Supremo Tribunal de Justiça, o pleno das secções criminais, pode decidir da prestação de testemunho com quebra do segredo profissional sempre que esta se mostre justificada, segundo o princípio da prevalência do interesse preponderante, nomeadamente tendo em conta a imprescindibilidade do depoimento para a descoberta da verdade, a gravidade do crime e a necessidade de protecção de bens jurídicos. A intervenção é suscitada pelo juiz, oficiosamente ou a requerimento.
4 - Nos casos previstos nos n.os 2 e 3, a decisão da autoridade judiciária ou do tribunal é tomada ouvido o organismo representativo da profissão relacionada com o segredo profissional em causa, nos termos e com os efeitos previstos na legislação que a esse organismo seja aplicável.
5 - O disposto nos n.os 3 e 4 não se aplica ao segredo religioso.»
Encontramos aqui uma terceira linha de direito subsidiário, no específico assunto que nos ocupa, cuja aplicabilidade deve ser aferida tendo em conta as regras sucessivamente aplicáveis.
Cabe, ainda em sede geral, proceder a uma precisão de conceitos útil para a posterior avaliação dos interesses concretos em jogo. Segredo e sigilo são diversos entre si, já que o segredo respeita sempre à matéria que o pressupõe, “em muitos casos no contexto de certas profissões e funções”[6] e o sigilo “é uma imposição legal específica de circunspeção relativamente a informação, documentos e factos de que se tenha conhecimento num certo contexto funcional ou institucional.”
O procedimento a seguir é o apontado pelo Acórdão Uniformizador de Jurisprudência nº 2/2008 de 13-02-2008[7], que uniformizou jurisprudência no seguinte sentido:
“1. Requisitada a instituição bancária, no âmbito de inquérito criminal, informação referente a conta de depósito, a instituição interpelada só poderá legitimamente escusar-se a prestá-la com fundamento em segredo bancário.
2. Sendo ilegítima a escusa, por a informação não estar abrangida pelo segredo, ou por existir consentimento do titular da conta, o próprio tribunal em que a escusa for invocada, depois de ultrapassadas eventuais dúvidas sobre a ilegitimidade da escusa, ordena a prestação da informação, nos termos do nº 2 do art. 135º do Código de Processo Penal.
3. Caso a escusa seja legítima, cabe ao tribunal imediatamente superior àquele em que o incidente se tiver suscitado ou, no caso de o incidente se suscitar perante o Supremo Tribunal de Justiça, ao pleno das secções criminais, decidir sobre a quebra do segredo, nos termos do nº 3 do mesmo artigo.”
Ou seja, exatamente o procedimento seguido nestes autos: o tribunal de 1ª instância valora os requerimentos de prova e, admitindo-os, nos termos da lei, ordena a sua prestação, que poderá passar, no caso concreto, pela apresentação de documentos em poder de terceiros ou de outras partes. Se o destinatário da ordem recusar o seu cumprimento invocando sigilo profissional ou de funcionários públicos, ou segredo de Estado deve o tribunal apreciar a legitimidade da recusa e, considerando a recusa legítima, suscitar a questão ao tribunal imediatamente superior.
A atividade deste tribunal, no caso presente, em que foi invocado sigilo profissional por dois destinatários de ordens de produção de prova, é de efetuar a ponderação prevista no nº3 do art. 135º do CPP, com as adaptações impostas pela natureza dos interesses em causa, nos termos do disposto no nº4 do art. 417º do CPC.
E tal ponderação é efetuada casuisticamente, havendo que determinar “se prevalece o direito à prova ou as razões que justificam a invocação do sigilo, sendo que tal ponderação se rege necessariamente pelo princípio da proibição do excesso ou da proporcionalidade (art. 18º nº2 da CRP), o qual se desdobra nos subprincípios da adequação ou idoneidade, da exigibilidade ou necessidade e justa medida ou proporcionalidade em sentido estrito.”[8]
O princípio da proporcionalidade, igualmente denominado princípio da proibição de excesso, como referido, desdobra-se em três subprincípios:
“a) princípio da adequação (também designado por princípio da idoneidade), isto é, as medidas restritivas legalmente previstas como meio adequado para a prossecução dos fins visados pela lei (salvaguarda de outros direitos ou bens constitucionalmente protegidos);
b) princípio da exigibilidade (também chamado princípio da necessidade ou da indispensabilidade), ou seja as medidas restritivas previstas na lei devem revela-se necessárias (tornarem-se exigíveis), porque os fins visados pela lei não podiam ser obtidos por outros meios menos onerosos para os direitos liberdades e garantias;
c) princípio da proporcionalidade em sentido estrito, que significa que os meios legais restritivos e s fins obtidos devem situar-se numa «justa medida», impedindo-se a adoção de medidas legais restritivas desproporcionadas, em relação aos fins obtidos.”[9]
É o princípio da proporcionalidade que, ainda em sede abstrata, norteia a justificação para a quebra do segredo, como refere Paulo Pinto de Albuquerque, em anotação ao art. 135º do CPP[10]:
- a imprescindibilidade (do depoimento) para a descoberta da verdade “significa duas coisas: a descoberta da verdade é irreversivelmente prejudicada se a testemunha não depuser ou, depondo, o depoimento não incidir sobre os factos abrangidos pelo segredo profissional e, portanto, o esclarecimento da verdade não pode ser obtido de outro modo, isto é, não há meios alternativos à quebra do segredo profissional que permitam apurar a verdade”;
- a necessidade de proteção de bens jurídicos “identifica-se com uma “necessidade social premente” de revelação da informação coberta pelo segredo profissional (…). Os “bens jurídicos” a que a lei se refere são os bens jurídicos tutelados pela lei penal portuguesa mas a quebra do sigilo profissional só é justificável se corresponder a um interesse social premente.” Afasta assim, por regra, a quebra de sigilo profissional quando estejam em causa crimes particulares, bem como quando existam fundados motivos para crer na existência de causas de isenção de responsabilidade ou de extinção do procedimento criminal;
- a gravidade do crime, refere o autor que vimos citando, seguindo a bitola do art. 187º nº1, al. a) do CPP, leva a que não deva “o tribunal superior considerar justificada a quebra de segredo profissional nos casos de crime punível com prisão até três anos.”
Recordando, em processo civil, o nº4 do art. 417º do CPC ordena a aplicação do disposto no processo penal «com as adaptações impostas pela natureza dos interesses em causa», sendo assim aplicável o princípio da prevalência do interesse preponderante, nomeadamente tendo em conta a imprescindibilidade do depoimento para a descoberta da verdade, mas já não o subcritério da gravidade do crime e, eventualmente, o da necessidade de proteção de bens jurídicos (na aceção jurídico-penal).
Lopes do Rego[11] escreve, sobre este ponto: “É manifesto que o tribunal superior, ao realizar o juízo que ditará qual o interesse que, em concreto, irá prevalecer, carece de actuar segundo critérios prudenciais, realizando uma cautelosa e aprofundada ponderação dos delicados e relevantes interesses em conflito: por um lado, o interesse na realização da justiça e a tutela do direito à produção de prova pela parte onerada; por outro lado, o interesse tutelado com o estabelecimento do dever de sigilo, “maxime” o interesse da contraparte na reserva da vida privada, a tutela da relação de confiança que a levou a confiar dados pessoais ao vinculado pelo sigilo e a própria dignidade do exercício da profissão. Daí que – como acentua o nº 4 [do art. 417º] – tal juízo de ponderação deva ter, sempre e necessariamente, em conta a “natureza dos interesses em causa”: desde logo, trata-se de interesses privados (e não interesses públicos como sucede necessariamente no âmbito do processo penal) que poderão, por sua vez, revestir natureza pessoal ou patrimonial – e, neste caso, de valores muito variáveis.
Daqui decorre que a dispensa do invocado sigilo dependerá sempre de um juízo concreto, fundado na específica natureza da acção e na relevância e intensidade dos interesses da parte que pretende obter prova através daquela dispensa…”
Ou seja, estaremos, por regra, ante interesses privados, o que não afasta a possibilidade de quebra do sigilo, antes adensa a necessidade de ponderação concreta dos interesses em causa.
É esse esforço de adaptação que encontramos em jurisprudência cível de aplicação desta regra pesando o interesse protegido pelo estabelecimento da regra de sigilo contra o interesse no acesso ao direito na vertente do acesso à prova e da descoberta da verdade material e ponderando sempre a importância do elemento de prova coberto pelo sigilo para a descoberta da verdade.
