Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
216/13.0TCFUN.L2-2
Relator: ANTÓNIO MOREIRA
Descritores: INTERMEDIÁRIO FINANCEIRO
RESPONSABILIDADE
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 11/24/2022
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Texto Parcial: N
Meio Processual: RECURSO DE APELAÇÃO
Decisão: PARCIALMENTE PROCEDENTE
Sumário: 1. Inserindo-se a ordem de transferência de determinados valores mobiliários para a conta de um terceiro no serviço de gestão de carteira de instrumentos financeiros, é de natureza extracontratual a responsabilidade do intermediário financeiro pelos danos sofridos pelo beneficiário da transferência, em consequência da não execução daquela ordem.
2. Tal actuação do intermediário financeiro só é geradora da responsabilidade em questão na medida em que se verifique a violação de normas destinadas à protecção dos interesses inerentes à organização e ao exercício da actividade daquele.
3. A abertura de um procedimento interno pelo intermediário financeiro, tendo em vista obter autorização superior para isenção da comissão devida pela transferência, em vez da execução imediata da transferência, corresponde a uma actuação conforme à protecção dos interesses do seu cliente ordenante da transferência, na medida em que só assim tornava possível a realização da mesma sem dedução do valor da comissão aos valores mobiliários a transferir, pelo que não representa qualquer actuação ilícita, para os efeitos do disposto no nº 1 do art.º 304º-A do Código dos Valores Mobiliários
4. Se no decurso desse procedimento interno o ordenante revoga a ordem de transferência, deve o intermediário financeiro deixar de executar a transferência, sem que isso represente qualquer actuação ilícita da sua parte, para os efeitos do disposto no nº 1 do art.º 304º-A do Código dos Valores Mobiliários.
5. A informação prestada pelo intermediário financeiro ao beneficiário da transferência, de que a mesma não foi executada devido a instruções do ordenante, tem‑se por completa e respeitadora dos ditames da boa fé, na medida em que o dever de segredo a que o intermediário financeiro está sujeito o impedia de fornecer elementos adicionais relativos às circunstâncias que ditaram a não realização imediata da transferência.
(Sumário elaborado ao abrigo do disposto no art.º 663º, nº 7, do Código de Processo Civil)
Decisão Texto Parcial:
Decisão Texto Integral: Acordam no Tribunal da Relação de Lisboa os juízes abaixo assinados:

MS demandou JP (1º R.) e B., S.A. (entretanto substituído por Banco S., 2º R.), pedindo a condenação solidária dos RR. no pagamento da quantia de USD 380.000,00, acrescida de juros de mora vencidos e vincendos, e no pagamento da quantia de € 30.000,00, e mais pedindo a condenação do 2º R. a desbloquear a conta bancária da sua titularidade e a restituir-lhe a quantia de € 689,00, acrescida de juros de mora vencidos e vincendos.
Alega para tanto, e em síntese, que:
- Adquiriu ao 1º R. unidades de participação no valor global de USD 380.000,00, que o mesmo detinha em fundos de investimento comercializados pelo 2º R., e que se encontravam associadas à conta de depósitos à ordem da titularidade do 1º R., aberta numa sucursal do 2º R. onde o A. também era titular de uma conta de depósitos à ordem;
- Entregou ao 1º R. o preço acordado e este comprometeu-se a ordenar junto do 2º R., no mais breve prazo, a transferência dos títulos em questão, da conta do 1º R. para a conta do A.;
- Apenas aceitou celebrar tal negócio com o 1º R. no pressuposto de que a apresentação de tal ordem de transferência seria condição necessária e suficiente para que pudesse passar a dispor, de imediato, das unidades de participação em causa, tendo previamente o 2º R. confirmado que bastaria uma instrução escrita do 1º R. para que tal transferência fosse concretizada, por ser esse o procedimento normalmente seguido com o 1º R.;
- Tal instrução escrita e assinada pelo 1º R. foi apresentada em 5/5/2010 ao 2º R., tendo sido imediatamente aceite pelo mesmo, que se comprometeu a executá-la nos seus precisos termos;
- Sucede que o 2º R. não executou a ordem de transferência em questão, tendo entretanto o A. apurado que o 1º R. apresentou em 1/6/2010 uma ordem de transferência de parte dos títulos em questão para uma outra conta de depósitos à ordem, da contitularidade do mesmo e do seu pai;
- Tal ordem de transferência foi classificada pelo 2º R. como urgente e foi recepcionada enquanto ainda se encontrava pendente a ordem de transferência para a conta da titularidade do A., pelo que o 1º R. não dispunha de fundos suficientes para a execução da segunda operação, o que foi reconhecido por funcionários da sucursal do 2º R., tendo em consequência ficado sem efeito essa segunda ordem;
- No entanto o 2º R. não chegou a executar a transferência de títulos inicial, tendo ainda bloqueado a conta de depósitos à ordem do A. em 9/6/2010, quando aí se encontrava depositada a quantia de € 689,00, que o A. não consegue movimentar;
- A recusa do 2º R. em cumprir a ordem de transferência que tinha como beneficiário o A. foi motivada por interesses particulares dos RR., já que pretenderam acautelar o pagamento de outros compromissos que o 1º R. tinha para com outros clientes do 2º R.;
- Em 18/8/2010 o 1º R. apresentou nova ordem de transferência dos mesmos títulos, para a conta da contitularidade do mesmo e do pai do 1º R., tendo o 2º R. executado imediatamente tal ordem, retirando os títulos da conta do 1º R. e não acautelando a posição do A. nem lhe tendo dado qualquer explicação adicional.
Os RR. foram citados e apresentaram contestações separadas, onde se defenderam por excepção e por impugnação, concluindo em ambas pela improcedência da acção, com a sua absolvição do pedido.
O A. apresentou réplica, aí concluindo pela improcedência das excepções invocadas.
Foi cumprido o disposto no art.º 5º, nº 4, da Lei 41/2013, de 26/7, tendo as partes apresentado os seus requerimentos probatórios.
Com dispensa de audiência prévia foi proferido despacho saneador, identificado o objecto do litígio, indicados os factos admitidos por acordo ou provados por documentos e enunciados os temas da prova, sem reclamações.
Teve lugar a audiência final, após o que foi proferida sentença, aí sendo a acção julgada improcedente, com a absolvição dos RR. do pedido.
O A. recorre desta sentença, terminando a sua alegação com as seguintes conclusões, que aqui se reproduzem:
1. Não se conforma o A. com a decisão proferida nos autos, entendendo que a mesma não faz uma correcta apreciação dos factos, incluindo uma errónea aplicação e interpretação do direito aplicável.
2. O A. tem consciência que parte da factologia por si alegada – a ocorrida em solo venezuelano – está longe de corresponder aos parâmetros considerados normais e aceitáveis numa sociedade civilizada, como aquela que felizmente ainda vivemos em território nacional.
3. Acontece que em Caracas, na Venezuela, a “lei do mais forte” é, infelizmente, a que mais ordena.
4. O A. relatou nos autos o facto de, em sequência da acção judicial que moveu contra os RR., ter sofrido represálias, sobretudo por pessoas que trabalhavam na representação da 2ªR B. em solo Venezuelano.
5. A alegada “desistência do pedido” pelo A., junta pelo R B., é bastante elucidativa da pressão a que o A foi sujeito, mesmo na pendência do processo.
6. Não se tratando de facto com relação directa com a matéria em recurso, certo é que ilustra o ambiente de terror a que o A. foi sujeito pelos funcionários do B. na representação de Caracas; facto este que constitui facto instrumental para melhor compreensão e apreciação dos factos essenciais carreados pelo A. para o processo.
7. Assim, a 8 de Maio de 2013, a Ré B. fez juntar aos autos um requerimento em representação do Autor, através do qual procedia à alegada revogação das procurações outorgadas pelo mesmo e do mandato forense estabelecido, bem como uma desistência do pedido.
8. O mandatário do A. manifestou nos autos expressa oposição ao requerido, tendo explicado ao Tribunal que este último foi coagido a assinar tais documentos, levado que foi sob ameaça (presença de “capangas” com armas de fogo) de funcionários da sucursal de Caracas ao Consulado de Portugal, a fim de subscrever os documentos de revogação.
9. A Meritíssima Juiz a quo adoptou a decisão mais acertada e procedeu à audição pessoal do Autor, o qual deslocou-se presencialmente ao Ilustre Tribunal a quo, tendo para o efeito viajado propositadamente da Venezuela, a fim de manifestar a intenção de manter o mandato forense e a procedência dos autos.
10. A Meritíssima Juiz “a quo”, convencida da veracidade do declarado pelo A., decidiu que os autos se deveriam manter, afastando expressamente os efeitos da desistência e revogação de procurações que o B. juntara.
11. É, pois, relativamente a parte da decisão sobre a matéria de facto – porquanto muitos dos factos nos quais o A. assenta a sua causa de pedir foram dados como Provados -, bem como a incorrecta aplicação do direito, que o Recorrente através do presente Recurso impugna.
12. Apenas 1 (um) feixe de factos está na génese da decisão desconforme à pretensão do A. – a celebração do contrato de alienação de valores mobiliários celebrado entre A. e 1º R e a celebração de contrato entre A. e R B. – os quais, tendo em conta a consistente prova testemunhal e documental sempre deveriam ter sido dados como provados.
13. No entendimento do Ilustre Tribunal a quo (fls. 23 da douta sentença recorrida): “da factualidade provada não resultam quaisquer factos susceptíveis consubstanciar a celebração pelo autor de determinado negócio ou contrato, nomeadamente com o réu JP, capazes de fundamentar o peticionado contra o mesmo. Assim sendo, não poderá deixar, desde logo, de improceder o pedido formulado contra o réu JP (sublinhado nosso).
14. Ora, não concorda o Autor com este entendimento perfilhado pela Meritíssima Juiz a quo. Desde logo, consta da matéria dada como provada sob nºs 3, 6 a 10, 16 a 18 e 22, elementos suficientes que permitem aferir pela celebração de um contrato e/ou negócio entre o A. e o 1.º Réu.
15. Desde logo, e tomando em consideração a matéria de facto dada como provada nos pontos 3 e 6 da douta sentença ora recorrida, resulta evidente que a 5 de Maio de 2010 foi apresentada na Ré B. uma ordem de transferência escrita e assinada presencialmente pelo Réu JP, na qual ordenava a transferência imediata dos títulos já referidos no valor total de 380.000,00 USD, para a conta bancária titulada pelo A.
16. Facto este que, aliás, resultou da prova documental junta aos presentes autos pelo próprio Réu, JP - aquando da apresentação do seu requerimento probatório.
17. Por outro lado, a matéria de facto dada como provada sob os n.ºs 16 a 18 (fls. 6 da douta sentença recorrida) resultou da prova documental junta aos presentes autos pela testemunha TT, a 19 de Fevereiro de 2016, bem como pela testemunha KKN, a 2 de Março de 2016.
18. E isto porque a testemunha TT refere expressamente nas comunicações trocadas com os vários funcionários da Ré B., KKN, NS. e IF., o seguinte: “Esta situação é um pouco estranha pois o cliente solicitou junto do colega KKN a transferência destes títulos a favor de outro cliente, estando esse processo pendente pelo motivo de ter sido solicitado da transferência pretendia sem cobrança de comissão. Assim face a este cenário e visto a outra instrução ter entrado primeiro aguardo confirmação da operação que deverá ser efectivamente executada...”; “Boa tarde, Junto envio a instrução assinada pelo cliente a qual terá prioridade de execução pois foi a 1.ª a entrar”; “Bom dia queiram dar sem efeito a inst 3346 entretanto estamos o cliente vai passar pelo escritório a dar novas instruções.”;
19. Resultou ainda, da prova documental junta aos autos que a ordem de transferência emitida a 5 de Maio de 2010 ainda se encontrava pendente a 1 de Junho de 2010. Isto é, quase 1 mês depois das instruções dadas.
20. Ora, tal facto foi expressamente reconhecido pelos funcionários da Ré B. Sendo certo que, a testemunha, TT, referiu expressamente que a ordem de transferência que detinha prevalência era destinada ao A. O que, evidentemente, a 2.ª Réu desconsiderou, uma vez que esta ordem de transferência não foi executada.
21. Não obstante, e tomando desde já em consideração a matéria de facto dada como provada, bem como, a prova documental junta aos presentes autos, resultavam elementos suficientes que permitam concluir pela celebração de um contrato/negócio entre o Autor e o Réu. Senão vejamos, porque que motivo foi apresentada esta ordem de transferência, a 5 de Maio de 2010, escrita e assinada presencialmente pelo 1.º Réu, a ordenar a transferência imediata dos títulos existentes no valor total de 380.00,00 USD para a conta bancária titulada pelo A.?
22. Pelo que não podia a Meritíssima Juiz a quo concluir, como concluiu, de que “da factualidade provada não resultam quaisquer factos susceptíveis consubstanciar a celebração pelo autor de determinado negócio ou contrato, nomeadamente com o réu JP, capazes de fundamentar o peticionado contra o mesmo.”
23. O que constitui erro na apreciação da prova.
24. Sendo certo que concluir dessa forma, sem fundamentar porque é que aqueles factos provados não lhe permitem concluir de forma contrária, revela manifesta contradição com a matéria que considera provada, revelando de per si um vício de raciocínio por parte do Julgador, sendo deveras patente que existe oposição entre os fundamentos e a decisão, o que constitui nulidade da sentença nos termos da al. c) nº1 do art 615º CPC.
25. Resulta ainda, cristalino, da prova testemunhal produzida em sede de audiência e julgamento, que entre o Autor e o 1.º Réu foi celebrado um contrato de alineação das seguintes unidades de participação, com base no pressuposto de que, mediante a apresentação da ordem de transferência pelo 1.º Réu, o Autor passaria a dispor das mesmas: (i) títulos relativos aos fundos de investimento Euro Invest II (refª XS0180280348), no valor de USD 200.000,00; (ii) títulos relativos aos fundos de investimento Euro Invest série 11 (refª XS0405724906), no valor de USD 180.000,00. No montante total de USD 380.000,00.
26. E que, mediante tal, o Autor, na pessoa de KKN, procedeu ao pagamento do corresponde contravalor em bolívares.
27. Neste sentido veja-se, na Sessão de 14 de Setembro de 2018, as Declarações de parte A. MS (T_ 00.48.26), bem como o depoimento prestado pela testemunha KKN, funcionário do B. à data da ocorrência dos factos e que constitui, a par das declarações de parte do A., o único depoimento produzido nos autos que relata com precisão o contrato celebrado entre A e 1º R., por ter sido por aquela testemunha presenciado em solo venezuelano (T_ 01.58.23).
28. Desde logo, se atentarmos no depoimento prestado pela testemunha, KKN, funcionário da R. B. à data dos factos, afigura-se-nos evidente que o mesmo descreveu com detalhe e rigor todas as negociações encetadas entre o Autor e o 1.º Réu. E mais, realça-se o facto de que esta testemunha interveio pessoal e directamente nestas negociações, tendo participado na entrega do contravalor correspondente em bolívares ao 1.º Réu para aquisição dos títulos já mencionados. O que, aliás, vai ao encontro do teor das declarações de parte prestadas pelo Autor. Até porque, o mesmo refere expressamente ter entregue os dois sacos de bolívares à testemunha, KKN, para que os mesmos fossem, posteriormente, entregues ao 1.º Réu a fim de o mesmo ordenar junto da 2.ª Ré a transferência dos títulos em questão.
