Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
5834/20.7T8LRS.L1-7
Relator: LUÍS FILIPE PIRES DE SOUSA
Descritores: ARRENDAMENTO
ENTREGA DO LOCADO
RESTITUIÇÃO COM DANOS
PRIVAÇÃO DO USO
INDEMNIZAÇÃO
PRESSUPOSTOS
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 07/04/2023
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Texto Parcial: N
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: IMPROCEDENTE
Sumário: A arrendatária-  ao enviar à senhoria pelo correio as chaves do locado, tendo previamente retirado do locado todas as obras, instalações e construções que ali realizou, deixando o locado em estado de não poder ser arrendado -  expressou, de forma tácita e concludente,  comportamento no sentido de que não pretendia cumprir o disposto na cláusula 10ª, nº 2, do contrato de arrendamento porquanto esta cláusula previa que, na data da restituição, as partes realizariam conjuntamente uma vistoria,  da qual seria lavrado um auto  que identificaria as eventuais anomalias do imóvel.
II. No que tange à ressarcibilidade do proprietário de imóvel privado do seu uso, existem na doutrina e jurisprudência essencialmente duas posições: uma segunda a qual o lesado deve alegar e provar uma concreta utilização relevante do bem; outra segunda a qual basta a alegação e prova da simples privação do uso para se reconhecer o direito a indemnização, reservando-se o não reconhecimento daquele direito para situações em que tenha ficado provado que a concreta privação do uso do bem não traduz, na esfera do respetivo titular, um dano patrimonial relevante.
Decisão Texto Parcial:
Decisão Texto Integral: Acordam os Juízes na 7ª Secção do Tribunal da Relação de Lisboa:

RELATÓRIO

PP, S. A. intentou contra ME, Lda. ação declarativa, com processo comum, pedindo a condenação da Ré no pagamento da quantia de €158.122,49 correspondente ao custo da reparação e reposição da fração que lhe arrendou no estado em que lhe devia ter sido entregue e €8.000 a título de indemnização por lucros cessantes.
Subsidiariamente, para o caso de improcedência do primeiro pedido requereu a condenação da demandada a proceder, a expensas suas, à reparação e reposição do estado da fração arrendada.
Para tanto, com interesse, alegou que, pelo prazo de 5 anos, com início em 1.5.2014, contra o pagamento da renda mensal de €2.000, arrendou à Ré a loja que identifica na petição. A demandada aceitou a loja no estado em que então se encontrava, comprometendo-se a conservá-la e a mantê-la em boas condições de conservação e limpeza e a, uma vez findo o contrato com exceção do executado com materiais amovíveis, deixar no espaço as obras, benfeitorias, instalações e construções que fizesse no imóvel, as quais seriam pertença da demandante.
Findo o contrato inicial, a coberto de novo acordo entre as partes, a demandada permaneceu no imóvel até Março de 2020, altura em que entregou o arrendado.
A Autora constatou que a Ré havia deixado o arrendado com paredes partidas, tectos arrancados e partidos, chão sem revestimento, falta de interiores e de um corrimão e bem assim sem instalação de água, esgotos, eletricidade e ar condicionado ou com o que restava destas partido ou estragado, em termos que não permite a sua reparação ou reutilização.
Sendo que a reposição do imóvel no estado em que se encontrava à data do termo do contrato entre as partes implica a realização de um conjunto de obras e intervenções na loja, cujo custo ascende a €158.122,49. Numa outra linha referiu que está impossibilitada de rentabilizar o imóvel ante o seu estado de degradação.
Na sequência do desentranhamento da contestação, a Re  foi considerada em situação de revelia absoluta, tendo consequentemente os factos alegados pela A., ulteriormente objecto de aperfeiçoamento, sido considerados confessados.
Foi proferida sentença com o seguinte dispositivo:
«Termos em que se julga a acção parcialmente procedente, em consequência:
a) Se condena a R. a pagar à A. a quantia a liquidar em execução de sentença, não superior a €95.434,99 (noventa e cinco mil quatrocentos e trinta e quatro euros e noventa e nove cêntimos), correspondente ao custo de remoção de entulho e reparação das paredes partidas, danificadas ou demolidas, da parte do tecto partido, do chão parcialmente sem revestimento cerâmico e das estruturas não amovíveis das redes de água, esgotos, electricidade e ventilação e ar condicionado, designadamente as tubagem por si deixadas partidas, danificadas ou inutilizadas.
b) Se condena a R. a pagar à A. a quantia de €8.000 (oito mil euros), a título de indemnização por privação de uso.
c) Se condenam as partes no pagamento das custas da acção na medida do respectivo decaimento, o qual provisoriamente se fixa em 50%.»
*
Não se conformando com a decisão, dela apelou o requerente, formulando, no final das suas alegações, as seguintes CONCLUSÕES:
«1 – A douta sentença condenou a Requerente a indemnizar a Requerida em quantia a liquidar em execução de sentença, para a reparação de danos que provocou no locado quando terminou o contrato de arrendamento.
2 – Todavia, aquando da entrega do locado deveria ter sido efectuada uma vistoria por senhoria e arrendatária, e, caso existissem anomalias que não resultassem do uso normal e prudente do locado, deveria a Requerente proceder à sua reparação no prazo que lhe fosse concedido sob pena de, não o fazendo, serem essas anomalias reparadas pela senhoria a expensas da inquilina, como resulta da cláusula 10ª do Contrato de Arrendamento.
3 – Não está provado que tivesse sido realizada a  vistoria.
4 – Não está provado que tivesse sido a Requerente notificada para proceder a quaisquer reparações, em prazo determinado.
5 – A Requerida, na qualidade de senhoria, incumpriu o contrato de arrendamento, pelo que não pode reclamar da inquilina o pagamento de quaisquer reparações.
6 – Na douta sentença recorrida existe assim contradição entre os factos e a decisão, pelo que a sentença é nula (art.º 615º nº 1 al.c) do CPC).
7 – Foi igualmente a Requerente condenada em indemnização por privação de uso.
8 – Dado que a Requerida não concedeu prazo para a Requerente proceder às reparações necessárias, não pode esta ser responsabilizada pelo tempo que essa reparação terá demorado.
9 – Acresce que, podendo a Requerente retirar do locado todos os elementos amovíveis que aí colocou, o que seria lícito e estava contratualmente previsto, esse facto impedia desde logo que a Requerida pudesse utilizar o locado sem fazer obras.
10 – Não está provado que a privação de uso resulta da retirada de elementos fixos, ou que não poderia ter resultado igualmente se apenas tivessem sido retirados elementos amovíveis.
11 – Não está assim provado o nexo de causalidade entre a acção da Requerente e a privação de uso, sendo que cabe ao lesado provar o nexo de causalidade entre o facto e o dano.
12 – Quanto à indemnização pela privação de uso, não estando demonstrado o nexo de causalidade, e podendo a privação de uso resultar de um facto lícito da Requerente – a remoção de elementos amovíveis – não se verificam todos os elementos da responsabilidade civil, pelo que se mostra violado o art.º 483º do Código Civil.