Assim, por exemplo, no Ac. TRP de 10/02/2020[12] (relator Jorge Seabra), decidiu-se que a quebra do segredo, no caso bancário, “sem prejuízo de o interesse primordial em apreço ser de índole material, ainda que significativo face aos valores em disputa, estamos em crer que, de facto, a obtenção das informações em causa se revela não só importante para o apuramento dos factos em apreço (direito à prova – artigo 20º da Constituição da República), mas, ainda, de facto, essas informações em suporte documental revelam-se claramente decisivas para o apuramento da factualidade relevante e atinente ao negócio em causa, sendo certo que tais documentos são dotados de uma força probatória incomparavelmente superior relativamente a outros meios de prova, que, ainda que possíveis, são consabidamente muito mais falíveis, v.g., prova testemunhal, declarações de parte ou depoimento de parte (quando o mesmo não seja confessório).”
No Ac. TRP de 26/03/2019[13] (Relator Rodrigues Pires), identificaram-se como interesses em conflito “por um lado, o interesse na realização da justiça e a tutela do direito à produção de prova pela parte onerada; por outro, o interesse tutelado com o estabelecimento do dever de sigilo”, ponderando, no concreto, a relevância probatória dos elementos pedidos e a não afetação dos interesses protegidos – no caso também pelo segredo bancário – e decidindo pela quebra daquele.
Ou, como no Ac. TRL de 08/11/2018[14] (Relator José António Moita) onde se ponderou a relevância das concretas diligências de prova cobertas por segredo bancário e a inexistência de via alternativa para a prova dos factos, concluindo-se que “No caso concreto a busca da verdade material tendente a dar efectividade ao acesso e à realização da justiça, assente no direito à prova, afigura-se prevalente relativamente à manutenção do sigilo bancário sobre a informação pretendida, pelo que o mesmo deve ser dispensado.”
No caso tratado pelo Ac. TRP de 26-03-2019[15] (Relator Rodrigues Pires) fazendo a ponderação concreta entre os interesses que identificou, de um lado o interesse na realização da justiça e a tutela do direito à produção de prova e, por outro, o interesse tutelado com o estabelecimento do dever de sigilo, decidiu pela quebra do segredo bancário fundamentando que “a obtenção das informações pretendidas pelo autor/recorrente não colide, de modo insustentável ou irrazoável, com os valores subjacentes ao dever de sigilo bancário, nem com o normal funcionamento da entidade bancária aqui em causa, tal como não prejudica a imagem desta, nem gera desconfiança entre o público.” Na mesma linha, o Ac. TRL de 29/11/2016[16] (Rijo Ferreira), decidiu que “É de dispensar o sigilo bancário relativamente ao processo negocial que procedeu a sua emissão quando está em causa apurar a natureza autónoma ou não de garantia bancária porquanto o mesmo é necessário para apurar os critérios de interpretação do contrato e não se mostra desproporcionada a compressão daí resultante para os interesses protegidos pelo sigilo bancário.”, mas decidindo também que “A informação divulgada na sequência da dispensa do sigilo bancário deve ficar apenas acessível às partes e para efeitos do processo, sendo excluída da publicidade do processo.”
No Ac. TRP de 06/12/04[17] (Relator Caimoto Jácome) decidiu-se não quebrar o segredo bancário “Há que sopesar, por um lado, o interesse, público ou colectivo, do regular funcionamento da actividade bancária e o particular (garantia de máxima reserva a respeito dos negócios dos particulares e das suas relações com a banca, designadamente no que concerne à vida privada) e, por outro, o interesse na realização da justiça e o (individual) da autora na satisfação do seu eventual crédito.”, isto depois de ponderar as concretas informações pedidas e os elementos já disponíveis.
Foram considerações de adequação e proporcionalidade que justificaram a decisão de não quebra o sigilo a que está sujeita uma empresa de telecomunicações no caso tratado pelo Ac. TRL de 05/05/20[18] (Relatora Conceição Saavedra), cujo sumário, por esclarecedor, se transcreve: “No âmbito de execução sumária, no valor de € 2.813,31, instaurada por empresa de elevada dimensão no domínio da venda e gestão de crédito a particulares contra uma pessoa singular, não cabe ordenar o fornecimento, pela entidade prestadora de serviços telefónicos, de dados relativos à morada do executado cobertos pelo sigilo profissional, com quebra desse sigilo, por estar em causa a localização de bens penhoráveis do executado e a sua citação, face à simples justificação de que “a obtenção da informação em causa é de extrema importância para os presentes autos”, sem qualquer esclarecimento quanto às diligências processuais já realizadas nos autos e/ou à iniciativa da exequente com vista à averiguação sobre o património do devedor.”
No Ac. TRL de 06/02/2020[19] (Carlos Castelo Branco) decidiu-se que “Justifica-se a medida excecional da quebra do sigilo profissional quando a informação pretendida como objeto do dever de colaboração e que se encontra coberta por sigilo profissional, é fundamental para a concretização da finalidade judicialmente determinada, constituindo o único meio expetável de realização de um direito da requerente, judicialmente reconhecido há longo tempo.”
A indispensabilidade do meio de prova coberto pelo sigilo foi sendo frisada em outras decisões como o Ac. TRL de 23/01/2018 (Luís Espírito Santo), o Ac. TRL de 09/12/17 (Ezaguy Martins), os Acs. TRL de 19/04/16 e de 25/03/2014 (Cristina Coelho), o Ac. TRL de 21/04/2016 (Maria Teresa Pardal), o Ac. TRL de 09/07/2014 e de 28/02/2012 (José Pimentel Marcos), o Ac. TRL de 22/03/2011 (Rui Vouga) e o Ac. TRL de 27/01/2011 (Olindo Geraldes)[20]. O Ac. TRL de 20/12/2016[21] (Conceição Saavedra), apontou a não adequação da informação solicitada para o efeito pretendido para negar a dispensa de segredo.
Vimos sempre negada a quebra do sigilo quando o ónus da prova não compete à parte que pretende a informação – cfr. Acs. TRL de 25/06/13 (Luís Espírito Santo) e Ac. TRL de 21/04/2016 (Maria Teresa Pardal)[22].
A ponderação dos interesses em concreto e a importância do interesse feito valer em contraponto ao interesse protegido pelo regime do segredo resulta exemplarmente do Ac. TRL de 13/07/2012[23] (Graça Amaral), no qual estava em causa a prestação de pensão de alimentos.
Este excurso permite-nos confirmar que a ponderação em concreto dos valores em jogo se faz de forma particularmente fina em processo civil, desde a identificação dos interesses em causa, até à visão geral do panorama probatório dos autos e da relevância dos elementos pedidos, sendo claro que a maioria da jurisprudência considera que, sendo o meio de prova coberto pelo sigilo indispensável para a descoberta da verdade, o segredo deve ceder.
Assim, e retornando ao princípio da prevalência do interesse preponderante, tal como previsto na lei processual penal, estamos em condições de manter como critério a imprescindibilidade do depoimento (meio de prova) para a descoberta da verdade, e adaptar as circunstâncias enumeradas na lei (gravidade do crime e necessidade de proteção de bens jurídicos) aos interesses feitos valer em contraponto aos valores tutelados pelo sigilo.
Por regra estaremos ante interesses privados, mas não necessariamente.
Os presentes pedidos são formulados em incidente de qualificação da insolvência por apenso ao processo de liquidação judicial de uma instituição de crédito, regulada pelo Decreto-Lei n.º 199/2006 de 25/10, na sua redação aplicável, e pelo Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas em tudo o que não seja especialmente regulado naquele.
Estando posta em causa nos autos até a possibilidade legal de qualificação de insolvência – cfr. defesa do proposto afetado C – neste ponto dos autos todas as plausíveis soluções de direito têm que ser ponderadas, pelo que a possibilidade legal (além da real, já que o incidente foi aberto e está a ser tramitado) da tramitação deste incidente é o cenário com que temos que lidar.
A qualificação da insolvência é um instituto jurídico introduzido de forma (parcialmente) inovatória no CIRE e que visa a responsabilização daqueles que tenham criado ou contribuído para o agravar da situação de insolvência do devedor e “aplicar certas medidas (sanções) aos culpados – ou seja, mediatamente, moralizar o sistema”[24].
Como se escreveu no preambulo do diploma que aprovou o CIRE, “Um objectivo da reforma introduzida pelo presente diploma reside na obtenção de uma maior e mais eficaz responsabilização dos titulares de empresa e dos administradores de pessoas colectivas. É essa a finalidade do novo ‘incidente de qualificação da insolvência’.