29. Atento todo o exposto, e face ao erro notório e desvalorização da prova documental e testemunhal produzida nos presentes autos, impõe-se a alteração da matéria de facto dada como não provada em a), b) e c) (fls 8 e 9 da doutra sentença ora recorrida) devendo a matéria aí constante ser considerada provada e consequentemente carreada para os Factos Não provados.
30. Conclui ainda o Tribunal “a quo” (fls. 48 da douta sentença recorrida) que: “da factualidade provada não resulta a violação de disposição legal ou regulamentar destinada a proteger interesses relativos à organização e ao exercício da actividade de intermediação financeira. Mais concretamente, a factualidade provada não revela que a referida conduta omissiva do Banco B., se traduza numa violação de um ou de vários deveres funcionais que integram o estatuto jurídico-profissional (de índole legal, contratual ou deontológica) do intermediário financeiro, no quadro da prestação dos serviços de intermediação financeira, nomeadamente atinentes ao princípios e deveres supra enunciados.”.
31. Ora, não concorda o Autor com este entendimento perfilhado pela Meritíssima Juiz a quo. Desde logo, e conforme resulta da prova documental junta aos presentes autos, entre o Autor e a Ré B. foi celebrado um contrato de intermediação financeira, no qual constam as obrigações a que o Banco está adstrito, desde logo nas cláusulas 6.3. e 6.8.
6.3. O B. obriga-se a receber e aguardar em depósito os instrumentos financeiros que lhe forem confiados pelo CLIENTE, devendo proceder a todos os registos nos termos das normas aplicáveis a realizar as operações sobre os instrumentos financeiros ordenados pelo cliente. (....)
6.8. No cumprimento das ordens recebidas, o B. privilegiará sempre a realização e defesa dos interesses do CLIENTE e executará as ordens recebidas imediatamente e respeitando a prioridade da recepção, diligenciado sempre para que as ordens sejam executadas nas melhores condições, designadamente em termos de preço, custos, rapidez.”.
32. A execução da ordem de transferência, na medida em que consiste na movimentação de contas de depósito que documentam e concretizam a circulação de valores mobiliários, configura uma actividade (serviço) de intermediação financeira (v. arts. 289.º, n.º 1, al. a) e 290.º, n.º 1, al. b) do Cód.VM).
33. A 2.ª Ré é uma instituição de crédito autorizada a exercer actividades de intermediação financeira, nos termos do art. 293.º, n.º 1, al. a) do Cód.VM, encontrando-se sujeita aos deveres de conduta dos intermediários financeiros (m. arts. 289.º-320.º do Cód.VM). Os quais, se reconduzem, no essencial, à observância dos ditames da boa fé, de acordo com elevados padrões de diligência, lealdade e transparência, não só perante o cliente mas também perante terceiros afectados pela sua actuação (cfr. art. 304.º, n.º 2 do Cód.VM). E mais, entre o 1.º R. e a 2.ª R. existe uma relação de clientela, nos termos do art. 322.º, n.º 2, al. b) do Cód.VM, da qual deriva um feixe de direitos e obrigações para ambas as partes, em particular o dever de o intermediário aceitar as ordens do investidor (art. 326.º, n.º 4 do Cód.VM).
34. A ordem de transferência emitida a 5 de Maio de 2010 – e que aliás consta do elenco dos factos dados como provados sob o ponto 3. (fls.3 da douta sentença recorrida) - cumpria com todos os requisitos legais (v., em particular, o art. 327.º do Cód.VM). Sendo certo que, a Ré B. aceitou a referida ordem, comprometendo‑se a executá-la nos seus precisos termos, que previam a sua execução imediata.
35. Assim, tomando em consideração que, nos termos do n.º 1 do art. 330.º do Cód.VM, as ordens devem ser executadas nas condições e no momento indicados pelo ordenador e, uma vez que, à data da entrega e aceitação da mencionada ordem, a conta do 1.º R. estava provisionada com os títulos necessários à execução da operação – como aliás resulta da prova documental junta aos presentes autos pelas testemunhas, TT e KKN - não existiam motivos que obstassem à recusa da sua execução.
36. Pelo que, deveria a 2.ª R. ter operado a transmissão dos valores mobiliários em questão através de registo em conta – i.e., a débito na conta do 1.º R. e a crédito na conta do A. (cfr. art. 80.º, n.º 1 do Cód.VM).
37. Porém, a 2.ª R. não executou a ordem de transferência no prazo acordado, nunca tendo fornecido ao A. qualquer explicação.
38. De resto, no próprio processo, e ao invés das considerações teóricas alvitradas pelo Juiz “a quo” que pudessem justificar esse comportamento da 2ª R., certo é que esta se limita a dizer que não executou a ordem de transferência porque o mandante posteriormente a revogou. Contudo, tal ocorreu apenas porque a 2ª R violou a obrigação de cumprimento da primeira ordem de transferência de forma imediata, aguardando por um período de tempo superior a 1 mês por ordem contrária do mandante, aqui 1º R.
39. A 2.ª R. não ignorava que a execução imediata da ordem de transferência era um pressuposto essencial para a decisão do A. de adquirir ao 1.º R. os valores mobiliários que se encontravam associados à sua conta de depósitos à ordem.
40. Pelo que, a não execução, pela 2.ª R., da ordem transferência consubstanciou um acto de recusa injustificado e ilegal.
41. Até porque, na origem de tal recusa está uma real intenção dos RR. de pretenderem conceder preferência a ordens de execução ulteriores, emitidas pelo 1.º R., dirigidas a acautelar os interesses de outros clientes da 2.ª R., O que aliás, também se depreende do teor da comunicação endereçada a 4 de Junho de 2010, pela F. a TT – ambos funcionários da Ré B. – quando a mesma refere expressamente que: “Peço que seja efectuada com maior brevidade possível, dado que o cliente deve cumprir com várias responsabilidade que possui com outros clientes da nossa instituição, que depende da execução do resgato solicitado pelo senhor JP
42. A tudo isto se soma o facto de que estas ordens de execução ulteriores (cfr. artigos 21.º e 22.º, 37.º e 38.º da P.I.) foram emitidas em contravenção das normas Venezuelanas que regem o sector bancário, financeiro e de mercado de capitais – às quais se encontra sujeitas à actividade do escritório de representação permanente que a 2.ª R. opera em Caracas. Pelo que nunca poderiam ser aptas a produzir os seus devidos efeitos.
43. Na verdade, dispõe a Ley de Instituciones del Sector Bancario [doravante, LISB] que as únicas actividades permitidas em território Venezuelano aos representantes de instituições bancárias estrangeiras –i.e., que operem, não através de bancos ou sucursais, mas por meio de escritórios de representação, como é o caso da 2.ª R. – reconduzem-se à promoção de serviços ou de ofertas de financiamento desenvolvidos pela entidade representada em mercados estrangeiros. Sendo-lhes expressamente vedada a realização das seguintes actividades: (i) realizar operações de prestar serviços que são próprios da actividade da entidade representada; (ii) captar fundos e invertê-los, directa ou indirectamente, em território Venezuelano; (iii) oferecer valores e outros títulos estrangeiros em território Venezuelano; (iv) fazer publicidade em território Venezuelano sobre as actividades da entidade representada (apenas se permite identificar os escritórios de representação permanente).
44. Ora, é manifesto que o escritório de representação permanente em Caracas não podia receber e executar as ordens de transferência ulteriores à que o 1.º R. emitiu em benefício do A.
45. O que, por outro lado, é um indício grave de que os RR., com o adiamento da execução da ordem de transferência dos valores mobiliários dirigida ao A., pretenderam dar preferência aos seus próprios interesses, em manifesto prejuízo dos interesses do A.
46. Mais dispõe o art. 304.º-A do Cód.VM, no seu n.º 1, que “[o]s intermediários financeiros são obrigados a indemnizar os danos causados a qualquer pessoa em consequência da violação dos deveres respeitantes à organização e ao exercício da sua actividade, que lhes sejam impostos por lei ou por regulamento emanado de autoridade pública”.
47. Por outro lado, é forçoso reconhecer que a 2.ª R. violou os deveres de conduta a que se encontrava obrigada, tendo actuado com culpa grave, pois podia e devia ter agido de outro modo, em face da obrigação legal de agir em obediência a elevados padrões de diligência, lealdade e transparência (cfr. art. 304.º, n.º 2 do Cód.VM). Motivo pelo qual, sempre dever proceder o pedido formulado pelo Autor.
48. Veja-se neste sentido o teor dos depoimentos prestados na sessão de 14.09.2018, das testemunhas, KKN e TT, ambos funcionários do B. à data da ocorrência dos factos.
49. Sempre deveria o Ilustre Tribunal a quo concluir que a 2.ª Ré violou os deveres de conduta a que se encontrava adstrita. Tendo actuado com culpa grave, em face da obrigação legal de agir em obediência a elevados padrões de diligência, lealdade e transparência a que se encontrava adstrita, nos termos do artigo 304.º, n.º 2 Cód.VM). E como tal, deveria julgar como procedente o peticionado pelo Autor no ponto A) da petição inicial.
50. Mais uma vez o Tribunal “a quo” erra ao considerar como não provados os factos sob pontos e) e f) da douta sentença recorrida (fls. 9 da douta sentença recorrida), referindo-se na sentença : “O que ficou dito quanto à ausência de prova vale relativamente a qualquer intervenção ou interferência do réu banco em negociações e contratos celebrados entre o autor e o réu JP, pois que, nada na factualidade provada permite concluir por uma tal materialidade.
51. Ora, com a devida vénia, não é este o entendimento que resulta da prova testemunhal produzida nos presentes autos. (fls.24 da douta sentença recorrida) - Sessão de 6 de Julho de 2018, Depoimento de JJN T_01:55:23 funcionário do B., que participou directamente na reunião, detendo um conhecimento direito e pessoal dos factos. O que a Meritíssima Juiz a quo não logrou, novamente, valorar. O que apenas se justifica por notório erro.
52. De igual forma erra o Tribunal “a quo” ao dar como não provados os pontos m) e q) da douta sentença recorrida (fls 10 e 11 da sentença recorrida), desde logo porque não resulta qualquer prova documental nos autos que suporte o entendimento de que o R B. forneceu esclarecimentos ao A.. Resulta isso sim da prova testemunhal produzida em sede de audiência e julgamento que a Ré B. não prestou quaisquer esclarecimentos ao A.
53. Resulta provado que a testemunha, JJN, procurador que actuava em intermédio do A., - factos dados como provados sob o ponto 9. (fls 5 da douta sentença recorrida) – dirigiu-se, por diversas vezes, à Ré B. para apurar quais as razões adjacentes ao facto de a ordem de transferência apresentada a 5 de Maio de 2010 ainda não se encontrar executada.
54. Contudo, e conforme resulta do teor do depoimento prestado por esta testemunha, não prestou a Ré B. quaisquer informações – para além de que se encontra a actuar de acordo com as instruções do 1º Réu - nem esclareceu devidamente esta testemunha relativamente a que concretas instruções teriam sido emitidas, datas em que as mesmas foram realizadas, bem como, em que medida tal implicaria a não realização da ordem de transferência.
55. Afirma ainda a Meritíssima Juiz a quo que a testemunha, KKN, (fls. 20 da douta sentença recorrida):
56. Ora, não concorda o Autor com o entendimento perfilhado pela Meritíssima Juiz a quo, porquanto constam dos presentes autos elementos documentos suficientes que permite aferir pela existência da ordem de transferência dos títulos existentes na conta bancária titulada pelo Réu para a conta bancária titulada pelo mesmo e pelo seu pai.
57. Desde logo, em 12 de Novembro de 2013, entre outra, tinha o Autor peticionado como prova (referência Citius 495857) entrega pelos RR dos extractos bancários.
58. Essa prova foi admitida pelo Ilustre Tribunal a quo por despacho datado de 8 de Fevereiro de 2016 (refª 41270663). Contudo, nenhum facto sobre a mesma foi praticado até que em 14 de Setembro de 2018, em sede do decurso de Audiência Final, o A. requereu que fosse ordenada a junção da documentação requerida e ainda não cumprida naquele momento.
59. Por requerimento datado de 1 de Outubro de 2018 (refª 2872786) o Réu Banco S. veio invocar o sigilo bancário para não dar cumprimento ao ordenado.
60. Perante esta resposta, o A., por requerimento datado de 8 de Outubro de 2018 (refª 2883374) veio peticionar que o R. Banco S. cumprisse com o ordenado pelo Ilustre Tribunal a quo, ou caso a sua posição merecesse mérito, que fosse o R. JP notificado para proceder à junção por mote próprio dos documentos ou autorizar o levantamento do sigilo bancário. Desde já, cita-se, por relevante, o peticionado naquele requerimento:
61. A este requerimento, e em 20 de Outubro de 2018 (refª 2906291) o R. JP veio declarar opor-se a que se juntassem os extractos.
62. Depois de várias vicissitudes e requerimentos processuais, melhor descriminados na Motivação deste recurso, o Ilustre Tribunal a quo, por despacho datado de 21 de Fevereiro de 2019 (ref.ª 46774326) decidiu o seguinte:: No entanto, sempre se dirá que, ante a posição já manifestada pelo réu JP em face da pretensão do autor, o pretendido não poderá ser satisfeito, desde logo porque o fornecimento dos elementos pretendidos redundará inevitavelmente na “intromissão da vida privada” do réu JP, o que torna legítima a respectiva recusa em autorizar o fornecimento de tais elementos, (artigo 417º, n.º 3, alínea b) do Código de Processo Civil. Pelo exposto, indefere‑se a requerida notificação do réu JP nos termos solicitados nos requerimentos
63. Face a tal decisão proferida pelo Ilustre Tribunal a quo, a 14 de Fevereiro de 2019, o A. apresentou recurso de apelação (ref.ª 3137360) nos termos e para os efeitos do previsto no artigo 647.º, n.º 2, alínea d) do Código de Processo Civil. Tendo os Venerandos Juízes desembargadores deste douto Tribunal da Relação proferido, a 4 de Julho de 2019, a decisão de revogar o despacho recorrido, decidindo-se em sua substituição, determinar a notificação do Réu JP, para juntar aos autos, em 15 dias, a seguinte documentação.
64. A 22 de Novembro de 2019, e em observância do determinado pelo douto acórdão proferido, o Ilustre Tribunal a quo notificou o Réu, JP, para proceder à junção aos autos, em 15 dias, da documentação já mencionada. O que, apenas veio a suceder a 15 de Setembro de 2020 (ref.ª 3845863).
65. Contudo, e aquando da análise da documentação em causa, o A. constatou a falta de parte dos documentos, Pelo que, por requerimento datado de 2 de Novembro de 2020 (ref.ª 3917252) o Réu Banco, procedeu à junção aos autos do extracto da conta nº 90-23043627710, relativa ao período decorrido entre 01.07.2010 e 30.09.2010. E a 21 de Dezembro de 2020 (ref.ª 3989937) veio o Réu informar que “dada a antiguidade do documento em causa, não dispõe do extracto da conta 90-230292502/10 relativo a Agosto de 2010.”
66. Motivo pelo qual, a 11 de Janeiro de 2021, o Autor apresentou requerimento aos autos (4010394) com o seguinte teor, peticionado a notificação do Réu Banco S. para: “1) Justificar motivada e detalhadamente a inexistência do extracto da conta 90-230292502/10 relativo a Agosto de 2010, atendendo aos prazos de conservação de documentação bancária; 2) Juntar aos presentes autos a página 7 do extracto 0055/2010, referente ao contrato 90002302925, data 2010/02/26;”
67. E a 28 de Abril de 2021, por requerimento (ref.ª 4143121) o Réu procedeu à junção aos autos de todos os documentos/extractos bancários conforme ordenado.
