Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
195/22.2T8BRR-C.L1-8
Relator: MARIA DO CÉU SILVA
Descritores: INVENTÁRIO
ARTICULADO E RELAÇÃO DE BENS
SUJEIÇÃO A DESPACHO JUDICIAL
PRAZO PARA A RECLAMAÇÃO
INICIO DA CONTAGEM
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 03/07/2024
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Texto Parcial: N
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: PROCEDENTE
Sumário: 1 - Tal como o requerimento inicial deve ser apresentado ao juiz para despacho liminar, conforme resulta do art.º 1100º do C.P.C., também o articulado apresentado pelo cabeça de casal não requerente deve ser apresentado ao juiz, devendo este verificar da conformidade dos elementos fornecidos com o exigido no art.º 1102º nº 1 do C.P.C.
2 - Só após a apresentação pelo cabeça de casal não requerente dos elementos exigidos no art.º 1102º nº 1 do C.P.C. é que os demais interessados podem exercer as faculdades previstas no art.º 1104º nº 1 do C.C., pelo que só então devem ser citados.
3 - Se o requerente não exerce o cargo de cabeça de casal, o prazo de 30 dias para exercer as faculdades previstas no nº 1 do art.º 1104º do C.P.C., com as devidas adaptações, conta-se a partir da notificação ao requerente do despacho que ordenou a citação dos demais interessados na partilha.
4 - Mesmo sendo a requerente e o cabeça de casal os únicos interessados no presente inventário, o articulado apresentado pelo cabeça de casal deve ser apresentado ao juiz para despacho liminar, pelo que o prazo para a requerente apresentar reclamação à relação de bens não pode contar-se da notificação feita pelo mandatário do cabeça de casal ao mandatário da requerente.
Decisão Texto Parcial:
Decisão Texto Integral: Acordam os Juízes do Tribunal da Relação de Lisboa

No processo de inventário para partilha dos bens comuns em que é requerente A e cabeça de casal B, aquela interpôs recurso do despacho proferido a 6 de novembro de 2023, despacho esse do seguinte teor:
“Compulsados os autos, dos mesmos resulta que a 14.07.2023 o cabeça de casal juntou a relação de bens.
Por sua vez, tendo a interessada/requerente, sido notificada da apresentação da relação de bens na mesma data (14.07.2023), dispunha de 30 dias para reclamar contra a relação de bens - art.º 1104º do C.P.Civil.
A interessada apresentou reclamação contra a relação de bens a 30.10.2023.
Nestes termos, é manifesto que a reclamação em causa é extemporânea, pelo que, se ordena o seu oportuno desentranhamento e devolução à parte.”
Na alegação de recurso, a recorrente pediu que se revogue a decisão recorrida e que se admita a reclamação à relação de bens, tendo formulado as seguintes conclusões:
«A. O Tribunal a quo considerou que a reclamação à relação de bens apresentada pela Recorrente “é extemporânea” e ordenou “o seu oportuno desentranhamento e devolução à parte”, porquanto entendeu que, “tendo a interessada/requerente, sido notificada da apresentação da relação de bens na mesma data (14.07.2023), dispunha de 30 dias para reclamar contra a relação de bens - art.º 1104º do C.P.Civil”.
B. Todavia, e com o devido respeito pelo Tribunal a quo, que é muito, foram erroneamente interpretadas as disposições aplicáveis.
C. Efetivamente, de acordo com o n.º 2 do artigo 1104.º do CPC, “as faculdades previstas no número anterior também podem ser exercidas, com as necessárias adaptações, pelo requerente do inventário ou pelo cabeça de casal, contando-se o prazo, quanto ao requerente, da notificação referida no n.º 3 do artigo 1100.º”.
D. Por sua vez, estabelece o n.º 3 do artigo 1100.º do CPC que “o requerente que exerça o cargo de cabeça de casal é notificado do despacho que ordene as citações referidas no número anterior”.
E. Deflui do exposto que a notificação a que alude o n.º 3 do artigo 1100.º do CPC deve considerar-se consequência necessária do “despacho que ordene as citações” ou “despacho que a lei mande notificar”, sendo por isso, de acordo com o artigo 220.º, n.º 1, do CPC, um ato a ser praticado pela secretaria.
F. É esse o “sentido que melhor e mais imediatamente corresponde ao significado natural das expressões verbais utilizadas, e designadamente ao seu significado técnico-            -jurídico no suposto (…) de que o legislador soube exprimir com correcção o seu pensamento” (Baptista Machado, op. cit., p. 182).
G. Esclareça-se que mesmo, por hipótese, não tenha sido emitido o “despacho que ordene as citações”, a peça processual do cabeça de casal deve ser também notificada ao requerente inicial de inventário pela secretaria se – conforme impõe o artigo 9.º, n.º 1, do CC – tivermos “em conta a unidade do sistema jurídico”.