As finalidades do processo de insolvência e, antes ainda, o próprio propósito de evitar insolvências fraudulentas ou dolosas, seriam seriamente prejudicados se aos administradores das empresas, de direito ou de facto, não sobreviessem quaisquer consequências sempre que estes hajam contribuído para tais situações. A coberto do expediente técnico da personalidade jurídica colectiva, seria possível praticar incolumemente os mais variados actos prejudiciais para os credores.
(…)
O incidente destina-se a apurar (sem efeitos quanto ao processo penal ou à apreciação da responsabilidade civil) se a insolvência é fortuita ou culposa, entendendo-se que esta última se verifica quando a situação tenha sido criada ou agravada em consequência da actuação, dolosa ou com culpa grave (presumindo-se a segunda em certos casos), do devedor, ou dos seus administradores, de direito ou de facto, nos três anos anteriores ao início do processo de insolvência, e indicando-se que a falência é sempre considerada culposa em caso da prática de certos actos necessariamente desvantajosos para a empresa.
A qualificação da insolvência como culposa implica sérias consequências para as pessoas afectadas que podem ir da inabilitação por um período determinado, a inibição temporária para o exercício do comércio, bem como para a ocupação de determinados cargos, a perda de quaisquer créditos sobre a insolvência e a condenação a restituir os bens ou direitos já recebidos em pagamento desses créditos.”
Em 2012 o CIRE foi revisto[25] e o incidente passou a ser eventual e a prever a responsabilização patrimonial dos afetados, acrescentando à finalidade punitiva já enunciada uma finalidade ressarcitória e patrimonial, resultando agora como o “instituto jurídico que agrega o complexo de normas legais, simultaneamente adjetivas e substantivas que, visando objetivos punitivos, ressarcitórios e cautelares, institui uma nova forma de responsabilização apenas passível de ser exercida em contexto de insolvência que, muito embora parta de um ilícito contratual (a violação de direitos de crédito não satisfeitos), colhe a essência da responsabilização aquiliana (pelos pressupostos a que recorre), mas com restrições e contornos que são peculiares, sobretudo no plano das sanções.”[26]
Do elenco de sanções associadas à afetação pela qualificação da insolvência como culposa resulta bem a finalidade punitiva enunciada, que, pese embora arrancando de interesses privados – a situação de impossibilidade do cumprimento de obrigações vencidas que carateriza a insolvência respeita, em primeira linha, aos credores do devedor – acaba por assumir um carater de punição exemplar tendente a desmotivar os comportamentos caraterizados como geradores da qualificação e que ergue os interesses protegidos por este instituto a um patamar diverso do interesse privado dos credores. Estamos assim ante um interesse público[27] de regulação e segurança do tráfego jurídico que deve ser ponderado em contrapeso aos interesses protegidos pelas normas que instituem os sigilos cuja quebra está em causa nestes autos.
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4.2. Segredo profissional de Revisor Oficial de Contas
Estabelece o art. 84º do Estatuto da Ordem dos Revisores Oficiais de Contas, aprovado pela Lei nº 140/2015 de 7 de setembro, sob a epígrafe, segredo profissional:
«1 - Os revisores oficiais de contas não podem prestar a empresas ou outras entidades públicas ou privadas quaisquer informações relativas a factos, documentos ou outras de que tenham tomado conhecimento por motivo de prestação dos seus serviços, exceto quando a lei o imponha ou quando tal seja autorizado por escrito pela entidade a que digam respeito.
2 - Os revisores oficiais de contas não podem ainda prestar a empresas ou outras entidades públicas ou privadas quaisquer informações relativas a factos, documentos ou outras que, por virtude de cargo desempenhado na Ordem, qualquer revisor oficial de contas, obrigado a segredo profissional quanto às mesmas informações, lhes tenha comunicado.
3 - O dever de segredo profissional não abrange:
a) As comunicações e informações de um sócio a outros sócios;
b) As comunicações e informações de revisor oficial de contas individual ou de sócios de sociedades de revisores oficiais de contas que se encontrem sob contrato de prestação de serviços nos termos da alínea c) do n.º 1 do Artigo 49.º e aos seus colaboradores, na medida estritamente necessária para o desempenho das suas funções;
c) As comunicações e informações entre revisores oficiais de contas, no âmbito da revisão legal das contas consolidadas de empresas ou de outras entidades, na medida estritamente necessária ao desempenho das suas funções devendo os revisores oficiais de contas dar conhecimento desse facto à administração, gestão, direção ou gerência da respetiva empresa ou outra entidade;
d) As comunicações e informações pertinentes relativas à entidade examinada que o revisor oficial de contas ou a sociedade de revisores oficiais de contas que for substituído deve efetuar ao revisor oficial de contas ou à sociedade de revisores oficiais de contas que o substituir;
e) As comunicações e informações pertinentes efetuadas ao Tribunal de Contas e à Inspeção-Geral de Finanças, relacionadas com o exercício de atividades pelo revisor oficial de contas ou sociedade de revisores oficiais de contas em entidades públicas no âmbito do dever de cooperação e nos termos que vierem a ser protocolados entre a Ordem e aquelas entidades de controlo;
f) As comunicações e informações à CMVM, no exercício das suas funções de supervisão de auditoria, nomeadamente as decorrentes do regime jurídico de supervisão de auditoria e do Regulamento (UE) n.º 537/2014, do Parlamento Europeu e do Conselho, de 16 de abril de 2014.
4 - Sem prejuízo dos deveres de conservação de dados, o revisor oficial de contas ou a sociedade de revisores oficiais de contas também concedem ao novo revisor oficial de contas ou à sociedade de revisores oficiais de contas o acesso aos relatórios adicionais e a quaisquer informações transmitidas à CMVM ou à Ordem, nos termos previstos no Artigo 18.º do Regulamento (UE) n.º 537/2014, do Parlamento Europeu e do Conselho, de 16 de abril de 2014.
5 - Cessa o dever de segredo profissional quando esteja em causa a defesa da dignidade, de direitos e interesses legítimos do próprio revisor oficial de contas ou da sociedade de revisores oficiais de contas, mediante prévia autorização do bastonário da Ordem.
6 - Os revisores oficiais de contas que cessem funções de interesse público numa determinada entidade permanecem vinculados ao dever de segredo profissional relativamente ao trabalho efetuado no exercício dessas funções.
7 - Sem prejuízo do previsto nos números seguintes, caso o revisor oficial de contas ou a sociedade de revisores oficiais de contas realize revisão legal das contas de uma entidade que faça parte de um grupo cuja empresa-mãe esteja situada num país terceiro, o dever de segredo não obsta à transmissão, pelo revisor oficial de contas ou pela sociedade de revisores oficiais de contas, da documentação relevante relativa aos trabalhos de auditoria realizados para o auditor do grupo situado num país terceiro, se essa documentação for necessária para a realização da auditoria das contas consolidadas da empresa-mãe.
8 - Os revisores oficiais de contas ou as sociedades de revisores oficiais de contas que realizem a revisão legal das contas de uma entidade que tenha emitido valores mobiliários num país terceiro ou faça parte de um grupo que emite contas consolidadas nos termos da lei de um país terceiro só podem facultar às autoridades competentes dos países terceiros em causa os documentos de trabalho da auditoria, ou outros documentos relacionados com a auditoria dessa entidade que detenham, nas condições estabelecidas no Artigo 27.º do Regime Jurídico da Supervisão de Auditoria.
9 - A transmissão de informações para o auditor do grupo situado num país terceiro deve respeitar as regras aplicáveis em matéria de proteção de dados pessoais.»
A norma garante o cumprimento do nº1 do art. 23º da Diretiva 2006/43/CE do Parlamento Europeu e do Conselho de 17 de Maio de 2006, relativa à revisão legal das contas anuais e consolidadas,[28], que exige a proteção de todas as informações e documentos a que o revisor tem acesso no exercício das suas funções.
Pese embora a previsão, no art. 86º do referido Estatuto, de um mecanismo de reclamação para o Presidente do Tribunal da Relação territorialmente competente, “no decurso das diligências previstas nos Artigos anteriores”, que incluem a previsão, quer do art. 84º, quer do art. 85º, a regra não afasta o funcionamento do regime geral previsto no CPC e no CPP, quando verificados os respetivos pressupostos.
