Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
346/14.0PEAMD.L1-5
Relator: MARGARIDA BACELAR
Descritores: INTRODUÇÃO EM LUGAR VEDADO AO PÚBLICO
VIOLAÇÃO DE DOMICÍLIO
ALTERAÇÃO DA QUALIFICAÇÃO JURÍDICA
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 05/15/2018
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Texto Parcial: N
Meio Processual: RECURSO PENAL
Decisão: PARCIALMENTE PROVIDO
Sumário: - Para efeitos de preenchimento do tipo legal de crime de violação de domicílio p.p. pelo art.º 190º,n.º 1 C.P., não se verifica o conceito de habitação, apenas se a casa ou fracção em questão tem a potencialidade de vir a ser destinada a habitação mas sim se é de facto e em concreto o espaço onde alguém tem instalada a sua habitação ou local onde fixou a sua residência, entendida esta como local onde, sozinho ou acompanhado do seu agregado familiar, mora, tem os seus pertences, descansa, recebe família e amigos, descansa e onde se abriga, se alimenta e pernoita, com carácter de permanência, onde tem a sua residência, em suma, o local onde constituiu o núcleo da sua vida pessoal e familiar.

- O bem jurídico protegido é a privacidade /intimidade do sujeito ou sujeitos que aí habitam, incluindo a paz e o sossego que estão envolvidos nesse conceito.

- Estando a fracção em causa devoluta, quando se verificou a prática dos factos, não se pode concluir que tenha sido violado o bem ou valor jurídico tutelado pela norma.

- Encontrando-se o arguido acusado por factos que, no entender da acusação, constituem crime de introdução em lugar vedado ao público que posteriormente foram qualificados como violação de domicílio, por despacho que cumpriu o determinado no art.º 358º, n.º3 CPP, nenhuma questão se coloca ao nível da necessidade eventual de qualquer comunicação relativa à alteração da qualificação jurídica dos factos, posto que, por um lado, o objecto do recurso visa a absolvição do crime de violação de domicílio e a violação dos princípios gerais do processo penal atenta a condenação por incriminação diversa da acusação, e, por outro lado, toda a defesa do arguido foi dirigida à acusação proferida pelo crime de introdução em lugar vedado ao público, já que, apenas no final da produção da prova, se procedeu à comunicação a que alude o art.º 358º, n.º3 CPP, não constituindo qualquer surpresa para a defesa ou qualquer violação de princípios fundamentais, a actual condenação em crime pelo qual o arguido fora acusado.
Decisão Texto Parcial:
Decisão Texto Integral: Acordam, em conferência, na 5ª Secção do Tribunal da Relação de Lisboa:

1.
No Juízo Local Criminal da Amadora, pelo Juiz 1, foi proferida sentença que decidiu:

- Condenar o arguido B. pela prática de um crime de dano, previsto e punido pelo artigo 212°, n.° 1 do Código Penal, na pena de 90 dias de multa;
- Condenar o arguido pela prática de um crime de violação de domicilio, previsto e punido pelo artigo 190°, n.° 1 do Código Penal, na pena de 240 dias de multa;
- Condenar o arguido na pena única de 280 dias de multa, à taxa diária de €5, no total de €1.400, a que correspondem subsidiariamente 186 dias de prisão;
- Absolver o demandado do pedido cível deduzido pelo demandante;
- Condenar o arguido no pagamento das custas do processo fixando-se a taxa de justiça em 2 UCs;
- Condenar o demandante nas custas do pedido de indemnização cível formulado, nos termos e ao abrigo do disposto no artigo 523° do Código de Processo Penal com remissão para o artigo 527° n°s 1 e 2 do Código de Processo Civil.

1.2.
Interpôs recurso, o arguido alegando em síntese conclusiva:
1. O arguido não podia ser condenado pela nova incriminação jurídica que implicou crime diverso e com moldura penal mais gravosa, por violação do disposto nos artigos 1o al. f) e 359° n° 1 do CPP.
2. A sentença recorrida equiparou o conceito de imóvel, a habitação, e por sua vez a domicílio de terceiro.
3. Ora toda a habitação, em principio será um imóvel, ( dizemos em princípio, pois a habitação de uma pessoa pode acontecer num móvel sujeito a registo, como uma caravana), mas nem todo o imóvel será um domicilio de terceiro.
4. Na verdade o que o tipo crime protege é a reserva da vida privada, o que no caso concreto, provado que está que a fração se encontrava livre e devoluta de pessoas e bens, jamais pode preencher o crime de que foi condenado.
5. O tribunal recorrido interpretou normativamente o dito preceito legal de forma extensiva aos casos em que não se prova que fosse o domicilio de terceiro, mas tão só que se basta que não seja propriedade do ocupante.
6. Violou assim por erro e má aplicação e interpretação do direito o disposto no artigo 191° n° 1 do CP.
Nestes termos e nos mais de direito deve o recurso ser considerado procedente por provado, e a final o arguido absolvido do crime previsto no artigo 191° n° 1 do CP, mantendo-se, somente, a condenação pelo crime de dano.

