Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
14/14.3JDLSB.L1-9
Relator: GUILHERMINA FREITAS
Descritores: PROVA
PROVA PROIBIDA
CERTIFICADO DO REGISTO CRIMINAL ACTUALIZADO
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 01/28/2016
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Meio Processual: RECURSO PENAL
Decisão: PROVIMENTO PARCIAL
Sumário: I- O tribunal a quo só podia ter valorado como prova válida dos antecedentes criminais da arguida o certificado de registo criminal actualizado da mesma, do qual já não constava a condenação que foi valorada por ter sido cancelada, nos termos do art. 15.º, n.º 1, al. a), da Lei n.º 57/98, de 18 de Agosto.

II- Valorado que foi, indevidamente, um certificado de registo criminal da arguida, já caducado, pronunciou-se o tribunal a quo relativamente a um documento do qual não podia tomar conhecimento, o que configura a nulidade do acórdão, nos termos previstos na al. c), in fine, do n.º 1, do art. 379.º do CPP.

III- Nulidade essa – por excesso de pronúncia – que pode ser sanada por este tribunal superior suprimindo-se tal condenação dos factos provados.
Decisão Texto Parcial:
Decisão Texto Integral: Acordam, em audiência, na 9.ª Secção Criminal do Tribunal da Relação de Lisboa

I. Relatório

1. No âmbito do Proc. n.º 14/14.3JDLSB, a correr termos no Tribunal Judicial da Comarca de Lisboa – Inst. Central – 1.ª Secção Criminal – Juíz 2, foram submetidas a julgamento, em processo comum, mediante intervenção de tribunal colectivo, as arguidas

C..., (…),

O..., (…),

acusadas da prática, em co-autoria material, de um crime de burla qualificada, p. e p. pelos arts. 217.º, n.º 1, e 218.º, n.º 2, alíneas a) e c), do Código Penal.
2. Realizada a audiência de julgamento foi proferida decisão condenando as arguidas C... e O... pela prática do crime de que estavam acusadas nas penas, respectivamente, de 4 anos de prisão e 4 anos e 2 meses de prisão, suspensas na sua execução por período idêntico ao da respectiva pena, com regime de prova e ainda com a obrigação de pagarem, cada uma delas, à ofendida A... a importância total de 4.000,00€ (quatro mil euros), nos seguintes termos:
- a quantia de 1.000,00€ (mil euros) durante o primeiro ano após o trânsito em julgado da decisão;
- a quantia de 1.000,00€ (mil euros) durante o segundo ano após o trânsito em julgado da decisão;
- a quantia de 1.000,00€ (mil euros) durante o terceiro ano após o trânsito em julgado da decisão;
- a quantia de 1.000,00€ (mil euros) durante o quarto ano após o trânsito em julgado da decisão.
3. Inconformadas com a decisão, dela recorreram as arguidas, extraindo da respectiva motivação as seguintes (transcritas) conclusões:
1. Nos termos do artº 36º nº 1 al.b) do Decreto-lei nº 381/98 de 27 de Novembro e artº 10º nº 1 do Decreto-Lei nº 62/99 de 2 de Março, os documentos contendo informação sobre identificação criminal que já não possa ser mantida em ficheiro, nos termos do artº 24º da Lei nº 57/98 de 18 de Agosto, são destruídos, de forma segura e com impossibilidade de reconstituição dos originais, até ao máximo de dois anos após a data em que cesse a eficácia jurídica dos registos individuais que os integram.
2. Ora no CRC da Arguida ora Recorrente a mesma não tem registos criminais.
3. Logo nos termos do artº 379º nº 1 al. c) do C.P.P. o tribunal conheceu de questões que legalmente não podia tomar conhecimento.
4. Na verdade valorou prova de que não podia conhecer pois estava proibido por lei de o fazer.
5. Donde o Tribunal recorrido violou os dispositivos acima indicados e bem assim o art.º 125.º, do CPP, porquanto valorou provas não permitidas por lei, conforme se motivou e para integralmente se remete.
6. Assim, conhecendo o Tribunal de uma condenação antes do prazo previsto para o cancelamento do seu registo criminal, e interpretando normativamente que pode valorá-la em sede de medida concreta da pena, tal interpretação das citadas disposições é violadora do princípio da dignidade humana e do princípio da igualdade (artº 13º da C.R.P.), na medida em que permitiria uma “pena” eterna ou ilimitada (cfr. artº 30º nº 1 da nossa Lei Fundamental).
7. O douto acórdão recorrido mais não fez do que tutelar no artigo 217º nº 1 do C.P. as entregas de quaisquer bens para prestação de serviços com cariz religioso, culto, crença ou doutrina similar, como fazendo parte do tipo de crime de burla,
8. Fazendo uma interpretação normativa do tipo legal de crime em que existe «astúcia», sempre que o erro ou engano versa sobre “tratamento espiritual”, ou seja crenças idênticas às religiões.
9. Tal interpretação normativa do artigo 217º nº 1 do CP é violadora do principio constitucional da legalidade previsto no artigo 29º nº 1 da nossa lei Fundamental, o que desde já vai alegado para os devidos e legais efeitos.
10. Tendo em conta que não se mostram preenchidos os elementos do tipo de crime previsto no art.º 217.º, do CP, devem as mesmas ser absolvidas, com todas as legais consequências.
11. Ao decidir, como decidiu, o Tribunal a quo violou, por erro de interpretação o disposto no art.º 217.º, do CP.
12. Uma pena que exceda a medida da culpa não é compreendida pelo condenado, não pode ser sentida como justa e como tal não pode produzir qualquer efeito ressocializador.
13. Ponderando todas as circunstâncias relevantes para determinação da medida da pena, mormente, o facto das exigências da culpa serem o limite inultrapassável de todas e quaisquer considerações preventivas, por respeito ao princípio político-criminal da necessidade da pena (art.º 18.º, n.º 2, da CRP) e do princípio constitucional da dignidade da pessoa humana (art.º 18.º, n.º 1, da CRP) pena não poder ultrapassar a medida da culpa,
14.  E tendo, ainda, em conta que são as exigências de prevenção especial de socialização que determinam, em último termo e dentro dos limites referidos, a medida concreta da pena,
15. Mostra-se como adequada e proporcional que às Recorrentes seja aplicada pena não superior a 3 anos de prisão, tanto mais, que não registam antecedentes criminais, não obstante as respetivas idades, suspensa na sua execução e sujeita a regime de prova.
16. Ao decidir, como decidiu, pela aplicação às Recorrentes de penas de 4 anos de prisão e de 4 anos e 2 meses de prisão, o Tribunal a quo violou, por erro de interpretação o disposto no art.º 71.º, do CP.
17. Nos termos do 51.º, n.º 2, do CP, só pode ser imposto o dever de pagamento como condição de suspensão da pena de prisão quando do juízo de prognose realizado resultar que existem condições para que essa obrigação possa ser cumprida.
18. Da matéria de facto provada (pontos 33.4 e 33.5) resulta que a Recorrente C... é reformada por invalidez desde os 37 anos de idade e tem, como único rendimento mensal, um apoio social do valor de € 250,00.
19. Relativamente à Recorrente O... apurou-se que o único rendimento mensal fixo de que dispõe, é um apoio social do valor de € 80,00 (ponto 34.6 da matéria de facto provada).
20. Todos os factos julgados provados e relacionados com as condições sócio-económicas das Recorrentes, denotam que quer elas, quer os respetivos agregados, sobrevivem abaixo do limiar da pobreza.
21. Em face da matéria de facto provada, no que respeita aos rendimentos das Recorrentes, o único juízo de prognose que se pode formular conduz à conclusão de que as Recorrentes não têm qualquer possibilidade de, no prazo estabelecido ou noutro, cumprir o dever que lhes é imposto por não terem, nem ter expectativas de vir a ter, meios financeiros que o permitam.
22. Nesta situação, a imposição de um tal dever representaria para as condenadas uma obrigação cujo cumprimento não seria razoavelmente de exigir, o que contrariaria o disposto no n.º 2, do art.º 51.º, do CP.
23. No caso em apreço, tendo em conta o montante fixado, o valor dos apoios sociais recebidos pelas Recorrentes, o montante dos seus e o facto de não ser conhecida a titularidade de qualquer bem, não se pode exigir que as Recorrente paguem no prazo para o efeito estabelecido a quantia fixada.
24. Assim, a suspensão da execução da pena não deve ficar condicionada ao pagamento dos montantes fixados, sob pena de violação do princípio constitucional da dignidade humana ínsito no art.º 18.º, n.º 2, da CRP.
25. Ao decidir, como decidiu, o Tribunal a quo violou, por erro de interpretação o disposto no art.º 51.º, n.º 2, do CP.
26. Mesmo que se entenda, o que se admite para facilidade de raciocínio e sem conceder, que às Recorrentes poderá ser imposta, como condição da suspensão da execução da pena de prisão, uma obrigação de pagamento de uma quantia,
27. Para que não se mostre violado o disposto no art.º 51.º, n.º 2, do CP, sempre o quantum dessa obrigação terá de ser substancialmente reduzido.