Sempre que a questão seja suscitada por via de reclamação, pelo revisor oficial de contas ou representante da sociedade de revisores oficiais de contas interessado ou, na sua falta, por qualquer dos familiares ou empregados presentes, ou pelo representante da Ordem, nos termos do art. 86º, a questão é decidida pelo Presidente do Tribunal da Relação competente.
Quando, no decurso de um processo civil (ou criminal) uma testemunha sujeita ao sigilo profissional de revisor oficial de contas seja chamada a depor sobre factos abrangidos pelo sigilo ou, sempre que um revisor oficial de contas ou sociedade revisora oficial de contas seja chamada a fornecer documentos cobertos por esse mesmo sigilo, o mecanismo adequado é o da quebra do sigilo profissional nos termos previstos pela lei processual.
É esse, quanto a nós o exato sentido do nº1 do art. 84º onde se prevê, em sede geral o dever de segredo profissional «exceto quando a lei o imponha».
Assim, podemos encontrar na jurisprudência casos em que o mecanismo do art. 86º foi acionado, mediante reclamação dos revisores e da sociedade de revisores oficiais de contas, como o da decisão individual proferida pelo Presidente do Tribunal da Relação de Lisboa de 28/04/2016[29] e casos em que o procedimento seguido foi o de remessa ao tribunal superior para decisão após invocação de segredo profissional considerada justificada em 1ª instância como no Ac. TRP de 04/07/2002[30].
Começando pelo interesse protegido pelo segredo profissional do revisor oficial de contas podemos, com facilidade, identificar o mesmo como proteção dos clientes cujos interesses lhes estão confiados, o que resulta muito claramente não apenas da possibilidade legal de autorização de divulgação das informações sujeitas a segredo pela entidade a que respeitam (nº1 in fine do art. 84º do Estatuto da Ordem dos Revisores Oficiais de Contas), mas também de várias outras regras específicas como o art. 422º nº1, al. c) do CSC[31], 423º-G nº1, al. d)[32] ou 441º-A[33] do mesmo diploma[34].
Tendo em conta a natureza das funções exercidas pelos órgãos de fiscalização, a doutrina societária identifica a raiz deste dever de guardar segredo no dever de lealdade[35][36] e na essencialidade do acesso integral à informação por parte dos órgãos de fiscalização. “Sem a garantia de que esta (a informação) será tratada de forma confidencial, cessam os fluxos de informação essenciais ao controlo da administração. Assim, os fiscais podem aceder a toda e qualquer informação, mas devem guardar segredo sobre a mesma. Nenhum funcionário, colaborador ou administrador da sociedade pode opor a um fiscal reserva de segredo da sociedade, recusando a prestação de informações, mas o fiscal deve sempre assegurar a sua confidencialidade.”[37]
O ROC ou SROC tem, na atividade de fiscalização, um papel preponderante, de apoio ao órgão de fiscalização, “desde logo ao pronunciar-se na certificação legal das contas fornecendo uma opinião sobre se as «contas dão uma imagem verdadeira e apropriada de acordo com a estrutura de relato financeiro aplicável» e se «cumprem os requisitos legais aplicáveis» (art. 45º, nº2, c), i) e ii) do EOROC).”[38]
Essa corresponde à função de controlo externa do ROC, sendo distinguível também uma função de controlo interna “traduzida na colaboração com o conselho fiscal, com o conselho de administração ou mesmo com a assembleia geral, assegurando um «fluxo de informação neutral» sobre irregularidades detetadas na administração societária.”[39]
Pode concluir-se que o segredo profissional dos revisores oficiais de contas funciona, em primeira linha como proteção da reserva e dos interesses dos visados (como, por exemplo, mas não só, o segredo de negócio das entidades a quem prestam serviços) mas servindo também a garantia de confiança instrumental ao exercício de funções de auditoria e fiscalização[40] que constituem o núcleo da sua função e que têm reflexos externos à esfera das entidades a que respeita a informação.
Tal sai confirmado pela imposição de segredo profissional às entidades com função regulatória desta atividade, como resulta, quer do próprio Estatuto dos Revisores Oficiais de Contas (cfr. art. 84º, nº3, als. e) e f), quer do Regime Jurídico da Supervisão de Auditoria (aprovado pela Lei n.º 148/2015 de 9 de setembro – cfr. arts. 27º, 28º, 35º e 37º), seja do Regulamento (UE) n.º 537/2014 do Parlamento Europeu e do Conselho de 16 de abril de 2014 relativo aos requisitos específicos para a revisão legal de contas das entidades de interesse público[41] (cfr. arts. 22º, 34º e 36º).
Identificados supra os interesses que norteiam o incidente de qualificação da insolvência – os interesses privados dos credores, pela via ressarcitória e um interesse público de regulação e proteção do tráfego jurídico, pela finalidade punitiva do instituto -, há agora que ponderar as concretas informações e elementos relativamente aos quais, cobertos pelo sigilo, se pretende a quebra do mesmo.
O pedido, formulado pela Comissão Liquidatária surge no articulado de resposta às oposições, previsto no art. 188º nº7 do CIRE (articulado no qual é admissível requerer meios de prova, atento o disposto no nº2 do art. 25º, aplicável ex vi nº1 do art. 134º, por sua vez aplicável ex vi nº8 do art. 188º, todos do CIRE), nos seguintes termos:
“Atendendo a que a Comissão Liquidatária não tem acesso a todos os documentos relevantes para apreciação da matéria tratada no presente incidente, e porque os mesmos se afiguram essenciais para a descoberta da verdade e para a boa decisão da presente causa, requer-se a V. exa. Se digne determinar a notificação das seguintes entidades (cfr. art. 432º do CPC, aplicável ex vi do art. 17º do CIRE):
(…)
3. X & Associados – Sociedade de Revisores Oficiais de Contas, SA, com sede (…) para vir aos autos juntar
- toda a informação e comunicações trocadas com a X Angola (com sede…) relativa às contas do BESA (actualmente Banco Económico, SA para efeitos de preparação das contas consolidadas do BES (para prova dos factos alegados no capítulo 9 do Parecer e III.5 da presente resposta);”
Desde logo impressiona a forma ampla como o pedido é formulado, nomeadamente por comparação com os pedidos dirigidos a outras entidades na mesma peça processual.
O que a Comissão Liquidatária pede é, e já fazendo o necessário aporte dos factos alegados no parecer, nas oposições e na resposta às mesmas que a X junte aos autos toda a informação e comunicações trocados com a X Angola sobre as contas do BESA para efeitos de preparação das contas consolidadas do BES, no período temporal desde 03/08/2011 (tendo em conta as plausíveis soluções de direito aplicáveis, sendo o período em causa, na tese dos requeridos cujas oposições instroem este incidente de 13/07/2013 a 13/07/2016) e até à data de declaração da insolvência, nos termos do disposto no nº3 do art. 4º do CIRE, aplicável, ex vi art. 8º nº1 do CIRE.
Antes de proceder à apreciação concreta do pedido, nomeadamente por recorte com o alegado, há que notar que este tribunal, na posição em que se encontra colocado, não verifica se foram devidamente aplicadas as regras de admissibilidade do concreto meio de prova que está coberto pelo sigilo.
No caso é requerida a entrega de informação e comunicações, ou seja, documentos, em poder de terceiro[42], sendo os requisitos aplicáveis os previstos nos arts. 432º e 429º do CPC: a parte identifica tanto quanto possível o documento e especifica os factos que com ele quer provar. A sanção para o incumprimento deste ónus é o indeferimento da notificação do terceiro.
Na fase processual incidental em que nos encontramos essa fase foi já ultrapassada. O tribunal já ordenou a notificação do terceiro, sem impugnação, pelo que se formou, quanto a esta decisão, caso julgado formal.
Mas isso não quer dizer que este tribunal não faça uma ponderação paralela no concreto juízo que é chamado a fazer. A ponderação prevista nos arts. 135º nº3 do CPP e 417º nº4 do CPC é um juízo concreto, em que os concretos elementos pedidos são pesados entre os interesses em jogo. A especificação mínima exigida aos requerentes tem também esta função, permitindo ao julgador medir até que ponto são sacrificados os interesses protegidos pelo sigilo, se este for quebrado, ou os interesses prosseguidos no processo, se não o for.
Retomando, é neste ponto que encontramos uma grande amplitude quanto aos elementos pedidos, que apenas se mostram identificados quanto à finalidade – preparação de contas consolidadas; - e quanto ao período temporal – já por esforço interpretativo nosso.