1.3. Em resposta, diz o MºPº:

Compulsados os autos em detalhe constata-se que ao arguido foram imputados em sede de acusação os seguintes factos:
1. O imóvel sito na Rua do C..., lote 2/n" 17, 3o dto, Amadora é pertença do Instituto da Habitação e Reabilitação Urbana, LP.
2. Até  Fevereiro de 2014, tal fracção encontrava-se devoluta e entaipada  com uma parede de tijolo, construída  à  frente da porta de entrada, que se encontrava fechada à chave, uma vez que decorria ainda o processo de selecção do agregado familiar que ali iria residir.
3. Contudo, o arguido, em Fevereiro de 2014 decidiu ocupar a fracção supra referida, passando ali a morar com a sua mulher e filho.
4. Para  o  efeito, o arguido, de forma não concretamente apurada,  partiu a parede de tijolo e após, partiu a fechadura da porta de entrada, para lograr aceder ao interior da habitação.
5. Em consequência de tal conduta, a fechadura da porta de entrada da habitação ficou inutilizada, sendo o valor de tal estrago não concretamente apurado.
6. De seguida, o arguido permaneceu em tal residência até dia não concretamente apurado de Maio de 2015.
7. O arguido ao partir a parede de tijolo e a fechadura da porta da referida habitação, bem sabia que tal conduta era apta a provocar os estragos mencionados, por tal propósito se tendo determinado e bem sabendo que tal porta não lhe pertencia e que actuava contra a vontade do respectivo dono.
8. O arguido agiu ainda bem sabendo, ao aceder a tal espaço, que se encontrava vedado e não livremente acessível ao público, o fazia sem o consentimento da ofendida e fê-lo com o propósito de invadir e permanecer naquele espaço.
9. O arguido agiu sempre livre, voluntária e conscientemente, bem sabendo que tais condutas eram proibidas e punidas por lei penal.
- Por tais factos foi o arguido acusado da prática de um crime de Dano, p.p. pelo artigo 212°, n° 1 do Código Penal e um crime de Introdução em lugar vedado ao público, p. e p. pelo artigo 191° do Código Penal, a punir em concurso real.
- A acusação foi recebida pelos factos nela contidos e segundo a qualificação jurídica dela constante.
- Foi realizada audiência de julgamento, produzida prova e, a afinal, proferida a douta sentença agora colocada em crise, na qual o arguido foi condenado pela prática de um crime de Dano e pela prática de um crime de Violação de domicilio.
- Resultou o arguido assim condenado - constata-se - não obstante julgado provado de modo conforme à acusação que
"até Fevereiro de 2014, tal fracção encontrava-se devoluta (...) "  e que foi nessas circunstâncias que
(...) "o arguido,  em Fevereiro de 2014, decidiu  ocupar  a  fracção supra referida, passando ali a morar com a sua mulher e filho."
Também que "oarguido agiu ainda bem sabendo que ao aceder a tal espaço, que se encontrava vedado e não livremente acessível ao público, o fazia sem o consentimento da ofendida e fê-lo com o propósito de invadir e permanecer naquele espaço ".

Não foram julgados não provados factos directamente relacionados com a matéria controversa.
Ponderando o que vem de ser descrito entende o Ministério Publico que assiste razão nesta parte ao recorrente pois que, como vem sendo entendido doutrinária e jurisprudencialmente, sem excepções conhecidas, o tipo legal Violação de domicílio tem por elemento objectivo a habitação, entendida como "(...) espaço fisicamente fechado  (de forma estereotipada: quatro paredes e um telhado) efectivamente reservadas ao alojamento (permanência, descanso, convívio, alimentação, pernoita) de uma ou várias pessoas, nomeadamente de uma família.
Nesse sentido a anotação feita ao art°190° do Código Penal, in Comentário Conimbricense do Código Penal, Parte Especial, Tomo I, págs. 702 e 703.
E mais adiante "Não serão habitação as casas fechadas e vazias, v.g. as casas em construção ou acabadas de construir mas ainda não efectivamente ocupadas. A sua violação poderá realizar o ilícito típico do artº191° mas não preencherá a factualidade típica do art°190°."
E pois o elemento habitação, não como espaço potencialmente destinado a ser habitado (como terá entendido a MmaJuiz a quo), mas como aquele que se encontra efectivamente a ser habitado, vivido enquanto espaço de "permanência, descanso, convívio, alimentação, pernoita", que o legislador entendeu proteger por via da sujeição a pena abstractamente aplicável de prisão até um ano ou pena de multa até 240 dias, enquanto que o ilícito previsto no art°191° do Código Penal, que tutela a inviolabilidade de espaços propriedade de outrem, se mostra punível apenas com prisão até 3 meses ou pena de multa até 60 dias.
Entende o Ministério Publico, em contrário, que não procede o invocado vício consistente no facto de, alegadamente, o arguido não poder ser condenado pela nova incriminação - Violação de domicílio — por implicar crime diverso c com moldura penal mais gravosa, por violação do disposto nos artigos 1o, alínea f) e 359° n°1 do Código Processo Penal pois que, como se antecipou, não ocorreu qualquer alteração dos factos descritos na acusação.
Assim sendo, apenas se impondo que a Mm" Juiz procedesse à comunicação prevista no art°358°, n°1 do Código de Processo Penal (conforme o impõe o n°3 do dispositivo), o que fez.
Nesse sentido o designado "Assento n°2/93" do STJ e bem assim o Acórdão daquele Supremo Tribunal com o número 169/07.3GCBNV.S1, de 17.09.2009 e Acórdão de Fixação de Jurisprudência 11/2013, todos consultáveis em www.dgsi.pt.
Transcreve-se, para boa ilustração da matéria controvertida, parte do segundo aresto referido, onde se lê:
O objecto do processo é a acusação, enquanto descrevendo esse pedaço de vida, esse acontecimento da vida real e social, portador de uma unidade de sentido e, como tal, susceptível de um jui\o de subsunção jurídico-penal. Esse é o quid que se tem de manter idêntico até à decisão final (a eadem res), não obstante as mutações que venha a sofrer.
Para ocorrer uma alteração dos factos é necessário que aos factos constantes da acusação ou da pronúncia outros se acrescentem ou substituam, ou, pelo contrário, se excluam alguns deles. Não ocorre uma alteração dos factos quando o tribunal qualifique de maneira diversa, sem os modificar, os factos descritos na acusação.
A alteração de qualificação jurídica tem de ser comunicada ao arguido nos termos do n." 1 do art. 358." do CPP, uma vez que o n.° 3 desse artigo manda aplicar esse regime. Tal comunicação é oficiosa ou efectuada a requerimento e, se o arguido o requerer, é-lhe concedido prazo para preparação da defesa, pelo tempo estritamente necessário.

1.4. Neste Tribunal da Relação, o MºPº emitiu parecer no sentido da improcedência do recurso, acompanhando os termos da contra-alegação do MºPº junto do tribunal ‘a quo’.