Nestes termos, e no mais que será doutamente suprido, deve ser dado provimento ao recurso, declarando-se a nulidade da sentença, e proferindo-se decisão que absolva a Requerente do pedido, o que será de JUSTIÇA!»
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Contra-alegou a apelada, propugnando pela improcedência da apelação.
QUESTÕES A DECIDIR
Nos termos dos Artigos 635º, nº 4 e 639º, nº 1, do Código de Processo Civil, as conclusões delimitam a esfera de atuação do tribunal ad quem, exercendo uma função semelhante à do pedido na petição inicial.[1] Esta limitação objetiva da atuação do Tribunal da Relação não ocorre em sede da qualificação jurídica dos factos ou relativamente a questões de conhecimento oficioso, desde que o processo contenha os elementos suficientes a tal conhecimento (cf. Artigo 5º, nº 3, do Código de Processo Civil). Também não pode este Tribunal conhecer de questões novas que não tenham sido anteriormente apreciadas porquanto, por natureza, os recursos destinam-se apenas a reapreciar decisões proferidas, ressalvando-se as questões de conhecimento oficioso, v.g., abuso de direito.[2]
Nestes termos, as questões a decidir são as seguintes:
i. Nulidade da sentença;
ii. Necessidade de realização de vistoria aquando da entrega do locado;
iii. Indemnização pela privação de uso.
Corridos que se mostram os vistos, cumpre decidir.

FUNDAMENTAÇÃO DE FACTO
A sentença sob recurso considerou como provada a seguinte factualidade:
1. Por escrito datado de 1.5.2014 a Autora, enquanto primeira contratante e senhoria, contra o pagamento da renda mensal de € 2 000, declarou dar de arrendamento à Ré, enquanto segunda contratante e arrendatária, a fração autónoma designada pela letra “C”, destinada a comércio, correspondente ao R/c, loja 3, com arrecadação e parqueamentos, do prédio sito na (...), em (...), o que esta aceitou.
2. O acordo foi celebrado pelo prazo de 5 anos, com início a 1.5.2014 e termo a 30.4.2019, sendo automaticamente renovável por períodos adicionais de 5 anos, salvo oposição à respectiva renovação ou denúncia por qualquer das partes.
3. Nos termos da cláusula Segunda Dois do mesmo escrito foi igualmente estabelecido que “(...) a arrendatária toma posse antecipada do locado, para realização de obras de remodelação que implicam a abertura de uma porta de entrada para a mesma rua, as quais deverão ser exclusivamente custeadas e promovidas pela arrendatária e ficarão pertença do locado, sem que haja lugar a direito de retenção ou a qualquer indemnização, qualquer que seja o título ou fundamento invocado, aos quais a arrendatária desde já renuncia”.
4. Segundo a cláusula Terceira Dois do mesmo escrito foi estabelecido que “a arrendatária beneficia de um período de carência no pagamento da renda, atenta a sua necessidade de promover, a suas expensas, a realização de obras de adaptação do locado à actividade que nele pretende exercer, durante o período correspondente aos primeiros 4 (quatro) meses de vigência do presente contrato, iniciando-se a respectiva liquidação e pagamento da renda a partir de 01 (um) de agosto de 2014, correspondente à renda de setembro de 2014”.
5.Foi igualmente acordado que “a partir do segundo ano de vigência do presente contrato, ou seja, a partir da renda referente ao mês de setembro de 2015, com vencimento para 01 (um) de agosto de 2015, a renda mensal (ilíquida) acordada é de € 2.400.00 (...)”.
6. E também que “o locado destina-se a actividades económicas e será afecto exclusivamente ao exercício da actividade profissional da arrendatária, que consiste na actividade de restauração e bebidas, não lhe podendo ser dado qualquer outro destino ou exercida qualquer outra actividade ou afectação, sem a prévia autorização, por escrito, da senhoria”.
7.Nos termos da cláusula Quinta, “a arrendatária obriga-se nos termos do presente arrendamento a:
 a) manter em bom estado de conservação e apresentação a fração e todos os seus pertences, incluindo canalizações de água e esgotos, instalações eléctricas, de segurança, telefones e ar condicionado, e a suportar o custo de quaisquer obras de reparação tomadas necessárias quer pelo exercício da actividade na fração, quer pela sua devolução quando o presente contrato deva ter-se por extinto;
b) cumprir com o Regulamento de Funcionamento e Utilização, caso o mesmo venha a ser elaborado”.
8.Nos termos da cláusula Sexta ficou estabelecido que:
“Um - O locado é entregue no estado em que se encontra e o qual é conhecida pela arrendatária que declara expressamente aceitar, ficando obrigada, na vigência do presente Arrendamento, a manter o mesmo sempre em boas condições de conservação e limpeza, ressalvando as deteriorações decorrentes do uso prudente e as obras acordadas, e a fazer à sua custa todas as reparações para tanto necessárias ou convenientes.
Dois - Quaisquer obras, benfeitorias, instalações e construções, efetuadas pela arrendatária no locado no decurso do presente contrato e suas prorrogações tornar-se-ão propriedade da senhoria, obrigando-se a arrendatária a deixá-las no imóvel arrendado sem que lhe seja devida qualquer compensação ou indemnização pelas despesas que tenha efetuado, nem invocar direito de retenção, salvo as obras realizadas em materiais amovíveis”.
9. De acordo com a Cláusula Sétima do escrito estabeleceu-se que:
 “Um – A arrendatária fica autorizada a fazer as obras de adaptação necessárias à finalidade do arrendamento, designadamente, remodelação da casa de banho, pavimento, paredes e tectos, as quais deverão ser exclusivamente custeadas e promovidas pela arrendatária e ficarão pertença do locado, sem que haja lugar a direito de retenção ou a qualquer indemnização, qualquer que seja o título ou fundamento invocado, aos quais a arrendatária desde já, renuncia, e desde que as mesmas não alterem ou interfiram com elementos estruturais do locado, e desde que sejam obtidas as necessárias autorizações camarárias, administrativas ou outras.
 Dois - São da exclusiva responsabilidade da arrendatária os custos referentes às obras indicadas no número anterior, assim como a obtenção e pagamento das autorizações, licenças, e demais despesas necessárias para a realização das obras que a arrendatária pretenda vir a efectuar no locado, cumprindo à senhoria a atribuição de poderes à arrendatária para a obtenção de tais autorizações.
 Três - Com excepção das obras referidas no número Um da presente cláusula, ficam vedadas a arrendatária todas e quaisquer outras obras não autorizadas pelo presente contrato, salvo autorização prévia, expressa e escrita dada pela senhoria.