É, assim, necessário percorrer as alegações com vista a compreender a importância dos elementos em poder de terceiro para o interesse feito valer. Há que frisar que este exercício apenas é feito porquanto rege, neste apenso, o princípio do inquisitório (cfr. art. 11º do CIRE) e o interesse feito valer é, como já acima referimos, também um interesse público.
Percorrendo o capítulo 9 do parecer da comissão liquidatária podemos verificar que a concessão de crédito ao BESA, mediante linhas de MMI e descobertos bancários, é um dos acervos em que a Comissão Liquidatária assenta o respetivo requerimento, sendo imputada aos propostos afetados a inobservância dos respetivos deveres enquanto administradores de uma instituição de crédito e o conhecimento, por parte destes, das circunstancias que envolviam aquele Banco de direito angolano que impunham conduta diversa e ligando a estes um impacto patrimonial total nas contas do BES de € 3.023.380.786,11, a 03/08/2014.
Para o que nos interessa, é alegado que o BESA era uma filial do BES, operando a consolidação integral de contas.
Porque a conduta genericamente imputada como causal para os efeitos da qualificação da insolvência como culposa é a da concessão de crédito por parte do BES, ou seja, factos internos desta entidade, os únicos factos para os quais poderão interessar elementos e informações provenientes do revisor oficial de contas do BESA, transmitidas ao revisor oficial de contas do BES para efeitos de consolidação de contas, são os relativos ao conhecimento, por parte dos propostos afetados, das “circunstâncias” do BESA independentes do BES que impunham conduta diversa da adotada.
Assim, quedam logo irrelevantes (para o efeito que nos ocupa) a falta de procedimentos de controlo interno por parte do BES.
Nos nºs 1252 e ss. do parecer a Comissão Liquidatária transcreve reservas e enfases feitas pela X na certificação legal de contas do BESA dos exercícios de 2011, 2012 e 2013 e refere a elaboração pela mesma, em 31/10/2013, de um relatório sobre a imparidade da carteira de crédito do BESA, todos elementos disponíveis nos autos, concluindo que a auditora vinha, pelo menos desde 2011 a elaborar relatórios com enfases e reservas “por não conseguir dispor de um quadro claro sobre as operações de crédito efetuadas pelo BESA” (cfr. nº 1264 do parecer da comissão liquidatária).
Os resultados consolidados do BES de 2011 ao 1º semestre de 2014 foram aprovados pela Comissão Executiva do BES e pelo Conselho de Administração com menções de redução devido ao desempenho do BESA.
Os indicadores, nomeadamente o elevado rácio de transformação de recursos do BESA em créditos foram trazidos à atenção do conselho de administração do BES desde 2011. O próprio BESA comunicou ao BES necessidades de liquidez em 2013, problema que já era do conhecimento dos requeridos desde 2012. Não temos alegada intervenção de qualquer das auditoras, nesta matéria e as próprias contas, individuais e consolidadas estão disponíveis.
Em fevereiro e março de 2013 foi dado conhecimento ao BES que o BESA não cumpria os requisitos regulamentares das reservas obrigatórias mínimas junto do Banco Nacional de Angola. Mais uma vez em nada se relaciona com informações e elementos transmitidos pela X Angola à X.
A matéria relacionada com a posição relativa do BESA no mercado angolano está igualmente arredada do núcleo de factos que esta diligência probatória pretende alcançar, bem como as questões relativas à qualidade da carteira de crédito do BESA, que se alegam comunicadas ao BES diretamente na qualidade de acionista.
No âmbito da matéria relacionada com a garantia soberana prestado pelo estado de Angola, trata-se de matéria que não foi alegada como ligada com a consolidação de contas, sendo alegada e admitida a existência de auditorias uma das quais elaborada pela X, disponível nos autos.
As notícias na imprensa sobre o Presidente da Comissão Executiva do BESA em 2011 e a não prestação de garantias pelo BESA são matérias, mais uma vez alheias à prestação de contas consolidadas.
Passando ao ponto III.5. da resposta às oposições e percorrendo o mesmo em similar perspetiva (nºs 1196 e ss. da resposta à oposição) encontramos a menção (nº 1204) de que os propostos afetados nas respetivas oposições terão alegado que os auditores do BESA – mais concretamente a X Angola – não sinalizaram a existência de qualquer problema na carteira de crédito do BESA.
No nº 1306 a Comissão alega que os auditores apuseram reservas às contas do BESA que indiciavam, com elevada probabilidade, a existência do referido problema.
Nos nºs 1314 a 1353 da resposta à oposição, a Comissão responde à alegação dos propostos afetados de ausência de comunicação pela X “auditora do BES e do BESA” de quaisquer problemas quanto às contas do BESA, em especial quanto à qualidade da sua carteira de crédito, voltando a frisar as reservas e enfases nas contas do BESA de 2011, 2012 e 2013 e os problemas identificados no relatório sobre a imparidade da carteira de crédito do BESA de 31/10/2013, disponível nos autos, no qual consta a impossibilidade de avaliação dos níveis de imparidade da carteira de crédito por a respetiva administração não ter sido capaz de fornecer a informação necessária para o efeito (cfr. nº 1436).
Encontramos finalmente, no nº 1513 a referencia efetuada na ata de reunião do conselho de administração do BES de 30/07/2014 de que “a Senhora Dra.ª Y informou ter recebido a indicação da X de Angola de que as provisões em questão se referem a activos do BESA não abrangidos pela garantia prestada a este banco pelo Estado Angolano.”
Da matéria que elencámos[43] apenas se mostram alegados como factos suscetíveis de serem provados ou infirmados pela total revelação de todas as informações e comunicações que a X e a X Angola necessariamente trocaram com vista à certificação das contas consolidadas, a alegada não comunicação pelos auditores ao BES e aos propostos afetados pela qualificação da insolvência como culposa, de quaisquer problemas nas contas do BESA.
Aqui chegados cabe-nos perguntar: obrigar a auditora a revelar por inteiro as suas comunicações com a X Angola é a única forma de infirmar tal alegação?
A resposta a esta pergunta é claramente negativa. Em primeiro lugar a auditora formulou reservas e enfases relacionados com esta matéria na certificação de contas de 2011, 2012 e 2013 e elaborou um relatório especificamente dirigido, entre outros pontos, à qualidade da carteira de créditos do BESA e tais documentos estão disponíveis nos autos. A discussão pode ser travada a partir de tais elementos. Em segundo lugar, falta um passo lógico na cadeia de prova para que este elemento pedido, se quebrado o sigilo, possa sequer contribuir para a prova ou infirmação desta matéria. É que comunicar, seja o que for, à X não é comunicar ao BES ou aos seus administradores. Com todo o respeito, existem vários sigilos a salvaguardar por um auditor no exercício diário da sua atividade. Não tendo sido sequer alegado que a X transmitisse fielmente ao BES ou aos requeridos tudo o que lhe era informado pela X Angola, com grande probabilidade, desta concreta revelação não resultaria qualquer elemento de prova com utilidade para a matéria em causa.
Acresce que de todo se mostra adequado ou proporcional entre os interesses que o sigilo profissional do revisor oficial de contas protege, já identificados, e o interesse de descoberta da prova negativa de um facto que se mostra indiciado por outros documentos para efeitos de qualificação de insolvência, o levantamento do sigilo profissional quanto a todas as comunicações e informações trocadas entre revisores oficiais de contas para efeitos de consolidação de contas durante mais de quatro anos, e que englobarão todas as matérias que interessem à referida consolidação (ou, mais corretamente, à respetiva certificação legal). Na verdade, o levantamento do sigilo nos termos peticionados encerraria uma potencialidade muito séria de devassa de temas de todo não relacionados ou úteis para os termos desta causa que também não pode deixar de ser ponderada.
Não se mostra, assim, justificado o levantamento do sigilo profissional invocado pela X & Associados – Sociedade de Revisores Oficiais de Contas, SA.
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4.3. Segredo profissional de supervisão
O sigilo profissional de supervisão invocado pelo Banco de Portugal tem a sua base legal no art. 80º do Regime Geral das Instituições de Crédito e Sociedades Financeiras, na sua versão atual, aprovado pelo Decreto-Lei n.º 298/92 de 31 de dezembro (doravante RGICSF), no qual se estabelece, sob a epígrafe “Dever de segredo do Banco de Portugal”:
«1 - As pessoas que exerçam ou tenham exercido funções no Banco de Portugal, bem como as que lhe prestem ou tenham prestado serviços a título permanente ou ocasional, ficam sujeitas a dever de segredo sobre factos cujo conhecimento lhes advenha exclusivamente do exercício dessas funções ou da prestação desses serviços e não poderão divulgar nem utilizar as informações obtidas.