Nestes termos

e nos mais  e melhores de Direito, deve o presente recurso ser julgado totalmente procedente, e o, aliás, douto acórdão recorrido ser substituído por outro em que, por ausência do elemento tipo do crime de burla se absolva as Recorrentes da prática do crime que lhes foi imputado, ou caso assim não se entenda, que reduza as penas de prisão aplicadas e, mantendo a suspensão das mesma sujeita a regime de prova, não as condicione ao pagamento de qualquer quantia, assim se fazendo a inteira sã e costumada JUSTIÇA!”

4. O recurso foi admitido por despacho de fls. 424 dos autos.

5. Respondeu o MP junto da 1.ª instância, concluindo que ao recurso deve ser negado provimento.

6. Nesta Relação, a Digna Procuradora Geral Adjunta emitiu parecer, nos termos e para os efeitos previstos no art. 416.º do CPP, no sentido da improcedência do recurso.

7. Foi dado cumprimento oficiosamente ao disposto no n.º 2, do art. 417.º, do CPP, tendo as arguidas/recorrentes reiterado a posição assumida na motivação do recurso.

8. Procedeu-se à audiência de julgamento a requerimento das arguidas, com observância do legal formalismo.

II. Fundamentação

1. Delimitação do objecto do recurso

É pacífica a jurisprudência do STJ no sentido de que o âmbito do recurso se define pelas conclusões que o recorrente extrai da respectiva motivação, sem prejuízo, contudo, do conhecimento das questões oficiosas (art. 410.º n.ºs 2 e 3 do CPP).

As questões suscitadas pelas recorrentes são:

- a nulidade do acórdão recorrido por excesso de pronúncia;

- o erro de direito no que concerne ao preenchimento dos requisitos objectivos e subjectivos do crime de burla;

- medida da pena e condição da suspensão da execução da pena de prisão.

