Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
13920/20.7T8SNT-D.L1-8
Relator: MARIA DO CÉU SILVA
Descritores: CONJUGES
SEPARAÇÃO DE FACTO
DEVER DE ASSISTÊNCIA
ALIMENTOS
MEIO PROCESSUAL
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 02/24/2022
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Texto Parcial: N
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: PROCEDENTE
Sumário: 1 O dever de assistência que recai sobre os cônjuges desdobra-se em duas obrigações distintas: a de prestação de alimentos e a de contribuição para os encargos da vida familiar.

2 Numa situação de separação de facto, não há vida familiar, mas isso não significa que não possa haver despesas que continuem a poder ser qualificadas de “encargos da vida familiar”.

3 O cônjuge que pretenda exigir do outro cônjuge o contributo para os encargos da vida familiar pode recorrer à providência prevista no art. 992º do C.P.C. mesmo que estejam separados de facto.

4 A providência da contribuição do cônjuge para as despesas domésticas não é o meio processual adequado ao pedido de condenação do requerido a prestar alimentos.

6 Na pendência de ação de divórcio, o cônjuge que pretende a fixação de alimentos provisórios, deve requerê-lo na própria ação de divórcio, ao abrigo do disposto no art. 931º nº 7 do C.P.C.


Decisão Texto Parcial:
Decisão Texto Integral: Acordam os Juízes do Tribunal da Relação de Lisboa



Na presente providência de contribuição do cônjuge para despesas domésticas que S….. requereu contra R….., a requerente interpôs recurso da decisão pela qual foi julgado improcedente o pedido por ela formulado.

Na alegação de recurso, a recorrente pediu que seja revogada a decisão recorrida e substituída por outra que determine o prosseguimento dos autos, tendo formulado as seguintes conclusões:
A)A recorrente e o recorrido contraíram casamento civil, em 26 de julho de 2008, sem convenção antenupcial, do qual nasceu F..…, a 15 de outubro de 2009.
B)O recorrido abandonou a mulher e o filho em 22.05.2020, tendo deixado de contribuir para o sustento da casa em Outubro de 2020.
C)O Tribunal recorrido indeferiu liminarmente o pedido de fixação de alimentos formulado pela requerente, ora recorrente, com fundamento na separação de facto entre os cônjuges.
D)Ao ter indeferido o pedido de fixação provisória de alimentos, a pagar pelo seu marido, com fundamento na separação de facto entre os cônjuges, o Tribunal recorrido esvaziou os conceitos, de contrato, de casamento, de dever conjugal de assistência e de dever de prestação de alimentos entre cônjuges.
E)A separação de facto dos cônjuges, não tem nem, nunca teve a virtualidade de fazer cessar o dever conjugal de assistência (arts 1672 e 1675 do código civil).
F)A obrigação de alimentos, estritamente considerada, ainda que os cônjuges estejam separados de facto, tem a mesma extensão que teria, se eles continuassem a viver em comum.
G)Na ordem jurídica portuguesa, os alimentos (em montante que permita garantir um mínimo de vida digna) assumem uma dignidade tal, que o legislador criou, além do mais, uma execução especial (art 933 do CPC), destinada a efectivação coerciva do seu cumprimento e um tipo legal de crime, destinado a punir quem não cumpre o dever de os prestar (art 250 do código penal).
H)Ao ter indeferido o pedido de fixação provisória de alimentos, a pagar pelo seu marido, com fundamento na separação de facto entre os cônjuges, o Tribunal violou o disposto nos artigos 1670, 1671, 1672, 1675, 1676, 1688, 2003, 2009, 2105 e 2016 do Código Civil e ainda o disposto no art 992 do Código de Processo Civil, preceitos que foram interpretados em violação dos princípios da dignidade da pessoa humana, da confiança, da igualdade, do acesso ao direito e dos artigos 1, 2, 13, 20, 26, 65, 68, 69, da Constituição da Republica Portuguesa.
I)O Tribunal recorrido deveria ter interpretado o disposto nos artigos 1670, 1671, 1672, 1675, 1676, 1688, 2003, 2009, 2105 e 2016 do Código Civil e ainda o disposto nos arts 931 nº 7 e 992 do Código de Processo Civil, em conformidade e em obediência preceitos aos princípios constitucionais da dignidade da pessoa humana, da confiança, da igualdade, do acesso ao direito e, bem assim, dos artigos 1, 2, 13, 20, 26, 65, 68, 69, da Constituição da Republica Portuguesa, designado data para a produção de prova.
J)Mesmo que se entendesse que não foi utilizado o formalismo legal adequado (arts 931 nº 7 e 992 do Código de Processo Civil), sempre se dirá que caberia ao Tribunal, determinar a respectiva convocação ao abrigo do principio da adequação formal (arts 1 a 9-A, 547, 591 n.º1 al e), todos do CPC.
K)Ao não ter determinado a respectiva convocação, o Tribunal recorrido violou o disposto nos artigos arts 1 a 9-A, 547, 591 n.º1 al e), e 931 nº 7 e 992 todos do CPC, preceitos que interpretou em violação dos princípios da dignidade da pessoa humana, da confiança, da igualdade, do acesso ao direito e dos artigos 1, 2, 13, 20, 26, 65, 68, 69, da Constituição da Republica Portuguesa.
L)O Tribunal recorrido deveria ter interpretado o disposto nos artigos 1 a 9-A, 547, 591 n.º1 al e), e 931 nº 7 e 992 todos do CPC, em obediência aos princípios da dignidade da pessoa humana, da confiança, da igualdade, do acesso ao direito e aos artigos 1, 2, 13, 20, 26, 65, 68, 69, da Constituição da Republica Portuguesa, determinando, sendo o caso, a convocação na tramitação julgada adequada ao caso.”
O requerido respondeu à alegação da recorrente, pugnando pela improcedência do recurso.

