Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
363/17.9T8MTA.L1-8
Relator: LUÍS CORREIA DE MENDONÇA
Descritores: CADEIA DE REGISTOS DE COMPRA E VENDA
PROTEÇÃO DO REGISTO
PROPRIETÁRIO DO VEÍCULO
SUB-ADQUIRENTE DO VEÍCULO
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 06/28/2018
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Texto Parcial: N
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: IMPROCEDENTE
Sumário: Para funcionar a proteção conferida pelo art. 291.º, a cadeia de negócios inválidos tem que ser iniciada pelo verdadeiro proprietário, dela  não beneficiando um mero sub-adquirente, sem que se demonstre quem e em que qualidade deu início à cadeia.
Decisão Texto Parcial:
Decisão Texto Integral: Acordam no Tribunal da Relação de Lisboa :

L instaurou acção declarativa com processo comum, contra C pedindo:
a) Declaração de nulidade do negócio de compra e venda do veículo automóvel celebrado entre Autor e Réu;
b) Condenação do Réu no pagamento ao Autor da quantia de €16.500,00, acrescidos de juros e do valor dos IUC’s pagos pelo Autor à Autoridade Tributária desde a aquisição até ao trânsito em julgado da acção;
c) Cancelamento da inscrição no registo automóvel desde a data da venda.
Alegou, em síntese, que adquiriu o referido veículo automóvel ao Réu, pelo valor de €16.500,00, mas que o mesmo não pertencia ao Réu, por o mesmo ter sido furtado em momento anterior, tendo entretanto sido apreendido à ordem do processo de natureza criminal onde se encontra em investigação a prática de tal crime.
O Réu apresentou contestação, na qual, resumidamente, impugnou a existência do furto.
Após audiência de julgamento foi proferida sentença que:
a) Declarou a nulidade do negócio de compra e venda do veículo automóvel Skoda Octavia 1.6 tdi, de Maio de 2015, com a matrícula 73-PV-89, e o VIN TMBJG9NE0F0220434, celebrado entre Autor e Réu;
b) Condenou o Réu no pagamento ao Autor da quantia de €16.500,00, acrescidos de juros de mora vencidos e vincendos desde 14/12/2016;
c) Ordenou o cancelamento da respectiva inscrição no registo automóvel;
d) Absolveu o Réu do demais peticionado pelo Autor;
Inconformado, interpôs o réu competente recurso, cuja minuta concluiu da seguinte forma:
“A- O veículo antes de ter sido adquirido pelo aqui recorrente, viu a sua propriedade ser registada em nome de M e P.
B- Com o registo da propriedade em seu nome, passou o recorrente a gozar da proteção concedida pelo número 2 do artigo 17 do Código do Registo Predial.
C- Como bem se diz na douta sentença: “ Em resumo, a nulidade referida no artigo 894, n.º 1, do Código Civil, tem aplicação nas relações entre comprador e vendedor da coisa alheia, estando o vendedor protegido pelo disposto no artigo 291.º, n.º 1, do Código Civil, na eventualidade de se encontra de boa-fé.”
D- Acrescentando a douta sentença que: “ No caso Sub Judice, o autor não alegou nem apresentou qualquer prova quanto a uma eventual situação de má-fé do Réu, terceiro adquirente do veiculo em momento anterior ao Autor, presumindo-se assim a sua boa-fé.”
E- Assim é o douto tribunal de cuja sentença se recorre que declara a boa fé do aqui recorrente.
F- Diz-nos o artigo 892 do Código Civil, que a venda de bens alheios é nula sempre que o vendedor careça de legitimidade para a realizar.
G- A legitimidade objetiva, aquela que resulta da presunção do registo, era detida pelo aqui recorrente,
H- Sendo a legitimidade substantiva também por ele detida porquanto nunca veio o titular do registo ofendido, e só este para tal detém legitimidade, pelo original negócio nulo, primeira transação, lançar mão do disposto no artigo 291 do Código Civil.
I- Desta forma, e na data da venda, e ainda não afetado, o recorrente detinha legitimidade substantiva e adjetiva para vender o veiculo descrito nos autos ao autor.
J- Argumenta o douto tribunal que: “ Assim, no caso concreto, por a ação ter sido proposta no prazo de 3 anos, a proteção do réu, terceiro de boa-fé, constante do artigo 291.º, n.º 1, do Código Civil encontra-se afastada por força do n.º 2 do mesmo artigo.”
L- Ensina o numero 2 daquele preceito legal: “ Os direitos de terceiro não são, todavia, reconhecidos, se a ação for proposta e registada dentro dos três anos posteriores à conclusão do negócio.”