2.
2.1.
É a seguinte a fundamentação da sentença:

II - Fundamentação:

 “Matéria de facto provada:
Da discussão da causa resultaram provados os seguintes factos:
2.1.1. O imóvel sito na Rua do C..., lote 2/n° 17, 3o dto, Amadora é pertença do Instituto da Habitação e Reabilitação Urbana, I.P.
2.1.2. Até Fevereiro de 2014, tal fracção encontrava-se devoluta e fechada à chave, uma vez que decorria ainda o processo de selecção do agregado familiar que ali iria residir.
2.1.3. Contudo, o arguido, em Fevereiro de 2014 decidiu ocupar a fracção supra referida, passando ali a morar com a sua mulher e filho.
2.1.4. Para o efeito, o arguido, de forma não concretamente apurada forçou a fechadura da porta de entrada, para lograr aceder ao interior da habitação.
2.1.5. Em consequência de tal conduta, a fechadura da porta de entrada da habitação ficou inutilizada, sendo o valor de tal estrago não concretamente apurado, mas inferior a €102.
2.1.6. De seguida, o arguido permaneceu em tal residência até dia não concretamente apurado de Maio de 2015.
2.1.7. O arguido ao forçar a fechadura da porta da referida habitação, bem sabia que tal conduta era apta a provocar os estragos mencionados, por tal propósito se tendo determinado e bem sabendo que tal porta não lhe pertencia e que actuava contra a vontade do respectivo dono.
2.1.8. O arguido agiu ainda bem sabendo que ao aceder a tal espaço, que se encontrava vedado e não livremente acessível ao público, o fazia sem o consentimento da ofendida e fê-lo com o propósito de invadir e permanecer naquele espaço.
2.1.9. O arguido agiu sempre livre, voluntária e conscientemente, bem sabendo que tais condutas eram proibidas e punidas por lei penal.
2.1.10. A renda mensal da fracção é de €410,50.
2.1.11. O arguido é solteiro, tem 2 filhos e mora com a companheira.
2.1.12. É vendedor auferindo cerca de €250 e a sua companheira recebe RS1 de €400 por mês.
2.1.13. Mora em casa da mãe.
2.1.14. Tem o 8o ano de escolaridade.
2.1.15. O arguido tem antecedentes criminais tendo já sido condenado em:
- pena de multa no âmbito do processo n.°605/08.1PQLSB, pela prática do crime de condução de veiculo sem habilitação legal a 22.11.2008, por sentença de 19.05.2010, transitada em julgado a 18.06.2010;
- pena de multa no âmbito do processo n.°191/11.5PAPVZ, pela prática do crime de ofensa à integridade física simples a 26.02.2011, por sentença de 20.12.2012, transitada em julgado a 01.02.2013;
- pena de multa no âmbito do processo n.°2232/14.5P8LSB, pela prática do crime de furto qualificado a 16.05.2014, por sentença de 14.07.2014, transitada em julgado a 29.09.2014;
- pena de prisão suspensa com regime de prova no âmbito do processo n.°160/14.3PYLSB, pela prática do crime de furto qualificado e furto simples em 2013, por acórdão de 22.06.2015, transitado em julgado a 12.10.2015.

2.2. Matéria de facto não provada:

Não resultou provado que:
2.2.1. A fracção referida em 2.1.1. estivesse entaipada com uma parede de tijolo, construída à frente da porta de entrada.
2.2.2. O arguido, de forma não concretamente apurada partiu a parede de tijolo.
2.2.3. O arguido ao partir a parede de tijolo da referida habitação, bem sabia que tal conduta era apta a provocar os estragos mencionados, por tal propósito se tendo determinado e bem sabendo que tal não lhe pertencia e que actuava contra a vontade do respectivo dono.
2.2.4. O Instituto da Habitação e Reabilitação Urbana, I.P. tivesse seleccionado uma família para habitar a fracção descrita em 2.1.1. de Fevereiro de 2014 a Maio de 2015.
2.2.5. O Instituto da Habitação e Reabilitação Urbana, I.P. tivesse tido um prejuízo de €6157,50 devido à conduta do arguido.

2.3. Motivação da decisão de facto:

A convicção deste tribunal sobre a matéria de facto provada formou-se com base na avaliação e ponderação de todos os meios de prova produzidos ou analisados em audiência de julgamento, nomeadamente:
- Nas declarações do arguido que descreveu a sua condição económica e social.
- Quanto aos factos o arguido o arguido apenas admitiu ter forçado a fechadura e passado a residir no locado sem autorização do seu proprietário, negando no entanto ter partido a parede, alegando que a mesma não existia.
- No depoimento da testemunha SR, agente da PSP, o qual declarou que se deslocou à fracção em finais de 2014 e identificou o arguido como sendo a pessoa que estava a ocupar a mesma.
- No depoimento da testemunha RE, funcionário da demandante, o qual promoveu a queixa instaurada nos autos.
No entanto alegou, não saber em concreto se a fracção tinha, ou não uma parede na parte de fora de acesso à fracção.
Disse que depois de o arguido sair do locado, fizeram obras no mesmo, como era prática habitual sempre que a fracção mudava de inquilinos, e foi novamente ocupada em Julho de 2015.
- Na cópia da caderneta predial urbana de fls.7 e 8 no que concerne à propriedade do imóvel.
- No auto de apreensão da chave de fls.8.
- Fotograma de fls.16, 23.
- No orçamento de fls.61 e ss quanto ao valor da reparação do veículo.
No Certificado de Registo Criminal, junto aos autos, no que concerne aos antecedentes criminais do arguido.

Assim face à prova produzida dúvidas não existem quanto à verificação dos factos dados como provados.
Em primeiro lugar temos que o arguido admitiu a prática dos mesmos.
Ou seja o arguido admitiu ter forçado a fechadura e ter vivido sem autorização na fracção.
Sendo que resulta claro da prova produzida, em conjugação com as regras de experiência que o arguido agiu de forma livre, deliberada e consciente bem sabendo que a sua conduta era criminalmente punida.
Também quanto ao valor do da fechadura, a verdade é que não foi feita qualquer prova quanto ao mesmo, no entanto considerando a condição económica do arguido e o facto de ser um casa camarária, só pode o tribunal concluir que o mesmo é inferior a €102.
Quanto aos factos dados como não provados os mesmos deveram-se a ausência de prova nesse sentido.
Isto porque o arguido negou os mesmos e porque nenhuma das testemunhas inquiridas tinha conhecimento directo dos factos.
Por outro lado a demandante não provou, como lhe competia que tinha já seleccionado uma família para ocupar o locado e a partir de que data, e que não o pôde fazer devido à conduta do arguido, e que por isso teve aquele prejuízo.