 Quatro - Salvo as obras realizadas em materiais amovíveis, como as divisórias, equipamentos e demais instalações amovíveis, todas as obras e benfeitorias que forem feitas, ficarão pertença do Locado, sem que haja lugar a direito de retenção ou a qualquer indemnização, qualquer que seja o título ou fundamento invocado, aos quais a arrendatária desde já, renuncia.
Cinco - Quaisquer obras que venham a ser eventualmente realizadas pela arrendatária no locado, no âmbito do número Três da presente cláusula, apenas poderão ser efectuadas, desde que obtidas as correspondentes autorizações administrativas, cumpridas as leis e os regulamentos e com autorização prévia da senhoria, dada por escrito, que estabelecerão pontualmente as condições da sua execução.
 Seis - Todas as obras, as divisórias, equipamentos e demais instalações amovíveis, poderão ser livremente levantadas pela arrendatária, desde que tal não implique detrimento do locado.
 Sete - As obras e benfeitorias referidas na presente Cláusula e na cláusula anterior serão suportadas exclusivamente pela arrendatária, não podendo esta exigir qualquer indemnização aquando da cessação do arrendamento por esse facto”.
10. Em conformidade com o estabelecido na cláusula Décima do mesmo escrito:
 “Um - No caso de cessação do presente contrato, seja pelo decurso do respectivo prazo ou por qualquer outra forma de cessação, cumpre a arrendatária restituir o locado até ao último dia útil de vigência contrato, livre e devoluto de pessoas e bens e em boas condições de conservação, limpeza e utilização, designadamente, mas não excluindo outras, todas as instalações sanitárias e de luz e respectivos acessórios, as canalizações, esgotos, bem como os vidros, soalhos, paredes, janelas, portas, ar condicionado e chaves e tudo o mais a que nele presentemente se encontrar.
 Dois - Na data da restituição do Locado, haverá lugar a uma vistoria a realizar por ambas as partes, da qual será lavrado um auto de que constarão as eventuais anomalias do imóvel que não constituam anomalias ou deteriorações decorrentes de um uso normal e prudente.
 Três - Caso se verifiquem anomalias ou deteriorações não decorrentes de um uso normal e prudente e a arrendatária não proceder à sua eliminação, no prazo que lhe for concedido para o efeito, poderá a senhoria proceder à respectiva reparação ou eliminação a expensas da arrendatária.
 Quatro - Findo o contrato, se o locado não for restituído, por qualquer causa, a arrendatária obriga-se a pagar, a título de indemnização, até ao momento da efectiva entrega, o valor correspondente ao montante da renda então em vigor, elevado ao dobro”.
11. Quando a fração foi entregue à Ré não tinha portas interiores, aparelhagem eléctrica, rede de ventilação, ar condicionado, acabamentos e elementos decorativos.
12. Em 17.10.2018 a Autora comunicou à Ré, por carta registada com aviso de receção, a oposição à renovação do contrato com efeitos a 30.4.2019.
13. Na mesma missiva a Autora escreveu que “o locado deverá ser entregue em bom estado de conservação, limpeza e utilização, designadamente todas as instalações sanitárias e de luz e respectivos acessórios, as canalizações, esgotos, vidros, soalhos, paredes, janelas, portas, ar condicionado e chaves, e tudo o que nele se encontrar, nos termos da Cláusula Quinta, e Décima Primeira do Contrato. No tocante a obras, benfeitorias, instalações e construções que tenham sido realizadaspor V. Exas. no locado na vigência do presente contrato, as mesmas ficarão pertença do locado sem que haja lugar a direito de retenção, indeminização ou compensação, qualquer que seja o título ou fundamento invocado, nos termos do número dois da Cláusula Sexta e Cláusula Sétima do Contrato”.
14. Por a Ré ter manifestado interesse em permanecer mais alguns meses na fração referida em 1), por escrito datado de 24.4.2019, a Autora, enquanto senhoria, pelo prazo de 3 meses e contra o pagamento da renda mensal de €2.400, declarou dar de arrendamento à R., enquanto arrendatária, a fração autónoma designada pela letra “C”, destinada a comércio, correspondente ao R/c, loja 3, com arrecadação e parqueamentos, do prédio sito na (...), em (...), o que esta aceitou.
15. Nos termos do escrito referido em 14) foi estabelecido que o arrendamento teria “início no dia 01 de maio de 2019, caducando nos seus termos, em 31 de julho de 2019, não havendo lugar a renovação”.
16. Em março de 2020,  a Ré enviou à Autora por correio as chaves da fração referida em 1).
17. Após receber as chaves, a Autora verificou que a fração tinha paredes partidas, tetos arrancados e partidos, chão sem revestimento, portas interiores e corrimão retirados, instalações de água, esgotos, eletricidade, ar condicionado e ventilação retiradas, sendo que os respetivos elementos que foram deixados, designadamente tubos, foram partidos ou danificados não podendo ser reparados ou reutilizados.
18. A Ré retirou da fração todas as obras, instalações e construções que ali realizou.
19. Para recolocar a fração no estado em que se encontrava enquanto utilizada pela Ré é necessário, a título de trabalhos preparatórios, proceder à remoção do entulho depositado no pavimento, incluindo transporte a vazadouro, e realizar a inspeção das redes técnicas por entidades credenciadas nas especialidades de AVAC, eletricidade, águas e gás, trabalhos orçamentados em €7.562,50.
20. É também necessário proceder à execução de paredes de alvenaria de tijolo e reparar as danificadas, trabalhos que incluem argamassa de assentamento de paredes que foram demolidas; regularização de balcões; execução de salpisco em boço e reboco, para regularização de superfícies, com argamassa de cimento e areia; regularização de paredes exteriores nas varandas que se encontram danificadas; e execução de estuque projectado em paredes.
21. Quanto a pavimentos é necessário proceder à execução de betonilha de regularização com argamassa de cimento e areia nas zonas onde foram arrancados os pavimentos, assim como fornecimento e assentamento de cerâmico idêntico ao existente, incluindo betumagem e colas de assentamento nas zonas onde está danificado.
22. Em relação ao revestimento dos tectos é necessário o fornecimento e montagem de tecto falso em pladur, incluindo estrutura de suspensão e barramento.
23. No âmbito da reparação de revestimentos é também necessário proceder à pintura a tinta plástica em paredes com duas de mão e à pintura a tinta plástica em tectos com duas de mão.
24. Trabalhos orçados em €53.054,87.
25. Ao nível da carpintaria a recolocação da fração na situação anterior implica o fornecimento e montagem de portas de madeira, incluindo ferragens e envernizamento, no valor de €5.737,50.
26. A reparação das redes de águas e esgotos, com execução de rede de tubagem da rede de águas e da rede de esgotos, onde seja necessário, orçada em €5.250.
27. No que toca a equipamento sanitário, o fornecimento e montagem de louça sanitária, incluindo acessórios e ligações, sanita, incluindo tampo e tanque, lavatório com móvel e torneira e lavatório com móvel, bancada em mármore e torneira, está orçado no valor de €1.793,75.