68. Ora, decorre, cristalino, do teor dos documentos juntos os movimentos bancários/transferências de fundos entre as contas bancárias tituladas pelo Réu, JP e pelo seu pai. Concretamente, a transferência realizada a 18 de Agosto de 2010, no valor de 378.484,11 USD. Factualidade esta, manifestamente, essencial para a descoberta da verdade material e justa composição do litígio.
69. Sempre incorre a Meritíssima Juiz a quo em erro notório na apreciação da prova documental.
70. Alega a Meritíssima Juiz a quo que: “In casu, verifica-se que da factualidade provada não resultam quaisquer factos susceptíveis de consubstanciar a celebração pelo autor de determinado negócio ou contrato, nomeadamente com o réu JP, capazes de fundamentar o peticionado contra o mesmo. Assim sendo, não poderá deixar, desde logo, de improceder o pedido formulado contra o réu JP. O que ficou dito quanto à ausência de prova vale relativamente a qualquer intervenção ou interferência do réu banco em negociações e contratos celebrados entre o autor e o réu JP, pois que, nada na factualidade provada permite concluir por uma tal materialidade.”
71. Ora, os RR não cumpriram com o que havia sido contratado com o A., uma vez que ordem de transferência emitida em 5 de Maio de 2010 – como aliás resulta da matéria de facto dada como provada sob o n.ºs 3 e 6 da douta sentença recorrida (fls. 4 da douta sentença recorrida), nunca chegou a ser executada pela 2.ª Ré.
72. Pelo que, estava o 1.º Réu obrigado a indemnizar ou compensar o A. de todos os prejuízos causados, nos termos e para os efeitos do previsto no artigo 798.º do Código Civil. E, não obstante a culpa do 1.º Réu resultar evidente, sempre a mesma estaria presumida, por força do artigo 799.º do Código Civil. De resto, de igual forma nos termos da lei se presume a culpa do R B.
73. Sem prescindir, não pode deixar de se realçar que a quantia entregue pelo Autor, na pessoa de KKN, ao 1.º Réu nunca foi restituída. E isto, apesar de a ordem de transferência dos títulos da conta bancária do 1.º Réu para a conta bancária do A. nunca ter sido executada. Pelo que, afigura-se-nos evidente que, no presente caso se encontram preenchidos os requisitos cumulativos para a verificação do instituto do enriquecimento sem causa, previsto no artigo 473.º do Código Civil
74. Errou ainda o Tribunal a quo como não provado nos pontos u), v), x), z), aa), bb), dd), ee), ff), gg), hh), ii), jj) da douta sentença recorrida
75. Desde logo, por a mesma se encontrar em contradição com a factologia dada como provada no ponto 20 da douta sentença ora recorrida, a saber: “O autor vive preocupado com este problema.”.
76. Além disso, o entendimento perfilhado pela Meritíssima Juiz a quo, não vai ao encontro do que, efectivamente, resultou das declarações de parte prestadas pelo Autor., bem como, do depoimento prestado pela testemunha, JJN (comum ao A. e RR) e MN (testemunha arrolada pelos RR.), cujos depoimentos estão transcritos na Motivação do presente Recurso.
77. O Autor, bem como a testemunha, JJN, descreveram de forma segura, objectiva e detalhada de que toda esta conduta levada a cabo pelos RR. provocou no A. um enorme transtorno psíquico e sofrimento. Até porque, o A. viu-se espoliado da quantia de 380.000,00 USD, que tinha poupado com o árduo trabalho que desenvolve como emigrante na Venezuela, nunca tendo recebido a contrapartida acorda com o 1.º Réu – e que, consequentemente, a 2.ª Ré se obrigou a executar.
78. Ficou ainda demonstrado que o objectivo era proceder, a médio prazo, à liquidação dos mencionados títulos para, consequentemente, cumprir com os compromissos já assumidos perante familiares e amigos. O que, em virtude do incumprimento dos RR – não logrou fazer.
79. Tal provocou no A. uma profunda humilhação e vergonha. Sendo certo que, desde então, nunca mais conseguiu descansar devidamente, sofre de insónias frequentes, tendo de recorrer a medicação para atenuar estas perturbações.
80. Entende o Recorrente que foi feita prova bastante dos danos não patrimoniais sofridos pelo Autor. E mais, do nexo causal existente entre a conduta levada a cabo pelos RR. e os danos não patrimoniais sofridos na esfera jurídica do A.
81. Conclui ainda erradamente a Meritíssima Juiz a quo que: “não obstante a factualidade provada sob os pontos 4. e 5. da fundamentação de facto, não resultando de tal factualidade em que consistiu concretamente o “bloqueio” da conta de depósito à ordem titulada pelo autor e que circunstâncias concretas ou condutas activas ou omissivas do banco terão conduzido a tal “bloqueio”, não é possível concluir se o “bloqueio” se traduziu numa infracção de deveres específicos de conduta a cargo do banco, como depositário.
82. Desde logo pela contradição com o elenco dos factos dados como provados na douta sentença recorrida sob 4 e 5.
83. Por outro lado, é manifesta a insuficiente fundamentação pela Meritíssima Juiz a quo na decisão de improcedência do pedido formulado pelo Autor sob o ponto C) da petição inicial. Isto porque, apenas alega a Meritíssima Juiz a quo que “não é possível concluir se o “bloqueio” se traduziu numa infracção de deveres específicos de conduta a cargo do banco, como depositário”, bem como que “não é possível concluir se tal circunstância se traduzirá numa apreensão e cativação dos respectivos valores por parte do banco, sem qualquer motivo contratualmente legitimado ou justificado, ou em contravenção aos deveres do banco, no âmbito do contrato de depósito bancário”.
84. Acontece que, ao ter decidido pela improcedência do pedido formulado pelo Autor, como decidiu, detinha a Meritíssima Juiz o poder-dever de fundamentar devidamente a existência de qualquer conduta por parte do Autor – caso tivesse sido alegada pelos RR ou mesmo resultasse da prova produzida em audiência e julgamento - que justificasse aquele bloqueio pela 2.ª Ré. O que não logrou fazer. Pelo que sempre se impunha uma decisão, neste sentido, favorável ao A.
85. Acresce que, não valorou, novamente, a Meritíssima Juiz a quo a prova testemunhal produzida em sede de audiência e julgamento, nomeadamente os depoimentos prestados na Sessão de 14.09.2018 por MS T_ 00.48.26 e KKN T_ 01.58.23, bem como na Sessão de 6 de Julho de 2018 por JJN T_01:55:23
86. A decisão deste bloqueio foi uma decisão unilateral da 2.ª Ré e sem qualquer aviso prévio e/ou fundamentação para o efeito. O que não era permitido ao Banco, salvo em situações manifestamente excepcionais. Como é o caso de ter existido uma solicitação do próprio Autor ou uma ordem judicial nesse sentido. O que, efectivamente, também não se verificou no presente caso que nos ocupa.
87. Estando o depositário obrigado, nos termos da al. c) art 1187º CCivil, a restituir a coisa com os frutos, não se podendo recusar a essa restituição – art 1192º CCivil.
88. Ora, face à prova testemunhal produzida, resulta notório que não logrou a Meritíssima Juiz a quo valorar e ponderar, na sua globalidade, as circunstâncias envolventes ao presente caso que nos ocupa.    Desde logo, e se atentarmos nas declarações de parte prestadas pelo Autor, facilmente percepcionamos que o mesmo descreveu com rigor, detalhe e clareza dos acontecimentos bizarros dos quais foi alvo. Os quais, foram também corroborados pelo depoimento da testemunha, KKN
89. Aliás, tais factos não devem (ou pelo menos não deveriam) suscitar tanta admiração por parte do douto Tribunal. Até porque, constitui facto notório que a Venezuela é um país que atravessa (e sempre atravessou) uma conturbada crise política, económica e social. Aliás, essa mesma realidade é nos revelada através dos meios de comunicação social.
90. Ao longo da douta sentença recorrida, faz a Meritíssima Juiz a quo uma incorrecta aplicação do Direito.
91. De resto, basta analisar o extenso capítulo IV – FUNDAMENTAÇÃO DE DIREITO, para concluirmos que o Tribunal “a quo” limita-se a reproduzir extensivamente várias disposições legais, jurisprudência e doutrina sem, contudo, interpretar e aplicar esses preceitos ao caso concreto, obrigação essa a que está adstrito nos termos do nº 3 art 607º CPC.
92. Sem prejuízo do “copy-past” de inúmeros preceitos legais e referências doutrinárias e jurisprudenciais, não resulta da sentença em crise qualquer melhor análise sobre o direito descrito, sendo absolutamente inexistente qualquer conclusão se o mesmo é ou não aplicável ao presente caso, se houve ou não a violação de alguma dessas disposições legais e por quem foram as mesmas violadas e qual o facto que corresponde a esse eventual cumprimento/incumprimento.
93. O certo é que a Meritíssima Juiz a quo decide pela improcedência dos pedidos formulados pelo A. na petição inicial, sem concluir ou estabelecer um nexo causal entre a conduta do ora Recorrente e as extensas disposições legais, jurisprudência e doutrina que, com a devida vénia, apenas se limita a reproduzir sem qualquer enquadramento para tal.
94. Por seu turno, e com o devido o respeito, entende o A. que foram violadas diversas disposições legais – como aliás, já mencionado supra nestas Conclusões.
95. Nos termos do n.º 2 do artigo 639.º do Código de Processo Civil e na parte do recurso que versa sobre matéria de direito:
Normas jurídicas violadas:
- artigos 80.º e 330.º do Cóv.MV, que sempre deveriam ser interpretados no sentido de concluir que pelo incumprimento da 2.ª Ré na execução da ordem de transferência que ordenava a transmissão dos valores mobiliários em questão através do registo em conta – i.e. a débito na conta do 1.º Réu e a crédito na conta do Autor. Assim, a 2.ª Ré não executou a ordem de transferência no prazo acordado, nem nunca forneceu ao A. qualquer esclarecimento. Sendo certo que, a referida ordem cumpria todos os requisitos legais, a 2.ª Ré aceitou-a e comprometeu-se a executá-la nos seus precisos termos, que previam a sua execução imediata. E mais, à data da entrega e aceitação da mencionada ordem, a conta do 1.º Réu encontrava-se provisionada com os títulos necessários à execução da operação.
- artigo 304.º, n.º 2 do Cód.VM, que sempre deveria ser interpretado no sentido de concluir que a 2.ª Ré violou os deveres de conduta a que se encontrava sujeita, enquanto intermediária financeira, mormente, a observância dos ditames da boa fé, de acordo com elevados padrões de diligência, lealdade e transparência.
- artigos 1.º, n.º 1, alínea a) e n.º 2 do Decreto Lei n.º 430/91, de 2 de Novembro, que sempre deveriam ser interpretados no sentido de concluir que a 2.ª Ré bloqueou, indevida, unilateralmente e sem qualquer fundamentação e comunicação prévia, o acesso e a movimentação da conta bancária titulada pelo Autor. Para existiu um bloqueio bancária legítimo, era necessário que se verificassem determinadas situações excepcionais. Assim, e tratando-se de uma conta de depósitos à ordem, tem o Autor o direito a exigir a restituição do montante depositado na conta bancária bloqueada.
Os RR. apresentaram alegação de resposta, aí concluindo pela manutenção da sentença recorrida, e mais suscitando o 1º R. a questão da rejeição do recurso quanto à impugnação da decisão de facto, por não se mostrarem cumpridos os ónus previstos no art.º 640º do Código de Processo Civil.
*
Sendo o objecto do recurso balizado pelas conclusões do apelante, nos termos preceituados pelos art.º 635º, nº 4, e 639º, nº 1, ambos do Código de Processo Civil, as questões submetidas a recurso, delimitadas pelas aludidas conclusões, prendem‑se com:
a) A nulidade da sentença recorrida, por oposição entre os fundamentos e a decisão;
b) A alteração da matéria de facto;
c) A responsabilidade do 1º R. no ressarcimento do dano do A., decorrente da violação da sua obrigação de entrega dos valores mobiliários transaccionados;
d) A responsabilidade do 2º R. no ressarcimento dos danos do A. decorrentes da violação dos deveres do B. enquanto intermediário financeiro;
e) A responsabilidade do 2º R. pelo bloqueio da conta bancária do A. existente no B.
*
Na sentença recorrida considerou-se como provada a seguinte matéria de facto (corrigindo-se e eliminando-se referências desnecessárias e rectificando-se lapsos manifestos de escrita):
1. O A. é titular da conta de depósitos à ordem n.º (…), inicialmente aberta na Sucursal Financeira Exterior do B. (doravante B.), na cidade do Funchal, e actualmente domiciliada na agência Madeira Fórum da 2ª R., na mesma cidade.
2. O 1º R. é titular da conta de depósitos à ordem n.º (…), aberta na Sucursal Financeira Exterior do B., na cidade do Funchal.
3. No dia 05.05.2010 foi apresentada no B. uma ordem de transferência escrita e assinada presencialmente pelo 1º R.
4. A partir de 09.06.2010, o B. bloqueou a conta de depósitos à ordem identificada em 1., situação que se mantém até à presente data.
5. O A. ainda tem na sua conta de depósitos à ordem a quantia de € 689,00 que não consegue movimentar.
6. Em virtude da ordem referida em 3. o 1º R. ordenava ao B. a transferência imediata, da sua conta bancária referida em 2. para a conta bancária do A. referida em 1., da totalidade dos títulos relativos aos fundos de investimento Euro Invest II (ref.ª XS0180280348), no valor de USD 200.000,00, e dos títulos relativos aos fundos de investimento Euro Invest série 11, no valor de USD 180.000,00, totalizando o montante global de USD 380.000,00.
7. À conta do 1º R. estavam associados os títulos referidos em 6. [na sentença recorrida consta fundos, o que não passa de um lapso manifesto, que fica desde já corrigido]
8. Até à presente data o 2º R. não transferiu a quantia mencionada em 6.
9. Por diversas vezes, o A., por intermédio do seu procurador, JJN, dirigiu-se ao B. para saber as razões que estariam na origem do referido em 8.
10. Tendo recebido uma informação segundo a qual o B. teria procedido de acordo com as instruções do ordenante (o 1º R.), daí resultando a não realização da transferência dos títulos.
11. Por documento datado de 01.06.2010, o 1º R. emitiu uma ordem de transferência, de onde consta que foi assinada presencialmente e que deu entrada no escritório de representação do B., situado em Caracas (Venezuela) aí tendo sido registada sob o n.º 3346.
12. Em virtude da qual o 1º R. ordenava o resgate de parte das unidades de participação nos fundos de investimento associados à conta de depósitos à ordem n.º (…), no montante de USD 140.000,00 e a sua transferência imediata para a conta de depósitos à ordem n.º (…), aberta na Sucursal Financeira Exterior do B., na cidade do Funchal.
13. Esta conta bancária de destino era titulada por FA., pai do 1ª R., e pelo próprio 1º R.
14. A ordem de transferência n.º 3346 foi mencionada pela funcionária IF. como tendo carácter urgente, tendo a funcionária F. solicitado que fosse efectuada com a maior brevidade possível, dado que o cliente possuía várias responsabilidades com outros clientes da instituição que dependiam do resgate solicitado pelo 1º R.
15. Tal ordem de transferência foi remetida pelo escritório de representação de Caracas para a Sucursal Financeira Exterior do B., no Funchal, no dia 04.06.2010.
16. À data de recepção da ordem de transferência n.º 3346 encontrava-se pendente a execução da ordem de transferência de USD 380.000,00 para a conta do A.