2. A decisão recorrida

No acórdão recorrido foram dados como provados os seguintes factos (transcrição):
“1. - No início do mês de Janeiro de 2014, mas em data anterior ao dia 4, no período da manhã, na Rua X, em Lisboa, a arguida O... abordou A..., procurando vender-lhe de uma pulseira;
2. - Enquanto convencia A..., a arguida O... começou a dizer a esta que previa a ocorrência de “grandes males” na vida e saúde dos seus filhos, os quais poderia evitar com o uso das suas “artes”;
3. - Verificando que a ofendida A... é uma pessoa emocionalmente frágil e crédula, a arguida O... pediu-lhe o número de telefone de modo a que aquela pudesse combinar com a mesma novos encontros onde a ofendida se faria acompanhar das quantias monetárias que lhe fossem solicitadas e de objectos pessoais, para a realização de “rezas” de modo a evitar que acontecessem os acontecimentos funestos que esta previa;
4. - Assim e no uso de um plano entretanto entre elas delineado, as arguidas O... e C... começaram a telefonar à ofendida, aproveitando-se do ar frágil e crédulo da mesma, a solicitar-lhe a entrega consecutiva de dinheiro de modo a poderem salvaguardar a saúde dos filhos com as “rezas” que faziam;
5. - No dia 04 de Janeiro de 2014 a arguida O... contactou A... através do número de telemóvel y para o número de telemóvel z e pediu-lhe para se encontrar com a mesma na Rua da Bica do Marquês em Lisboa;
6. - Aí, a arguida O... pediu a A... que lhe entregasse a quantia de € 400,00 (quatrocentos euros) de modo a que a mesma pudesse então “fazer umas rezas que evitariam males futuros na vida dos seus filhos”;
7. - Assim, e por acreditar na palavra da arguida, A... efectuou dois levantamentos no valor de € 200,00 (duzentos euros) cada um, no ATM da fachada da Farmácia Mendes, sita na Rua da Bica do Marquês, e entregou-os à arguida, que os fez seus;
8. - Nos dias 6, 7 e 8 de Janeiro de 2014, a arguida contactou novamente A... para o telemóvel com o número z e combinou encontrar-se com aquela ou no Jardim da Boa-Hora ou junto ao Palácio da Ajuda, em Lisboa;
9. - Concretizando assim o referido plano delineado pelas arguidas, estas encontraram-se com A... no dia 6 de Janeiro de 2014 no Jardim da Boa-Hora, tendo a arguida C... solicitado à ofendida a entrega de € 4.000,00 (quatro mil euros), os quais seriam necessários para realizar as ditas “rezas” senão “males futuros iriam acontecer”;
10. - A... dirigiu-se então ao Balcão do BPI da Boa-Hora e procedeu ao levantamento da quantia solicitada que entregou depois às arguidas, que a fizeram sua;
11. - No dia 8 de Janeiro de 2014, após diversos contactos telefónicos realizados pela arguida C... através do número de telemóvel y para o telemóvel da ofendida com o n.º z, A... foi encontrar-se com as arguidas junto ao Jardim da Boa Hora;
12. – Previamente, a arguida C... havia já solicitado a A... que se fizesse acompanhar da quantia de € 10.000,00 (dez mil euros) para a realização pelas duas arguidas das “rezas necessárias a evitar grandes males aos seus filhos”, pelo que esta levantou a quantia de € 5.000,00 (cinco mil euros) no balção do BPI do Restelo e outros € 5.000,00 (cinco mil euros) no balcão do BPI da Boa Hora, entregando tais quantias às arguidas, que as fizeram suas;
13. - No dia 9 de Janeiro de 2014, a arguida C... contactou novamente A... e disse-lhe que nesse dia, à sua frente, seriam feitas mais “rezas” por esta e pela arguida O... pelo que aquela teria de lhes entregar a quantia de € 10.000,00 (dez mil euros);
14. - Assim, A... dirigiu-se ao balcão do BPI do Restelo, procedeu ao levantamento da quantia solicitada e levou ainda consigo farinha e água que lhe haviam sido pedidas pelas arguidas para a realização das “rezas protectivas”.
15. - Depois A... encontrou-se com as arguidas junto ao Palácio da Ajuda, entregou-lhes o dinheiro, a farinha e a água e aquelas simularam algumas rezas à sua frente dizendo que no dia seguinte iriam “concluir o processo que travaria os males e ocorrências funestas previstas para a vida dos filhos”;
16. - As arguidas contactaram depois A... reagendando o encontro com esta para o dia 13 de Janeiro de 2014, perto do Palácio da Ajuda;
17. - Assim, no dia 13 de Janeiro de 2014, as arguidas encontraram-se com a ofendida e pediram-lhe a entrega de mais € 10.000,00 “porque sem os mesmos o trabalho não estaria concluído”;
18. - A... dirigiu-se, então ao balcão do BPI da Boa Hora onde procedeu ao levantamento de € 500,00 (quinhentos euros), dirigiu-se depois ao Balcão do BPI do Restelo onde procedeu ao levantamento de outros € 500,00 (quinhentos euros) e deslocou-se à sua residência pessoal onde foi buscar outros € 400,00 (quatrocentos euros), permanecendo as arguidas no local à sua espera;
19. - A..., pelas 12h00 desse dia, junto ao Palácio da Ajuda, entregou à arguida O... a importância de 900,00€ (novecentos euros) num envelope do BPI;
20. - Na esquina da Rua da Torre, a arguida O... atirou aí para o chão um cartão Sim da operadora Optimus com o n.º n e um papel manuscrito pela ofendida com os contactos pessoais que esta lhe havia fornecido;
21. - As arguidas foram interceptadas nesse local e hora tendo a arguida O... na sua posse:
                            a) um suporte do cartão Sim n.º y;
                           b) um papel da operadora Optimus do n.º de telemóvel y;
                          c) um papel de uma Payshop com a inscrição do n.º m;
                           d) dois papéis comprovativos de carregamento do n.º y;
                          e) € 221,30 (duzentos e vinte e um euros e trinta cêntimos) em moedas e notas do BCE;
                           f) um envelope contendo € 900,00 (novecentos euros);
                           g) um telemóvel da marca Samsung, modelo GT-E1200, e
                           h) um saco de plástico contendo dezanove pulseiras;
22. - A arguida C... tinha na sua posse uma manta que usou em todos os encontros com a ofendida para ocultar a sua roupa e vestuário e não ser facilmente reconhecível;
23. - A... sofre de doença bipolar II de apresentação preferencial depressivo-inibitória, encontrando-se com vigilância regular e continuada em psiquiatria e medicação psicofarmacológica;
24. - A... tem 72 anos de idade e é seguida em consulta de oncologia desde 2012 em virtude de ter sido submetida a mastectomia em 16.12.2011;
25. - É assim uma pessoa frágil quer a nível físico, quer a nível psicológico e emocional, o que é patente ao primeiro contacto com a mesma;
26. - É igualmente frágil e crédula no tocante a terceiros e a possíveis doenças pessoais e no seio da sua família em virtude da sua condição de saúde, o que é igualmente visível ao primeiro contacto com a mesma;
27. - As arguidas nunca tiveram qualquer intenção de ajudar A... nem de devolver qualquer quantia que lhes tivesse sido entregue pela mesma;
28. - As arguidas sabiam que estavam perante uma pessoa especialmente frágil a nível físico e emocional e que creria em qualquer história que lhe fosse contada de modo a lhes entregar os montantes que solicitassem;
29. - As arguidas aperceberam-se que A... teria possibilidade de lhes entregar avultadas quantias monetárias aproveitando-se de tal para lhe pedir um total de € 25.300,00 (vinte e cinco mil e trezentos euros);
30. - As arguidas sabiam que A... confiava nelas e que não verificaria a veracidade da história que elas lhe contavam por verem que a mesma é uma pessoa doente;
31. - As arguidas sabiam que ao fazer algumas “rezas” na presença de A... a mantinham no logro de que a sua história era real;
32. - Agiram as arguidas da forma descrita, de forma deliberada, livre e consciente, sabendo que a sua conduta era proibida por lei, tendo agido com o propósito concretizado de obterem uma vantagem pecuniária, sem contrapartida e à custa do património de A...;
33. – Quanto às condições pessoais da arguida C..., apurou-se:
33.1. – A arguida C... é oriunda de um agregado familiar de etnia cigana, constituído pelos progenitores e dez filhos; o agregado vivia dos rendimentos obtidos na venda ambulante e com algumas dificuldades a nível económico; neste contexto, e até aos treze anos de idade, a arguida viveu com a família de origem que residia em barraca de madeira, em bairro clandestino, e cuja educação foi marcada pela cultura cigana com reduzido investimento ao nível da formação escolar e profissional;
33.2. – A arguida não frequentou a escola e não aprendeu a ler nem a escrever;
33.3. - Aos treze anos de idade, começou a viver em união de facto em casa dos pais do companheiro, que à data tinha dezassete anos de idade e se dedicava à venda ambulante; o casal teve cinco filhos e, depois de viver durante uns anos em barracas e em bairros clandestinos, foram realojados em habitação social;
33.4. - C... é reformada por invalidez desde os trinta e sete anos de idade, por suposta doença do foro psiquiátrico, informação não confirmada, doença que a arguida denominou de doença neurótica; não obstante no passado tenha sido seguida em consultas de psiquiatria, desde há dois anos que não tem qualquer acompanhamento; quando tem crises de ansiedade faz-se deslocar para as urgências hospitalares;
33.5. Desde que o companheiro faleceu, há cerca de dez anos, C... fixou residência em casa do enteado, para não estar a viver sozinha na sua habitação, uma vez que todos os filhos são autónomos; O agregado do enteado é constituído pelo próprio, pela companheira, pelos dois filhos do casal já adultos, a companheira de um deles e o respectivo filho; este agregado familiar vive em habitação social, com rendimentos provenientes da pensão de invalidez do enteado, que sofreu um acidente vascular cerebral há cerca de oito anos, no valor de 237€/mês, do apoio económico da Segurança Social através da atribuição do Rendimento Social de Inserção no valor de 250€/mês e da reforma da arguida no valor de 237€/mês; um dos filhos, a respectiva companheira, a companheira do enteado da arguida e a própria arguida dedicam-se também à venda ambulante, sendo que a arguida o fará de uma forma menos regular, e em alturas em que se desloca à freguesia Ajuda onde visita as filhas que ali residem;
33.6. - A dinâmica familiar é pautada pela coesão familiar e pelo espírito de interajuda entre os seus elementos; no entanto verifica-se um certo desgaste emocional, nomeadamente por parte da companheira do enteado, em relação às interações que a arguida estabelece, nas quais a arguida é muito insistente, ansiosa e verborreica na forma como trata os assuntos que a preocupam ou a ela dizem respeito; denota também uma atitude muito desconfiada e cautelosa na forma como interage com os outros, sobretudo se não são da sua etnia;
33.7. - No seu discurso, a arguida deixa também transparecer uma atitude de manipulação com vista à obtenção dos seus objectivos, utilizando o recurso às doenças e aos seus sintomas para impressionar ou obter a piedade dos outros;
33.8. – A arguida C... não revelou consciência crítica quanto às suas condutas;
34. – Relativamente às condições de vida da arguida O... apurou-se:
34.1. - O... é oriunda de uma família de etnia cigana e a oitava de uma fratria de nove; o seu processo de socialização decorreu numa família matriarcal, tendo o pai falecido quando ela tinha cinco/seis anos de idade, com grandes dificuldades socioeconómicas, dentro dos costumes da etnia cigana e com a transmissão dos valores culturais próprios; seus pais dedicavam-se à venda ambulante, actividade a que a mãe continuou a dedicar-se, acompanhada dos filhos, após o falecimento do marido; 34.2. – A arguida não frequentou a escola, apenas sabendo assinar;
34.3. - Casou aos 16 anos com um jovem da sua etnia, tendo nascido da ligação seis filhos; o seu agregado é actualmente constituído por ela e pela filha mais nova, com 37 anos de idade;
34.4. - Em termos habitacionais e após ter constituído agregado próprio, residiu em barracas numa zona de construção clandestina, até ser realojada pelos serviços de habitação de renda social da Câmara Municipal de Lisboa na zona de Santos Velho;
34.5. - Morou aí durante dez anos, tendo sido forçada a abandonar a residência, há três anos atrás, na sequência de problemas surgidos com outros residentes; desde então, fica em casa dos filhos que têm agregados autónomos, mas sem paradeiro fixo, alterando a sua estadia de acordo com as suas motivações e necessidades, destinando-se a morada constante no presente processo ao recebimento de correspondência; aguarda a atribuição de uma nova habitação social, para ela e para a filha que com ela reside, pelos serviços de habitação da Câmara Municipal de Lisboa;
34.6. - Laboralmente dedica-se à venda ambulante, sem local fixo, movimentando-se conforme for mais conveniente para o seu negócio; a sua subsistência é assegurada com os rendimentos obtidos das vendas efetuadas e o valor recebido do rendimento social de inserção, no valor de 80€, atribuído pelos serviços de Segurança Social de Lisboa;
34.7. - Em termos pessoais, a arguida não revela consciência crítica quanto às suas condutas, apresentando algumas dificuldades de descentração e reduzido pensamento consequencial;
35. - Do certificado de registo criminal da arguida C... não consta qualquer condenação;