São as seguintes as questões a decidir:
- do dever de assistência na separação de facto; e
- do erro no meio processual.
***

Para conhecimento do objeto do recurso, importa ter presente o seguinte:
«1–Na petição inicial, pode ler-se:
“Por apenso ao divórcio (P. 13920/20.7T8SNT): Art 931 nº 7 do CPC
S..…, …,
Vem instaurar contra
R….., …;
Incidente destinado à atribuição de alimentos provisórios ao Cônjuge (destinados a acautelar o pagamento das despesas da economia doméstica), o que faz nos termos e com os seguintes fundamentos:
1.A requerente e o requerido contraíram casamento civil, em 26 de julho de 2008, sem convenção antenupcial, conforme doc. 1 que se juntou aos autos de divórcio.
…..
9.–O requerido deixou, definitivamente, de residir na casa de morada de família, em 22.05.2020, com o propósito de não mais voltar, …
…..
11.–Desde Outubro de 2020, que o requerido deixou de contribuir com qualquer valor para o sustento da casa, da mulher e do próprio filho menor.
12.–O requerido não contribui para as despesas da economia doméstica, circunstância que gerou uma lamentável dependência da requerente dos seus pais.
…..
52.– Facto que a Requerente não pretende que se mantenha, pois o requerido é o primeiro responsável a prestar-lhe alimentos (artº 1675 e 2009, nº 1 a), ambos do CCivil).
…..
54.–Apesar de ter deixado de pagar (propositadamente) o IRS de 2019, para poder fazer prova de "dificuldades financeiras”, o Requerido tem capacidade económica para prestar alimentos à Requerente na proporção das necessidades dela, conforme estipula o artº 2010, nº 1 do CCivil.
…..
59.–O Requerido tem capacidade económica e financeira para prestar alimentos à requerente, enquanto esposa.
…..
Termos em que deve o requerido ser condenado a prestar alimentos à requerente em quantia mensal nunca inferior a Euros 1500 sempre atualizável anualmente, a partir de Janeiro de 2022, em função da taxa de inflacção publicada pelo INE, para o ano imediatamente anterior, quando positiva.»
2–No formulário através do qual foi apresentada a petição inicial, consta, no espaço destinado à “forma de processo/ classificação”, “providências relativas a filhos e aos cônjuges”; no espaço destinado à “espécie”, “contribuição do cônjuge para despesas domésticas”; e, no espaço destinado ao “objecto de acção”, “outras providências relativas aos cônjuges [Família e RGPTC]”.
***

Resulta do art. 1672º do C.C. que “os cônjuges estão reciprocamente vinculados pelos deveres de respeito, fidelidade, coabitação, cooperação e assistência”.