17. Este facto foi expressamente reconhecido por IF. e TT, funcionários do B. na Sucursal Financeira Exterior que estavam encarregados de realizar as operações necessárias à execução das ordens emitidas pelo 1º R.
18. E dele deram conhecimento a F. e a NS., funcionárias do B. no escritório de representação de Caracas, tendo TT indicado que teria prioridade a primeira ordem de transferência recebida pelo B. – destinada ao A. – no valor de USD 380.000,00, tendo, em consequência, sido dada indicação do Escritório de Representação de Caracas, para fosse dada sem efeito a ordem de transferência n.º 3346.
19. O B. retirou os títulos da conta bancária do 1º R.
20. O A. vive preocupado com este problema.
21. A ordem de transferência referida em 3. foi alvo, por parte do B., de um procedimento para autorização superior para que a operação em questão fosse isentada da respectiva comissão.
22. Entre a data referida em 3. e durante o procedimento interno relativo à autorização superior referida em 21., o 1º R., apresentou nova instrução/ordem de transferência parcial dos mesmos títulos objecto da instrução de 05-05-2010, tendo agora outro beneficiário que não o A.
23. Perante duas instruções/ordens de transferências entre si concorrentes, o B. averiguou, directamente junto do 1º R. a situação, questionando-o sobre qual das instruções/ordens de transferências devia prevalecer.
24. Entretanto ambas as instruções/ordens de transferência ficaram suspensas, não tendo o B. executado/levado a cabo nem uma, nem outra.
25. Posteriormente e em face da necessidade de esclarecer qual das instruções/ordens de transferências prevaleceria, o 1º R. informa o B. de forma seguinte:
(…)
Venho por este meio informar V. Exas. que (…) solicitei o resgate dos meus títulos no valor de USD 140.000,00 (…), instrução que não conseguiram concretizar porque fui informado que eu já tinha assinado uma outra instrução solicitando o resgate total da emissão dos meus títulos a favor do cliente MS, titular da conta N.º (…).
(…)
Expliquei que dados os muitos compromissos por mim assumidos (…), entre tantas instruções por mim assinadas, talvez por lapso ou engano assinei a ordem de transferência a favor de MS, (…) sinceramente não me lembro, razão pela qual solicito que sejam dadas sem efeito ambas instruções. Posteriormente darei nova instrução”.
26. Na mesma data o A. informa também o B. que não tem “conhecimento de uma instrução assinada pelo Senhor JP onde solicita transferência do valor de USD 380.000,00 (trezentos e oitenta mil dólares americanos) para crédito da conta n.º (…), por mim titulada. Desconheço esta situação e fiquei mesmo muito surpreendido porque não tenho nenhum valor a receber do senhor JP”.
27. O B. não deu seguimento a nenhuma das instruções/ordens de transferência referidas em 24. e 25.
28. O B., sempre que questionado pelo procurador do A., respondeu e esclareceu que se havia limitado a proceder de acordo com instruções recebidas do seu cliente (ordenante da transferência).
*
Na sentença recorrida considerou-se como não provado que:
a) Na sequência de negociações, o A. adquiriu ao 1º R., mediante o pagamento do correspondente contravalor em bolívares, as seguintes unidades de participação que este detinha em fundos de investimento comercializados pela ré B. e que se encontravam associadas à conta de depósitos à ordem referida em 2., no valor total de USD 380.00,00: (i) títulos relativos aos fundos de investimento Euro Invest II (ref.ª XS0180280348), no valor de USD 200.000,00, e (ii) títulos relativos aos fundos de investimento Euro Invest série 11 (ref.ª XS0405724906), no valor de USD 180.000,00, totalizando, assim, o montante global de USD 380.000,00;
b) O A. entregou ao 1º R. o preço acordado;
c) Tendo-se o 1º R. comprometido a ordenar junto do B., no mais breve prazo, a transferência dos títulos em questão por débito na sua conta referida em 2. para crédito na conta de que o A. é titular, referida em 1.;
d) O A. apenas aceitou celebrar este negócio com o 1º R. no pressuposto de que a apresentação de tal ordem de transferência junto do B. seria condição necessária e suficiente para que pudesse passar a dispor de imediato das unidades de participação em causa;
e) Neste sentido, o A., por intermédio do seu procurador JJN, e o 1º R., aproveitando uma deslocação deste ao Funchal em finais de 2009, participaram numa reunião com o B., em que foi confirmado tal procedimento – ou seja, que bastaria uma futura ordem de transferência dos títulos para que estes fossem creditados na conta do A., comprometendo-se o B. a executar tal ordem imediatamente, se tais termos constassem das instruções escritas do 1º R.;
f) Adiantou o B. que esse era o procedimento normalmente seguido com o 1º R., pois este, na qualidade de investidor, frequentemente apresentava ordens de teor semelhante;
g) Na ordem referida em 6. os fundos de investimento Euro Invest série 11 tinham a referência XS0405724906;
h) A ordem de transferência foi aceite pelo B. em 05.05.2010, que se comprometeu a executá-la nos seus precisos termos;
i) O referido em 6. era a prática corrente na Sucursal Financeira Exterior, pois este tipo de operação entre o A. e o 1º R. era frequente e regular, no âmbito do contrato entre ambos celebrado;
j) E sempre o B. executou de imediato as ordens de transferência apresentadas pelo 1º R. no seu balcão;
l) O referido em 10. constituiu a primeira informação e ocorreu em 13.07.2010;
m) Não fornecendo, contudo, o B. quaisquer esclarecimentos adicionais, nomeadamente que tipo de instruções teriam sido emitidas pelo 1º R. e qual o seu teor, em que data foram comunicadas ao B., ou em que medida implicariam a não realização da ordem de transferência em questão;
n) No dia 18.08.2010 o 1º R. apresentou no escritório de representação do B., em Caracas, uma nova ordem de transferência, pela qual ordenava ao B. a transferência imediata de todos os títulos associados à conta de depósitos à ordem n.º (…), no montante global de USD 378.484,00 [ou seja, o valor de USD 380.000,00 após a dedução dos custos da operação] para a conta de depósitos à ordem n.º (…), titulada por Francisco A., pai do 1º R., e pelo próprio 1º R.
o) Na data em que o B. recebeu esta ordem, a conta do 1º R. ainda se encontrava provisionada com os fundos referidos em n);
p) O referido em 19. ocorreu em execução imediata da ordem de transferência referida em n);
q) Nunca tendo dado qualquer explicação adicional ao A.;
r) A decisão relativa ao referido em 4. foi tomada unilateralmente pelo B.;
s) O referido em r) ocorreu sem qualquer aviso prévio;
t) E, apesar das instâncias do A. junto do B., nunca foi apresentada qualquer justificação, nem foram disponibilizados os valores referidos em 4.
u) Toda esta situação tem sido causa de sofrimento e transtorno psíquico para o A.;
v) O objectivo do A. com a aquisição dos valores mobiliários era proceder, a médio prazo, à liquidação dos títulos, para depois poder cumprir com compromissos previamente assumidos perante familiares e amigos;
x) Em virtude da recusa do B., o A. não pôde cumprir com as tais obrigações, tendo sido considerado nos seus círculos como alguém que não cumpre com a sua palavra e em quem não se pode confiar;
z) O que lhe causou humilhação e vergonha;
aa) A situação é de conhecimento dos seus familiares, amigos e de terceiros;
bb) Antes da recusa do B. o A. conseguia dormir tranquilamente e nunca sofrera de quaisquer perturbações de sono;
cc) Deste então o A. nunca mais conseguiu descansar de noite como antigamente, sofrendo de insónias frequentes, dores de cabeça e pesadelos;
dd) Sendo obrigado a recorrer a medicação para as perturbações de sono;
ee) O referido em 20. ocorre porque a vida, os amigos e os familiares todos os dias lho recordam, o que é causa de revolta, angústia e depressão;
ff) O A. era uma pessoa alegre, bem disposta e estimado como amigo pelos seus amigos;
gg) Por causa do comportamento dos RR., o A. tornou-se numa pessoa muito triste, apática, com uma acentuada perda de interesse pelas coisas e actividades que anteriormente o entusiasmavam, mantendo-se cada vez mais isolado de tudo e de todos;
hh) Apresentando também uma forte ansiedade antecipatória, fadiga e perda de apetite;
ii) O que ainda resulta mais agravado em virtude ter passado a padecer de uma depressão, para a qual necessita de medicação e acompanhamento médico especializados;
jj) O A. demonstra ainda incerteza e intranquilidades, e vive angustiado pela possibilidade de nunca mais poder reaver o seu dinheiro;
ll) A ordem de transferência referida em 3. foi revogada posteriormente, porque o negócio não se concluiu;
mm) Facto que é do conhecimento do A.;
nn) A comissão referida em 21., à data, ascendia a um montante aproximado de USD 1.300,00;
oo) Em 2010 o A. assinou documentos cujo teor não teve oportunidade de ler nem tão pouco lhe foi explicado, tendo-o feito sob ameaça pelos responsáveis da ré B. em Caracas de que o seu filho OG., funcionário do B. em Caracas, poderia ser despedido;
pp) Por força da insegurança que se vive na Venezuela, o A. temia pela sua integridade física e pela sua vida, e ainda pelas da sua mulher e filhos, situação que até à presente data se mantém.
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Da nulidade da sentença
Segundo a al. c) do nº 1 do art.º 615º do Código de Processo Civil, a sentença é nula quando os fundamentos estejam em oposição com a decisão ou quando ocorra alguma ambiguidade ou obscuridade que torne a decisão ininteligível.
A respeito da arguição de nulidades da sentença, importa recordar que, como referem António Santos Abrantes Geraldes, Paulo Pimenta e Luís Filipe Pires de Sousa (Código de Processo Civil Anotado, vol. I, 2018, pág. 737), existe “uma frequente confusão entre nulidade da decisão e discordância quanto ao resultado, entre a falta de fundamentação e uma fundamentação insuficiente ou divergente da pretendida ou mesmo entre a omissão de pronúncia (relativamente a alguma questão ou pretensão) e a falta de resposta a algum argumento dos muitos que florescem nas alegações de recurso”, mais explicando (pág. 738) que “a decisão judicial é obscura quando contém algum passo cujo sentido seja ininteligível e é ambígua quando alguma passagem se preste a interpretações diferentes”.
Por seu lado Alberto dos Reis (Código de Processo Civil Anotado, volume V, Coimbra Editora, reimpressão, 1981, pág. 141) explica que a referida ininteligibilidade por contradição entre os fundamentos e a decisão se verifica quando “a construção da sentença é viciosa, pois os fundamentos invocados pelo juiz conduziriam logicamente, não ao resultado expresso na decisão, mas a resultado oposto”.
Ou seja, os casos a que se reporta a referida al. c) do nº 1 do art.º 615º do Código de Processo Civil prendem-se com as deficiências do silogismo judiciário, verificando‑se sempre que o resultado do mesmo não está adequadamente reflectido na decisão.
Reconduzindo tais considerações ao caso concreto dos autos, logo se antevê que a contradição invocada pelo A. mais não corresponde que à afirmação de um erro na valoração da factualidade provada, e que, na perspectiva do 1º R., deveria conduzir a um resultado distinto daquele expresso na sentença recorrida, mais concretamente, à afirmação da existência de um contrato celebrado entre o A. e o 1º R., por só assim se justificar a ordem de transferência de títulos para o A., dada pelo 1º R. ao B..
Só que tal circunstância não corresponde a qualquer viciação do silogismo judiciário, desencadeando qualquer ininteligibilidade ou dualidade interpretativa dessa parte da sentença, que corresponde à fundamentação (de facto) que conduz à decisão absolutória.
Acresce que, e no limite, o que poderia estar em causa era qualquer deficiência, obscuridade ou contradição da decisão de facto.
Mas como decorre da al. c) do nº 2 do art.º 662º do Código de Processo Civil, tais vícios da decisão de facto só geram a anulabilidade da sentença quando não for possível a alteração dessa decisão de facto em sede de recurso, de acordo com os elementos que constam do processo.
Isso mesmo explicam também António Santos Abrantes Geraldes, Paulo Pimenta e Luís Filipe Pires de Sousa (Código de Processo Civil Anotado, vol. I, 2018, pág. 798), quando referem que “quanto a segmentos da decisão que (sendo imprescindíveis para a decisão) se revelem deficientes, obscuros ou contraditórios (STJ 12-5-16, 2325/12), a Relação deverá supri-los, desde que constem do processo (ou da gravação) os elementos em que o tribunal se fundou (…). Não sendo o caso, deve anular a decisão recorrida e remeter o processo para a 1ª instância”. E mais explicam que “quando estiver em causa a deficiente fundamentação da decisão da matéria de facto, a devolução do processo deve ser guardada para casos em que, além de serem efectivamente relevantes, não possam sequer ser remediados através do exercício autónomo do poder de reapreciação dos meios de prova”.
Ou seja, apenas na medida em que os elementos probatórios à disposição do tribunal recorrido não se encontrem à disposição do tribunal de recurso é que é possível falar da susceptibilidade de anulação da decisão sobre a matéria de facto.
Mas quando, como no caso dos autos, todos os elementos probatórios à disposição do tribunal recorrido podem ser valorados em sede da impugnação da decisão de facto (desde que apresentada nos termos do disposto no art.º 640º do Código de Processo Civil), então não há que falar da susceptibilidade de anulação de tal decisão.
E, nessa medida, não há que falar de qualquer contradição entre a fundamentação e a decisão (por deficiência, obscuridade ou contradição da factualidade considerada provada e não provada), mas apenas da necessidade de utilização efectiva do mecanismo processual previsto no art.º 662º, nº 1, do Código de Processo Civil, que passa pela alteração da decisão de facto de acordo com a prova produzida e, sendo o caso, pelo suprimento desses vícios que a mesma possa apresentar, mas sempre em respeito pelo objecto do recurso, tal como o mesmo se mostra delimitado nas conclusões da alegação do A.
Improcedem assim as conclusões da alegação do A., no que respeita à nulidade da sentença recorrida, por oposição entre os fundamentos e a decisão.
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Da alteração da matéria de facto
Decorre da conjugação dos art.º 635º, nº 4, 639º, nº 1 e 640º, nº 1 e 2, todos do Código de Processo Civil, que quem impugna a decisão da matéria de facto deve, nas conclusões do recurso, especificar quais os pontos concretos da decisão em causa que estão errados e, ao menos no corpo das alegações, deve, sob pena de rejeição, identificar com precisão quais os elementos de prova que fundamentam essa pretensão, sendo que, se esses elementos de prova forem pessoais, deverá ser feita a indicação com exactidão das passagens da gravação em que se funda o recurso (reforçando a lei a cominação para a omissão de tal ónus, pois que repete que tal tem de ser feito sob pena de imediata rejeição na parte respectiva) e qual a concreta decisão que deve ser tomada quanto aos pontos de facto em questão.
A respeito do disposto no referido art.º 640º do Código de Processo Civil, refere António Santos Abrantes Geraldes (Recursos em Processo Civil, 6ª edição actualizada, 2020, pág. 196-197):
a) Em quaisquer circunstâncias, o recorrente deve indicar sempre os concretos pontos de facto que considera incorrectamente julgados, com enunciação na motivação do recurso e síntese nas conclusões.
b) Deve ainda especificar, na motivação, os meios de prova, constantes do processo ou que nele tenham sido registados, que, no seu entender, determinam uma decisão diversa quanto a cada um dos factos.
c) Relativamente a pontos de facto cuja impugnação se funde, no todo ou em parte, em prova gravada, para além da especificação obrigatória dos meios de prova em que o recorrente se baseia, cumpre-lhe indicar, com exactidão, as passagens da gravação relevantes e proceder, se assim o entender, à transcrição dos excertos que considere oportunos.