36. - Do actual certificado de registo criminal da arguida O... não consta qualquer condenação; no entanto, a referida arguida foi condenada no Procº 196/05.5 PWLSB do 4º Juízo Criminal, 2ª Secção, do Tribunal Judicial de Lisboa, por decisão de 23.09.2008, transitada em julgado em 19.06.2009, pela prática em 18.03.2005 de um crime de burla simples, tendo sido condenada na pena de 120 dias de multa, à taxa diária de 5,00€, perfazendo o total de 600€, já extinta.”
Quanto aos factos não provados, ficou consignado no acórdão:
“Da audiência de julgamento, com interesse para a decisão da causa, não resultaram provados os seguintes factos:
1 NP - Que a arguida O... tivesse vendido uma pulseira à ofendida;
2 NP - Que a arguida O... tivesse previsto a ocorrência de males na saúde da própria ofendida;

3 NP - Que as quantias monetárias entregues às arguidas se destinassem também à aquisição de velas.”
Relativamente à fundamentação da decisão de facto, ficou expresso:

“2. 3. 1. – Elementos de Prova
A convicção do Tribunal sobre a factualidade considerada provada radicou na análise crítica e ponderada da prova produzida em julgamento, designadamente, nos depoimentos das testemunhas a,  b, c, d, conjugados com os documentos juntos aos autos, concretamente, a perícia a telemóvel de fls. 185 a 199, a cópia de consulta de movimentos bancários de fls. 8 e 9, as fotografias de fls. 60 a 63, os autos de revista pessoal e apreensão de fls. 64 e 65, os cartões de telemóvel e talões de carregamento de fls. 66 e 67, o envelope do BPI de fls. 68, a reportagem fotográfica de fls. 69, o auto de revista pessoal de fls. 70, o auto de apreensão de fls. 71 e fotografia de fls. 72, o auto de apreensão de fls. 73 e papel manuscrito pela queixosa com os seus contactos de fls. 74, a reportagem fotográfica de fls. 75 a 77, os autos de busca e apreensão de fls. 84/85 e 86, a informação da Optimus de fls 91, os talões de levantamento de fls. 101 a 106, os dados de tráfego de fls. 176 a 183, os elementos clínicos de fls. 209 a 214, os elementos bancários de fls. 237 a 253, os CRC de fls 301 e 260/3 e 312 e os relatórios sociais de fls 315/9 e 328/331

                                                              *

2. 3. 2. – Análise Crítica da Prova

As arguidas não prestaram declarações sobre os factos, tendo-o feito unicamente quanto às suas condições pessoais.

Nas suas últimas declarações disseram-se arrependidas de se terem encontrado com a ofendida.

Não obstante, a prova produzida permitiu considerar provados os factos nos termos deixados consignados.

Vejamos como.

A ofendida A... confirmou o teor dos factos julgados provados, designadamente os contactos das arguidas, os pedidos de entregas de quantias monetárias para que fossem feitas “rezas” que afastassem os “males” que ameaçavam os seus filhos e as entregas das referidas quantias, entregas que fez para que nada acontecesse aos seus filhos. Confirmou ainda toda a situação de doença de que padecia.

Concretamente, declarou que, em determinado dia, perto do Palácio da Ajuda, a arguida mais magra (O...) dirigiu-se a si, dizendo-lhe que havia um problema com os seus filhos, que iria acontecer alguma coisa – doenças – e que para se livrar disso tinha que dispor de dinheiro. O mal era para o seu filho. Convenceu-se do que lhe disseram, não tendo contado nada aos seus filhos, acrescentando que “foi ingénua e que foi na conversa”. Na altura deu o seu nº de telefone a arguida mais magra (O...). Só conheceu a outra arguida (C...) dias depois. Posteriormente, as arguidas começaram a ligar-lhe e a dizer-lhe como deveria proceder, indo-lhe pedindo a entrega de quantias monetárias. Os primeiros levantamentos foram feitos no mesmo dia, no valor de 200,00€, cada um, tendo entregue à arguida O... a quantia de 400,00 €.

As arguidas continuaram a ligar-lhe pedindo-lhe para fazer a entrega de mais dinheiro. As arguidas diziam-lhe que havia um problema grave com os seus filhos e que se recusasse a entregar o dinheiro poderia acontecer alguma coisa aos seus filhos. Não era coisa boa. Pediam as quantias para fazerem umas rezas. Disse também que não acredita em rezas, mas que também tinha medo de rejeitar e acontecer alguma coisa, já que elas diziam que poderia acontecer algo mais grave se não entregasse o dinheiro.

Confirmou ter feito os levantamentos a que respeitam os talões de fls. 101 a 106, nos valores de 4.000€, 5.000€, 5.000€, 10.000€, 500€ e 500€, afirmando que procedeu a tais levantamentos sempre sozinha, entregando depois tais montantes às duas arguidas, tendo combinado previamente com elas os locais de encontro. Esses encontros eram na zona da Boa Hora e do palácio da Ajuda.

Disse também que numa das vezes as arguidas lhe pediram para levar farinha e água para que elas pudessem fazer umas rezas. Levou o que elas pediram e então fizeram-lhe uma pasta no pulso, tendo então aparecido no seu pulso uma espécie de caixão e cruzes. Tinha medo de dizer aos seus filhos o que se estava a passar.

Depois, acabou por contar à sua filha e então o seu filho foi contar à polícia e houve uma última vez em que lhes levou dinheiro.

Relativamente ao papel manuscrito junto a fls 74, disse que foi escrito por si, contendo os seus nºs de telefone e os do seu filho. Reconheceu-se a si e às arguidas nas fotografias juntas aos autos a fls 60 a 63.

Disse também que, no início, a arguida mais magrinha (O...) queria vender-lhe umas pulseiras, não lhe tendo comprado nenhuma. Nos encontros que marcavam as arguidas traziam as pulseiras para fingirem que eu estava interessada nelas.

Referiu-se ainda ao seu estado de saúde referindo que tinha uma depressão há vários anos e que umas vezes está melhor e outras pior. Na altura estava mais normal e acreditou na conversa. Disse também que tinha feito uma operação ao peito. Na altura, encontrava-se a ser acompanhada a nível médico.

Pela forma clara, pormenorizada e cuidadosa como prestou o seu depoimento, este mostrou-se merecedor de credibilidade.

Tal depoimento foi corroborado pela demais prova, quer testemunhal, quer documental.

A testemunha a, professor de artes, filho da ofendida, declarou que certa manhã a sua irmã lhe contou que a sua mãe andava a fazer entregas de dinheiro a duas senhoras ciganas e que essas entregas tinham que ver com a saúde dele e que, para ele não ter uma doença ou para não lhe acontecer qualquer coisa de mal, era necessário entregar o dinheiro. A sua mãe não lhe contou por medo, estando fragilizada e insegura, não tendo sabido resolver a situação. Disse-lhe que tinha entregue os seus números de telefone às duas senhoras. Confirmou que dois dos nºs que constam do manuscrito de fls 74 lhe pertencem, sendo os outros de sua mãe. Disse também que depois participaram à polícia a situação.