28. A execução de nova rede de instalação eléctrica, incluindo enfiamentos, fornecimento e montagem de aparelhagem, iluminação e quadros eléctricos está orçada em €20.300.
29. A reparação da rede de ar condicionado, com revisão, fornecimento e substituição da instalação, incluindo tubagem de cobre, ligações eléctricas, fornecimento e montagem de aparelhos de ar condicionado, está orçada em €17.718,75.
30. A reparação da rede de ventilação, com verificação do estado de funcionamento da instalação, fornecimento e montagem de acessórios e equipamentos de ventilação foi orçada em €15.187,50.
31. O fornecimento e montagem de um corrimão para a
escada de acesso ao piso -1, em inox escovado, foi orçado em €1.950.

32. A Autora teve a fração referida em 1) devoluta, pelo menos,
até julho de 2020.

33. A fração não pode ser arrendada no estado em que foi
deixada pela R..

34. A fração poderia estar arrendada pela renda mensal de €2.000.

FUNDAMENTAÇÃO DE DIREITO
Nulidade da sentença
A apelante sustenta que ocorre na sentença uma nulidade porquanto existe  contradição entre os factos e a decisão  (art.º 615º, nº 1, al.c), do CPC) na medida em que não está está provado que tivesse sido realizada a  vistoria prevista na cláusula 10ª do contrato, não  está provado que tivesse sido a Requerente notificada para proceder a quaisquer reparações, em prazo determinado, e, apesar disso, a Ré foi condenada a pagar quantia para reparação de danos alegadamente por si causados no locado.
Dispõe o Artigo 615º, nº 1, al. c), que é nula a sentença quando os fundamentos estejam em oposição com a decisão ou ocorra alguma ambiguidade ou obscuridade que torne a decisão ininteligível. Trata-se de um vício formal, em sentido lato, traduzido em error in procedendo ou erro de atividade que afeta a validade da sentença.
Entre os fundamentos e a decisão não pode haver contradição lógica pelo que se, na fundamentação da sentença, o julgador segue determinada linha de raciocínio apontando para determinada conclusão e, em vez de a tirar, decide em sentido divergente, ocorre tal oposição.[3] Trata-se de um erro lógico-discursivo nos termos do qual o juiz elegeu determinada fundamentação e seguiu um determinado raciocínio mas decide em colisão com tais pressupostos. A nulidade em questão ocorre  quando a fundamentação  aponta num certo sentido que é contraditório com o que vem a decidir-se e, enquanto vício de natureza processual, não se confunde com o erro de julgamento, que se verifica quando o juiz decide mal ou porque decide contrariamente aos factos apurados ou contra lei que lhe impõe uma solução jurídica diferente[4]. Conforme se clarifica no Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 5.2.2020, Rosário Morgado, ECLI:PT:STJ:2020:3294.11.2TBBCL.G1.S1, a nulidade prevista na al. c) do n.º 1 do art.º 615.º  sanciona o vício de contradição formal entre os fundamentos de facto ou de direito e o segmento decisório da sentença.
Realidade distinta desta é o erro na subsunção dos factos à norma jurídica ou erro na interpretação desta, ou seja, quando – embora mal – o juiz entenda que dos factos apurados resulta determinada consequência jurídica e este seu entendimento é expresso na fundamentação ou dela decorre, o que existe é erro de julgamento e não oposição nos termos aludidos – cf. LEBRE DE FREITAS, A Ação Declarativa Comum, 2000, p. 298. Por outras palavras, o acerto ou desacerto da decisão é uma questão diversa, que não cabe no campo dos vícios geradores da nulidade, mas no domínio do eventual erro de julgamento.[5]
Ora, o que a apelante pretende questionar é o acerto da decisão proferida face aos termos convencionados na cláusula 10ª do contrato, questão que respeita a um eventual erro de julgamento de direito (subsunção dos factos ao direito), nada tendo a ver com o erro formal de contradição entre os fundamentos e a decisão, sendo que a decisão adotada pelo tribunal a quo espelha a fundamentação de direito adotada, não a contradizendo.
Termos em que improcede a arguição da nulidade.
Necessidade de realização de vistoria aquando da entrega do locado
No contrato de arrendamento firmado entre as partes ficou convencionado na Cláusula 10ª que:
Um - No caso de cessação do presente contrato, seja pelo decurso do respectivo prazo ou por qualquer outra forma de cessação, cumpre a arrendatária restituir o locado até ao último dia útil de vigência contrato, livre e devoluto de pessoas e bens e em boas condições de conservação, limpeza e utilização, designadamente, mas não excluindo outras, todas as instalações sanitárias e de luz e respectivos acessórios, as canalizações, esgotos, bem como os vidros, soalhos, paredes, janelas, portas, ar condicionado e chaves e tudo o mais a que nele presentemente se encontrar.
 Dois - Na data da restituição do Locado, haverá lugar a uma vistoria a realizar por ambas as partes, da qual será lavrado um auto de que constarão as eventuais anomalias do imóvel que não constituam anomalias ou deteriorações decorrentes de um uso normal e prudente.
 Três - Caso se verifiquem anomalias ou deteriorações não decorrentes de um uso normal e prudente e a arrendatária não proceder à sua eliminação, no prazo que lhe for concedido para o efeito, poderá a senhoria proceder à respectiva reparação ou eliminação a expensas da arrendatária(sublinhado nosso).
Em sede de cessação de contrato de arrendamento e devolução do locado, rege o Artigo 1043º do Código Civil nestes termos:
1. Na falta de convenção, o locatário é obrigado a manter e restituir a coisa no estado em que a recebeu, ressalvadas as deteriorações inerentes a uma prudente utilização, em conformidade com os fins do contrato.
2. Presume-se que a coisa foi entregue ao locatário em bom estado de manutenção quanto não exista documento onde as partes tenham descrito o estado dela ao tempo da entrega.
No caso em apreço, ocorreu uma situação particular porquanto as partes acordaram que a Ré realizaria obras de adaptação do locado para a realização da sua atividade de restauração e bebidas, sendo tais obras custeadas inteiramente pela ré/arrendatária, ficando as mesmas a pertencer ao locado (factos 3 e 9). Foi ainda convencionado que a ré/arrendatário se obrigava a «manter em bom estado de conservação e apresentação a fração e todos os seus pertences, incluindo canalizações de água e esgotos, instalações eléctricas, de segurança, telefones e ar condicionado, e a suportar o custo de quaisquer obras de reparação tomadas necessárias quer pelo exercício da actividade na fração, quer pela sua devolução quando o presente contrato deva ter-se por extinto.»
Ou seja, a obrigação legal emergente do Artigo 1043º do Código Civil persiste mas, no caso, tem de ser enquadrada pelas particularidades decorrentes da realização das obras, as quais ficariam a pertencer ao locado, estando o locatário obrigado a restituir a coisa no estado em que a transformou, com assentimento do senhorio, e não apenas no estado em que a recebeu.