III - Enquadramento Jurídico:
3.1. Crime de Dano
O crime de dano vem previsto no art.212° n.°l do CP.
De acordo com este art. "quem destruir, no todo ou em parte, danificar, desfigurar ou tornar não utilizável coisa alheia é punido com pena de prisão até três anos ou com pena de multa".
Antes de mais há que definir qual o conceito de coisa, sendo certo que aqui é mais restrito do que em direito civil (art. 202° do C.C.), uma vez que só as coisas corpóreas podem ser objecto de dano, devendo entender-se esta "corporeidade" no sentido de coisa materialmente apreensível.
Para além de corpórea, terá de tratar-se de coisa autónoma, isto é, terá de constituir objecto autónomo de relação jurídica.
O requisito de se tratar de coisa alheia exclui as coisas insusceptíveis de apropriação e as coisas de propriedade exclusiva do agente.
Existem assim quatro modalidades de acção típica, a saber:
- Destruir;
- Danificar;
- Desfigurar;
- Ou tornar não utilizável;
Em caso de destruição, a coisa, mesmo que não desapareça a matéria de que é composta, deixa de manter a sua individualidade anterior.
Por seu lado a destruição parcial é equiparada à destruição total, quando acarrete a completa imprestabilidade da coisa;
Uma coisa danifica-se quando, sem perder totalmente a sua integridade, sofre um estrago substancial com a consequente diminuição do seu valor económico ou da sua utilidade específica;
desfigurar consiste em ofender irremediavelmente a estética da coisa;
E, por último, tornar não utilizável é transformar uma coisa, mesmo que temporariamente, inadequada ao fim a que estava destinada, sem que perca a sua individualidade.
Da análise dos factos dados como provados resulta que o arguido com o seu comportamento estragou o carro do ofendido.
Isto porque resultou provado que o arguido forçou a fechadura da porta do locado de forma a entrar no mesmo, inutilizando-a.
Ou seja, em concreto verifica-se que estão preenchidos os elementos objectivos deste tipo de crime, ou seja, o arguido causou estragos numa coisa pertencente a outrem.
Resta, agora, analisar o preenchimento ou não do elemento subjectivo do tipo legal em causa.
O dano é um crime doloso, pelo que tem que ser praticado numa das modalidades de dolo previstas no art. 14° do C.P., sendo por isso necessário que o agente represente que a sua acção sacrifica coisa alheia.
Daqui resulta que o elemento subjectivo deste tipo de crime também se encontra preenchido.
Isto porque face à prova produzida resultou que o arguido agiu com dolo directo.
Pelo que entende o Tribunal que também está preenchido o elemento subjectivo deste ilícito devendo o arguido ser condenado pela prática de um crime de dano.

3.2. Crime de Violação de Domicilio

Dispõe o art. 190°, n°s 1 do Código Penal, que:
«1 - Quem, sem consentimento, se introduzir na habitação de outra pessoa ou nela permanecer depois de intimado a retirar-se é punido com pena de prisão até um ano ou com pena de multa até 240 dias.»
O bem jurídico protegido pela norma ora em análise é a privacidade/intimidade, visando a salvaguarda de uma área de reserva pessoal delimitada: a habitação.
Assim, o objecto da acção é a habitação, entendida como espaço fisicamente fechado e efectivamente reservado ao alojamento de uma ou várias pessoas, não se esgotando na casa, podendo integrar a noção de habitação um quarto de hotel, um quarto arrendado, uma tenda de campismo, uma caravana, uma roulotte ou mesmos um barco ou um automóvel nos quais se alojem pessoas.
A acção típica compreende duas modalidades de conduta:
i) a entrada sem consentimento - pressupondo a entrada física ou corporal do agente na habitação, embora não necessariamente a entrada total, sem o consentimento (e não apenas, mais restritamente, contra a vontade) daquele a quem assiste o dominio e a disposição daquele espaço;
ii) a permanência depois de ser intimado a retirar-se - pressupondo uma introdução e permanência em princípio lícitas, que se tornam ilícitas a partir da intimação a retirar-se, que tendo que resultar concludente, não tem de ser necessariamente expressa ou sequer provir do portador concreto do bem jurídico.

Devem aqui tratar-se como habitação todas as divisões pertinentes a uma casa de habitação, como o sejam, por ex., o hall, corredores, casas de banho, casas de máquinas e outras, assim como os espaços fechados a ela associados e nela fisicamente integrados, como o sejam, por ex., garagens, ginásios, saunas.
A concordância do portador do bem jurídico afasta a responsabilidade do agente a título de violação de domicílio, em qual das duas modalidades supra referidas.
Conforme salienta Manuel de Andrade, "Há casos em que a habitação pertence em comum a várias pessoas (v.g. cônjuges, membros da mesma família, dois estudantes que partilham o mesmo quarto, etc). O princípio é aqui a igualdade tanto no plano interno como externo: o consentimento de qualquer um dos titulares será bastante para - só por si mesmo com a oposição de outro ou outros - legitimar a entrada de terceiro.", acrescentando que "Só assim não será quando não seja exigível impor aos demais co-titulares do direito que suportem a entrada ou permanência de terceiro", citando como exemplo o caso de um cônjuge, contra a vontade do outro, impor a entrada no domicílio do amante, e salientando que só deverá considerar-se preenchida a factualidade típica se a oposição à entrada de terceiro (por parte do co-titular do direito) for expressa e exteriormente reconhecível, não bastando a mera falta de consentimento (Cfr. o autor cit. in Comentário Conimbricense do Código Penal, Coimbra Editora, 1999, Tomo I, p. 705).
No que ao tipo subjectivo concerne, estamos perante um tipo de ilícito doloso, bastando-se o seu preenchimento com o dolo eventual e reclamando na primeira modalidade o conhecimento pelo agente de que se está a agir sem consentimento e na segunda modalidade o conhecimento da intimação para se retirar.
Ora, face à matéria de facto dada como provada dúvidas não existem em como resultou demostrado que o arguido praticou os factos que integram este tipo de crime.
Se não vejamos:
Resultou provado que o arguido, sem o consentimento da ofendida se introduziu, e passou a residir, no período de 15 meses, no interior da fracção propriedade daquela.
Daqui resulta estarem preenchidos os elementos objectivos deste tipo de crime.
No entanto também resultou provado que o arguido agiu, com o propósito concretizado de se introduzir no interior da referida habitação, bem sabendo que se tratava de propriedade e domicílio da lesada, bem sabendo que a sua conduta era proibida e punida por lei penal.
Logo daqui resulta que o elemento subjectivo também se encontra preenchido.
Pelo exposto deve o arguido ser condenado pela prática do crime de violação de domicílio por que vinha acusado.