Sobre a ofendida, disse que a sua mãe é uma pessoa debilitada, deprimida, tendo tido um cancro no peito. Na altura, vinham do Natal e a sua mãe até lhe parecia melhor. A sua mãe é uma pessoa frágil e estava com medo que alguma lhe acontecesse a si do ponto de vista da saúde. Disse também que a sua mãe fazia a sua vida normalmente, mas que falando com ela se verificava logo que era uma pessoa frágil.

A testemunha b, inspector da Polícia Judiciária, declarou que receberam a queixa da ofendida e que dias depois receberam um telefone da vítima que lhes dizia que lhe exigiram mais dinheiro. Então montaram um dispositivo de vigilância para assistirem à entrega, tendo estado presente no mesmo, tendo assistido à chegada das arguidas, ao encontro entre a vítima e as arguidas, vindo depois a ofendida a ausentar-se regressando mais tarde e encontrando-se de novo com as arguidas a quem entregou um envelope com dinheiro. De seguida, procederam à detenção das arguidas, junto ao Palácio da Ajuda, tendo a arguida O... na sua posse o envelope com dinheiro. Viram ainda a arguida O... a esconder algo em determinado local, vindo a ser ali apreendido o cartão de telemóvel de fls 76 e o papel manuscrito de fls 74.

No seguimento da investigação, pediram à Optimus a identificação do nº de telefone e vieram a verificar que se tratava do nº de telefone que era utilizado nos contactos com a ofendida.

A testemunha c, inspector da Polícia Judiciária, referiu-se ao encontro efectuado entre a ofendida e as arguidas, encontro que foi presenciado pela polícia, afirmando que procedeu depois às buscas em casa das arguidas onde nada de relevante foi encontrado.

Pela testemunha d, inspector da Polícia Judiciária, foi declarado que fazia parte do dispositivo de vigilância montado à volta do Palácio da Ajuda, descrevendo o encontro inicial entre a ofendida e as arguidas, vindo depois a ofendida a ausentar-se do local, onde regressou mais tarde, vindo a entregar às arguidas um envelope. O envelope foi de seguida apreendido às arguidas contendo 900€.

A testemunha h, inspectora da Polícia Judiciária, afirmou ter acompanhado as vigilâncias que culminaram com a detenção das arguidas, afirmando ainda ter apreendido, juntamente com a inspectora I, o cartão e o papel manuscrito que uma das arguidas escondeu junto a umas ervas e a que respeita o auto de apreensão de fls 73. O manuscrito tinha os nºs de telefone da ofendida e do seu filho.

Disse ainda que as arguidas foram sujeitas a revista, tendo procedido às apreensões a que respeitam os autos de fls 64 a 74.

A testemunha I, inspectora da Polícia Judiciária, referiu que, juntamente com a inspectora Helena Pedrosa, participou na detenção e na revista pessoal das arguidas, referindo-se aos bens que lhes foram apreendidos, designadamente ao papel manuscrito e cartão que apanharam do local onde uma das arguidas o tinha escondido, papel que tinha o nome da denunciante, bem como ao envelope com 900 €.

A referida testemunha referiu ainda ter analisado os contactos telefónicos efectuados com a ofendida, tendo verificado que os levantamentos bancários ocorriam após aqueles contactos.

Afirmou também que esteve com a ofendida na tarde da detenção das arguidas, tendo verificado que a A… tinha dificuldade em compreender o alcance da situação, sendo uma pessoa com fragilidades que acreditou naquilo.

Pela forma clara, coerente e desinteressada como foram prestados, os depoimentos dos inspectores da Polícia Judiciária e do filho da ofendida mostraram-se igualmente merecedores de credibilidade.

Tais depoimentos, bem como o prestado pela ofendida, mostram-se ainda em sintonia com prova documental junta aos autos, designadamente, os elementos bancários de fls. 237 a 253, a cópia de consulta de movimentos bancários de fls. 8/9 e os talões de levantamento de fls. 101 a 106 que comprovam os levantamentos feitos pela ofendida referidos nos autos.

Da perícia a telemóvel de fls. 185 a 199 e dos dados de tráfego de fls. 176 a 183 decorre também que os levantamentos bancários foram precedidos de contactos telefónicos efectuados pelo nº de telemóvel apreendido às arguidas e o telefone da ofendida, o que corrobora igualmente o por esta declarado.

Ao telefone utilizado pelas arguidas referem-se também os cartões de telemóvel e talões de carregamento de fls. 66 e 67, o auto de apreensão de fls 73 a 74, as fotografias de fls 75/77 e a informação da Optimus de fls 91.

A última entrega de dinheiro, presenciada pela polícia nos termos referidos pelos inspectores da Policia Judiciária, as fotografias de fls. 60 a 63, o envelope do BPI de fls. 68, a fotografia de fls 69 e os autos de detenção e de apreensão constantes de fls 64 e 65 confirmam igualmente so factos nos termos julgados provados.

No que respeita à situação de doença da ofendida, para além das declarações da própria e do seu filho, valoraram-se ainda os elementos clínicos de fls. 209 a 214 que comprovam a doença da ofendida, bem como a situação de debilidade física, psíquica e emocional da mesma.
A ausência de antecedentes criminais da arguida C..., mostra-se retratada no CRC de fls 301.
Relativamente aos antecedentes criminais da arguida O..., tomou-se em consideração o CRC de fls 260/3 do qual consta a condenação da arguida pela prática de um crime de burla cometido em Março de 2005, para além do CRC de fls 312, emitido em Fevereiro de 2015, no qual já não vem referida qualquer condenação.
No que respeita às condições pessoais das arguidas, valoraram-se as declarações das próprias, bem como os relatórios sociais de fls 315/9 e 328/331.
Quanto à matéria de facto considerada não provada, a mesma obteve resposta negativa por, quanto a ela, não ter sido feita prova convincente e segura.
Na verdade, a ofendida referiu que os “males” que as arguidas referiam que poderiam acontecer se referiam aos seus filhos, especialmente ao seu filho, e não a si própria.
Por outro lado, quanto às velas, a ofendida não fez qualquer referência à utilização daquelas e, relativamente às pulseiras, a mesma declarou que não chegou a comprar nenhuma.
Nos termos expostos, ponderando todos os elementos de prova referidos, analisados de forma crítica e ponderada segundo as regras da experiência comum e o princípio da livre convicção do julgador, dúvidas não teve o Tribunal em considerar provados e não provados os factos nos termos deixados consignados.”

3. Analisando
3.1. A nulidade do acórdão recorrido por excesso de pronúncia

Alegam as recorrentes que “O Acórdão recorrido, condenou a recorrente O... na pena de 4 anos e 2 meses de prisão;

Na medida concreta da pena tal decisão assentou essencialmente  - nos dizeres do mesmo – “os antecedentes criminais da arguida O... por crime de idêntica natureza, embora cometido em Março de 2005…”.

Ora, nos termos do artº 15 nº 1 al.a) da Lei nº 57/98 de 18 de Agosto, deveria ter sido cancelada automaticamente, e de forma irrevogável, as condenações ainda constantes no registo anteriores a 2010.

Por outro lado, e como passaram mais de 7 anos sobre a aplicação da dita pena, deveria ter sido cancelado o seu registo individual, não podendo manter-se em ficheiro após o decurso desse prazo, qualquer informação respeitante ao recorrente conforme o artº 24º nº 1 da Lei supra citada.

Consequentemente, nos termos do artº 36º nº 1 al.b) do Decreto-lei nº 381/98 de 27 de Novembro e artº 10º nº 1 do Decreto-Lei nº 62/99 de 2 de Março, os documentos contendo informação sobre identificação criminal que já não possa ser mantida em ficheiro, nos termos do artº 24º da Lei nº 57/98 de 18 de Agosto, são destruídos, de forma segura e com impossibilidade de reconstituição dos originais, até ao máximo de dois anos após a data em que cesse a eficácia jurídica dos registos individuais que os integram.