(…)
e) O recorrente deixará expressa, na motivação, a decisão que, no seu entender, deve ser proferida sobre as questões de facto impugnadas, tendo em conta a apreciação crítica dos meios de prova produzidos, exigência que vem na linha do reforço do ónus de alegação, por forma a obviar à interposição de recursos de pendor genérico ou incongruente”.
E, mais adiante, afirma (pág. 199-200) a “rejeição total ou parcial do recurso respeitante à impugnação da decisão da matéria de facto, designadamente quando se verifique a “falta de conclusões sobre a impugnação da decisão da matéria de facto”, a “falta de especificação, nas conclusões, dos concretos pontos de facto que o recorrente considera incorrectamente julgados”, a “falta de especificação, na motivação, dos concretos meios probatórios constantes do processo ou neles registados”, a “falta de indicação exacta, na motivação, das passagens da gravação em que o recorrente se funda”, bem como quando se verifique a “falta de posição expressa, na motivação, sobre o resultado pretendido relativamente a cada segmento da impugnação”, concluindo que a observância dos requisitos acima elencados visa impedir “que a impugnação da decisão da matéria de facto se transforme numa mera manifestação de inconsequente inconformismo”.
Do mesmo modo, António Santos Abrantes Geraldes, Paulo Pimenta e Luís Filipe Pires de Sousa (Código de Processo Civil Anotado, vol. I, 2018, pág. 770) afirmam que “cumpre ao recorrente indicar os pontos de facto que impugna, pretensão esta que, delimitando o objecto do recurso, deve ser inserida também nas conclusões (art. 635º)”, mais afirmando que “relativamente a pontos da decisão da matéria de facto cuja impugnação se funde, no todo ou em parte, em provas gravadas, o recorrente tem o ónus de indicar com exactidão as passagens da gravação em que se funda, sem prejuízo de poder apresentar a respectiva transcrição”.
E, do mesmo modo, vem entendendo o Supremo Tribunal de Justiça (como no acórdão de 29/10/2015, relatado por Lopes do Rego e disponível em www.dgsi.pt) que do nº 1 do art.º 640º do Código de Processo Civil resulta “um ónus primário ou fundamental de delimitação do objecto e de fundamentação concludente da impugnação (…) e um ónus secundário – tendente, não propriamente a fundamentar e delimitar o recurso, mas a possibilitar um acesso mais ou menos facilitado pela Relação aos meios de prova gravados relevantes (…)”.
Por outro lado, e impondo-se a especificação dos pontos concretos da decisão que estão erradamente julgados, bem como da concreta decisão que deve ser tomada quanto aos factos em questão, há-de a mesma reportar-se, em primeira linha, ao conjunto de factos constitutivos da causa de pedir e das excepções invocadas. É que, face ao disposto no nº 1 do art.º 5º do Código de Processo Civil, a decisão da matéria de facto tem por objecto, desde logo, os factos essenciais alegados pelas partes, quer integrantes da causa de pedir, quer integrantes das excepções invocadas. Todavia, e porque do nº 2 do mesmo art.º 5º resulta que o tribunal deve ainda considerar os factos instrumentais, bem como os factos complementares e concretizadores daqueles que as partes hajam alegado, e que resultem da instrução da causa, daí decorre que na decisão da matéria de facto devem esses factos ser tidos em consideração.
Tal não significa, no entanto, que a decisão da matéria de facto (provada e não provada) deve comportar toda a matéria alegada pelas partes e bem ainda aquela que resulte da prova produzida, já que apenas a factualidade que assuma juridicidade relevante em razão das questões a conhecer é que deve ser objecto dessa decisão.
Isso mesmo enfatizam António Santos Abrantes Geraldes, Paulo Pimenta e Luís Filipe Pires de Sousa (Código de Processo Civil Anotado, vol. I, 2018, pág. 721),  quando explicam que o juiz da causa deve optar “por uma descrição mais ou menos pormenorizada ou concretizada, de acordo com as necessidades do pleito, desde que seja assegurada uma descrição natural e inteligível da realidade que, para além de revelar o contexto jurídico em que se integra, permita a qualquer das partes a sua impugnação”. E mais explicam (pág. 722) que “o regime consagrado no CPC de 2013 propugna uma verdadeira concentração naquilo que é essencial, depreciando o acessório, sendo importante que o juiz consiga traduzir em linguagem normal a realidade apreendida, explicitando, depois, os motivos que o determinaram, com destaque para a explanação dos factos instrumentais que o levaram a extrair as ilações ou presunções judiciais”.
Assim, e como tal delimitação deve estar igualmente presente na apreciação da impugnação da decisão sobre a matéria de facto (neste sentido veja-se o acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 17/5/2017, relatado por Fernanda Isabel Pereira e disponível em www.dgsi.pt, quando conclui que “o princípio da limitação dos actos, consagrado, no artigo 130.º do CPC, para os actos processuais em geral, proíbe, enquanto manifestação do princípio da economia processual, a prática de actos no processo – pelo juiz, pela secretaria e pelas partes – que não se revelem úteis para alcançar o seu termo”, e bem ainda que “nada impede que tal princípio seja igualmente observado no âmbito do conhecimento da impugnação da matéria de facto se a análise da situação concreta evidenciar, ponderadas as várias soluções plausíveis da questão de direito, que desse conhecimento não advirá qualquer elemento factual cuja relevância se projecte na decisão de mérito a proferir”), só há lugar à apreciação dos pontos indicados como impugnados na medida em que, não só devam constar do elenco de factos provados e não provados, no respeito pelo disposto no art.º 5º, nº 1 e nº 2, al b), do Código de Processo Civil, mas igualmente correspondam a factos com efectivo interesse para a decisão do recurso.
Por outro lado, e a respeito da enunciação dos factos instrumentais, decorre do nº 4 do art.º 607º do Código de Processo Civil que os mesmos não carecem de ser discriminados no elenco de factos provados, mas apenas referidos na medida das ilações que forem tiradas dos mesmos, para a demonstração dos factos essenciais alegados pelas partes.
Isso mesmo explicam igualmente António Santos Abrantes Geraldes, Paulo Pimenta e Luís Filipe Pires de Sousa (Código de Processo Civil Anotado, vol. I, 2018, pág. 718‑719), afirmando a necessidade de enunciação dos “factos essenciais (nucleares) que foram alegados para sustentar a causa de pedir ou para fundar as excepções, e de outros factos, também essenciais, ainda que de natureza complementar que, de acordo com o tipo legal, se revelem necessários para que a acção ou a excepção proceda”, bem como a necessidade de “enunciação dos factos concretizadores da factualidade que se apresente mais difusa” (e sendo que “a enunciação dos factos complementares e concretizadores far-se-á desde que se revelem imprescindíveis para a procedência da acção ou da defesa, tendo em conta os diversos segmentos normativos relevantes para o caso”), mas afirmando igualmente que, quanto aos factos instrumentais, “atenta a função secundária que desempenham no processo, tendente a justificar simplesmente a prova dos factos essenciais, para além de, em regra, não integrarem os temas da prova, nem sequer deverão ser objecto de um juízo probatório específico”, já que “o seu relevo estará limitado à motivação da decisão sobre os restantes factos, designadamente quando a convicção sobre a sua prova resulte da assunção de presunções judiciais”.
Revertendo tais considerações para o caso concreto, constata-se que o A. conclui (conclusões 29., 50., 52. e 74.) que a matéria que consta dos pontos a) a c), e), f), m), q), u) a bb) e dd) a jj) dos factos não provados não deve aí figurar, mas transitar para o elenco de factos provados, por corresponder a factualidade provada. E se é certo que o A. não indica expressamente a redacção de cada um dos novos factos que pretende ver dados como provados, a afirmação do erro de valoração da prova, relativamente a tais pontos, associada à indicação expressa dos mesmos nas conclusões do recurso, como estando erradamente elencados nos factos não provados, é quanto basta para afirmar o cumprimento do referido ónus primário de delimitação do objecto do recurso pelo A., no que respeita à impugnação da decisão de facto, não assistindo qualquer razão ao 1º R. quando defende que só a proposta expressa de nova redacção para a matéria de facto é que permitiria afirmar o cumprimento de tal ónus, na referida vertente primária.
Já no que respeita ao cumprimento do referido ónus secundário, o A. vem identificar as testemunhas que, no seu entender, afirmaram a verificação da factualidade que pretende ver dada como provada (a par das suas próprias declarações), mais transcrevendo os depoimentos em questão, para concluir que os mesmos mereciam valoração diversa daquela efectuada pelo tribunal recorrido, e assim conduzindo a dar como provada a factualidade em questão que foi dada como não provada.
Também nesta parte o 1º R. entende que a forma como a transcrição dos depoimentos é efectuada não permite o exercício cabal do contraditório, pelo que não se pode entender que está cumprido o referido ónus secundário de especificação das passagens da prova gravada que sustentam a impugnação da decisão de facto, assim havendo lugar à rejeição do recurso, nesta parte.
É certo que o cumprimento do disposto no art.º 662º do Código de Processo Civil pelo tribunal de recurso não dispensa o A. de dar cumprimento ao disposto no art.º 640º do Código de Processo Civil, no que respeita ao cumprimento do ónus secundário acima explicitado. Mas, no caso concreto, é inequívoco que a extensão da factualidade não provada que se pretende ver dada como provada justifica a transcrição de depoimentos em toda a sua extensão, desde logo porque permite o referido “acesso mais ou menos facilitado pela Relação aos meios de prova gravados relevantes” (segundo a caracterização do referido ónus secundário que é feita no acórdão do Supremo Tribunal de Justiça acima referido).
Com efeito, e como vem referido no mesmo acórdão, “este ónus de indicação exacta das passagens relevantes dos depoimentos gravados deve ser interpretado em termos funcionalmente adequados e em conformidade com o princípio da proporcionalidade, não sendo justificada a imediata e liminar rejeição do recurso quando – apesar de a indicação do recorrente não ser, porventura, totalmente exacta e precisa, não exista dificuldade relevante na localização pelo Tribunal dos excertos da gravação em que a parte se haja fundado para demonstrar o invocado erro de julgamento”.
Do mesmo modo, também no acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 15/2/2018 (relatado por Tomé Gomes e disponível em www.dgsi.pt) ficou afirmado que a “razão de ser do requisito de impugnação estabelecido na alínea a) do n.º 2 do artigo 640.º do CPC tem em vista o delineamento, por parte do recorrente, do campo de análise probatória sobre o teor dos depoimentos convocados de modo a proporcionar, em primeira linha, o exercício esclarecido do contraditório, por banda do recorrido, e a servir de base ao empreendimento analítico do tribunal de recurso, sem prejuízo da indagação oficiosa que a este tribunal é legalmente conferida, em conformidade com o disposto nos artigos 5.º, n.º 2, alínea a), 640.º, n.º 2, alínea b), 1.ª parte, e 662.º, n.º 1, do mesmo Código”. E aí ficou igualmente afirmado que “o nível de exigência na exactidão das passagens das gravações não se pode alhear da metodologia ou do modo concreto como os depoimentos foram prestados e colhidos em audiência”, sendo que “a decisão de rejeição do recurso com tal fundamento não se deve cingir a considerações teoréticas ou conceituais, de mera exegética do texto legal e dos seus princípios informadores, mas contemplar também uma ponderação do critério legal nas circunstâncias e modo como os depoimentos foram prestados e colhidos, bem como face ao grau de dificuldade que a indicação das passagens da gravação efectuada acarrete para o exercício do contraditório e para a própria análise crítica por parte do tribunal de recurso”.
Assim, nesse acórdão, como na restante jurisprudência do Supremo Tribunal de Justiça relativa à concreta configuração do referido ónus de impugnação secundário (citada em cada um dos acórdãos já identificados), salienta-se a existência da alegação de elementos identificativos da prova gravada que permitem concluir pelo preenchimento do referido ónus, desde a existência de transcrições (mais ou menos extensas) até à referência às sessões da audiência final em que os depoimentos gravados foram prestados, ou mesmo à localização temporal das partes relevantes relativamente à totalidade do depoimento (como nas referências ao princípio, meio ou fim do depoimento, ou, no caso em que o depoimento é prestado em mais de uma ocasião, à identificação da concreta ocasião onde se encontra a parte relevante).
Também António Santos Abrantes Geraldes, Paulo Pimenta e Luís Filipe Pires de Sousa (Código de Processo Civil Anotado, vol. I, 2018, pág. 771) sustentam que “o modo como se interpretam as normas sobre recursos não deve alhear-se dos grandes objectivos do processo civil, os quais tutelam no essencial a apreciação do mérito das pretensões. Isso é particularmente relevante quando está em causa a identificação, mais ou menos precisa, dos depoimentos em que o recorrente sustenta a sua posição (…). Por exemplo, é frequente a invocação de necessidade da indicação do minuto e do segundo da gravação em que se encontra a “passagem” que funda o recurso, fulminando-se com a rejeição os recursos que não satisfaçam tal pretenso requisito”.
E se não deixam de referir (pág. 770) a existência do referido ónus de indicação das passagens da gravação em que se funda a impugnação da decisão de facto (sem prejuízo da apresentação da respectiva transcrição), rejeitam, todavia, a “exponenciação dos ónus que a lei prevê nesta sede”, do mesmo modo rejeitando “uma interpretação demasiado rigorista, a ponto de ser violado o princípio da proporcionalidade e de ser denegada a pretendida reapreciação da matéria de facto”.
Ou seja, e transpondo tais considerações para o caso concreto, a posição expressa pelo 1º R. na sua alegação de resposta mais não representa que a referida interpretação demasiada rigorista do disposto no art.º 640º do Código de Processo Civil, a qual não é de acompanhar, antes havendo que afirmar que o A. deu cumprimento ao ónus de especificação que daí resulta, não só na sua vertente primária, mas também na sua vertente secundária, de indicação dos meios de prova que conduzem ao resultado pretendido e, no que respeita à prova gravada, com adequada identificação das passagens das gravações que entende conduzirem à alteração pretendida.
Assim, é em relação ponto dos factos não provados acima identificados que há que conhecer desta parte do recurso relativa à impugnação da decisão sobre a matéria de facto, desde logo observando o acima referido quanto à consideração dos factos instrumentais, complementares e concretizadores que resultam da instrução na instância recorrida e o disposto no art.º 662º do Código de Processo Civil.
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Quanto à matéria dos pontos a) a c), e) e f) dos factos não provados, respeitam os mesmos à factualidade alegada pelo A. nos art.º 4º a 6º, 8º e 9º da P.I., correspondendo à aquisição de determinados títulos pelo A. ao 1º R., mediante o preço acordado e pago em bolívares venezuelanos, e correspondendo ainda aos procedimentos respeitantes à entrega dos títulos ao A.
Sustenta o A. que a “esmagadora maioria dos factos alegados (…) na petição inicial foram dados como provados”, desde logo os que respeitam ao cumprimento, pelo 1º R., dos referidos procedimentos tendentes à entrega dos títulos, e correspondentes à ordem escrita de transferência que deu ao B., daí havendo que retirar a existência de um qualquer negócio celebrado entre A. e 1º R., por ser a única situação que justifica tal ordem dada por este último.
Como decorre dos art.º 349º e 351º do Código Civil, a partir de um facto conhecido o julgador pode afirmar um facto desconhecido, sendo essa presunção judicial admitida nos mesmos termos e casos em que é admitida a prova testemunhal.