A acordada obrigação de, na data da restituição do locado, se realizar  uma vistoria por ambas as partes, da qual seria lavrado um auto com sinalização das  anomalias do imóvel que não constituam anomalias ou deteriorações decorrentes de um uso normal e prudente, integra um procedimento convencionado para a fase de liquidação da relação contratual de arrendamento.
Da matéria de facto provado resulta que, em março de 2020, a Ré enviou à Autora por correio as chaves da fração.
Ao atuar de tal forma, a Ré expressou – de forma tácita e concludente - comportamento no sentido de que não pretendia cumprir o disposto na cláusula 10ª, nº 2, porquanto esta cláusula previa que, na data da restituição, as partes realizariam conjuntamente uma vistoria, da qual seria lavrado um auto que identificaria as eventuais anomalias do imóvel. A Ré, de forma voluntária, furtou-se a essa entrega presencial e à concomitante realização da vistoria.
Este comportamento da Ré integra uma declaração negocial tácita no sentido de que não pretendia observar o disposto na Cláusula 10ª, nº2 (cf. Artigo 217º, nº1, do Código Civil; Mafalda Miranda Barbosa, Lições de Teoria Geral do Direito Civil, Gestlegal, pp. 604-605). Conforme se refere em Carlos Mota Pinto, Teoria Geral do Direito Civil, 4ª Ed., p. 423:
«Em conformidade com o critério da interpretação dos negócios jurídicos consagrado no Código Civil (art.º 236º), deve entender-se que a concludência de um comportamento no sentido de permitir concluir a latere um certo sentido negocial, não exige a consciência subjetiva por parte do seu autor desse significado implícito, bastando que, objetivamente, de fora, numa consideração de coerência, ele possa ser deduzido do comportamento do declarante
Em suma, a Ré expressou – através de um comportamento concludente – a sua vontade de não querer cumprir o disposto na Cláusula 10ª, nº 2, do contrato.
Nesta medida, fica prejudicada a argumentação que a ré/apelante estriba no disposto na Cláusula 10ª, nºs 2 e 3, sendo que a pertinência do disposto no nº3 está condicionada à prévia observância do previsto no nº 2.
Além do mais, ao argumentar dessa forma, a Ré/apelante incorre em abuso de direito na modalidade de tu quoque.
Ensina menezes cordeiro, Tratado de Direito Civil Português, I Parte Geral, Tomo I, 1999, Almedina, p. 209, que «A ideia básica reside no seguinte: aquele que viole uma norma jurídica não pode tirar partido da violação exigindo a outrem, o acatamento de consequências daí resultantes: turpitudinem suam allegans non auditur. Caso o pretendesse fazê-lo, a sua atuação seria detida pela exceção tu quoque.» Há que exigir um nexo muito estrito entre a situação violada pelo abusador e aquela de que este se pretende prevalecer. Refere-se a este propósito no Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 20.10.2011, Silva Gonçalves, 2018/07, que «a fórmula tu quoque traduz, com generalidade, o aflorar de uma regra pela qual a pessoa que viole uma norma jurídica não poderia sem abuso, exercer a situação jurídica que essa mesma norma lhe tivesse atribuído; está em jogo um vetor axiológico intuitivo, expresso em brocardos como ”turpitudinem suam allegans non auditur” [ninguém, alegando a sua própria torpeza, deve ser ouvido] ou “equity must come with clean hands” ». Numa outra formulação, ocorre abuso de direito na modalidade tu quoque quando alguém desrespeita um contrato e vem depois exigir à outra parte o seu cumprimento – cf. Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa de 6.10.94, Silva Pereira, 0077262.
É esse precisamente o caso em apreço: a Ré demonstrou vontade de não querer cumprimento determinado clausulado contratual e, agora em sede de recurso, pretende exigir à contraparte o cumprimento de tal clausulado.
Indemnização pela privação de uso
O tribunal a quo condenou a Ré a pagar à Autora uma indemnização de oito mil euros a título de indemnização pela privação de uso do locado.
A Ré insurge-se contra tal condenação, argumentando que não está provado que a privação de uso resulte da retirada dos elementos fixos do locado pela Ré ou que não poderia ter resultado igualmente se apenas tivessem sido retirados elementos amovíveis. Conclui que não está provado o nexo de causalidade entre a ação da apelante e a privação de uso, sendo que a prova de tal nexo de causalidade incumbe à autora/lesada.
O tribunal a quo fundamentou essa condenação nestes termos:
«Numa segunda linha a demandante pretende obter da R. a condenação no pagamento na quantia de € 8 000, em que contabiliza o prejuízo que sofreu, entre Abril de 2020 e Julho de 2020, por força da impossibilidade de arrendar a fracção dita em 1), à razão mensal de € 2 000, em consequência do estado em que a demandada deixou o imóvel.
Provou a factualidade suporte do seu pedido.
Nessa medida crê-se que deve proceder o pedido que deduziu, quando é certo que o comportamento da R. se mostra ilícito e que a privação do uso e gozo do direito de propriedade se apresenta como um dano indemnizável – cf. art.º 483º CC.»
Apreciando.
Com relevância para a apreciação deste ponto, estão provados os seguintes factos:
§ Quando a fração foi entregue à Ré não tinha portas interiores, aparelhagem eléctrica, rede de ventilação, ar condicionado, acabamentos e elementos decorativos (11.);
§ Para recolocar a fração no estado em que se encontrava enquanto utilizada pela Ré é necessário, a título de trabalhos preparatórios, proceder à remoção do entulho depositado no pavimento, incluindo transporte a vazadouro, e realizar a inspeção das redes técnicas por entidades credenciadas nas especialidades de AVAC, eletricidade, águas e gás, trabalhos orçamentados em €7.562,50 (19);
§ É também necessário proceder à execução de paredes de alvenaria de tijolo e reparar as danificadas, trabalhos que incluem argamassa de assentamento de paredes que foram demolidas; regularização de balcões; execução de salpisco em boço e reboco, para regularização de superfícies, com argamassa de cimento e areia; regularização de paredes exteriores nas varandas que se encontram danificadas; e execução de estuque projectado em paredes (20);
§ Quanto a pavimentos é necessário proceder à execução de betonilha de regularização com argamassa de cimento e areia nas zonas onde foram arrancados os pavimentos, assim como fornecimento e assentamento de cerâmico idêntico ao existente, incluindo betumagem e colas de assentamento nas zonas onde está danificado (21);
§ Em relação ao revestimento dos tectos é necessário o fornecimento e montagem de tecto falso em pladur, incluindo estrutura de suspensão e barramento (22);
§ No âmbito da reparação de revestimentos é também necessário proceder à pintura a tinta plástica em paredes com duas de mão e à pintura a tinta plástica em tectos com duas de mão (23);
§ A Autora teve a fração referida em 1) devoluta, pelo menos, até julho de 2020 (32);
§ A fração não pode ser arrendada no estado em que foi deixada pela Ré (33);
§ A fração poderia estar arrendada pela renda mensal de €2.000 (34).