2 - Os factos e elementos cobertos pelo dever de segredo só podem ser revelados mediante autorização do interessado, transmitida ao Banco de Portugal, ou nos termos previstos na lei penal e de processo penal.
3 - Fica ressalvada a divulgação de informações confidenciais relativas a instituições de crédito no âmbito da aplicação de medidas de intervenção corretiva ou de resolução, da nomeação de uma administração provisória ou de processos de liquidação, exceto tratando-se de informações relativas a pessoas que tenham participado na recuperação ou reestruturação financeira da instituição.
4 - É lícita, designadamente para efeitos estatísticos, a divulgação de informação em forma sumária ou agregada e que não permita a identificação individualizada de pessoas ou instituições.
5 - Fica igualmente ressalvada do dever de segredo a comunicação a outras entidades pelo Banco de Portugal de dados centralizados, nos termos da legislação respetiva.»
Pese embora a sua inserção sistemática, o segredo de supervisão é um tipo de segredo profissional diverso do segredo bancário (previsto no art. 78º do mesmo diploma) como o assinalam, entre outros os Acs. Ac. TRP de 13/09/2017 (Maria Dolores Silva e Sousa), TRE de 08/06/2017 (Isabel Peixoto Imaginário) ou Ac. TRL de 20/06/2012 (Maria João Romba)[44].
Como refere Joana Amaral Rodrigues[45], o segredo de supervisão tem, relativamente ao segredo bancário, diferentes sujeitos passivos, objeto, bem jurídico tutelado e exceções legalmente previstas.
Os sujeitos passivos deste dever de segredo são as pessoas que exerçam ou tenham exercido funções no Banco de Portugal e ainda as entidades previstas no art. 81º do RGICSF. Os sujeitos ativos são, diretamente, as instituições de crédito supervisionadas e, indiretamente, os clientes dessas instituições.
O objeto, não estando definido por lei abrange os factos comunicados pelas instituições bancárias e ainda a informação nela recolhida, que abrange quer factos das instituições, quer dos respetivos clientes. Abrange ainda o tratamento e produção de nova informação pelo supervisor.
Os nºs 3, 4 e 5 do art. 80º delimitam negativamente o objeto do segredo – havendo aqui apenas, e nesta sede, que recordar que a subsunção da informação aqui peticionada no nº3 do art. 80º, suscitada pelas partes, é matéria reservada ao juízo de verificação da legitimidade da invocação do sigilo, decisão tomada na 1ª instância e que não foi impugnada.
O bem jurídico tutelado é ainda “o direito à reserva da intimidade da vida privada (…) em especial nas zonas de sobreposição, quanto à informação abrangida, com o segredo bancário”[46] [47] mas, em primeira linha “relaciona-se em especial com o interesse público na efetividade ou eficácia da supervisão, essencial à estabilidade do sistema financeiro, bem jurídico constitucionalmente previsto.”[48]
Luís Guilherme Catarino[49] refere, depois de apontar que o segredo de supervisão defende ainda os segredos profissionais dos particulares, que “O objeto do segredo de supervisão é mais vasto que o dever que impende sobre as atividades supervisionadas pois existe também uma componente de discrição ou de confidencialidade no que toca aos processos de supervisão e decisão que devem ser mantidos fora do conhecimento e apropriação do público ou de publicidade. Visa-se com a supervisão a proteção de interesses coletivos de um mercado, setor ou sistema, e a confiança na instituição e na sua organização e funcionamento”.
O interesse protegido é, assim, ordenado ao disposto no art. 101º da Constituição da República Portuguesa «O sistema financeiro é estruturado por lei, de modo a garantir a formação, a captação e a segurança das poupanças, bem como a aplicação dos meios financeiros necessários ao desenvolvimento económico e social.»
Esta norma constitucional “constitui uma amplíssima credencial constitucional para a intervenção, regulação e supervisão pública das actividades financeiras, com as necessárias limitações e restrições da liberdade económica nesta área, com a extensão e a intensidade eu os interesses em causa podem justificar (desde a autorização administrativa para a entrada na actividade até, no limite, a intervenção na gestão das instituições financeiras). De resto, não estão aqui em causa somente valores constitucionais ligados à estabilidade financeira e ao desenvolvimento económico e social, mas também protecção dos direitos dos aforradores e investidores e clientes das instituições financeiras, a começar pelo seu direito de propriedade.”[50]
O próprio Banco de Portugal carateriza desta forma o segredo de supervisão a que está sujeito: “o Banco de Portugal é responsável por preservar o necessário sigilo acerca da informação confidencial de que dispõe, essencial para a preservação da estabilidade financeira. O surgimento no espaço público de informação descontextualizada, desadequada ou intempestiva é suscetível de condicionar a capacidade de o Banco de Portugal agir como autoridade de supervisão e, no limite, de colocar em causa a própria estabilidade financeira.”[51]
O segredo profissional e, nomeadamente o segredo profissional de supervisão tem sido qualificado, a nível europeu, como protegendo, não apenas as empresas afetadas, mas também o funcionamento normal dos mercados de instrumentos financeiros da União, a nível comunitário (cfr. os Acs. TJUE proferidos nos processos nº C-140/13 de 12/11/2014 (Altmann) e C-15/16 de 19/06/2018 (Baumeister)[52].
Assim caraterizados os interesses protegidos pela consagração do segredo profissional de supervisão, passemos à ponderação concreta exigida pela lei, nos termos acima enunciados.
O proposto afetado pela qualificação da insolvência como culposa C pediu (sic): “Uma vez que o ora Requerido não tem acesso aos documentos infra indicados, e porque os mesmos se afiguram absolutamente essenciais para boa decisão da presente causa, requer-se que seja promovida a notificação das seguintes entidades e órgãos, para junção dos seguintes documentos e prestação das seguintes informações:
(…)
2. Conselho de Administração do Banco de Portugal, com sede (…), para efeitos de junção do relatório completo de auto-avaliação (ou de outra natureza) relativamente à avaliação e conduta do Banco de Portugal, na supervisão do Banco Espírito Santo, S.A., nomeadamente no final de 2013 e 2014, incluindo quanto à aplicação das medidas de resolução (elaborado pela Comissão de Avaliação às Decisões e à Actuação do Banco de Portugal na Supervisão do Banco Espírito Santo) (para prova dos factos alegados nos capítulos 6.3., 7.1., 7.3. e 8.3.3. da presente Oposição e ainda arts. 610 e 618 a 620 da presente oposição);”
Havia deixado alegado (em resumo), ao longo do articulado (nomeadamente nos locais indicados) que:
- que a verdadeira causa do desaparecimento do BES foi a atuação ruinosa do Banco de Portugal, nomeadamente na aplicação das medidas de ring-fencing que determinaram a asfixia do GES, por não serem adequadas ao caso concreto, por ter sido ignorada a partilha da marca Espírito Santo entre o ramo financeiro e não financeiro, impondo o pagamento de toda a dívida em 27 dias, o que acabaria por levar ao colapso do GES e contaminar o BES, do que é exemplo a desastrosa venda da Tranquilidade, avaliada em 700 milhões de euro e vendida por 200 milhões de euros (ponto 6.3.3.), onde alegou: “Aliás, o factos de as medidas de ring-fencing determinadas pelo Banco de Portugal terem, “no final do dia”, sido prejudiciais para o BES consta de um relatório com cerca de 600 páginas elaborado pela Comissão de Avaliação às decisões e à Actuação do Banco de Portugal na supervisão do BES, com o apoio técnico de um trabalho da consultora BCG - Boston Consulting Group.” (nº 736 da oposição), relatório que o Banco de Portugal tem recusado divulgar apesar de a consultora ter cobrado quase um milhão de euros pelos serviços prestados;
- que o Banco de Portugal impôs ilegalmente, em 23/07/2014, a constituição de uma provisão no valor mínimo de dois mil milhões de euros, imposição que não cumpriu a IAS 37, provisões que, quanto a 856 milhões não deviam ter sido constituídas por o risco respetivo não ter sido assumido pelo BES, e, quanto a 757,8 milhões por inexistência de uma estimativa fiável para o respetivo montante e por se ter assumido, erradamente, a obrigação de recompra de 767 milhões (7.1. da oposição);
- que o Banco de Portugal ao não reconhecer a garantia soberana emitida pela República de Angola a favor do BESA, para efeitos prudenciais, causou o incumprimento do rácio prudencial pelo BES que veio a fundamentar a medida de resolução imposta em 03/08/2014, garantia essa que reunia todas as condições para ser reconhecida, nomeadamente por o BdP ter reconhecido a equivalência da regulamentação e supervisão exercida pelo Banco Nacional de Angola (7.3. da oposição);
- A incongruência da aplicação da medida de resolução do BES com um comunicado público do Banco de Portugal de 29 de julho de 2014, em que terá afirmado a solvência do BES com a contratação, 3 dias antes, do Z para assessorar o regulador bancário no processo de resolução – art. 610º da oposição;
- que a deslocação a Lisboa de representantes da DG Com teve o pré-determinado propósito de viabilizar as medidas de resolução, não tendo estes sido informados de possíveis investidores, o que, a par da contratação do Z demonstram a não verdade das explicações do BdP e do Governo de que o cenário de resolução foi desencadeado em 01 de agosto de 2014 – arts. 618 a 620 da oposição.