Ou seja, as presunções judiciais “inspiram-se nas máximas da experiência, nos juízos correntes de probabilidade, nos princípios da lógica ou nos próprios dados da intuição humana” (Código Civil Anotado, Pires de Lima e Antunes Varela, vol. I, 4ª edição revista e actualizada, Coimbra, 1987, pág. 312).
E como já afirmou o Supremo Tribunal de Justiça, no seu acórdão de 14/7/2016 (relatado por Tomé Gomes e disponível em www.dgsi.pt), referindo-se às presunções judiciais, “importa ter presente que essas presunções são um meio frequente de provar os factos de natureza psicológica, já que estes, em regra, não são passíveis de demonstração directa, mas antes por via de circunstâncias e comportamentos exteriores que, à luz da experiência comum, indiciem condutas e atitudes, de índole cognitiva, afectiva ou volitiva, dos agentes visados”.
Ou seja, e acompanhando a alegação do A. caso se estivesse perante uma situação que, na normalidade das situações da vida, fizesse concluir, segundo as regras da experiência comum, que aquela ordem escrita de transferência do 1º R. mais não representava que a execução, por parte do mesmo, do acordo celebrado com o A., pelo qual lhe vendia os títulos objecto da referida ordem, haveria que concluir pela existência desse acordo de vontades, nos termos invocados pelo A.
Só que é o próprio A. que reconhece que “tem consciência que parte da factologia por si alegada – a ocorrida em solo venezuelano – está longe de corresponder aos parâmetros considerados normais e aceitáveis numa sociedade civilizada, como aquela que se vive em território nacional”.
Ou seja, porque “na Venezuela, as coisas infelizmente não se passam da mesma forma, sendo com facilidade e aparente normalidade que o vilipêndio, o suborno, a violência e a morte imperam” (e mais uma vez é o A. que o afirma, na sua alegação de recurso), bem pode suceder que essa “incivilidade” económica e social conduza a que alguém dê a uma instituição bancária uma ordem de transferência de valores mobiliários depositados na mesma, sem que tal signifique estar-se perante a celebração de um acordo de vontades, no âmbito do qual se tenha declarado a vontade de transmitir (ao beneficiário da ordem de transferência) tais valores mobiliários, contra o pagamento de um preço.
Dito de outra forma, se a “lógica normal das coisas” dita que se pudesse afirmar a verificação do acordo de vontade das partes a partir da constatação da actuação do 1º R., exactamente porque se pode intuir, de acordo com as máximas da experiência, que assim acontece em Portugal, face ao habitual modo de ser e de estar na sociedade portuguesa, já o mesmo não se pode afirmar quando a realidade socioeconómica envolvente é a da Venezuela, onde actos como aquele praticado pelo 1º R. não decorrem necessariamente da referida normalidade das situações de vida, mas de vivências e interesses apartados desta, como “o vilipêndio, o suborno, a violência e a morte” invocados pelo A.
Esta constatação da impossibilidade de afirmar a existência do acordo de vontades em questão sai reforçada, não só pelas declarações prestadas pelo A. na audiência final, mas igualmente pela sua conduta anterior, desde logo a contemporânea da conduta do 1º R.
Com efeito, resulta demonstrado (pontos 23. a 25. dos factos provados) que quando o B. questionou o 1º R. sobre a existência de duas ordens de transferência relativas aos mesmos valores mobiliários, concorrentes entre si, obteve deste a informação de que ambas deviam ser dadas sem efeito, designadamente porque aquela da qual era beneficiário o A. teria sido assinada “talvez por lapso ou engano”. E, do mesmo modo (ponto 26. dos factos provados), obteve do A. informação no mesmo sentido, pois que o A. declarou ao B. não ter conhecimento dessa instrução do 1º R. e não ter qualquer valor a receber do mesmo.
Do mesmo modo, nas declarações prestadas na audiência final o A. afirmou nunca ter pretendido adquirir obrigações, mais manifestando não saber ao certo o que é que são obrigações (definindo-as, inclusive, como “talvez um dinheiro para ganhar juros mais altos”) e que aquilo que queria era “só trazer o dinheiro [da Venezuela] para cá [Portugal], fazer a transferência do dinheiro”, mais negando ter tido qualquer contacto com o 1º R., e afirmando ainda não o conhecer.
Ou seja, se dúvidas houvesse quanto à impossibilidade de presumir que a ordem dada pelo 1º R. ao B. representava a execução de um acordo celebrado entre o 1º R. e o A., as mesmas dúvidas ficaram dissipadas pela referida actuação do A. e pelas declarações prestadas na audiência final, confirmando a inexistência do acordo em questão.
E nem vale a pena vir o A. invocar cenários de intimidação, coacção ou qualquer outra forma de limitação da sua vontade, na medida em que nenhum desses cenários se verifica quando o A. depõe presencialmente na audiência final, respondendo às perguntas que lhe foram colocadas pela juiz de direito que presidiu à mesma.
De todo o modo, também a testemunha KKN afirmou que o A. e o 1º R. nunca negociaram o que quer que fosse, mais confirmando que nem se conheciam, e que a única coisa que o A. queria era colocar em Portugal o equivalente a cerca de 2.800.000 bolívares venezuelanos, que tinha na Venezuela, sendo para isso que recorreu à testemunha, tendo presente a qualidade deste de funcionário do B., que já tinha estado a trabalhar na Venezuela, e a quem entregou a quantia em questão.
Assim, e mais concretamente no que respeita à matéria do ponto b) (a entrega do preço acordado pelo A. ao 1º R.), torna-se evidente das declarações prestadas pelo A. que o mesmo nunca quis entregar ao 1º R. qualquer preço (entendido o mesmo como a contrapartida monetária da entrega de uma coisa, ainda que incorpórea), e que quando entregou ao referido KKN a quantia de cerca de 2.800.000 bolívares venezuelanos em numerário tinha, tão só, em vista que este desenvolvesse as diligências necessárias para que tal valor fosse depositado na sua conta do B., em dólares americanos ou mesmo em euros, o que igualmente resulta do depoimento da testemunha em questão.
Assim, e no que respeita à factualidade dos pontos a) a c), é de acompanhar a fundamentação do tribunal recorrido, quando afirma que a “convicção do Tribunal assentou no conjunto de toda a prova produzida em audiência de julgamento, concretamente, nas declarações de parte do autor (…), que, nomeadamente no que se refere a negociações, acordos e combinações levados a cabo, respectivo escopo e mesmo intervenientes, em nada coincidiram com o aduzido na petição inicial, sendo que o autor, depois de afirmar que o que pretendia era colocar em Portugal dinheiro que detinha na Venezuela, por forma a que, na conta de que era titular nesta Região Autónoma aparecessem, em dólares, os bolívares que afirmou ter entregue, esclareceu que sempre contactou para o efeito com KKN, à data seu amigo e funcionário do B., testemunha nestes autos, a quem, segundo referiu, terá entregue bolívares, sem saber o que o mesmo iria fazer depois; esclareceu, ainda, que, na altura, não conhecia o réu (…), tendo mesmo afirmado que “nunca quis adquirir obrigações”, bem como que nada sabia acerca de ordens de transferência”.
Já no que respeita à factualidade dos pontos e) e f), revela-se a mesma meramente instrumental daquela outra factualidade essencial (a relativa à ordem escrita de transferência entregue pelo 1º R. ao B.), não apresentando qualquer relevo autónomo para integrar o elenco de factos provados, do mesmo modo não sendo apta a contradizer o acima referido, no que respeita ao afastamento da presunção judicial de que o A. pretendia lançar mão.
Assim, improcedem as conclusões do recurso do A., quanto à inclusão no elenco de factos provados da matéria dos pontos a) a c), e) e f) dos factos não provados.
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Quanto à matéria dos pontos m) e q) dos factos não provados, que respeita à falta de esclarecimentos ou explicações adicionais prestadas ao A. pelo B., relativamente à não execução da ordem de transferência que havia recebido do 1º R., resulta provado (ponto 28.) que a instituição bancária em questão esclareceu ao A. que se havia limitado a proceder de acordo com instruções recebidas do 1º R., sempre que o A. questionou o motivo pelo qual não foi executada a ordem de transferência escrita apresentada em 5/5/2010.
Mais resulta provado que até ao 1º R. ter apresentado nova ordem de transferência, concorrente da primeira (levando o B. a suspender ambas as ordens e pedir esclarecimentos ao 1º R., na sequência do que este informou que ambas as ordens de transferência deveriam ser dadas sem efeito), a ordem de 5/5/2010 não foi concretizada porque decorria um procedimento interno no B. para que a transferência ordenada fosse isenta da comissão respectiva.
Ou seja, a questão dos esclarecimentos ou explicações adicionais não se coloca, porque os factos respectivos inseriam-se no relacionamento do B. com o 1º R. e no funcionamento interno da instituição bancária, pelo que o B. não os podia comunicar ao A., sob pena de violar o dever de sigilo a que estava obrigado.
Dito de outra forma, não é porque o A. questionou repetidamente o B., designadamente para saber que “tipo de instruções teriam sido emitidas pelo 1º R. e qual o seu teor”, que o B. tinha de esclarecer ou pormenorizar tais instruções.
Acresce que a circunstância de o filho do A. trabalhar no B., aliada à proximidade entre o procurador do A. (o identificado JJN, cunhado do A.) e o já identificado KKN (irmão do JJN) é de molde a perceber que, mais cedo ou mais tarde, o A. sempre ficaria a saber dos pormenores dessas instruções. E isso mesmo reconhece o A. nos art.º 21º e seguintes da P.I., quando afirma ter conseguido apurar do conteúdo da ordem de transferência referida no ponto 11. dos factos provados. Mas, do mesmo modo, também o referido JJN explica, no seu depoimento que, não obstante lhe terem dito (os funcionários do B. que falaram consigo) que “não podiam dar explicações”, sempre lhe foram dizendo que estavam a aguardar para concretizar a ordem de transferência de 5/5/2010, o que só pode ter o significado de estarem a aguardar pelo resultado do pedido de isenção de comissão.
Assim, e se não só o A. logrou apurar que o 1º R. havia ordenado o resgate de parte dos títulos cuja transferência para o A. havia ordenado anteriormente, mais apurando que tal ordem de transferência foi classificada como tendo carácter urgente por uma funcionária do B., mas igualmente o seu procurador foi informado que a primeira ordem de transferência aguardava concretização por razões que se prendiam com o pedido interno de isenção de comissão, torna-se evidente que a matéria constante dos pontos m) e q) não pode ser dada como provada.
Assim, improcedem igualmente as conclusões do recurso do A., quanto à inclusão no elenco de factos provados da matéria dos pontos m) e q) dos factos não provados.
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Quanto à matéria dos pontos u) a bb) e dd) a jj) dos factos não provados, respeitam os mesmos aos danos não patrimoniais alegados pelo A. nos art.º 99º a 115º da P.I.
Sustenta o A. que tal matéria está demonstrada a partir das suas declarações e bem ainda dos depoimentos prestados pelo já referido JJN e pela testemunha MN (irmã do A.).
Começando pelo depoimento prestado pela irmã do A., não há como não concordar com o tribunal recorrido, quando afirma que “não revelou esta testemunha um conhecimento directo e concreto dos factos, na medida em que o respectivo depoimento assentou no que a testemunha ouviu dizer ao autor ou à testemunha KKN”. Com efeito, face à complexidade e extensão das afecções psicológicas alegadas pelo A., limitou-se esta testemunha a afirmar que “ele anda muito em baixo”, nada mais concretizando que permita afirmar que, para além da preocupação que resulta demonstrada no ponto 20. dos factos provados (e sendo que o “problema” aí referido se reporta à presente acção e ao seu desfecho), o A. ainda padece de todas as restantes afecções de índole psicológica que alegou na P.I.
Do mesmo modo, o depoimento de JJN também não se mostra apto a afirmar a verificação dessas afecções do A., desde logo porque confirmou que o contacto pessoal com o A. só ocorre quando o mesmo vem de férias, e sendo que quando o A. está na Venezuela “falamos algumas vezes, mas é mais a minha mulher e mulher dele”. Para além disso a testemunha explicou ainda que a preocupação do A. em não dispor da quantia peticionada se relaciona com a circunstância de querer reconstruir “uma casinha que comprou (…) nos anos 90”, o que afasta a tese factual da necessidade de cumprir compromissos previamente assumidos perante familiares e amigos.
Do mesmo modo, ainda, também as declarações do A. não são de molde a afirmar a existência desses compromissos, já que o mesmo explicou que pretendia destinar os cerca de 2.800.000 bolívares venezuelanos (o que é o mesmo que dizer, o seu contravalor em dólares americanos ou em euros) que havia poupado na Venezuela à reconstrução de uma casa situada na Região Autónoma da Madeira, e que havia comprado há 30 anos, decorrendo a sua tristeza da circunstância de agora não ter dinheiro para efectuar tal reconstrução. Todavia, o A. também explicou que tem tido a sua saúde afectada, inclusive tendo estado “na clínica bastante mal” (situação reportada a Agosto de 2018). E tendo igualmente alegado ter passado a padecer de uma depressão, com necessidade de acompanhamento médico e medicamentoso, a qual agravou o estado de ansiedade e tristeza em que se encontrava, não acompanhou tal alegação de qualquer documentação de natureza clínica, a partir de onde pudesse ser possível verificar a existência do diagnóstico de depressão, bem como a sua associação à demais situação alegada.
Ou seja, tendo presente todo o quadro alegado, que se apresenta como objectivamente grave, justificava-se que o A. estivesse acompanhado clinicamente, o que determinaria a consequente existência de documentação médica desse acompanhamento.
Assim, as declarações do A. e os depoimentos testemunhais acima referidos, porque desacompanhados de documentação bastante que concretize e consolide as afirmações genéricas e vagas das testemunhas e do próprio A., não são suficientes para dar como provada toda a matéria dos referidos pontos u) a bb) e dd) a jj) e dos factos não provados, relacionada com a saúde psíquica do A. e sua relação causal com a situação ocorrida em 2010.
Pelo que, também nesta parte improcedem as conclusões do recurso do A., quanto à inclusão no elenco de factos provados da matéria dos pontos u) a bb) e dd) a jj) dos factos não provados.
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Em suma, na total improcedência da impugnação da decisão de facto, mantém-se o decidido pelo tribunal recorrido quanto aos factos provados.
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Da responsabilidade do 1ª R.
A pretensão do A. no sentido de o 1º R. ser condenado (solidariamente com o 2º R., este na qualidade de substituto processual na posição do B., em resultado da medida de resolução aplicada a este último pelo Banco de Portugal em 20/12/2015) a pagar-lhe USD 380.000,00 e respectivos juros de mora, e bem ainda a pagar-lhe € 30.000,00, assenta na existência de um contrato de compra e venda de valores mobiliários da titularidade do 1º R., sendo o 1º R. responsável pelo ressarcimento dos danos patrimoniais e não patrimoniais sofridos pelo A., em razão do incumprimento da sua obrigação principal emergente desse contrato de compra e venda, correspondente à entrega dos valores mobiliários objecto do contrato.
Na sentença recorrida afirmou-se a ausência da responsabilidade do 1º R. que lhe é imputada pelo A., pela seguinte forma:
Nas acções baseadas em contratos, e partindo da noção legal que nos é dada pelo artigo 581º, nº. 4, do Código de Processo Civil, podemos dizer que o núcleo essencial da causa de pedir é constituído pela celebração de certo contrato gerador de direitos, devendo o autor alegar, para além das cláusulas essenciais definidoras do negócio celebrado, os factos materiais indispensáveis à integração dos outros factos jurídicos ajustados à sua pretensão.