O art. 1675º do C.C. dispõe o seguinte.
1.-O dever de assistência compreende a obrigação de prestar alimentos e a de contribuir para os encargos da vida familiar.
2.-O dever de assistência mantém-se durante a separação de facto se esta não for imputável a qualquer dos cônjuges.
3.-Se a separação de facto for imputável a um dos cônjuges, ou a ambos, o dever de assistência só incumbe, em princípio, ao único ou principal culpado; o tribunal pode, todavia, excecionalmente e por motivos de equidade, impor esse dever ao cônjuge inocente ou menos culpado, considerando, em particular, a duração do casamento e a colaboração que o outro cônjuge tenha prestado à economia do casal”.

O dever de assistência que recai sobre os cônjuges desdobra-se, pois, em duas obrigações distintas: a de prestação de alimentos e a de contribuição para os encargos da vida familiar.

Conforme resulta do art. 2015º do C.C., “na vigência da sociedade conjugal, os cônjuges são reciprocamente obrigados à prestação de alimentos, nos termos do artigo 1675º”.

Nos termos do art. 1676º nºs 1 e 4 do C.C., “o dever de contribuir para os encargos da vida familiar incumbe a ambos os cônjuges, de harmonia com as possibilidades de cada um, e pode ser cumprido, por qualquer deles, pela afetação dos seus recursos àqueles encargos e pelo trabalho despendido no lar ou na manutenção e educação dos filhos”, sendo que, “não sendo prestada a contribuição devida, qualquer dos cônjuges pode exigir que lhe seja diretamente entregue a parte dos rendimentos ou proventos do outro que o tribunal fixar”.

O art. 992º do C.C., que regula a providência da contribuição do cônjuge para as despesas domésticas, dispõe o seguinte:
1-O cônjuge que pretenda exigir a entrega direta da parte dos rendimentos do outro cônjuge, necessária para as despesas domésticas, indica a origem dos rendimentos e a importância que pretenda receber, justificando a necessidade e razoabilidade do montante pedido.
2-Seguem-se, com as necessárias adaptações, os termos do processo para a fixação dos alimentos provisórios e a sentença, se considerar justificado o pedido, ordena a notificação da pessoa ou entidade pagadora dos rendimentos ou proventos para entregar diretamente ao requerente a respetiva importância periódica.”

Na fundamentação da decisão recorrida, pode ler-se:

“A contribuição do cônjuge para as despesas domésticas nos termos conjugados do art. 992º do CPC e do art. 1675º do Código Civil pressupõe que os cônjuges estejam a viver na mesma casa e que haja um conjunto de despesas e um conjunto de rendimentos que devem ser geridos e suportados por ambos, em comunhão.
Como nos diz Pereira Coelho/ Guilherme Oliveira in Curso de Direito da Família, vol I, se os cônjuges vivem juntos, «o dever de prestação de alimentos toma a forma de dever de contribuição para os encargos da vida familiar; no caso de separação, não existe vida familiar e não tem sentido falar na obrigação de contribuir para os respetivos encargos» (p. 359).
Igual entendimento tem Remédio Marques in Algumas Notas Sobre Alimentos, dizendo que a contribuição para as despesas domésticas assume-se como uma medida essencialmente interina e temporária, justificável enquanto se mantiver a vida em comum e o incumprimento do cônjuge visado.
Em sentido idêntico, cfr. também Maria Nazareth Lobato Guimarães in Reforma do Código Civil, 1981, p. 191.
Em termos de jurisprudência cfr. Ac da Relação de Lisboa de 7 de Fevereiro de 2013, entre outros.
No caso sub iudice não existe fundamento legal para a requerente exigir do requerido uma contribuição para as despesas domésticas uma vez que a vida conjugal terminou, tendo os cônjuges, requerente e requerido, deixado de viver na mesma casa e de fazer vida em comum.”