Logo nos termos do artº 379º nº 1 al.c) do C.P.P. o tribunal conheceu de questões que legalmente não podia tomar conhecimento.

Na verdade valorou prova de que não podia conhecer pois estava proibido por lei de o fazer.

Donde na esteira do Professor Figueiredo Dias (em Direito Penal Português, pág. 612), as informações do Registo Criminal das pessoas funciona como um autêntico meio de prova, resultando daqui não só que os preceitos reguladores do registo se tenham de considerar, neste domínio, normas de processo penal, mas também que todos os casos obrigatórios de cancelamento dos cadastros para fins judiciais passem a constituir verdadeiras proibições de prova – nosso sublinhado -.

E nem se diga que conhecendo o tribunal de uma condenação antes do prazo previsto para o cancelamento do seu registo criminal, o mesmo pode valorá-la em sede de medida concreta da pena, porquanto tal interpretação das citadas disposições seria violadora do princípio da dignidade humana e do princípio da igualdade (artº 13º da C.R.P.), na medida em que permitiria uma “pena” eterna ou ilimitada (cfr. artº 30º nº 1 da nossa Lei Fundamental).

Dito isto, o certo é que o tribunal até sabia, conforme factos provados no ponto “36” que do seu atual certificado de registo criminal «não consta qualquer condenação».

Pelo exposto, ressalvado sempre o devido respeito, o Douto Acórdão Recorrido, deve ser declarada nulo e substituído por outro que não tenha em conta, a condenação ocorrida em 2005 e daí aplicar em consonância a medida concreta da pena, expurgado da nulidade acima aludida.”

Tem efectivamente razão a recorrente O....

Dispõe o art. 15.º, n.º 1, al. a), da Lei n.º 57/98, de 18 de Agosto, que “são canceladas automaticamente, e de forma irrevogável, no registo criminal, as decisões que tenham aplicado pena principal ou medida de segurança, decorridos 5, 7 ou 10 anos sobre a extinção da pena ou medida de segurança, se a sua duração tiver sido inferior a 5 anos, entre 5 e 8 anos, ou superior a 8 anos, respectivamente, e desde que, entretanto, não tenha ocorrido nova condenação por crime.”

Ora, no certificado de registo criminal actualizado da arguida O..., de fls. 312, refere-se que “Nada consta acerca da pessoa identificada”, tendo o tribunal a quo utilizado um certificado já desactualizado dessa mesma arguida, que consta de fls. 215 a 218, para dar como provada uma condenação desta arguida em 23/9/2008, transitada em julgado em 19/6/2009, pela prática em 18/3/2005 de um crime de burla simples, condenação essa que foi valorada na determinação da medida concreta da pena que lhe foi imposta.

O tribunal a quo só podia ter valorado como prova válida dos antecedentes criminais da arguida o certificado de registo criminal actualizado da mesma, do qual já não constava tal condenação precisamente por ter sido cancelada, nos termos da supra citada disposição legal.

Como a este propósito se refere no Ac. da RE de 11/7/2013, proferido no âmbito do Proc. 510/11.4GGSTB.E1, disponível in www.dgsi.pt, com o qual se concorda, “O arguido, com o cancelamento das anteriores condenações no seu registo criminal, nos termos previstos na lei (e acima assinalados), não só fica reinvestido no exercício dos seus plenos direitos (dos quais se achava, de certo modo, privado, designadamente quando pretendia aceder a determinados empregos ou ocupações profissionais), como também tem de ser tratado como delinquente primário (no caso, obviamente, de tornar a figurar como arguido num novo processo).

Ou seja: após o cancelamento definitivo de uma condenação no registo criminal, não pode tal condenação ser considerada em processo criminal para nenhum efeito.
Repetimos: a condenação anterior cancelada no registo criminal não releva para nenhum efeito, ou seja, não pode ser considerada mesmo no tocante à determinação da medida concreta da pena, isto apesar do disposto no artigo 71º, nº 2, al. e), do Código Penal (onde se estabelece que, para a determinação da medida concreta da pena, deve atender-se à conduta do agente, anterior ou posterior ao facto).

O entendimento contrário contraria, claramente, a natureza definitiva do cancelamento.

Com o devido respeito por posição contrária (como aquela que foi expressa pelo Exmº Procurador-Geral Adjunto no seu douto parecer), não vislumbramos como se poderá contrariar o teor do C.R.C. (actualizado) do arguido, onde não consta qualquer condenação criminal anterior.
Dito de outro modo: não podemos considerar, ainda que tão-só à luz do disposto no artigo 71º, nº 2, al. e), do Código Penal, as anteriores condenações do arguido, canceladas (definitivamente) no registo criminal, pois não faz sentido que as mesmas não possam ser consideradas para efeitos de antecedentes criminais do arguido, mas possam ser atendidas no âmbito da “conduta anterior ao facto” prevista no citado artigo 71º, nº 2, al. e), do Código Penal.”

Ainda no mesmo sentido se pronunciou o Ac. da RP de 29-2-2012, proferido no âmbito do Proc. 123/10.8GAVLP.P1, disponível in www.dgsi.pt.

Valorado que foi, indevidamente, um certificado de registo criminal da arguida O..., já caducado, pronunciou-se o tribunal a quo relativamente a um documento do qual não podia tomar conhecimento, o que configura a nulidade do acórdão, nos termos previstos na al. c), in fine, do n.º 1, do art. 379.º do CPP.

Nulidade essa – por excesso de pronúncia – que pode ser sanada por este tribunal superior suprimindo-se a condenação constante do ponto 36. dos factos provados, o qual passa a ter a redacção seguinte:

“Do certificado de registo criminal da arguida O... não consta qualquer condenação.”

Procede, assim, o recurso quanto a esta questão.

Aquando da apreciação da questão relativa à determinação da medida concreta da pena a impor a esta arguida serão extraídas as devidas consequências da alteração factual ora operada.

3.2. O alegado erro de direito no que concerne ao preenchimento dos requisitos objectivos e subjectivos do crime de burla

Alegam as arguidas que “ainda que se dê por verdadeira a “estória” da queixosa, face aos factos provados “males” não se descortina como se pode afirmar que tenha existido qualquer artifício fraudulento na conduta das arguidas.

É certo que as arguidas tentaram ou engendraram uma encenação que conduzisse a que a ofendida lhes entregasse bens e valores.

Todavia, a “estória” é de tal forma rebuscada que não pode, como o fez o aliás, douto acórdão recorrido, falar-se em astúcia ou artifício fraudulento.

Afinal, qual era o fundamento para a entrega de tais importâncias e bens?

A resposta à luz de um cidadão médio e bom pai de família só pode ser uma: nenhuma.

Se a ofendida entregou dinheiro e bens às ofendidas sem qualquer justificação credível, ou com base em sugestionamentos “espirituais” ou “males”, agiu por sua conta e risco e, diríamos mesmo, de forma temerária.

Se o fez foi porque confiou em absoluto nas arguidas – pessoas que nunca tinha visto na vida – e não porque estas tivessem usado de qualquer subterfúgio.

Ora, um cidadão médio e medianamente avisado deve ter o cuidado de avaliar as circunstâncias em que estabelece um acordo de prestação de serviços, o que diga-se, até foi cumprido.

Mas em bom rigor, nem tão-pouco podemos considerar um “acordo”.

O que transparece da “estória” foi que a ofendida entregou quantias monetárias e bens, na expectativa de vir a “acalmar” os “espíritos” que pudessem fazer mal aos seus filhos?!...

Se confiou ilimitadamente em pessoas que nunca tinha visto na vida e das quais nada sabe ou sabia, então, agiu de forma imprudente e incauta.