M- O número 2 do artigo 291 impõe dois requisitos comutativos. Sendo um dos quais o registo da ação.
N- O registo a que se refere o número 2 do artigo 291 é o registo da ação nos termos e para os efeitos do disposto na aliena b) do número 1 do artigo 3º do Código do Registo Predial.
O- O que não ocorreu nos presentes autos.
Termos em que deverá a douta ser sentença ser revogada e substituída por sentença que determine a absolvição do réu/recorrente’’
Não foram apresentadas contra-alegações.
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Constitui única questão decidenda saber se o réu beneficia da protecção resultante do artigo 291.º do Código Civil.
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São de considerar assentes os seguintes enunciados de dados de facto:
1. Em 01/08/2016, o veículo automóvel Skoda Octavia 1.6 tdi, com a matrícula , encontrava-se na posse da empresa T.
2. A referida viatura foi alugada e levantada da referida empresa por pessoa não concretamente identificada, a qual não procedeu à sua devolução no prazo estipulado.
3. Em data não concretamente apurada, anterior a 03/11/2016, o Autor viu no sítio da internet Stand Virtual a publicidade da venda de uma carrinha Skoda Octavia 1.6 tdi, com o preço de €16.900.
4. Nessa sequência, o Autor combinou com o Réu um dia e uma hora, junto ao stand da MC para ver o carro.
5. O Réu C apareceu junto ao stand, apresentou-se ao Autor e ao seu pai e a conversa desenrolou-se por uns minutos enquanto explicava pormenores da carrinha, mostrando todos os documentos do veículo, inclusive os da garantia da marca.
6. Em 03/11/2016, Autor e Réu acordaram na compra e venda do referido veículo pelo preço de €16.500,00.
7. O Autor entregou inicialmente ao Réu a título de sinal €300, e, no dia da aquisição €16.200,00.
8. O negócio foi celebrado o negócio no Cartório Notarial da Moita, local onde se procedeu à transferência do registo de propriedade do veículo.
9. O Autor entrou na posse do veículo.
10. No dia 14/12/2016, o Autor foi interpelado pelas autoridades policiais, tendo tido conhecimento da pendência do processo criminal nº…, em fase de inquérito, no qual se encontra em investigação, entre outros, o furto do referido veículo automóvel.
11. Nesse momento as autoridades procederam à apreensão do veículo.
12. De imediato, o Autor contactou o Réu, informando-o do sucedido e pedindo a devolução do dinheiro entregue.
13. A propriedade do referido veículo automóvel encontra-se registada desde …2016 a favor do Autor, encontrando-se inscritos como anteriores proprietários Banco (em 11/09/2015), M (em 08/08/2016), P (em 11/08/2016) e o Réu (em 15/09/2016).
B) FACTOS NÃO PROVADOS
Com relevância para a decisão da causa, não resultaram como não provados quaisquer factos.
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Do direito
Vamos seguir de perto, para resolução do recurso a doutrina do Acórdão do STJ de 19.04.2016, Processo n.º 5800/12.6TB0ER.L1-A -S1, www.dgsi.pt, relatado por Maria Clara Sottomayor .
Lê-se nesse Acórdão, como partes mais relevantes para o thema decidendum :
“Historicamente, o registo foi introduzido em Portugal para constituir um instrumento de pressão à inscrição dos negócios aquisitivos ou constitutivos de direitos reais, acompanhado da consequente sanção para quem não registasse – a inoponibilidade do ato perante terceiros – sanção que criava, nos casos da dupla alienação ou oneração do mesmo bem, o risco da perda do direito a favor de um terceiro de boa fé que registasse em primeiro lugar. Contudo, está ao alcance do titular do direito evitar a perda do seu direito, procedendo ao registo da sua aquisição.
O registo nunca teve por objetivo, nas ordens jurídicas em que assume natureza declarativa, constituir um instrumento de proteção perante os vícios do ato inscrito, decorrentes de uma invalidade substancial do próprio ato ou de outro ato anterior da cadeia de negócios.
A função de proteção do terceiro contra os efeitos da invalidade e contra a declaração de nulidade do registo surgiu mais tarde no Código Civil de 1966 e foi importada dos países de origem germânica, onde vigora o sistema do registo constitutivo. Trata-se da proteção do adquirente a non domino prevista e regulada no art. 291.º do Código Civil, e que pressupõe requisitos diferentes dos exigidos para a proteção do terceiro no caso da dupla alienação.