Resulta deste acervo factual que, atento o estado em que a Ré deixou a fração, a Autora teve de efetuar múltiplas obras de reparação da fração tendo em vista retomar as condições de utilização/aproveitamento normal da fração. A fração não podia ser arrendada no estado em que foi deixada pela Ré. Está também provado que a autora teve a fração devoluta, pelo menos, três meses após a sua devolução, sendo que esse prazo de três meses é naturalmente compatível e/ou necessário para a realização das apontadas obras de recuperação da fração.
O dano da privação do uso tem vindo a ser analisado pela doutrina e jurisprudência a propósito da privação do uso por parte do proprietário de imóvel.
Conforme se sintetiza no Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 12.7.2018, Acácio das Neves, 2875/10, na doutrina existem basicamente duas posições: «(…) uma, no sentido dominante, segundo a qual, para além da prova da privação do uso, deve o lesado alegar e provar uma concreta utilização relevante do bem (citando nesse sentido, Paulo Mora Pindo, in Interesse Contratual Positivo e Interesse Contratual Negativo, I, 594 e ss., e Maria da Graça Trigo in Responsabilidade Civil, Temas Especiais, 64; e na jurisprudência, entre outros, os ac.s do STJ de 10-1-2012 e 3-5-2011, ambos in www.dgsi.pt.): - e outra que defende que basta a alegação e prova da simples privação do uso para se reconhecer o direito a indemnização, reservando-se o não reconhecimento daquele direito para situações em que tenha ficado provado que a concreta privação do uso do bem não traduz, na esfera do respetivo titular, um dano patrimonial relevante (segundo Menezes Leitão, in Direito das Obrigações, I, 11ª ed., 301, e Abrantes Geraldes, in CDPrivado, Responsabilidade Civil, 137 e ss., e, entre outros, os ac.s do STJ de 16-6-2009 e 6-5-2008, in www.dgsi.pt).». Neste mesmo aresto, é afirmado que a posição dominante no STJ é a de que a mera privação do uso da coisa não é indemnizável, devendo o lesado alegar e provar a privação do uso da coisa por ato ilícito de terceiro e a existência de uma concreta utilização relevante da coisa.
Paulo Mota Pinto, Interesse Contratual Negativo e Interesse Contratual Positivo, Vol. I, pp. 594-596, afirma que: «O dano da privação do gozo ressarcível é, assim, a concreta e real desvantagem resultante da privação do gozo, e não logo qualquer perda da possibilidade de utilização do bem – a qual (mesmo que resultante de uma ofensa direta ao objeto, e não apenas de uma lesão no sujeito) pode não ser concretizável numa determinada situação.»
Na jurisprudência, são múltiplos os arestos em que a questão já foi analisada, referindo-se de seguida alguns que se têm por mais relevantes.
 Temos como judiciosa e pertinente a análise feita no Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa de 11.3.2003, Abrantes Geraldes, 683/03, www.colectaneadejurisprudencia.com que passamos a transcrever:
“O ressarcimento da privação do uso de um bem, como dano autónomo de natureza patrimonial, é questão que, malgrado a sua frequência na sociedade, permanece bastante arredada da discussão doutrinal ou judiciária em torno dos pressupostos da responsabilidade civil.
Tal questão já foi objeto de mais alargadas considerações noutro local,( (1) ) bastando coligir os argumentos que, relativamente ao caso concreto, tenham mais pertinência.
A respeito dela se divisam duas conceções antagónicas:
- A defendida pelos apelantes, no sentido de que a indemnização exige que o lesado prove a concreta existência de prejuízos decorrentes do não recebimento de rendas que o imóvel lhe teria proporcionado caso o mesmo não estivesse ocupado pelos RR;( (2) )
- A outra, assumida na sentença, assente no pressuposto de que a simples privação ilegal do uso já integra um prejuízo de que o proprietário deve ser compensado, em última análise, com recurso às regras da equidade.( (3) )
3. A questão genericamente enunciada aflora mais frequentemente em sede de acidentes de viação de que resulta para o lesado a privação do uso de veículos. Porém, a vida real comporta outras situações onde a mesma irrompe, designadamente quando uma das partes incumpre a obrigação de entrega à outra da coisa vendida (responsabilidade contratual) ou quando, como no caso concreto, alguém retém ilegitimamente um imóvel pertencente a outrem.
A resposta que tem sido dada parte basicamente da aplicação da teoria da diferença:
- Quando a indemnização é negada alega-se a falta de prova de uma diferença patrimonial entre a situação constatada no momento da decisão e a que existiria se não ocorresse o evento;
- Inversamente, a afirmação é sustentada pela constatação naturalística de que a privação do uso de uma coisa, inibindo o proprietário ou detentor de exercer sobre a mesma os inerentes poderes, constitui uma perda patrimonial que deve ser considerada, tudo se resumindo à deteção do método mais adequado para a quantificação da indemnização compensatória.
4. Contra a admissibilidade da indemnização do dano da privação do uso invoca-se frequentemente a sua natureza abstrata, contraposta ao facto de a responsabilidade civil exigir a produção de um dano concreto cuja medida serve para quantificar a indemnização.
É um facto que só os danos concretos merecem ser ressarcidos. Todavia, isso não significa que o chamado "dano da privação do uso" deva incluir-se na categoria do dano abstrato, sob pena de se afrontarem juízos assentes em padrões de normalidade.
Esta integração é contrariada pela simples verificação de que a impossibilidade de fruição de um bem próprio, em consequência de uma atuação ilícita de outrem, determina um corte temporal no legítimo direito de fruição. Reportando-se a privação a um determinado período e sendo o direito de propriedade também integrado pelo direito de fruição, aquela traduz-se, em termos práticos, num corte temporalmente definido e naturalmente irrecuperável nesse poder de fruição.
Quanto às dificuldades suscitadas pela adoção da teoria da diferença, como critério determinativo da indemnização, podem ser superadas se se evidenciar que o plano da quantificação não deve confundir-se com o da ressarcibilidade em que, por ora, nos situamos. No percurso metodológico da aplicação da lei este situa-se a montante, sendo reflexo da mera perda, ainda que temporária, dos poderes de fruição; já a quantificação comporta uma mera operação material, situada a jusante, destinada a avaliar, em termos pecuniários, o desequilíbrio patrimonial causado pela privação.
5. A simples invocação das regras da experiência quando se estabelece a comparação entre a situação do proprietário que manteve intacto o seu poder de fruição e a de um outro que dele seja privado temporariamente permite concluir que não existe entre ambas uma equivalência substancial. Verificando-se uma lacuna de natureza patrimonial, correspondente à fatia de poderes de que o proprietário ficou privado, é com naturalidade que deve ser encarada a atribuição de uma compensação monetária, face à constatação de que o simples reconhecimento da ilegitimidade da privação e a condenação na restituição do bem são insuficientes para repor a situação do lesado no estado em que se encontraria caso não tivesse existido tal privação.