IV - Medida Concreta Da Pena:

Importa agora proceder ã escolha da pena e ã determinação da sua medida concreta, tendo em vista a moldura penal abstracta aplicável:
- ao crime de dano, pena de prisão até três anos ou pena de multa até 360 dias;
- ao crime de violação de domicilio pena de prisão até um ano ou pena de multa até 240 dias.
Rege quanto a esta matéria o art. 40° n.os 1 e 2 do C.P., que estabelece que a aplicação de penas visa a protecção de bens jurídicos e a reintegração social do agente, e que em caso algum pode ultrapassar a medida da culpa. Acrescentando o art. 71° n.° 1, do citado diploma legal, que «a determinação da medida da pena, dentro dos limites definidos na lei, é feita em função da culpa do agente e das exigências de prevenção».
No fundo, a medida da pena há-de ser dada pela medida da necessidade de tutela dos bens jurídicos face ao caso concreto (prevenção geral), bem como pela reintegração do agente na sociedade (prevenção especial), mas não podendo nunca ultrapassar o limite da culpa.
Segundo o Prof. Figueiredo Dias toda a pena serve finalidades exclusivas de prevenção, geral e especial. Sendo a pena concreta limitada, no seu máximo inultrapassável, pela medida da culpa. E dentro desse limite máximo ela é determinada no interior de uma moldura de prevenção geral de integração, cujo limite superior é oferecido pelo ponto óptimo de tutela dos bens jurídicos e cujo limite inferior é constituído pelas exigências mínimas de defesa do ordenamento jurídico. Por sua vez, dentro desta moldura de prevenção geral de integração a medida da pena é encontrada em função de exigências de prevenção especial, em regra positiva ou de socialização, excepcionalmente negativa ou de intimidação ou seguranças individuais (Figueiredo Dias - Temas Básicos da Doutrina Penal, Coimbra Editora, pag.l 10).
Para além disso, nos termos do art. 70° do CP. se ao crime forem aplicáveis, em alternativa, pena privativa de liberdade e não privativa de liberdade, o tribunal dá preferência à segunda sempre que esta realizar de forma adequada e suficiente as finalidades da punição.
Assim, para a escolha e determinação da medida concreta da pena, há que tomar em consideração todas as circunstâncias que, não fazendo parte do tipo de crime, deponham a favor ou contra o agente, as necessidades de prevenção e o grau de culpa do mesmo.
Assim, há que ponderar no caso concreto:
- A ilicitude dos factos atendendo às circunstâncias em que os mesmos ocorreram;
- O modo de execução dos factos;
- A gravidade das suas consequências;
- A intensidade do dolo;
- A conduta anterior e posterior aos factos: o arguido não tem antecedentes criminais de idêntica natureza;
- As exigências de prevenção geral que determinam a imposição de medidas que tenham em vista dissuadir a prática deste tipo de infracções que, pela sua gravidade, põem em perigo a propriedade das pessoas.
Atendendo aos factos no seu conjunto e à personalidade do agente há que concluir que a pena de multa ainda se mostra adequada e suficiente para a realização das finalidades da punição, isto é, para a protecção de bens jurídicos e a reintegração do agente na sociedade.
Assim em relação ao crime de dano, tendo em conta as circunstâncias supra referidas, bem como as exigências de prevenção quanto à prática de futuros crimes, o Tribunal considera adequado fixar a pena de 90 dias de multa.
Quanto ao crime de violação de domicílio o Tribunal considera adequada a pena de 240 dias de multa.
Efectuado o cúmulo jurídico o tribunal considera adequado aplicar ao arguido a pena única de 280 dias de multa, à taxa diária de €5, no total de €1.400, a que correspondem subsidiariamente 186 dias de prisão.