Na invalidade sequencial ou derivada, verifica-se a conclusão de um negócio nulo ou anulável pelo qual aparentemente se alienam direitos, e a seguir, o sujeito que ocupa a posição de adquirente celebra um segundo negócio, que é afetado pela invalidade do primeiro, de modo que também os seus próprios efeitos são prejudicados pelo princípio da retroatividade da declaração de nulidade ou da anulação do primeiro negócio inválido (art 289.º do Código Civil). Há uma cadeia de negócios e uma cadeia de terceiros, que são todos os sub-adquirentes, depois da celebração do primeiro negócio inválido (Hörster, A Parte Geral do Código Civil Português - Teoria Geral do Direito, Almedina, Coimbra, 1992, p. 605, n.º 1003).
O art. 291.º protege os terceiros adquirentes de boa fé contra os efeitos retroativos da declaração de nulidade e da anulação do negócio jurídico (Hörster, «Efeitos do registo – terceiros – aquisição a “non domino”», RDE,1982, p.139), operando como uma exceção ao princípio da retroatividade da declaração de nulidade ou da anulação do primeiro negócio de uma cadeia de negócios inválidos, por força do princípio da conservação dos negócios jurídicos (Cf. Hörster, A Parte Geral…ob. cit., pp. 601 e ss, pp. 604 ss).
Os requisitos desta norma são os seguintes:
1. Declaração de nulidade ou a anulação do negócio jurídico que respeite a bens imóveis ou a bens móveis sujeitos a registo
2. Aquisição onerosa
3. Por um terceiro de boa fé
4. Registo da aquisição do terceiro
5. Anterioridade do registo de aquisição em relação ao registo da ação de nulidade ou de anulação.
Esta norma jurídica visa resolver um problema de conflito de direitos entre o primeiro alienante, o verdadeiro proprietário, e o terceiro sub-adquirente de boa fé, que desconhecia, sem culpa, o vício do negócio, atuou de forma honesta e com a diligência exigível no tráfico jurídico e registou a sua aquisição.
O contrato entre o alienante não legitimado (que celebrou o primeiro negócio inválido com o verdadeiro titular do direito) e o terceiro de boa fé não pode padecer de outra causa de invalidade para além da falta de titularidade do alienante. Por exemplo, em caso de incapacidade do alienante, o terceiro não está protegido. O artigo 291.º também não protege um terceiro adquirente que, mesmo de boa fé em relação à falta de titularidade do transmitente, tenha usado coação moral ou dolo para concluir o negócio.
O momento relevante para aferir da boa fé é o da data da conclusão do negócio de que o terceiro adquirente é parte, mas a boa fé exigida pela lei (art. 291.º, n.º 3) é uma boa fé em sentido ético, que equipara a ignorância culposa à má fé.
Mesmo mediante a verificação destes requisitos, a proteção do terceiro não funcionará se a ação for proposta ou registada dentro dos três anos posteriores à conclusão do negócio (art. 291.º, n.º 2), entendendo-se que este prazo de caducidade se começa a contar a partir da data da celebração do primeiro negócio inválido, que dá origem à cadeia (Cf. Hörster, A Parte Geral…ob. cit., pp. 140 e 143; Carvalho Fernandes, Lições de Direitos Reais, 6.ª edição, Almedina, Coimbra, 2009, p. 151; Maria Clara Sottomayor, Invalidade e registo, ob. cit., p. 611).
A intenção da lei foi a de não levar demasiado longe a protecção de terceiros, pois tal significaria um sacrifício grave dos interessados na nulidade ou na anulabilidade, para além de ter sido considerado que o nosso sistema registal não oferece as garantias de exactidão que oferecem outros sistemas, como o alemão (cf. Rui de Alarcão, «Invalidade dos Negócios Jurídicos, Anteprojecto para o Novo Código Civil», 1959, p. 247). Por isso, a lei usou um conceito ético de boa fé, excluiu a protecção dos terceiros adquirentes a título gratuito e consagrou um período de carência de três anos (art. 291.º, n.º 2).
«O método que fundamentou a decisão legislativa, relativamente a esta questão, terá sido o da ponderação conjunta dos interesses do proprietário na reivindicação do bem, do interesse do terceiro e do interesse colectivo da segurança do tráfico jurídico, que é também, indirectamente, o interesse do proprietário na facilidade de circulação dos seus direitos. A tutela do interesse do proprietário está limitada a um período de três anos decorridos após a conclusão do negócio inválido. A lei pretende, com este prazo, dar uma oportunidade ao verdadeiro proprietário para repor a verdade jurídica material, considerando que, após o decurso do prazo, o seu interesse deixa de merecer protecção. O centro do raciocínio do legislador é o comportamento do verdadeiro titular, justificando-se o sacrifício do direito deste, na sua própria negligência ou inércia em impugnar o negócio inválido, durante um período de três anos, após a sua conclusão» (cf. Maria Clara Sottomayor, Invalidade e registo. A protecção do terceiro adquirente de boa fé, ob. cit., p. 336).