Uma vez que o sistema atribui ao lesado o direito à reconstituição natural da situação, a recomposição da situação danosa reclama que, pela única via então possível, ou seja, pela atribuição de um equivalente pecuniário, o lesado consiga ser reintegrado. Dito de outro modo, se a privação do uso do bem durante um determinado período origina a perda das utilidades que o mesmo era suscetível de proporcionar e se tal perda não pode ser reparada mediante a forma natural de reconstituição, impõe-se que o responsável compense o lesado na medida equivalente.
A prova da ocorrência de danos concreta e diretamente imputáveis à privação é solução que se justifica quando o lesado pretenda obter o ressarcimento dos lucros cessantes, pelos "benefícios que deixou de obter", nos termos do art.º 564º, nº 1, do CC. Porém, não se esgotam aí as possibilidades de ressarcimento que abarca também, com os danos emergentes, no segmento normativo referente ao "prejuízo causado", a privação do uso.
Considerando que o direito de propriedade integra, como um dos seus elementos fundamentais, o poder de exclusiva fruição, e que isso envolve até o direito de não usar,( (4) ) a privação do uso reflete o corte definitivo e irrecuperável de uma "fatia" desses, justificando-se, assim, o ressarcimento que supra a modificação negativa que a privação do uso determina na relação entre o lesado e o seu património.
6. A análise mais detalhada do problema foi da iniciativa de Júlio Gomes que num Estudo intitulado "O Dano da Privação do Uso"( (5) ) deixou subentendida a adesão à valoração autónoma daquele dano no âmbito da nossa ordem jurídica.( (6) )
Ainda que a questão permaneça algo adormecida na doutrina e na jurisprudência nacionais, a tese que assumimos é defendida expressamente assumida por Menezes Leitão.( (7) )
E numa época em que a globalização também se reflete no modo como são regulamentados certos institutos jurídicos, ganha especial relevo o modo como a questão tem sido abordada noutros quadrantes jurídicos.
Ora, na Alemanha, perante textos legais inconclusivos e face às dificuldades de superação dos obstáculos impostos à integração da privação do uso na categoria de danos de natureza não patrimonial, a jurisprudência alemã avançou com a sua ressarcibilidade a título de danos patrimoniais, atribuindo ao seu titular um quantitativo correspondente ao valor comercial ou corrente do uso de que o lesado tenha ficado privado.( (8) )
Também assim, em Itália,( (9) ) França, ( (10) ) Espanha ( (11) ) e Reino Unido. ( (12) )
7. Em suma, desde que a violação do direito de propriedade, acompanhada da privação do uso, constituem facto ilícito deve, em regra, conceder-se ao lesado a correspondente indemnização.( (13) )
A medida do ressarcimento pode variar de acordo com os reflexos casuisticamente imputáveis ao evento. Mas, salvo situações excecionais resultantes de factos concretamente apurados, àquela situação de carência corresponderá a atribuição de uma compensação monetária.”
Na jurisprudência do Supremo Tribunal de Justiça, a ressarcibilidade do dano da privação de uso tem sido acolhida, mas nem sempre de modo uniforme. A título exemplificativo, enumeram-se os seguintes acórdãos do Supremo Tribunal de Justiça, por ordem cronológica.
Acórdão de 7.4.2005, Alves Velho, Revista 306/05: «O proprietário goza de modo pleno e exclusivo dos direito de uso, fruição - aproveitamento dos frutos materiais e jurídicos - e disposição das coisas que lhe pertencem, respondendo o possuidor de má fé perante aquele pelo valor dos frutos que um proprietário diligente poderia ter obtido - art.ºs 1305 e 1271 do CC. Está, deste modo, legalmente estabelecido o critério indemnizatório do ato ilícito cometido pelo possuidor de má fé, por remissão para o valor dos frutos que a coisa podia produzir. Consequentemente, valor locativo (renda) de um prédio urbano é elemento do cômputo do dano resultante da privação do respetivo gozo, correspondente aos frutos civis que a coisa podia produzir.»
Acórdão de 23.9.2008, Moreira Camilo, 2363/08, www.colectaneadejurisprudencia.com, foi adotado o seguinte entendimento:
“O dano consubstancia-se, assim, na privação do gozo da coisa pela respetiva proprietária.
O valor locativo (renda) é apenas um elemento de cálculo desse dano, correspondente aos frutos civis que a coisa é suscetível de produzir (artigo 212º, nº 2, do Código Civil).
Tudo isto decorre do disposto nos artigos 1305º e 1271º do mesmo Código.
Na verdade, o proprietário goza de modo pleno e exclusivo dos direitos de uso, fruição - aproveitamento dos frutos materiais e jurídicos - e disposição das coisas que lhe pertencem, respondendo o possuidor de má fé perante aquele pelo valor dos frutos que um proprietário diligente poderia ter obtido.
Mostra-se, pois, legalmente estabelecido o critério indemnizatório do facto ilícito cometido pelo possuidor de má fé, por remissão para o valor dos frutos que a coisa podia produzir, de harmonia com o que, em termos gerais, se prescreve nos preceitos referentes à responsabilidade por factos ilícitos e à obrigação de indemnização (cf. artigos 483º a 498º e 563º e 564º, nº 1, do Código Civil).
Infere-se, assim, que não é necessário que o lesado alegue e demonstre quais os concretos fins ou utilidades que visava com o bem, assim como os reflexos que isso teve no seu património.”
Acórdão de 10.9.2009, Oliveira Vasconcelos, 331/09, www.colectaneadejurisprudencia.com , “A indemnização pelo não uso é devida, independentemente da prova de qualquer dano sofrido pelo proprietário”.
No Acórdão de 12.1.2010, Paulo Sá, 314/06, entendeu-se que o proprietário privado por terceiro do uso de uma coisa tem, por esse simples facto e independentemente da prova cabal da perda de rendimentos que com ela obteria, direito a ser indemnizado por essa privação, indemnização essa a suportar por quem leva a cabo a privação em causa. A privação do uso constitui uma ofensa ao direito de propriedade na medida em que a livre disponibilidade do bem é inerente ao direito de propriedade constitucionalmente consagrado (Artigo 62º da Constituição).
Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 3.10.2013, Orlando Afonso, 9074/09: «A privação de um bem (no caso um imóvel), por turbação ou esbulho não confere, sem mais, direito a indemnização ao possuidor restituído, havendo este que fazer prova da existência de prejuízos reparáveis, quer na forma de danos emergentes, quer de lucros cessantes ou ainda de danos não patrimoniais.»
No Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 27.4.2019, Hélder Roque, 685/03: «A questão da ressarcibilidade da «privação do uso» não pode ser apreciada e decidida, em abstrato, aferida pela mera impossibilidade objetiva de utilização da coisa, porquanto a mera privação do uso do bem, independentemente da demonstração de factos reveladores de um dano específico emergente ou de um lucro cessante, é insuscetível de fundar a obrigação de indemnização, no quadro da responsabilidade civil.»
Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 23.5.2019, Graça Amaral, 14/14: «O direito de indemnização por parte do proprietário de imóvel ocupado ilegitimamente encontra respaldo no instituto do enriquecimento sem causa quando não tenha sido possível demonstrar a existência de dano enquanto pressuposto da responsabilidade civil extracontratual.»
Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 17.10.2019, Olindo Geraldes, 2458/15: «O dano, pela privação do uso, resulta do facto ilícito e culposo, de modo que, enquanto subsiste aquele facto, há sempre dano, porquanto quem, com legitimidade, vinha fruindo a coisa, está impedido de o fazer, nomeadamente por efeito do facto ilícito.»
No caso em apreço, e atenta a factualidade provada sob 32 a 34, estão suficientemente provados factos para estribar uma indemnização pela privação de uso, qualquer que seja a tese a adotar, sendo que nos identificamos com a tese que não exige a prova de uma concreta e relevante utilização do imóvel. Com efeito, está provado que a fração poderia ser arrendada por dois mil euros mensais e que não pode ser arrendada no estado em que foi deixada.
Também não suscita dúvidas a existência de um nexo de causalidade entre a atuação da ré e a privação do uso, sendo que o estado em que Ré deixou o locado implicou a inutilizabilidade imediata do locado.
Recorde-se que, consoante posição jurisprudencial e doutrinária prevalecentes,  quanto à fixação do nexo de causalidade, a nossa lei adotou a doutrina da causalidade adequada, ao estabelecer que a obrigação de indemnização só existe em relação aos danos que o lesado provavelmente não teria sofrido se não fosse a lesão – art. 563º do Código Civil. Para que um facto seja causa de um dano é necessário, antes de mais, no plano naturalístico, que ele seja condição sem a qual o dano não se teria verificado e, depois, que em abstrato ou em geral, seja causa adequada do dano. Com efeito, a teoria da causalidade adequada impõe, num primeiro momento, a existência de um facto naturalístico concreto, condicionante de um dano sofrido, para que este seja reparado.
Depois, ultrapassado aquele primeiro momento, pela positiva, a teoria da causalidade adequada impõe, num segundo momento, que o facto concreto apurado seja, em geral e em abstrato, adequado e apropriado para provocar o dano. Daqui resulta, como bem se observa no Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de  15.1.2002, Silva Paixão, CJ AcSTJ – I, p. 38, que «de acordo com a teoria da adequação, só deve ser tida em conta como causa de um dano aquela circunstância que, dadas as regras da experiência e o circunstancialismo concreto em que se encontrava inserido o agente (tendo em atenção as circunstâncias por ele conhecidas ou cognoscíveis) se mostrava como apta, idónea ou adequada a produzir esse dano. Mas para que um facto deva considerar-se causa adequada daqueles danos sofridos por outrem, é preciso que tais danos constituam uma consequência normal, típica, provável dele, exigindo-se assim que o julgador se coloque na situação concreta do agente para emissão da sua decisão, levando em conta as circunstâncias que o agente conhecia e aquelas circunstâncias que uma pessoa normal, colocada nessa situação, conheceria.»
 A teoria da causalidade adequada apresenta duas variantes: uma formulação positiva e uma formulação negativa. Segundo a formulação positiva (mais restrita), o facto só será causa do dano, sempre que verificado o facto, se possa prever o dano como consequência natural ou como efeito provável dessa verificação. Na formulação negativa (mais ampla), o facto que atuou como condição do dano deixa de ser considerado como causa adequada, quando para a sua produção tiverem contribuído, decisivamente, circunstâncias anormais, extraordinárias ou anómalas, que intercederam no caso concreto. Por mais criteriosa, deve reputar-se adotada pela nossa lei a formulação negativa da teoria da causalidade adequada – neste sentido, cf. ANTUNES VARELA, Das Obrigações em Geral, I Vol., 9ª Ed., pp.. 921, 922 e 930; PEDRO NUNES DE CARVALHO, Omissão e Dever de Agir em Direito Civil, p. 61.
Ora, a conduta da Ré (ao deixar o locado no estado descrito sob 11, 19 a 23) teve como consequência normal a inviabilidade da utilização imediata do locado para nova locação, sendo que para essa inviabilidade de utilização não contribuiu qualquer circunstância anormal e extraordinária.
Termos em que improcede a argumentação da apelante.
A fundamentação autónoma da condenação em custas só se tornará necessária se existir controvérsia no processo a esse propósito (cf. art. 154º, nº 1, do Código de Processo Civil; Acórdãos do Tribunal Constitucional nºs. 303/2010, de 14.7.2010, Vítor Gomes, e 708/2013, de 15.10.2013, Maria João Antunes).

DECISÃO
Pelo exposto, acorda-se em julgar improcedente a apelação, confirmando-se a sentença recorrida.
Custas pela apelante na vertente de custas de parte (Artigos 527º, nºs 1 e 2, 607º, nº 6 e 663º, nº 2, do Código de Processo Civil).

Lisboa, 4.7.2023
Luís Filipe Pires de Sousa
Ana Rodrigues da Silva
Micaela Sousa
                                              
_______________________________________________________
[1] Abrantes Geraldes, Recursos em Processo Civil, 7ª ed., 2022, p. 186.
[2] Abrantes Geraldes, Op. Cit., pp. 139-140.
Neste sentido, cf. os Acórdãos do Supremo Tribunal de Justiça de 9.4.2015, Silva Miguel, 353/13, de 10.12.2015, Melo Lima, 677/12, de 7.7.2016, Gonçalves Rocha, 156/12, de 17.11.2016, Ana Luísa Geraldes, 861/13, de 22.2.2017, Ribeiro Cardoso, 1519/15, de 25.10.2018, Hélder Almeida, 3788/14, de 18.3.2021, Oliveira Abreu, 214/18, de 15.12.2022, Graça Trigo, 125/20, de 11.5.2023, Oliveira Abreu, 26881/15, de 25.5.2023, Sousa Pinto, 1864/21. O tribunal de recurso não pode conhecer de questões novas sob pena de violação do contraditório e do direito de defesa da parte contrária (Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 17.12.2014, Fonseca Ramos, 971/12).
[3] Cf. Acórdãos da Relação de Coimbra de 11.1.94, Cardoso Albuquerque, BMJ nº 433, p. 633, do STJ de 13.2.97, Nascimento Costa, BMJ nº 464, p. 524 e de 22.6.99, Ferreira Ramos, CJ 1999 – II, p. 160.
[4] Acórdão da Relação do Porto de 2.5.2016, Correia Pinto, 1556/14.
[5] Cf., entre outros, os Acórdãos do STJ de 8.3.2001, Ferreira Ramos, acessível em www.dgsi.jstj/pt, de 5.5.2020, Maria João Vaz Tomé, 4011/16.