V - Do Pedido De Indemnização Civil Deduzido Pelo Demandante:
O demandante Instituto da Habitação e Reabilitação Urbana, LP deduziu pedido de indemnização civil contra o arguido, pedindo a condenação desta no pagamento de uma indemnização no montante de €6157,50, destinada a ressarcir os danos patrimoniais.
Nos termos do disposto no n° 1, do artigo 483°, do Código Civil, aquele que, com dolo ou mera culpa, violar ilicitamente o direito de outrem ou qualquer disposição legal destinada a proteger interesses alheios, fica obrigado a indemnizar o lesado pelos danos resultantes da violação.
São vários os pressupostos da responsabilidade civil por actos ilícitos, como se extrai do artigo 483°, n°l do Código Civil: a) o facto do agente ("um facto dominável ou controlável pela vontade, um comportamento ou uma forma da conduta humana"- Prof. A. Varela, "Das Obrigações em Geral", vol. I, pág 447, 4a ed.)- que pode traduzir-se numa acção ou omissão; b) a ilicitude (ou antijuridicidade) que pode revestir a modalidade de violação de direito alheio (direito subjectivo) e a violação de uma disposição legal destinada a proteger interesses alheios; c) o nexo de imputação do facto ao lesante ou culpa do agente, em sentido amplo, o que significa que a sua conduta merece a reprovação ou censura do direito e que pode revestir a forma de dolo ou negligência; d) o dano ou prejuízo; e) o nexo de causalidade entre o facto praticado pelo agente e o dano sofrido pela vítima.
Ensina Gomes da Silva (O dever de prestar e o dever de indemnizar, I, pág. 245] «... Elementos fundamentais da responsabilidade são o dano e a relação em que ele se encontra com o responsável. (...) A responsabilidade é, por conseguinte, obrigação nascida de um prejuízo e têm por objecto a reparação deste. O intuito com que a lei o estabelece não é o de intimar os indivíduos nem o de reprimir os factos ilícitos: é apenas o de satisfazer a justiça comutativa, reparando danos causados. O prejuízo, por conseguinte, é o fulcro de toda a responsabilidade».
Segundo o art. 562° do CC "quem estiver obrigado a reparar um dano deve reconstituir a situação que existiria, se não se tivesse verificado o evento que obriga à reparação.
Existindo obrigação de indemnização apenas em relação aos danos que o lesado provavelmente não teria sofrido se não fosse a lesão (art. 563° do CC).
Sendo abrangido na obrigação de indemnização quer os danos emergentes, quer os lucros cessantes (art. 564° n.°l do CC).
Sendo considerados danos emergentes as despesas necessárias, normais e razoáveis que o demandado teve por causa da lesão.
Já os lucros cessantes compreendem os benefícios que o lesado com probabilidade, teria obtido se não tivesse sofrido a lesão.
Para a determinação exacta da indemnização devida aplicam-se as teorias da causalidade adequada e da diferença.
A obrigação de indemnizar cobre por isso os danos previsíveis que nas condições concretas da causa, segundo as circunstâncias reconhecíveis à data do ilícito, dele resultem, salvo aqueles em relação aos quais o ilícito se possa considerar de todo indiferente.
Da análise da matéria fáctica assente resulta que não estão preenchidos todos os referidos pressupostos.
Isto porque não obstante a existência de factos ilícitos praticados pelo arguido, a verdade é que a demandante não conseguiu provar a existência de um prejuízo efectivo decorrente dos mesmos.
Ou seja tendo em conta o modo como o pedido foi formulado, ao não provar que o Instituto da Habitação e Reabilitação Urbana, I.P. tivesse seleccionado uma família para habitar a fracção descrita em 2.1.1. de Fevereiro de 2014 a Maio de 2015, não resulta demonstrado a existência de um prejuízo de €6.157,50 devido à conduta do arguido.
Logo deve o demandado ser absolvido do pedido de indemnização cível contra si deduzido.”

3.
Não se pode dizer que se entenda na sua totalidade a posição do MºPº na 1ª instância.
Desconhece-se se ela é no sentido de dever ser julgado procedente ou improcedente o recurso já que se refere, por um lado, que se concorda com a definição dada pelo recorrente ao conceito de habitação e consequentemente de violação de domicílio e por outro que se discorda da alegada existência de um vício quanto à questão de saber se a propósito da alteração da qualificação jurídica foi dado, ou não, cumprimento ao procedimento legal com a comunicação feita pelo tribunal, que se entenderá, se bem percebemos a resposta ao recurso, ter sido regularmente efectuada.
Porém, se bem entendemos igualmente a posição do MºPº, este considera que nesta parte assiste razão ao recorrente pois que, como vem sendo entendido doutrinária e jurisprudencialmente, sem excepções conhecidas, o tipo legal Violação de domicílio tem por elemento objectivo a habitação, entendida como "(...) espaço fisicamente fechado  (de forma estereotipada: quatro paredes e um telhado) efectivamente reservadas ao alojamento (permanência, descanso, convívio, alimentação, pernoita) de uma ou várias pessoas, nomeadamente de uma família.
Como tal, a primeira questão a apreciar será a de saber se, perante os factos provados – que como resulta da decisão e é por todos aceite não envolveram qualquer alteração ou redução já que se consideraram provados todos os factos da acusação e sem que tal realidade tivesse sido objecto de impugnação – se mostra preenchido o crime que o tribunal qualifica ou como sendo de violação do domicílio p.p. pelo art.º 190º C.P se os mesmos se enquadram no tipo legal imputado na acusação.
Perante esta definição é que se justificará, de seguida, apreciar da necessidade e possibilidade de alteração da respectiva qualificação jurídica.
Como refere o MºPº e nesta parte acompanhamos a sua posição: “Ponderando o que vem de ser descrito entende o Ministério Publico que assiste razão nesta parte ao recorrente pois que, como vem sendo entendido doutrinária e jurisprudencialmente, sem excepções conhecidas, o tipo legal Violação de domicílio tem por elemento objectivo a habitação, entendida como "(...) espaço fisicamente fechado  (de forma estereotipada: quatro paredes e um telhado) efectivamente reservadas ao alojamento (permanência, descanso, convívio, alimentação, pernoita) de uma ou várias pessoas, nomeadamente de uma família.
Nesse sentido a anotação feita ao art°190° do Código Penal, in Comentário Conimbricense do Código Penal, Parte Especial, Tomo I, págs. 702 e 703.
E mais adiante "Não serão habitação as casas fechadas e vazias, v.g. as casas em construção ou acabadas de construir mas ainda não efectivamente ocupadas. A sua violação poderá realizar o ilícito típico do artº191° mas não preencherá a factualidade típica do art°190°."