Estabelece o artigo 5º, n.º 1, do Código de Processo Civil, sob a epígrafe “ónus de alegação das partes e poderes de cognição do tribunal”, que às partes cabe alegar os factos essenciais que constituem a causa de pedir e aqueles em que se baseiam as excepções. Coloca, deste modo, tal normativo, a cargo das partes a alegação dos factos em que se funda a sua pretensão.
Por seu turno, dispõe o artigo 342º, n.º 1 do Código Civil que àquele que invocar um direito cabe fazer a prova dos factos constitutivos do direito alegado. O n.º 2 do mesmo preceito estabelece que a prova dos factos impeditivos, modificativos ou extintivos do direito invocado compete àquele contra quem a invocação é feita. Trata este preceito do chamado ónus da prova.
Tal ónus traduz-se no encargo imposto à parte a quem o mesmo compete de fornecer ao tribunal a prova do facto visado, incorrendo nas desvantajosas consequências de ter como líquido o facto contrário, quando omitiu ou não logrou realizar essa prova, ou, na necessidade de, em todo o caso, sofrer tais consequências se os autos não contiverem prova bastante desse facto (cfr. MANUEL DE ANDRADE, Noções Elementares de Processo Civil, 1956, pág. 184).
Ora, resulta do que ficou dito que cabia ao autor provar os factos tendentes a demonstrar a celebração de determinado contrato, as respectivas cláusulas essenciais definidoras do negócio celebrado, tais como, prestação ou prestações a que se terá obrigado, contraprestação ou contraprestações a que o réu (ou os réus) se terá vinculado, designadamente preços, datas de vencimento, interpelações, e outros os factos ajustados à sua pretensão.
In casu, verifica-se que da factualidade provada não resultam quaisquer factos susceptíveis consubstanciar a celebração pelo autor de determinado negócio ou contrato, nomeadamente com o réu JP, capazes de fundamentar o peticionado contra o mesmo.
Assim sendo, não poderá deixar, desde logo, de improceder o pedido formulado contra o réu JP”.
O fundamento apresentado pelo A. para contrariar tal entendimento assenta, tão só, na existência de uma factualidade que não é aquela que está dada como provada.
Com efeito, é por concluir que foi celebrado um contrato de compra e venda de valores mobiliários que o A. afirma a obrigação do 1º R. indemnizar os prejuízos causados pelo incumprimento da obrigação deste, correspondente à entrega ao A. dos valores mobiliários transaccionados, face ao disposto no art.º 798º do Código Civil.
Todavia, mantendo-se incólume a factualidade provada, nos termos constantes da sentença recorrida, é de acompanhar o aí afirmado, no sentido de não estar demonstrada a existência de qualquer relação contratual entre o A. e o 1º R., a desencadear a responsabilidade deste, nos termos invocados pelo primeiro.
É certo que na sua alegação de recurso o A. vem invocar o instituto do enriquecimento sem causa, para concluir que sempre lhe assistirá o direito à restituição da quantia que entregou ao 1º R.
Tal invocação é inovatória, relativamente à causa de pedir apresentada na P.I. e conhecida na instância recorrida. E sendo o modelo do nosso sistema de recursos o de reponderação (e não o de reexame), está excluída a possibilidade de alegação de factos ou questões novas na instância de recurso, salvo quanto àquelas que sejam de conhecimento oficioso. Por isso é que, como se refere no acórdão de 28/5/2009 do Supremo Tribunal de Justiça (relatado por Oliveira Rocha e disponível em www.dgsi.pt), “do específico ponto de vista da instância recursiva, tem-se por certo que, como é jurisprudência uniforme, sendo os recursos meios de impugnação das decisões judiciais, destinados à reapreciação ou reponderação das matérias anteriormente sujeitas à apreciação do tribunal a quo e não meios de renovação da causa através da apresentação de novos fundamentos de sustentação do pedido (matéria não anteriormente alegada) ou formulação de pedidos diferentes (não antes formulados), ou seja, visando os recursos apenas a modificação das decisões relativas a questões apreciadas pelo tribunal recorrido (confirmando-as, revogando-as ou anulando-as) e não criar decisões sobre matéria nova, salvo em sede de matéria indisponível, a novidade de uma questão, relativamente à anteriormente proposta e apreciada pelo tribunal recorrido, tem inerente a consequência de encontrar vedada a respectiva apreciação pelo Tribunal ad quem”.
Ou seja, desde logo fica afastada a possibilidade deste Tribunal de recurso apreciar se estão reunidos os pressupostos da aplicação do instituto do enriquecimento sem causa, para determinar a condenação do 1º R. a restituir ao A. a indicada quantia de USD 380.000,00, na exacta medida em que só agora vem o A. formular tal pretensão.
Todavia, ainda que se entendesse que mais não se tratava que de uma questão relacionada com a indagação, interpretação e aplicação de regras de direito, a determinar o seu conhecimento pelo tribunal, nos termos do nº 3 do art.º 5º do Código de Processo Civil, desde logo havia que afirmar não ser possível dar provimento à pretensão do A., com recurso a tal instituto jurídico.
Com efeito, a aplicação do mesmo exige a verificação cumulativa de quatro requisitos, a saber: a) a existência de um enriquecimento; b) que careça de causa justificativa; c) que o mesmo tenha sido obtido à custa do empobrecimento daquele que pede a restituição, e; d) que a lei não faculte ao empobrecido outro meio de ser restituído/indemnizado.
E como no caso concreto dos autos não é possível retirar da factualidade apurada que haja ocorrido uma deslocação patrimonial do A. para o 1º R., desde logo falharia um dos pressupostos para a aplicação do instituto do enriquecimento sem causa.
Em suma, nesta parte há que acompanhar o afirmado na sentença recorrida, quanto à falta de demonstração de qualquer contrato entre as partes que conduza o R. a responder perante o 1º A., em consequência do incumprimento das obrigações assumidas por esse relacionamento contratual.
Pelo que, na improcedência das conclusões do recurso do A., no que respeita a esta questão da responsabilidade do 1º R. perante o A., há que manter o decidido quanto à absolvição do 1º R. do pedido.
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Da responsabilidade do 2º R.
A pretensão do A. no sentido de o 2º R. ser condenado (solidariamente com o 1º R.) a pagar-lhe USD 380.000,00 e respectivos juros de mora, e bem ainda a pagar-lhe € 30.000,00, assenta na responsabilidade do B. pelo ressarcimento dos danos patrimoniais e não patrimoniais sofridos pelo A., em razão da violação dos seus deveres de intermediário financeiro, no que respeita à transferência de valores mobiliários ordenada pelo 1º R.
Formula ainda o A. o pedido de condenação do 2º R. a entregar-lhe o valor do saldo da sua conta de depósitos à ordem e respectivos juros de mora, existente à data em que a referida conta foi bloqueada, sem qualquer fundamento e em violação das suas obrigações enquanto instituição bancária depositária da quantia em questão.
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Começando pela primeira das questões que se prendem com a responsabilidade do 2º R., entendeu o tribunal recorrido não assistir ao mesmo a responsabilidade que lhe é imputada pelo A., com recurso à seguinte fundamentação:
O que ficou dito quanto à ausência de prova vale relativamente a qualquer intervenção ou interferência do réu banco em negociações e contratos celebrados entre o autor e o réu (…), pois que, nada na factualidade provada permite concluir por uma tal materialidade.
No entanto, e considerando a pretensão indemnizatória do autor assente na violação pelo réu banco dos seus deveres enquanto intermediário financeiro, ao não executar a ordem de transferência de unidades de participação em fundos de investimento da conta do réu (…) para a conta do autor, deste modo se vendo o autor privado dos títulos objecto da ordem de transferência, impõe-se averiguar, relativamente ao réu banco, se se verificam ou não os pressupostos da responsabilidade civil extracontratual e, em caso afirmativo, apurar os elementos e definir os critérios para o cômputo do montante indemnizatório a atribuir ao autor.
Está, assim, aqui em causa a actividade do banco enquanto depositário das unidades de participação em fundos de investimento.
(…)
A norma central em matéria da responsabilidade civil dos intermediários financeiros por violação dos princípios e deveres relativos à prestação de serviços de intermediação financeira encontra-se prevista no artigo 304.º-A do CVM, o qual reza o seguinte: “1 – Os intermediários financeiros são obrigados a indemnizar os danos causados a qualquer pessoa em consequência da violação dos deveres respeitantes à organização e ao exercício da sua actividade, que lhes sejam impostos por lei ou por regulamento emanado de autoridade pública. 2 – A culpa do intermediário financeiro presume-se quando o dano seja causado no âmbito de relações contratuais ou pré‑contratuais e, em qualquer caso, quando seja originado pela violação de deveres de informação.”
(…)
Cumpre, agora, apreciar cada um dos referidos pressupostos à luz do caso sub judice. O facto revela-se na não execução da ordem de transferência dada pelo réu JP dos fundos de investimento da sua conta bancária para conta bancária do autor, enquanto omissão de conduta humana dominável ou controlável pela vontade, em concreto nos factos constantes dos pontos 3., 6., 7., 8. e 19., 24. e 27. da factualidade provada. A omissão assim descrita preenche o primeiro pressuposto da responsabilidade civil por factos ilícitos.
Como se disse supra, o segundo pressuposto traduz-se na ilicitude, contemplando esta, neste caso específico, e face ao disposto no supracitado artigo 304.º-A, n.º 1, que regula a responsabilidade do intermediário financeiro, a violação de normas de protecção, sejam elas de fonte legislativa ou regulamentar, isto é, a violação dos deveres respeitantes à organização e ao exercício daquela actividade, que sejam impostos por lei ou por regulamento emanado de autoridade pública.
Ora, desde logo, neste aspecto, impõe-se a conclusão de que da factualidade provada não resulta a violação de disposição legal ou regulamentar destinada a proteger interesses relativos à organização e ao exercício da actividade de intermediação financeira.
Mais concretamente, a factualidade provada não revela que a referida conduta omissiva do Banco B. se traduza numa violação de um ou de vários deveres funcionais que integram o estatuto jurídico‑profissional (de índole legal, contratual ou deontológica) do intermediário financeiro, no quadro da prestação dos serviços de intermediação financeira, nomeadamente atinentes ao princípios e deveres supra enunciados. Ao invés, a materialidade assente enunciada (cfr. pontos 1. a 3., 6., 7., 8. a 19., 21. a 28. da fundamentação de facto) aponta em sentido inverso, isto é, do cumprimento de tais deveres.
Com efeito, o artigo 325º do CVM estabelece que, logo que recebam uma ordem para a realização de operações sobre instrumentos financeiros, os intermediários financeiros devem verificar a legitimidade do ordenador (alínea a) e adoptar as providências que permitam, sem qualquer dúvida, estabelecer o momento da recepção da ordem (alínea b), sendo que, nos termos do disposto no n.º 4 do artigo 326º do mesmo diploma, na execução de ordens, o intermediário financeiro cumpre os seguintes deveres, bem como os previstos na legislação da União Europeia: a) registar as ordens e proceder à sua execução de modo sequencial e com celeridade, salvo se as características da ordem ou as condições prevalecentes no mercado o impossibilitarem ou se tal não permitir salvaguardar os interesses do cliente (alínea a); b) informar imediatamente os investidores não profissionais sobre qualquer dificuldade especial na execução adequada das suas ordens.
Não se poderá, também, descurar o que dispõe o artigo 329º, n.º 1 do CVM, segundo o qual as ordens podem ser revogadas ou modificadas desde que a revogação ou a modificação cheguem ao poder de quem as deva executar antes da execução.
No caso concreto, a factualidade descrita nos mencionados pontos da fundamentação de facto aponta no sentido de que, antes da execução da ordem do réu JP referida nos pontos 3. e 6. dos factos provados, e durante o procedimento interno referido em 21. e 23. dos mesmos factos, o referido réu emitiu outra ordem de transferência, que foi apresentada no banco, contendente com a anterior (pontos 11. a 16. e 23. dos factos provados), sendo que, entretanto, acabou por chegar ao banco informação do réu ordenante e do próprio autor no sentido de uma “modificação” da ordem em causa (pontos 26. e 27 da fundamentação de facto), tendo o autor obtido do banco a informação a que aludem os pontos 9., 10. e 28., sendo certo que sobre tal entidade impende também o dever de segredo profissional (artigo 304º, nº 4 do CVM, artigo 78º do RGIC).
Pelo que fica dito, conclui-se que não está preenchido este pressuposto da responsabilidade civil, ou seja, o pressuposto da ilicitude.
Não apurada a ilicitude, e como se extrai também do que já ficou dito, nada mais haverá a averiguar, por falta de pressuposto essencial da responsabilidade invocada pelo autor.
Assim sendo, não poderão deixar de improceder os pedidos de indemnização formulados sob os pontos A. e B., relativamente a qualquer dos réus”.
Já o A. entende, essencialmente, que o B. não executou a ordem de transferência dos valores mobiliários depositados para a sua conta, no prazo acordado, nem esclareceu o A. sobre os motivos pelos quais não executou a ordem, assim violando os deveres de conduta a que se encontrava sujeito, enquanto intermediário financeiro, designadamente os ditames da boa fé.
Todavia, o A. não apresenta qualquer argumentação pela qual conclua que os preceitos legais referidos na sentença recorrida devam ser interpretados no sentido por si defendido, e não no sentido constante da sentença recorrida.
Com efeito, o A. não discute que a responsabilidade do 2º R. não tem por fonte uma qualquer relação contratual entre ambos, o que se apresenta como incontroverso, porque a actividade de intermediação financeira correspondente à execução da ordem de transferência estabeleceu-se entre o 1º R. (titular dos valores mobiliários e ordenante da sua transferência para a titularidade do A.) e o B. (instituição bancária onde tais valores mobiliários se encontravam depositados), e não entre o A. e o B..
Nesta medida, e estando em causa a responsabilidade extracontratual que resulta do disposto no nº 1 do art.º 304º-A do Código dos Valores Mobiliários, o B. só se constituiu na obrigação de reparar os prejuízos sofridos pelo A. na medida em que os mesmos resultem da violação culposa de normas destinadas à protecção dos interesses inerentes à organização e ao exercício da actividade daquele como intermediário financeiro, e independentemente da existência de uma relação obrigacional a montante da conduta omissiva em que se consubstancie a referida violação de deveres do B..
Mas a factualidade provada não permite afirmar qualquer violação dos deveres a que o B. estava obrigado, no âmbito da actividade desenvolvida como intermediário financeiro, gerindo a carteira de instrumentos financeiros do 1º R. e, nesse domínio, executando os actos necessários à concretização da transferência que o mesmo solicitou ao B., em 5/5/2010.
Assim, estando em causa a execução de uma ordem, importa desde logo atentar no conjunto de deveres inerentes a esse acto, tal como os mesmos decorrem do art.º 328º do Código dos Valores Mobiliários, designadamente a sua execução célere, salvo se as características da ordem ou as condições prevalecentes no mercado o impossibilitarem ou se tal não permitir salvaguardar os interesses do cliente.
No caso concreto a ordem em questão envolvia o pagamento, pelo 1º R. ao B., de uma comissão. O que significa que assistiria ao B. o direito a deduzir tal comissão ao valor dos instrumentos financeiros objecto da ordem de transferência. Daí decorre que a ordem do 1º R. não podia ser imediatamente executada, sob pena de não ser executada nos exactos termos apresentados, ou seja, no que respeita à totalidade dos títulos de participação em fundos de investimento, no montante global de USD 380.000,00, já que a tal valor havia o B. de subtrair o montante da comissão que lhe era devida.