É certo que, numa situação de separação de facto, não há vida familiar, mas isso não significa que não possa haver despesas que continuem a poder ser qualificadas de “encargos da vida familiar”, tal como a inexistência de vida familiar não significa que deixa de haver casa de morada da família.

No caso de separação de facto, a prestação mensal para amortização de empréstimo, a renda e as despesas de manutenção relativas à casa de morada da família não deixam de ser “encargos da vida familiar”.

Assim, o cônjuge que pretenda exigir do outro cônjuge o contributo para os encargos da vida familiar pode recorrer à providência prevista no art. 992º do C.P.C. mesmo que estejam separados de facto (www.dgsi.pt Acórdãos do STJ proferidos a 22 de maio de 1980, processo 068802; e a 16 de abril de 1998, processo 98B074).

Não resultando do art. 992º que a providência da contribuição do cônjuge para as despesas domésticas corre por apenso à ação de divórcio, a providência corre autonomamente.

Na petição inicial, a recorrente invocou o art. 931º nº 7 do C.P.C., norma que se insere na regulamentação da ação de divórcio ou de separação sem consentimento do outro cônjuge e que dispõe o seguinte:
“Em qualquer altura do processo, o juiz, por iniciativa própria ou a requerimento de alguma das partes, e se o considerar conveniente, pode fixar um regime provisório quanto a alimentos, quanto à regulação do exercício das responsabilidades parentais dos filhos e quanto à utilização da casa de morada da família; para tanto, o juiz pode, previamente, ordenar a realização das diligências que considerar necessárias.”
A obrigação de prestação de alimentos, integrando o dever de assistência tal como a obrigação de contribuição para os encargos da vida familiar, é uma obrigação distinta desta.
O art. 931º nº 7 do C.P.C. nada tem a ver com a obrigação de contribuição para os encargos da vida familiar.
A recorrente confundiu as duas obrigações e essa confusão é patente logo no introito da petição inicial, no qual a recorrente referiu que “vem instaurar… Incidente destinado à atribuição de alimentos provisórios ao Cônjuge (destinados a acautelar o pagamento das despesas da economia doméstica)”.
Ao confundir as obrigações que integram o dever de assistência, a recorrente acabou por confundir também os respetivos meios processuais.
Na petição inicial, a recorrente pediu a condenação do requerido a prestar-lhe alimentos em quantia mensal não inferior a € 1.500,00.
A providência da contribuição do cônjuge para as despesas domésticas não é o meio processual adequado ao pedido deduzido.
Na pendência de ação de divórcio, o cônjuge que pretende a fixação de alimentos provisórios, deve requerê-lo na própria ação de divórcio, ao abrigo do disposto no art. 931º nº 7 do C.P.C.
Nos termos do art. 193º nº 3 do C.P.C., “o erro na qualificação do meio processual utilizado pela parte é corrigido oficiosamente pelo juiz, determinando que se sigam os termos processuais adequados”.
Assim, importa convolar a providência de contribuição para as despesas domésticas no incidente de fixação de alimentos provisórios previsto no art. 931º nº 7 do C.P.C.
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Pelo exposto, acordam os Juízes desta Relação em julgar procedente a apelação, revogando a decisão recorrida e ordenando o prosseguimento dos presentes autos como incidente de fixação de alimentos provisórios previsto no art. 931º nº 7 do C.P.C., devendo, para o efeito, ser incorporados nos autos de divórcio.
Custas da apelação pelo recorrido.



Lisboa, 24 de fevereiro de 2022



Maria do Céu Silva
Teresa Sandiães
Octávio Diogo