Concorda-se com esta interpretação do MºP de que o elemento habitação é, não o espaço potencialmente destinado a ser habitado (como terá entendido a MmaJuiz a quo), mas como aquele que se encontra efectivamente a ser habitado, vivido enquanto espaço de "permanência, descanso, convívio, alimentação, pernoita", que o legislador entendeu proteger por via da sujeição a pena abstractamente aplicável de prisão até um ano ou pena de multa até 240 dias, enquanto que o ilícito previsto no art°191° do Código Penal, que tutela a inviolabilidade de espaços propriedade de outrem, se mostra punível apenas com prisão até 3 meses ou pena de multa até 60 dias.”
Como pode ler-se no acórdão da relação de Évora de 17/03/2015 no processo n.º 880/12.7 TALLE.E1:
“ (…)

O crime de violação de domicílio mostra-se contemplado no art.º 190.º, n.º 1, do Código Penal, onde se diz que quem, sem consentimento, se introduzir na habitação de outra pessoa ou nela permanecer depois de intimado a retirar-se é punido com pena de prisão até um ano ou com pena de multa até 240 dias.
Na lição do Prof.º Costa Andrade, o bem jurídico protegido é a privacidade/intimidade. Que só é protegida face a agressões qualificadas pela exigência de violação de uma esfera pessoal espacialmente limitada e fisicamente assegurada: a habitação.

Analisando-se o bem jurídico numa dupla dimensão:
- Uma dimensão formal (a ultrapassagem de um espaço fisicamente assegurado e hoc sensu a violação da posição de domínio que confere ao portador concreto o direito de admitir e excluir);

- Uma dimensão material, correspondente aos valores ou interesses pertinentes à privacidade/intimidade.
Para Nelson Hungria, citado por Simas Santos e Leal Henriques, o que se protege com esta incriminação ” não é o domicílio civil, isto é, o lugar de residência com ânimo definitivo, o centro de ocupações habituais ou o ponto central de negócios…, mas a casa de moradia, o home, o chez soi, a habitação particular, o local reservado à vida íntima do individuo ou à sua actividade privada, seja ou não coincidente com o domicílio civil. É o mesmo domicílio cuja inviolabilidade a nossa constituição assegura… O direito penal, aqui, é sancionador do direito constitucional e não do direito privado. Tutelando a casa de habitação, está a lei penal defendendo um dos redutos da liberdade individual.
O Tribunal Constitucional tem arredado integrar no conceito de domicílio, para efeitos do disposto no art.º 34.º, n.º 1, da C.R.P., o conceito técnico de domicílio, como este vem definido no Código Civil, v.g., art.º 80.º, por ser demasiado restrito, tendo em vista o sentido e a função da tutela constitucional. Daí que nesse conceito se venha abarcar qualquer local de habitação, seja ela principal, secundária, ocasional, em edifício ou em instalações móveis.
E dimensionando e moldando o domicílio a partir da observância do respeito pela dignidade da pessoa humana, na sua vertente de reserva da intimidade da vida familiar – como tal conjugado com o disposto no n.º 1 do artigo 26.º da CR – assim acautelando um núcleo íntimo onde ninguém deverá penetrar sem consentimento do próprio titular do direito.
Entendendo-se que o bem protegido com a inviolabilidade do domicílio e o étimo de valor que lhe vai associado têm a ver com a subtracção aos olhares e ao acesso dos outros da esfera espacial onde se desenrola a vivência doméstica e familiar da pessoa, onde ela, no recato de um espaço vedado a estranhos, pode exprimir livremente o seu mais autêntico modo de ser e de agir.
Daí que a protecção legal recaia sobre a liberdade individual no âmbito habitacional e não sobre a posse ou a propriedade do habitáculo em si .
Face ao conceito alargado de domicílio aí se deve incluir qualquer construção utilizada, permanente ou transitoriamente, para moradia individual ou familiar, e também os espaços fechados integrados fisicamente na morada, como sejam as garagens e os anexos, mas já não os pátios, os jardins ou similares desde que não fechados e portanto não integrados na construção em si que serve de habitação.
O crime em apreço nestes autos prende-se com a primeira parte do n.º 1, do art.º 190.º, do Cód. Pen., introdução na habitação de outra pessoa sem consentimento.
O que cabe decidir é quem é o portador do bem jurídico, no dizer
do Professor Costa Andrade, no caso vertente.
Como ensina este Insigne Professor, o portador do bem jurídico tutelado pelo crime de violação de domicílio é aquele a que assiste o domínio e a disposição sobre o espaço da habitação, seja qual for o seu fundamento jurídico (…). Decisivo é apenas que aquela posição tenha sido adquirida de forma conforme ao direito.
O que se entende, porquanto o domicílio tem de ser visto como uma projecção espacial da pessoa que reside em certa habitação, uma forma de uma pessoa afirmar a sua dignidade humana, e só a ela, pois, assistir o domínio e a disposição sobre o espaço da habitação.”

Ora, a casa dos autos, tal como definida na acusação e na sentença proferida, já que não sofreu qualquer alteração o descritivo factual daquela, não integra o conceito de habitação previsto no art.º 190º CP e que haverá de ser definido como local fechado e reservado ao alojamento de pessoas.
Mas, segundo entendemos, não se verifica o preenchimento deste conceito de habitação, apenas se a casa ou fracção em questão tem a potencialidade de vir a ser destinada a habitação mas sim se é de facto e em concreto o espaço onde alguém tem instalada a sua habitação ou local onde fixou a sua residência, entendida esta como local onde, sozinho ou acompanhado do seu agregado familiar, mora, tem os seus pertences, descansa, recebe família e amigos, descansa e onde se abriga, se alimenta e pernoita, com carácter de permanência, onde tem a sua residência, em suma, o local onde constituiu o núcleo da sua vida pessoal e familiar.
No dizer de Rudolph, citado no Comentário Conimbricense do Código Penal o que aqui está em causa é a “tutela formalizada de uma esfera privada ou de segreto, eminentemente pessoal e espacialmente limitada”.
O bem jurídico protegido é a privacidade /intimidade do sujeito ou sujeitos que aí habitam, incluindo a paz e o sossego que estão envolvidos nesse conceito.

Estando a fracção em causa devoluta, quando se verificou a prática dos factos, não se pode concluir que tenha sido violado o bem ou valor jurídico tutelado pela norma.
Não basta que a mesma se destine a futura habitação de algum agregado familiar. Para que exista este crime, necessário é que se mostre perturbado o direito à intimidade, privacidade, sossego de alguma pessoa ou agregado familiar em concreto e que, pela actuação do agente, tenham visto perturbado o respeito e a o carácter inviolável do seu domicílio, consagrado como é o direito de cada pessoa ao sossego, privacidade, resguardo e recato da casa onde mora.