Não pode é pretender ter sido “astuciosamente” enganada pelas arguidas, o que diga-se de passagem, nunca assumiu em audiência.

O alegado embuste consistiu mais na sua imprevidência do que no artificio, ardil ou manha da outra parte.

Ninguém contesta o direito da ofendida à justa reparação pelo prejuízo que sofreu, simplesmente, tal desiderato, sempre ressalvado o devido respeito por superior opinião, terá de ser procurado no foro adequado à resolução de conflitos desta jaez, ou seja, no foro cível.

Daqui só se pode inferir que a ofendida, efetivamente, não foi induzida em nenhum erro ou engano provocado pelas arguidas, mas sim que, em consciência quis ser “enganada”, em troca da paz de espirito e saúde dos seus filhos e outros interesses espirituais, religiosos e transcendentais, que nem o tribunal nem ninguém no seu perfeito juízo consegue entender, pagando um preço solicitado por essa “prestação de serviço” espiritual.”

Não cremos que lhes assista razão.

A propósito do enquadramento jurídico-penal dos factos provados diz-se, com adequação, na decisão recorrida:

“A astúcia relevante neste ilícito não tem um carácter meramente subjectivo, devendo traduzir-se em actos materiais que a revelem e evidenciem.

E o processo enganoso utilizado pelo agente para determinar outrem à prática de actos que lhe causem, a si ou a terceiro, um prejuízo patrimonial, consumar-se-á com a verificação do prejuízo, isto é, com o empobrecimento da vítima.

Fazendo apelo aos factos julgados provados, é manifesto que com as suas condutas cometeram as arguidas um crime de burla, e, atento o valor do prejuízo causado, estamos sem dúvida perante uma burla qualificada.

Por outro lado, uma vez que as arguidas se aproveitaram também da situação de especial vulnerabilidade da ofendida decorrente da doença de que a mesma padecia, mostra-se também preenchida a agravante qualificativa prevista na alínea c) do nº 2 do artº 218º do C. Penal.”

E um pouco mais à frente:
“Dos factos julgados provados resulta sem qualquer dúvida que as arguidas, de forma astuciosa, induziram activamente a ofendida em erro, fazendo-a acreditar em capacidades que não detinham, levando-a a crer que conseguiam visionar os “males” que se avizinhavam para os seus filhos e que tinham meios e talento suficiente  para deles afastar tais “males”, levando-a ainda a acreditar que só mediante a entrega das quantias monetárias que lhe solicitaram e das “rezas” por elas feitas era possível evitar tais desgraças.
Da factualidade julgada provada resulta claramente que foi por acreditar nas qualidades “protectoras e curativas” que as arguidas diziam possuir que a ofendida se predispôs a entregar-lhes as quantias monetárias pedidas, acreditando que as “rezas” que as mesmas fariam evitariam que algo de mal acontecesse aos seus filhos.
As arguidas usaram assim de astúcia, induzindo a ofendida em erro, invocando qualidades que não possuíam, surpreendendo a boa-fé e credulidade da ofendida e aproveitando-se da especial fragilidade e vulnerabilidade desta decorrente do estado de doença de que padecia, assim a convencendo a praticar actos em prejuízo do seu próprio património.”
Sobre a idoneidade da astúcia no crime de burla refere-se no Ac. do STJ de 24/4/2008, proferido no âmbito do Proc. 06P3057, disponível in www.dgsi.pt, com o qual se concorda “Quanto à idoneidade da astúcia em si, já se pretendeu que a sua relevância também dependia de se “iludir o cuidado que, no sector em causa, normalmente se espera de cada um”. Dependeria, pois, também, de se não estar, da parte da vítima, perante uma ingenuidade superior à do “homem médio” devidamente integrado na conjuntura do caso. Deverá a nosso ver, porém, considerar-se a tal propósito, procedente, a crítica segundo a qual, destinando-se a criminalização da burla a proteger o património, assim, ficaria menos protegido o daqueles que, porque mais simples, de mais protecção precisam. Daí que, não será por o burlão se ter limitado ao que se revelou suficiente para enganar a vítima, de acordo com as características desta, eventualmente só desta, bem como as circunstâncias do caso, que terá de deixar de haver burla (cfr. Almeida Costa ob. cit. pág. 298).”
Da factualidade dada como provada na decisão recorrida mostram-se, pois, preenchidos os requisitos objectivos e subjectivos do crime de burla qualificada pelo qual as arguidas foram condenadas, não sendo a interpretação normativa feita pelo tribunal a quo, do art. 217.º, n.º 1, do CP, violadora do princípio constitucional da legalidade previsto no art. 29.º da CRP, como pretendem as recorrentes.
Improcede, assim, o recurso quanto à suscitada questão.
3.3. Medida da pena e condição da suspensão da execução da pena de prisão
Alegam as arguidas que as penas que lhes foram impostas ficaram muito além do limite das respectivas culpas, não devendo ser superiores a 3 anos de prisão, tanto mais que não registam antecedentes criminais, suspensas na sua execução e sujeitas a regime de prova.
No que respeita à condição da suspensão entendem as recorrentes que as penas não deverão ficar sujeitas ao pagamento de qualquer quantia por não terem condições económicas para o fazerem ou, caso assim não se entenda, deverá o quantum dessa obrigação ser substancialmente reduzido para que não se mostre violado o disposto no art. 51.º, n.º 2, do CP.
Sobre a determinação da medida concreta das penas a impor às arguidas consignou-se na decisão recorrida:
“Nesses termos, importa ter em conta as necessidades de prevenção geral e especial, bem como, as exigências de reprovação do crime, não olvidando que a pena tem de ser orientada em função da culpa concreta do agente e que deve ser proporcional a esta, em sentido pedagógico e ressocializador.
Assim sendo, em sede de medida concreta da pena, importa ponderar:
- as exigências de prevenção geral, que são elevadas, perante o crescente número de crimes de burla;
- a elevada ilicitude dos factos, servindo-se as arguidas de uma pessoa de idade e doente para obterem compensações económicas que não lhes eram devidas;
- a culpa das arguidas, que é elevada e persistente, já que deliberadamente quiseram praticar os factos, agindo com dolo directo e intenso;
- o modo de execução do ilícito, agindo as arguidas em conjunto e abusando da credulidade da ofendida, pessoa com idade bem superior à de cada uma delas, e da sua maior vulnerabilidade decorrente da situação de doença de que padecia para melhor alcançarem os seus intentos, reiterando as suas condutas durante um período de cerca de 10 dias, logrando enganar repetidamente a ofendida por forma a entregar-lhes por diversas vezes quantias monetárias de valores muito significativos;
- as consequências do facto, traduzidas nos prejuízos monetários causados pelas arguidas, no seu conjunto mais de 25.000 €, até ao momento não ressarcidos, para além do acréscimo de instabilidade emocional provocada à ofendida;
- a postura adoptada pelas arguidas em julgamento, que não evidenciaram qualquer interiorização do desvalor e gravidade das suas condutas, nem qualquer sensibilização perante os prejuízos causados à ofendida;
- a ausência de antecedentes criminais da arguida C... e os antecedentes criminais da arguida O..., por crime de idêntica natureza, embora cometido em Março de 2005, portanto há mais de e 10 anos, donde resulta que são diminutas as necessidades de prevenção especial; e
- por fim, as condições económicas e pessoais das arguidas, entre as quais a circunstância de ambas as arguidas se encontrarem familiarmente inseridas.
Dada a postura adoptada pelas arguidas, de total alheamento quanto às consequências das suas condutas, e não ressarcimento até ao momento dos prejuízos causados à ofendida, prejuízos de valor consideravelmente elevado, entendemos que a pena de prisão a aplicar a cada uma delas se deverá situar significativamente acima do mínimo legal, embora abaixo do meio da pena.
Afigura-se ainda que a existência de antecedentes criminais por crime de idêntica natureza por parte da arguida O... impõe que a pena a aplicar-lhe seja ligeiramente superior à da arguida C....
Tudo ponderado, mostra-se adequado aplicar:
- à arguida C... pela prática de um crime de burla qualificada, p. e p. pelos artºs 217º, nº 1, e 218º, nº 2, alíneas a) e c), do C. Penal, a pena de 4 (quatro) anos de prisão;
- à arguida O... pela prática de um crime de burla qualificada, p. e p. pelos artºs 217º, nº 1, e 218º, nº 2, alíneas a) e c), do C. Penal, a pena de 4 (quatro) anos e 2 (dois) meses de prisão.
(…)
Determina-se também no artº 50º do C. Penal, agora no seu nº 2, que se o julgar conveniente e adequado à realização das finalidades da punição, o tribunal subordina a suspensão da execução da pena de prisão ao cumprimento de deveres ou à observância de regras de conduta, ou determina que a suspensão seja acompanhada de regime de prova, sendo que de harmonia com o disposto no artº 53º, nº 3, do C. Penal, na actual redacção, o regime de prova é ordenado sempre que o condenado não tiver ainda completado, ao tempo do crime, 21 anos de idade, ou quando a pena de prisão cuja execução for suspensa tiver sido aplicada em medida superior a três anos.
No caso concreto, muito embora as arguidas não tenham evidenciado qualquer interiorização do desvalor das respectivas condutas, dado que a arguida C... não tem antecedentes criminais e que os antecedentes criminais da arguida O..., embora por crime de idêntica natureza, datam de Março de 2005, portanto há mais de 10 anos, e uma vez que ambas as arguidas se encontram familiarmente inseridas, acreditamos que a simples censura do facto e a ameaça do cumprimento das penas de prisão em que vão condenadas serão suficientes para as afastar da prática da criminalidade, desde que conjugadas com regime de prova e ainda com a obrigação de ressarcimento, por cada uma delas, de parte dos prejuízos causados, por forma a que ambas as arguidas interiorizem devidamente o desvalor e gravidade das respectivas condutas e suas nefastas consequências.
Quanto ao montante a fixar a cada uma das arguidas e apesar da situação económica conhecida de cada uma delas, afigura-se adequado o montante de 4.000€, a pagar por cada uma delas até ao fim do período de quatro anos, valor que se afigura necessário por forma a alcançar-se um efeito contentor quanto aos comportamentos futuros das arguidas e que não se mostra excessivo, não só porque as arguidas se locupletaram, há menos de ano de meio, com quantia pertencente à ofendida bem superior à indicada, quantia de que, por certo, deterão ainda pelo menos parte, e ainda porque, para além dos subsídios recebidos pelas arguidas e pelos elementos dos seus agregados familiares, as mesmas se dedicam ainda à venda ambulante.
Neste enquadramento, suspender-se-á a execução das penas de prisão que lhes vão aplicadas, por período idêntico ao da respectiva pena, com regime de prova e ainda com a obrigação de cada uma das arguidas pagar à ofendida a importância de 4.000,00 (quatro mil euros), devendo ser pago um quarto da referida quantia, isto é, o montante de 1.000,00€ (mil euros), em cada um dos quatro anos da suspensão da execução da pena de prisão aplicada.”