Fica assim justificado o procedimento interno a que alude o ponto 21. dos factos provados, enquanto medida de protecção dos interesses do seu cliente (1º R.), pois que só com a isenção de comissão que esse procedimento visava, a autorizar superiormente, é que se mostrava possível dar integral e efectivo cumprimento à transferência solicitada.
Dito de outro modo, estando o B. a actuar como intermediário financeiro, gerindo a carteira de instrumentos financeiros do 1º R., os princípios que emanam do art.º 304º do Código dos Valores Mobiliários impunham-lhe tal diligência (a abertura e tramitação do referido procedimento interno), assim se justificando a não execução imediata da ordem de transferência.
Por outro lado, sempre assistia ao 1º R. o direito potestativo a revogar ou modificar a ordem de transferência, antes de a mesma ser executada pelo B., como resulta claro do art.º 329º do Código dos Valores Mobiliários. O que equivale a afirmar o dever de o B. não dar seguimento à ordem de 5/5/2010, caso da conduta do 1º R. pudesse resultar, por qualquer forma, que o mesmo não mais queria que a transferência fosse concretizada.
Foi isso exactamente que aconteceu, já que enquanto decorria o procedimento interno tendente a isentar de comissão a transferência ordenada pelo 1º R., este apresentou uma nova ordem de transferência concorrente daquela de 5/5/2010, assim levando o B. a questionar o 1º R. sobre qual a ordem que devia ser executada. E a resposta do 1º R. corresponde à revogação expressa da transferência ordenada em 5/5/2010, num momento em que a mesma ainda não havia sido executada, já que se aguardava a autorização superior para isentar a mesma transferência da comissão respectiva.
Ou seja, perante tal posição do 1º R. ficou o B. obrigado a não mais executar a mesma, disso informando o A., atenta a sua qualidade de beneficiário da transferência ordenada em 5/5/2010.
E se é certo que a actividade informativa a desenvolver pelo B. face ao A. sempre carecia de se pautar pelo disposto no art.º 7º do Código dos Valores Mobiliários, desde logo no que respeita à sua completude, também não se pode esquecer que o B. continuava sujeito ao dever de segredo profissional, nos termos do nº 4 do art.º 304º do Código dos Valores Mobiliários, o que conduzia a que a informação a prestar ao A. não devesse conter mais elementos que os que continha, já que os demais elementos factuais, relativos aos actos praticados pelo B. no âmbito da sua organização interna, e em defesa dos legítimos interesses do seu cliente (o 1º R. ordenante), estavam protegidos por esse dever de segredo.
Ou seja, se é certo que um dos princípios que orientava a actuação do B., face ao A., era a observância dos ditames da boa fé, de acordo com elevados padrões de diligência, lealdade e transparência (como resulta do nº 2 do art.º 304º do Código dos Valores Mobiliários), têm tais padrões de se ter por respeitados quando o B. deu conhecimento ao A. do motivo pelo qual a ordem de transferência de 5/5/2010 não foi executada. É que quando o B. não executa imediatamente a ordem de transferência de 5/5/2010, antes suscitando autorização superior para que a operação em questão ficasse isenta da comissão respectiva, e aguardando o surgimento dessa autorização, e depois informa e esclarece o A. (beneficiário da transferência) que não executou a ordem de transferência porque procedeu de acordo com as instruções do 1º R. (que revogou a mesma ordem, antes de estar executada), não se está perante a violação de quaisquer deveres respeitantes à organização e ao exercício daquela actividade de intermediário financeiro, na exacta medida em que é dos preceitos legais que regulam essa actividade que emerge o dever de o B. actuar como actuou, e não pela forma pretendida pelo A.
O que é o mesmo que afirmar que a conduta do B. que resulta provada não se pode considerar ilícita, porque não se verifica qualquer violação das normas destinadas à protecção dos interesses inerentes à organização e ao exercício da actividade daquele como intermediário financeiro.
Invoca ainda o A. a violação da lei venezuelana que regula a actividade bancária em território venezuelano, para concluir pela actuação ilícita do B. (e do 1º R.), porque proibida nos termos da referida legislação, e já que o escritório de representação aí existente actuou na defesa dos interesses próprios (do B. e do 1º R.) e em prejuízo dos interesses do A.
Sucede que, como resulta da matéria de facto provada, a actividade do B. aqui em causa ocorreu em território nacional, mais concretamente na Região Autónoma da Madeira, onde estava sedeada a denominada Sucursal Financeira Exterior, e onde se encontravam domiciliadas as contas do A. e do 1º R., designadamente aquela onde se encontravam depositados os valores mobiliários objecto das ordens de transferência.
Pelo que a determinação dos deveres de conduta do B., para efeitos do apuramento da sua responsabilidade como intermediário financeiro, dispensa o recurso ao referido ordenamento jurídico estrangeiro, já que se trata da actuação de uma entidade nacional, em território nacional, e regulada pela lei nacional.
Em suma, e como bem se refere na sentença recorrida, não é possível afirmar a responsabilidade do B. por quaisquer prejuízos sofridos pelo A. em consequência da não concretização da ordem de transferência de 5/5/2010, já que um dos pressupostos dessa obrigação de reparação de tais prejuízos era a ilicitude da sua conduta, não verificada.
O que equivale a concluir que há que manter o decidido na sentença recorrida, relativamente à absolvição do 2º R. do pedido de condenação no pagamento de USD 380.000,00 e respectivos juros de mora, e bem ainda de € 30.000,00, assim improcedendo as conclusões do recurso do A., nesta parte.
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Relativamente à segunda das questões que se prendem com a responsabilidade do 2º R., entendeu o tribunal recorrido não estar o mesmo obrigado a entregar ao A. o saldo da conta bancária da titularidade deste, recorrendo à seguinte fundamentação:
O depósito bancário é hoje regulado, em geral, pelo Decreto-lei nº 430/91, de 2 de Novembro, alterado pelo Decreto-lei nº 88/2008, de 29 de Maio. Sem que ali dê definição de depósito bancário, o respectivo artigo 1º estabelece as modalidades de depósito possíveis nas disponibilidades monetárias nas instituições de crédito.
São aplicáveis ao depósito bancário, por força do artigo 1206º do Código Civil, as disposições relativas ao mútuo, designadamente a obrigação de restituição do tantundem eiusdem generis (artigo 1142º do mesmo código), mais os juros, quando convencionados, e a transferência da propriedade sobre as espécies monetárias pelo facto da entrega (artigo 1144° também do Código Civil).
JOSÉ ENGRÁCIA ANTUNES (ob. cit., pág. 493) colocando embora a tónica na natureza acessória do depósito bancário relativamente ao contrato de conta bancária, caracteriza aquele “por dois elementos essenciais: por um lado, a entrega material ou electrónica pelo depositante de uma quantia em dinheiro ao banco depositário, o qual passa a ser assim titular da propriedade e risco das disponibilidades monetárias depositadas; por outro lado, a restituição de igual quantia nos termos acordados, usualmente acrescida dos juros”.
Na presente acção, impõe-se primeiramente apurar se se verificou incumprimento culposo do contrato de depósito bancário celebrado entre o autor e o banco, sendo que, se verificado o incumprimento, caberá, então, apurar as respectivas consequências.
O inadimplemento resulta da desconformidade entre a conduta devida (prestação debitória) e o comportamento observado.
Constatado o incumprimento, a culpa presume-se, isto é, o devedor é que tem que provar as causas de exculpação (artigo 799º, n.º 1 do Código Civil) e o dano, o que, no caso do depósito bancário, atendendo aos artigos 799º, nº 1, 1144º, 1185º, 1205º e 1206º e 1161º, alínea e), todos do Código Civil, é ao banco que cabe o ónus da elisão da presunção legal que sobre ele impende, demonstrando a culpa do cliente depositante, designadamente na não restituição do dinheiro.
No essencial, aponta o autor ao banco a violação de deveres jurídicos emergentes do apontado contrato de depósito.
Dito isto, no âmbito de uma convenção de depósito assumem ambas as partes (Banco e cliente/depositante) diversos deveres gerais e específicos de conduta e de protecção.
Assim, e designadamente o Banco deve facultar ao depositante a restituição de quantia igual à quantia em dinheiro entregue pelo depositante ao banco depositário, nos termos acordados, usualmente acrescida dos juros.
Importa, assim, averiguar se, não obstante os deveres específicos de conduta a cargo do banco, como depositário, este, infringindo-os, veio impedir a movimentação da conta pelo autor e a recusar a restituição da quantia depositada na conta de depósito de que o autor é titular.
Desde logo, importa salientar que, não obstante a factualidade provada sob os pontos 4. e 5. da fundamentação de facto, não resultando de tal factualidade em que consistiu concretamente o “bloqueio” da conta de depósito à ordem titulada pelo autor e que circunstâncias concretas ou condutas activas ou omissivas do banco terão conduzido a tal “bloqueio”, não é possível concluir se o “bloqueio” se traduziu numa infracção de deveres específicos de conduta a cargo do banco, como depositário.
Com efeito, resultando da factualidade provada tão só que existiu um “bloqueio” por parte do banco da conta de depósito à ordem titulada pelo autor, que se mantém até à presente data e que impede o autor de movimentar a conta, a qual ainda integra o valor de 689 euros, não é possível concluir se tal circunstância se traduzirá numa apreensão e cativação dos respectivos valores por parte do banco, sem qualquer motivo contratualmente legitimado ou justificado, ou em contravenção aos deveres do banco, no âmbito do contrato de depósito bancário, não sendo de descurar que uma tal situação poderá resultar, para além de circunstâncias contratualmente estabelecidas, de causas legal e judicialmente impostas, como acontece com a penhora, arresto ou arrolamento.
Ora, resulta do que ficou dito que cabia ao autor alegar e provar os factos tendentes a demonstrar o inadimplemento por parte do banco.
In casu, verifica-se que da factualidade provada não resultam factos susceptíveis consubstanciar um tal incumprimento.
Assim sendo, não poderá deixar de improceder também este pedido formulado pelo autor”.
O A. discorda deste entendimento, afirmando que a circunstância de se tratar do saldo de uma conta de depósitos à ordem faz com que o mesmo devesse estar disponível para ser movimentado pelo A., não podendo o depositário (no caso concreto, o B.) recusar a entrega desse saldo, a não ser em situações excepcionais, que não foram alegadas por qualquer um dos RR.
Já o 2º R., na sua alegação de recurso, não apresenta qualquer argumento no sentido da manutenção do decidido, nesta parte, pelo tribunal recorrido.
Não sofre qualquer controvérsia a afirmação da caracterização do depósito bancário como um depósito irregular, porque importa a transferência da propriedade da quantia depositada para o banco depositário, com o consequente surgimento de um direito de crédito do cliente bancário depositante sobre o banco depositário.
Mas também não sofre qualquer controvérsia a afirmação da aplicação das disposições relativas ao mútuo, designadamente no que respeita à obrigação do banco depositário de restituir os valores monetários entregues pelo cliente depositante.
E tratando-se de valores monetários depositados numa conta de depósitos à ordem, significa isso, como defende o A., que os valores monetários em depósito devem estar sempre disponíveis para levantamento pelo depositante.
O que é o mesmo que dizer que o banco depositário só pode recusar a entrega dos valores monetários depositados caso disponha de causa legítima para tanto, como, por exemplo, a circunstância de os mesmos estarem cativados para garantir o cumprimento de responsabilidades do cliente depositante, ou de terem sido alvo de acto judicial de apreensão (v.g. penhora ou arresto).
Assim, e reconduzindo tais considerações ao caso concreto dos autos, está dado como provado que a partir de 9/6/2010 o B. “bloqueou” a conta de depósitos à ordem da titularidade do A., situação que se vem mantendo, apresentando aquela o saldo de € 689,00, que o A. ficou impossibilitado de movimentar.
Ou seja, tal “bloqueio” corresponde a uma actuação do B. que, na prática, representa a omissão do dever de ter aquele valor de € 689,00 disponível para levantamento pelo A.
O que equivale a afirmar a ilicitude da conduta do mesmo, enquanto banco depositário daquele valor monetário, porque violadora da sua obrigação contratual de manter tal valor monetário disponível para levantamento pelo A., a todo o tempo. E só assim não seria se se lograsse demonstrar uma qualquer factualidade que permitisse concluir que a recusa de disponibilização do referido valor assentava numa causa legítima, nos termos acima referidos.
Ou seja, porque estava em causa factualidade que visava impedir o efeito jurídico dos factos alegados (e provados) pelo A., à face do disposto no art.º 342º, nº 2, do Código Civil era ao 2º R. que competia alegar e provar a mesma, e não ao A.
Sucede que o 2º R. não alegou (nem tão pouco provou) qualquer factualidade de onde resultasse o carácter legítimo da actuação em questão, pois que se limitou a afirmar (art.º 36º da contestação) que “o bloqueio da conta de depósitos à ordem (…) contextualizou-se nos termos supra (…)”. Mas o contexto alegado nos artigos antecedentes da contestação apenas se reporta à conformidade da actuação do B. na sua qualidade de intermediário financeiro que geria a carteira de instrumentos financeiros do 1º R. e que recebeu desde a ordem de 5/5/2010 e a ordem subsequente, concorrente da primeira. E é manifesto que essa factualidade, ainda que provada nos termos em que o foi (pontos 21. a 27. dos factos provados), não tem a virtualidade de fazer afirmar o direito do B. a qualquer cativação do referido saldo de 689,00 do A. Com efeito, sendo a relação contratual de gestão da carteira de instrumentos financeiros estabelecida entre o B. e o 1º R., não podia o B. ter qualquer crédito sobre o A. emergente dessa relação, que legitimasse o “bloqueio” que foi dado como provado.
Em suma, quando o B. impediu o acesso do A. ao saldo de € 689,00 existente na conta de depósitos à ordem da titularidade deste, mantendo esse impedimento ao longo do tempo e até ao presente, violou a sua obrigação de disponibilizar ao A. tal valor monetário a todo o tempo, no âmbito da relação contratual de índole bancária mantida entre ambos.
E em consequência dessa actuação ilícita, e que se presume culposa, por força do disposto no art.º 799º do Código Civil, tornou-se o B. (e agora o 2º R., por força da já referida substituição processual) responsável pelo prejuízo causado ao A. (art.º 798º do Código Civil), o qual corresponde ao valor monetário em questão.
Ou seja, nesta parte não pode subsistir o decidido na sentença recorrida, procedendo as conclusões do recurso do A. e havendo que condenar o 2º R. a restituir ao A. a referida quantia de € 689,00, acrescida de juros de mora à taxa legal, desde a citação e até integral pagamento, por força do disposto nos art.º 804º, 805º, nº 1, e 806º, nº 1 e 2, todos do Código Civil.
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DECISÃO
Em face do exposto julga-se parcialmente procedente o recurso e revoga-se a sentença recorrida, que se substitui por esta outra decisão em que, na parcial procedência da acção:
- Absolve-se o 1º R. do pedido;
- Condena-se o 2º R. a pagar ao A. a quantia de € 689,00 (seiscentos e oitenta e nove euros), acrescida de juros de mora à taxa legal, vencidos e vincendos desde a citação e até integral pagamento.
No mais que excede a medida da presente condenação, vai o 2º R. absolvido do pedido.
Custas (na acção e no recurso) por A. e 2º R., na proporção do respectivo decaimento.

24 de Novembro de 2022
António Moreira
Carlos Castelo Branco
Orlando Nascimento