Como tal, não deveria o tribunal a quo ter procedido a qualquer alteração dos factos para efeitos de os enquadrar no tipo legal de crime p.p. pelo art.º 190º n.º 1 C.P. mas antes ter mantido o enquadramento legal resultante da acusação, pois que os factos provados integram a prática pelo arguido desse crime, ou seja de um crime de introdução em lugar vedado ao público, p. e p. pelo art. 191° do Código Penal.

Resulta da factualidade apurada que :

1. O imóvel sito na Rua do Cerrado do Zambujeiro, lote 2/n" 17, 3o dto, Amadora é pertença do Instituto da Habitação e Reabilitação Urbana, LP.
2. Até  Fevereiro de 2014, tal  fracção encontrava-se devoluta  e  entaipada  com uma parede de tijolo, construída  à  frente da porta de entrada, que se encontrava fechada à chave, uma vez que decorria ainda o processo de selecção do agregado familiar que ali iria residir.
3. Contudo, o arguido, em Fevereiro de 2014 decidiu ocupar a fracção supra referida, passando ali a morar com a sua mulher e filho.
4. Para  o  efeito, o arguido, de forma não concretamente apurada,  partiu a parede de tijolo e após, partiu a fechadura da porta de entrada, para lograr aceder ao interior da habitação.
5. Em consequência de tal conduta, a fechadura da porta de entrada da habitação ficou inutilizada, sendo o valor de tal estrago não concretamente apurado.
6. De seguida, o arguido permaneceu em tal residência até dia não concretamente apurado de Maio de 2015.
7. O arguido ao partir a parede de tijolo e a fechadura da porta da referida habitação, bem sabia que tal conduta era apta a provocar os estragos mencionados, por tal propósito se tendo determinado e bem sabendo que tal porta não lhe pertencia e que actuava contra a vontade do respectivo dono.
8. O arguido agiu ainda bem sabendo, ao aceder a tal espaço, que se encontrava vedado e não livremente acessível ao público, o fazia sem o consentimento da ofendida e fê-lo com o propósito de invadir e permanecer naquele espaço.
9. O arguido agiu sempre livre, voluntária e conscientemente, bem sabendo que tais condutas eram proibidas e punidas por lei penal.

Mostram-se, pois, preenchidos os elementos típicos constitutivos do crime de introdução em lugar vedado ao público p.p. pelo art.º 191º C.P. que tutela não a inviolabilidade o domicílio mas os demais espaços reservados e não livremente acessíveis ao público.
Para isso, o arguido teve de ultrapassar os obstáculos colocados e destinados a prevenir a livre entrada e a garantir a inviolabilidade desse espaço.

Nenhuma questão se coloca ao nível da necessidade eventual de qualquer comunicação relativa à alteração da qualificação jurídica dos factos, posto que, por um lado, o objecto do recurso visa a absolvição do crime de violação de domicílio e a violação dos princípios gerais do processo penal atenta a condenação por incriminação diversa da acusação, e, por outro lado, toda a defesa do arguido foi dirigida à acusação proferida pelo crime de introdução em lugar vedado ao público, já que, apenas no final da produção da prova, se procedeu à comunicação a que alude o art.º 358º, n.º3 CPP, não constituindo qualquer surpresa para a defesa ou qualquer violação de princípios fundamentais, a actual condenação em crime pelo qual o arguido fora acusado.

O crime em causa é punido com pena de prisão até 3 meses ou com multa até 60 dias.

O tribunal, para fixação da medida concreta da pena, atendeu aos seguintes factores:
(…)
“- A ilicitude dos factos, atendendo às circunstâncias em que os mesmos ocorreram;
- O modo de execução dos factos;
- A gravidade das suas consequências;
- A intensidade do dolo;
- A conduta anterior e posterior aos factos: o arguido não tem antecedentes criminais de idêntica natureza;
- As exigências de prevenção geral que determinam a imposição de medidas que tenham em vista dissuadir a prática deste tipo de infracções que, pela sua gravidade, põem em perigo a propriedade das pessoas.
Atendendo aos factos no seu conjunto e à personalidade do agente há que concluir que a pena de multa ainda se mostra adequada e suficiente para a realização das finalidades da punição, isto é, para a protecção de bens jurídicos e a reintegração do agente na sociedade.
Assim em relação ao crime de dano, tendo em conta as circunstâncias supra referidas, bem como as exigências de prevenção quanto à prática de futuros crimes, o Tribunal considera adequado fixar a pena de 90 dias de multa.”

Quanto ao crime de introdução em lugar vedado ao público e, usando estes mesmos critérios, não impugnados pelo recorrente, considera-se adequada a pena de 60 dias de multa.
Este crime está em situação de concurso de crimes com os factos integradores do crime de dano, nos termos do art.º 77º do C.P.
Em cúmulo jurídico desta pena e daquela em que foi condenado pelo crime de dano, o tribunal considera adequado aplicar ao arguido a pena unitária de 120 dias de multa, à taxa diária de €5, no total de € 600, a que correspondem subsidiariamente 80 dias de prisão.

4.
Pelo exposto, acordam os juízes em conceder provimento parcial ao recurso, absolvendo o arguido B. da prática do crime de violação de domicilio, previsto e punido pelo artigo 190°, n.° 1 do Código Penal por que fora condenado mas em condená-lo pelo crime de introdução em lugar vedado ao público, p. e p. pelo art. 191° do Código Penal, na pena de 60 dias de prisão, com 40 dias de prisão subsidiária e, em cúmulo jurídico desta pena com a de 90 dias em que foi condenado pelo crime de dano, p.p. pelo artigo 212°, n.° 1 do Código Penal,  na pena unitária de 120 dias de multa a que correspondem 80 dias de prisão subsidiária, nos termos dos art.ºs 77º C.P e 49º C.P.
Sem custas.

15-5-2018

Margarida Bacelar

Agostinho Torres