Tendo presente todo o circunstancialismo dado como provado na decisão recorrida e face à moldura abstracta prevista para o crime de burla qualificada em que as arguidas incorrem – pena de prisão de mínimo 2 anos e máximo 8 anos – parece-nos como perfeitamente adequada a pena de 4 anos de prisão, a impor agora a ambas as arguidas, face à alteração do ponto 36. dos factos provados, que resulta na ausência de antecedentes criminais por parte da arguida O..., pena essa que se situa abaixo do seu limite médio.

Tais penas deverão ser suspensas na sua execução por igual período de 4 anos, mediante regime de prova, em conformidade com o disposto no n.º 3, do art. 53.º, do CP e, ainda, mediante o pagamento, por cada uma das arguidas, da quantia de 4.000€ à ofendida, nos termos e prazos estabelecidos na decisão recorrida.

Dispõe o n.º 2, do art. 50.º, do CP que “O tribunal, se o julgar conveniente e adequado à realização das finalidades da punição, subordina a suspensão da execução da pena de prisão, nos termos dos artigos seguintes, ao cumprimento de deveres ou à observância de regras de conduta, ou determina que a suspensão seja acompanhada de regime de prova”.

Por sua vez o n.º 1, do art. 51.º do mesmo diploma legal, preceitua que:

“A suspensão da execução da pena de prisão pode ser subordinada ao cumprimento de deveres impostos ao condenado e destinados a reparar o mal do crime, nomeadamente:

a) Pagar dentro de certo prazo, no todo ou na parte que o tribunal considerar possível, a indemnização devida ao lesado, ou garantir o seu pagamento por meio de caução idónea; 

b) (…)

c) (…)”

E o n.º 2 dispõe que:

“Os deveres impostos não podem em caso algum representar para o condenado obrigações cujo cumprimento não seja razoavelmente de lhe exigir.”

Dos preceitos em análise resulta que as condições de suspensão de execução das penas de prisão ao pagamento de indemnizações hão-de reger-se por dois critérios fundamentais, a saber, a realização das finalidades da punição e a razoabilidade do quantum, tempo e modo de cumprimento.

De acordo com o disposto no art. 40.º, n.º 1, do CP, as finalidades da punição são a protecção de bens jurídicos e a reintegração do agente na sociedade.

No caso dos autos, o crime imputado às arguidas revestiu um grau elevado de ilicitude, pelo que, a punição – que se traduz na imposição de um sofrimento ou privação de bens a infligir ao autor do delito – há-de ser proporcional ao mal praticado.
Porém, como as condições económicas das arguidas, dadas como provadas na decisão recorrida, não permitem considerar como razoável a subordinação da suspensão da execução da pena de prisão imposta às arguidas ao pagamento da totalidade da indemnização que lhe seria devida – de pelo menos 25.000€, correspondente ao prejuízo sofrido, até ao momento não ressarcido – entendeu-se na decisão recorrida, fixar tal montante em 4.000€, para cada uma das arguidas, quantia essa que se considerou, e bem, como não sendo excessiva “não só porque as arguidas se locupletaram, há menos de ano de meio, com quantia pertencente à ofendida bem superior à indicada, quantia de que, por certo, deterão ainda pelo menos parte, e ainda porque, para além dos subsídios recebidos pelas arguidas e pelos elementos dos seus agregados familiares, as mesmas se dedicam ainda à venda ambulante.”
Termos em que, procede apenas parcialmente o recurso no que respeita à medida da pena imposta à arguida O..., que se reduz para 4 anos de prisão, bem como o respectivo prazo de suspensão da sua execução.

III. Decisão

Pelo exposto, acordam os Juízes na 9.ª Secção Criminal da Relação de Lisboa, em conceder parcial provimento ao recurso interposto pelas arguidas e, em consequência:

A) Declarar a nulidade parcial do acórdão recorrido, por excesso de pronúncia, nulidade essa que se sana neste tribunal, nos termos supra expostos em 3.1., alterando-se o ponto 36. dos factos provados, o qual passa a ter a redacção seguinte:

“Do certificado de registo criminal da arguida O... não consta qualquer condenação.”

B) Reduzir a pena imposta à arguida O... para 4 (quatro) anos de prisão, bem como o respectivo prazo de suspensão da execução da pena de prisão para 4 (quatro) anos.

C) Manter em tudo o mais o decidido em 1.ª instância.

Sem custas.
Lisboa, 28.01.2016
Processado e revisto pela relatora, a primeira signatária, que assina a final e rubrica as restantes folhas (art. 94.º, n.º 2 do CPP).


Guilhermina Freitas
José Sérgio Calheiros da Gama