«(…) o fundamento do art. 291.º é a estabilidade dos negócios jurídicos, sofrendo o alienante que deu origem à cadeia de negócios inválidos as consequências de não ter actuado, dentro do prazo de três anos, interpondo a acção de nulidade ou de anulação. A lei faz uma conciliação entre os interesses do verdadeiro proprietário, que pode impor a realidade jurídico-material ao terceiro, durante um prazo de três anos, a contar da data da conclusão do negócio inválido, e os do terceiro sub-adquirente, interessado em salvaguardar a sua aquisição dos efeitos retroactivos da invalidade» (Maria Clara Sottomayor, Invalidade e registo, ob. cit., p. 338).
Contudo, esta proteção opera apenas quando o verdadeiro titular do direito dá origem à cadeia de negócios que vai culminar com a aquisição onerosa de terceiro adquirente de boa fé.
A aquisição a non domino prevista no art. 291.º, n.º 1 do Código Civil não permite que, através da intervenção de um terceiro que obtenha um registo falso ou baseado em títulos falsos, fique sanada a nulidade negocial derivada da cadeia transmissiva assim gerada, pois tal solução seria equivalente a admitir a expropriação do verdadeiro titular que não terá meios para se aperceber da fraude por não ter praticado qualquer negócio jurídico que desse origem à cadeia de negócios inválidos (Maria Clara Sottomayor, Invalidade e registo…ob. cit., p. 481, o sublinhado é nosso).
Sendo assim, dentro da lógica de um registo meramente declarativo, o art. 291.º do Código Civil não protege o terceiro adquirente que beneficia dos requisitos do n.º 1, caso não tenha sido o verdadeiro proprietário a iniciar a cadeia de negócios nulos, como parte do primeiro negócio inválido.
Para funcionar a proteção conferida pelo art. 291.º, a cadeia de negócios inválidos tem que ser iniciada pelo verdadeiro proprietário, não estando abrangida no seu âmbito de aplicação a situação em que um sujeito obtém um registo falso e aliena o bem a um terceiro’’(o sublinhado é nosso).
No caso vertente o réu não beneficia da protecção derivada do artigo 291.º porquanto ambas as partes são sub-adquirentes, não se demonstrando quem e em que qualidade  deu início à cadeia de negócios, que tabularmente envolve o Banco, M, P e o réu.
Relembre-se, a propósito, as palavras de Rui Pinto Duarte, quando explica que a redacção do artigo 291provoca uma ilusão: aquilo que é excepção aparenta ser regra e vice-versa. Na verdade, o que o artigo 291.º determina é que a invalidade dos negócios de transmissão de imóveis e de móveis sujeitos a registo prejudica os direitos que tenham sido transmitidos, a título oneroso, a terceiro de boa fé – a menos que o registo da acção de declaração de nulidade ou de anulação seja feito passados mais de três anos sobre o negócio inválido e esteja já registada a aquisição pelo terceiro’’ (Curso de Direitos Reais, 2.ª ed. Principia, 2007:152) o mesmo autor para quem, com o que concordamos, a situação regulada no artigo 291.º nada tem a ver com a do artigo 17.º, n.º 2, do CR Predial, a qual não abrange casos em que o vício do registo resulta da invalidade do negócio de que resultou o direito registado (op.cit:151; para as teses em presença quanto à interpretação dos referidos artigos, uma boa síntese em A. Santos Justo, Direitos Reais, Coimbra Editora, Coimbra, 2007:76 ss).
O caso sujeito resolve-se então com a aplicação do regime que decorre dos artigos 289.º, 892.º, e 894.º do Código Civil, o que importa a declaração da nulidade do negócio, a restituição integral do preço com juros pelo vendedor e o cancelamento do registo, tal como foi e bem sentenciado.
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Pelo exposto acordamos em julgar improcedente o recurso, ainda que por fundamentos diferentes dos da primeira instância, e, consequentemente, em confirmar a decisão impugnada.
Custas pelo recorrente.
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28.06.2018

Luís Correia de Mendonça

Maria Amélia Ameixoeira

Rui Moura