Os factos invocados são, na sua maioria, factos já alegados no requerimento da Comissão Liquidatária – assim a imposição de medidas de ring-fencing, a imposição da constituição de provisões e o não reconhecimento da garantia soberana emitida pela República de Angola.
O Relatório cuja junção se requer terá sido elaborado por uma terceira entidade que não teve intervenção nos factos tal como alegados, pelo que, quanto aos mesmos, será um meio de prova indireto, uma opinião, emitida por terceiro a quem o tribunal não pediu a mesma e cujos conhecimentos e qualidades não verificou nem poderá verificar.
Passando ao pedido formulado pelo oponente B, este pede, textualmente: “A notificação (…) b) do BdP para juntar aos autos o Relatório da Boston Consulting sobre a sua actuação no caso da resolução do BES, o que se requer por isso que o Oponente não dispõe dele e para prova de toda a matéria de facto da presente oposição.”
Como já recordámos acima, sendo requerida a entrega de informação e comunicações, ou seja, documentos, em poder de terceiro ou de outra parte[53], sendo os requisitos aplicáveis os previstos nos arts. 432º e 429º do CPC: a parte identifica tanto quanto possível o documento e especifica os factos que com ele quer provar. A sanção para o incumprimento deste ónus é o indeferimento da notificação do terceiro. O tribunal, também neste caso, ordenou a notificação do Banco de Portugal, sem impugnação, pelo que se formou, quanto a esta decisão, caso julgado formal.
Mas também como já referimos antes, isso não quer dizer que este tribunal não faça uma ponderação paralela no concreto juízo que é chamado a fazer. A ponderação prevista nos arts. 135º nº3 do CPP e 417º nº4 do CPC é um juízo concreto, em que os concretos elementos pedidos são pesados entre os interesses em jogo. A especificação mínima exigida aos requerentes do meio de prova tem também esta função, permitindo ao julgador medir até que ponto são sacrificados os interesses protegidos pelo sigilo, se este for quebrado, ou os interesses prosseguidos no processo, se não o for.
No caso concreto do requerimento formulado pelo proposto afetado pela qualificação da insolvência como culposa B, é pedido um concreto documento, mas a indicação efetuada quanto à matéria de facto pretendida provar foi efetuada com a indicação de toda a matéria de facto da oposição.
É por demais evidente que se trata de uma indicação por excesso, de cumprimento formal do preceito legal indicado, já que, por exemplo, foi alegada matéria de facto relativa a factos pessoais do oponente, relativos à sua carreira e funções, que claramente não podem ser provados pelo relatório cuja junção é pedida, nem direta, nem indiretamente.
Fazendo o esforço já efetuado a propósito do pedido formulado pela Comissão liquidatária, e também dada a aplicabilidade do disposto no art. 11º do CIRE, percorremos a oposição apresentada e temos, como primeira conclusão que a junção de um relatório à atuação do Banco de Portugal só pode destinar-se à prova de factos praticados pelo mesmo ou do conhecimento de determinados factos pelo mesmo[54].
Nesta perspetiva, verificamos que o oponente imputa a responsabilidade pela insolvência do BES ao Banco de Portugal e seu conselho de administração invocando decisões deste que qualifica de ilegais e imprudentes, nomeadamente, a própria decisão de resolução, a oposição tardia ao nome do Presidente da CE que deveria substituir C, na ordem de constituição de provisões, na pressão para aprovação das contas do 1º semestre de 2014, na não aceitação da garantia soberana prestada pelo Estado Angolano, na decisão de equiparação de supervisão relativa ao BNA (de 2011) e na ordem indevida de consolidação de SPV´s. A par invoca cumprimento escrupuloso das regras aplicáveis e desconhecimento, quanto à sua própria conduta (e de demais membros dos órgãos de gestão).
A situação é muito semelhante – com a diversidade de não terem sido delimitados os factos a provar – à já assinalada cima. Os factos são factos assumidos pela Comissão Liquidatária e que não parecem estar em causa – as decisões e atitudes do BdP, a maior parte deles públicas. O que se pretende extrair deste relatório não é matéria de facto, é um juízo de censura que corrobore o próprio juízo de censura efetuado no articulado[55].
Aqui chegados importa frisar que, na essência, a pretendida junção não visa provar matéria de facto. Visa corroborar uma conclusão, comum a ambos os requerentes/oponentes, que convença o tribunal de que, ao tomar as decisões que tomou, o BdP agiu mal e de modo causal ao todo ou parte da situação do BES.
Esse juízo, que é uma conclusão a extrair de factos, deve ser atingido pelo próprio tribunal, e não por terceiros.
Por outras palavras, o facto de uma entidade contratada para o efeito ter analisado (não se sabe com que meios, por quanto tempo e em que extensão e com acesso a que elementos) a atuação do Banco de Portugal e ter concluído criticamente quanto à mesma não implica que o tribunal fique convencido do mesmo.
Tal põe em causa o critério de ponderação que começámos por identificar: a imprescindibilidade do meio de prova para a descoberta da verdade.
Na verdade, o relatório em causa não é imprescindível para a descoberta da verdade, por dois motivos: i) não se destina à prova de factos, mas antes à corroboração de conclusões extraídas de factos; ii) é um meio de prova indireto dado que, segundo a indicação das partes[56] foi elaborado a posteriori aos factos em discussão nos autos, pelo que, quanto muito, poderia concorrer para formar a convicção do tribunal, mas nunca a poderia, por si só, sustentar.
Pelo exposto, não se mostra justificado o levantamento do sigilo profissional de supervisão invocado pelo Banco de Portugal.
*
Custas do incidente pelos requerentes dos meios de prova em causa de acordo com os respetivos decaimentos – arts. 663.º, n.º 2, 607.º, n.º 6, 527.º, n.º 1 e 2, 529.º e 533.º, todos do Código de Processo Civil – cuja taxa de justiça se fixa em 3 UCs, nos termos do art. 7º nº4 e tabela II do Regulamento das Custas Processuais.
*
5. Decisão
Pelo exposto, acordam as juízas desta Relação em julgar improcedente o incidente e indeferir o levantamento do sigilo profissional invocado pela X & Associados – Sociedade de Revisores Oficiais de Contas, SA e pelo Banco de Portugal.
Custas do incidente, que se fixam em na proporção de 50% pela Comissão Liquidatária, 25% pelo oponente/proposto afetado C e 25% pelo oponente/proposto afetado B.
Notifique.
                
Lisboa, 12 de janeiro de 2021
Fátima Reis Silva
Vera Antunes
Amélia Sofia Rebelo
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[1] O Decreto-Lei n.º 199/2006 foi alterado pelo Decreto-Lei n.º 31-A/2012 de 10/02, pela Lei nº 23-A/2015 de 26/03 e pela Lei nº 23/2019, de 13/03.
[2] Cfr. José Lebre de Freitas e Isabel Alexandre em Código de Processo Civil Anotado, Volume 2º, 4ª edição, Almedina, 2019, pg. 221.
[3] Em Constituição da República Portuguesa Anotada, Vol. I, 2007, Coimbra Editora, pgs. 415 e 416.
[4] Lebre de Freitas e Isabel Alexandre, local citado, pg. 223.
[5] O art. 136º do CPP versa o segredo de funcionário e o art. 137º o segredo de Estado, nenhum dos quais em causa nos autos.
[6] Ana F. Neves em Aproximação aos conceitos de segredo, sigilo, confidencialidade, privacidade e reserva em Os segredos no direito, AAFDL Editora, 2019, pgs. 20 e 21.
[7] DR, I Série nº63 de 31-03-2008.
[8] Abrantes Geraldes, Paulo Pimenta e Luís Filipe Pereira de Sousa em Código de Processo Civil Anotado, Vol. I, Almedina, 2018, pg. 491.
[9] Gomes Canotilho e Vital Moreira em Constituição da República Portuguesa Anotada, Vol. I, Coimbra Editora, 2007, pgs. 392 e 393.
[10] Em Comentário do Código de Processo Penal à luz da constituição da República e da Convenção Europeia dos Direitos do Homem, 4ª edição actualizada, Universidade Católica Editora, 2011, pgs. 379 e ss.
[11] Em Comentários ao Código de Processo Civil, vol. I, 2ª ed., Almedina, 2005, págs. 457 e 458.
[12] Disponível em www.dgsi.pt.
[13] Disponível no mesmo local.
[14] Disponível em www.pgdlisboa.pt/jurel.
[15] Disponível em www.dgsi.pt.
[16] Idem.
[17] Disponível em https://jurisprudencia.csm.org.pt/ecli/ECLI:PT:TRP:2004:0456476.71/.
[18] www.dgsi.pt.
[19] Idem.
[20] Disponíveis em www.dgsi.pt.
[21] Idem.
[22] Disponíveis no mesmo local.
[23] Idem.
[24] Catarina Serra em Lições de Direito da Insolvência, Almedina, 2018, pg. 156.
[25] Lei nº 16/2012 de 20/04.
[26] José Manuel Branco em “Responsabilidade Patrimonial e Insolvência Culposa (da falência punitiva à insolvencia reconstitutiva), Almedina, 2015, pg. 45.
[27] Neste sentido Ac. TRL de 02/06/2020, inédito, relatado por Amélia Sofia Rebelo, onde se escreveu, identificando o interesse protegido pelo instituto da qualificação da insolvência na ponderação da quebra de sigilo bancário: “natureza publica dos interesses tutelados através do incidente de qualificação da insolvência - introduzido pela reforma do regime da insolvência com o propósito de evitar insolvências fraudulentas ou dolosas e, assim, tutelar a fiabilidade do tráfego jurídico-económico e financeiro, o que extravasa a mera relação jurídico-privada – quer se considere a gravidade das sanções civis que podem resultar para o por ela afetado - que, conforme art. 189º, nº 2, als. b) a e) do CIRE, abrangem a inibição para administrar patrimónios de terceiros, por um período de 2 a 10 anos; inibição para o exercício do comércio durante um período de 2 a 10 anos, bem como para a ocupação de qualquer cargo de titular de órgão de sociedade comercial ou civil, associação ou fundação privada de atividade económica, empresa pública ou cooperativa; a perda de quaisquer créditos sobre a insolvência ou sobre a massa insolvente, e a condenação na restituição dos bens ou direitos já recebidos em pagamento desses créditos; e a condenação na indemnização aos credores do devedor declarado insolvente no montante dos créditos não satisfeitos, até às forças dos respetivos patrimónios.”
[28]Os Estados-Membros devem assegurar que todas as informações e documentos a que tem acesso o revisor oficial de contas ou a sociedade de revisores oficiais de contas, aquando da realização de uma revisão legal das contas, se encontram protegidos com base em regras adequadas em matéria de confidencialidade e de sigilo profissional.”
[29] Decisão de Orlando Nascimento, disponível em www.dgsi.pt, num caso em que, em processo criminal, foram apreendidos documentos no âmbito de uma busca nas instalações de uma sociedade de revisores oficiais de contas.
[30] Acórdão relatado por Coelho da Rocha, também disponível em www.dgi.pt, num caso de invocação, por testemunha revisor oficial de contas, de segredo profissional ao ser inquirido em audiência de julgamento, antes do AUJ 2/2008 ter fixado jurisprudência em sentido algo diverso do ali seguido.
[31] «O fiscal único, o revisor oficial de contas ou os membros do conselho fiscal, quando este exista, têm o dever de: (…) c) Guardar segredo dos factos e informações de que tiverem conhecimento em razão das suas funções (…).»
[32] «Os membros da comissão de auditoria têm o dever de: (…) c) Guardar segredo dos factos e informações de que tiverem conhecimento em razão das suas funções (…).»
[33] «Os membros do conselho geral e de supervisão estão obrigados a guardar segredo dos factos e informações de que tiverem conhecimento em razão das suas funções.»
[34] Ver neste sentido, mas quanto ao segredo profissional dos contabilistas certificados (técnicos oficiais de contas) o Ac. TRP de 02/05/2012 (Pedro Vaz Pato), disponível em www.dgsi.pt.
[35] Cfr. José Ferreira Gomes em anotação ao art. 422º do CSC em Código das Sociedades Comerciais Anotado, Códigos Comentados da Clássica de Lisboa, Coord. de Menezes Cordeiro, 3ª edição, Almedina, 2020, pg. 1402.
[36] Se bem que o dever de lealdade do Revisor Oficial de Contas deva ser entendido com cautela, visto que, como aponta Alexandre Soveral Martins em Sobre a fiscalização de sociedades anónimas – Os órgãos de fiscalização. O ROC., Almedina, 2020, a pgs. 154, - os ROCs não devem atuar no interesse da sociedade, mas sim com independência, pelo que o art. 64º do CSC lhes será aplicável, mas com respeito por esta fundamental diferença.
[37] Autor e local citados na nota 36, com entre parêntesis nosso.
[38] Alexandre Soveral Martins em V Congresso Direito das Sociedades em Revista, “Diz-me com quem andas, dir-te-ei quem és” (ou sobre a independência dos auditores), Almedina, 2018, pg. 145.
[39] Ana Perestrelo de Oliveira em Manual de Governo das Sociedades, Almedina 2017, reimpressão, pg. 325, citando José Ferreira Gomes.
[40] Cfr. arts. 41º e 42º do Estatuto da Ordem dos Revisores Oficiais de Contas.
[41] Consultado em https://eur-lex.europa.eu/legal-content/PT/TXT/PDF/?uri=CELEX:32014R0537&from=PT.
[42] De acordo com os dados dos autos a X & Associados – SROC, SA não é parte no incidente de qualificação da insolvência.
[43] Uma vez que a requerente do meio de prova optou por o não fazer de forma circunstanciada.
[44] Todos disponíveis em www.dgsi.pt.
[45] Em Segredo Bancário e Segredo de Supervisão, Direito Bancário, E-Book, Fevereiro de 2015, Centro de Estudos Judiciários, disponível em http://www.cej.mj.pt/cej/recursos/ebooks/civil/Direito_Bancario.pdf.
[46] Joana Amaral Rodrigues, local citado na nota anterior.
[47] As instituições de crédito não podem opor ao Banco de Portugal o segredo bancário, nos termos do disposto no art. 79º nº2, al. a) do RGICSF.
[48] Joana Amaral Rodrigues, local citado na nota 46.
[49] Em Segredos da Administração: segredos de supervisão e de sanção, em Os Segredos no Direito, AAFDL, 2019, pgs. 83 e ss.
[50] Gomes Canotilho e Vital Moreira em CRP Anotada, Vol. I, 4ª edição, Coimbra Editora, 2007, pg. 1082.
[51] Em Livro Branco sobre a regulação e supervisão do setor financeiro, 2016, pg. 62, disponível em https://www.bportugal.pt/sites/default/files/anexos/pdf-boletim/livro_branco_web.pdf.
[52] Ambos consultados em http://curia.europa.eu/juris/.
[53] O Banco de Portugal é interveniente nos autos, tendo apresentado peça processual de resposta às oposições que designou de “pronúncia” em 01/08/2019, peça na qual concluiu pela qualificação da insolvência como culposa.
[54] Mais uma vez, esta delimitação surge legitimada pelo facto de o requerente do meio de prova não ter circunscrito, por qualquer forma, o núcleo de factos que pretende provar.
[55] Como alegado pelo próprio oponente nos nºs 247 e ss. da oposição: “É tempo de exigir ao BdP que traga à luz o relatório produzido a seu pedido, pela consultora Boston Consulting a qual analisou a sua actuação relativamente ao BES no primeiro semestre de 2014. Sabemos que este relatório é fortemente crítico no que respeita à actuação do BdP, face às medidas que impôs ao BES no primeiro semestre de 2014.”
[56] Ver o documento de consulta ao Portal Base junto por C com o requerimento de 08/09/2020, do qual resulta que a contratação da entidade que terá elaborado o relatório é posterior aos factos em discussão nos autos, mais precisamente, de 18 de fevereiro de 2015.