H. De facto, se, por um lado, tivermos presente que “só se passa à subfase da oposição (art.ºs 1104.º a 1107.º) quando o juiz, em despacho liminar, tiver entendido que todos os elementos necessários para o normal prosseguimento do processo constam dos autos (art.º 1100.º)”, sendo que “o art.º 1104.º prevê um articulado de contestação ao requerimento inicial (art.º 1097.º) ou ao articulado complementar do cabeça-de-casal (art.º 1102.º)”, o articulado do cabeça de casal deve, também por aqui, ser notificado ao requerente inicial pela secretaria (Miguel Teixeira de Sousa, Carlos Lopes do Rego, António Abrantes Geraldes, Pedro Pinheiro Torres, op. cit., pp. 59 e 78, …).
I. Com feito, nos termos do artigo 221.º, n.º 1, do CPC, “nos processos em que as partes tenham constituído mandatário judicial, os atos processuais que devam ser praticados por escrito pelas partes após a notificação da contestação do réu ao autor são notificados pelo mandatário judicial do apresentante ao mandatário judicial da contraparte através do sistema de informação de suporte à atividade dos tribunais, nos termos previstos no artigo 255.º” – …
J. De resto, e embora sem dar conta disso, o próprio Tribunal a quo reconhece que, para as partes exercerem os direitos processuais previstos no artigo 1104.º, n.º 1, do CPC, as mesmas devem – consoante o caso – ser citadas ou notificadas, ao proferir o despacho de 28.09.2023 que foi notificado pela secretaria e nos termos do qual se determina “aguardem os autos pelo decurso do prazo a que alude o art.º 1104º do C.P.Civil”.
K. Uma vez que a oposição (id est, a contestação) da Recorrente ao requerimento do cabeça de casal tem lugar após a notificação a que alude o n.º 3 do artigo 1100.º do CPC, não se encontravam ainda reunidas as condições processuais para se fazer operar a notificação entre mandatários prevista no artigo 221.º do CPC.
L. Aliás, afigura-se à Recorrente ser esta a única solução tendo em conta que o Tribunal a quo não pode admitir a necessidade de emissão de um despacho para efeitos de exercício dos direitos processuais previstos no n.º 1 do artigo 1104.º do CPC (como fez ao proferir o despacho de 28.03.2023), mas recusar à Recorrente o exercício de tais direitos dentro do prazo legalmente previsto a contar da notificação do despacho de 28.09.2023.
M. Ao ter decidido em sentido contrário no despacho recorrido, incorreu o Tribunal a quo em errónea interpretação e aplicação do disposto nos artigos 220.º, 221.º 1100, n.º 3, e 1104.º do CPC.»
O cabeça de casal respondeu à alegação da recorrente, tendo formulado as seguintes conclusões:
«1.O Tribunal A Quo por despacho prolatado em 6.11.2023, considerou a reclamação da Relação de Bens apresentada pela Requerente do inventário, em 30.10.2023 é manifestamente extemporânea, devendo, por conseguinte, ser desentranhada e entregue à parte.
2. Atentas as motivações de recurso, entendem o ora Recorrido que não assiste qualquer razão a pretensão da Recorrente, não merecendo a decisão contida no despacho prolatado em 6.11.2023 qualquer juízo de censura.
3. A Questão fundamental a decidir, no caso sub judice é: A Requerente do Inventário terá necessariamente que ser citada ou notificada pela Secretaria do Tribunal (Art.º 220º do CPC) ou pode considerar-se notificada através de mandatário (Art.º 221º do CPC) com a apresentação em juízo da relação de bens para, querendo, reclamar da mesma?
4. Entende o Recorrido que a Requerente do inventário pode ser notificada da apresentação da referida relação de bens, através de notificação entre mandatários a que alude o Art.ºs 221º e 255º do CPC, não carecendo de ser notificada à Requerente pela Secretaria do Tribunal, nos termos do disposto no Art.º 220º do CPC., iniciando-se o prazo para apresentação da reclamação à relação de bens, da data em que o mandatário da Requerente foi notificado pelo mandatário do Cabeça de Casal.
5. Nos presentes autos, apenas está aqui em causa, a notificação da Requerente do inventário, para lhe dar conhecimento de um facto (relação de bens) e esta notificação, salvo melhor entendimento, não terá que ser realizada pelo Tribunal, podendo ser efectivamente realizada através de notificação entre mandatários, nos termos do disposto no Art.º 221º e Art.º 255º do CPC, iniciando-se o prazo para reclamação da relação de bens apresentada, a contar da referida notificação, não carecendo de realização de nova notificação oficiosa pela Secretaria.
6. A criação dos Artigos 221º e 255º do CPC pelo Legislador, teve como subjacente a ideia de contribuir para a maior celeridade processual e combater a morosidade processual, que muitas das vezes a realização das notificações comportam, pretendendo efectivamente libertar os Tribunais de tarefas ou da prática de actos de expediente que podem perfeitamente ser praticados pelas partes e que não põem em causa a oficiosidade do acto que se pretende praticar.
7. A notificação entre mandatários, pressupõe que as partes tenham constituído no processo mandatários judiciais, e aplica-se a qualquer tipo ou natureza de processos, e reporta-se a articulados ou a requerimentos autónomos.
8. O Recorrido perfilha do entendimento que o requerimento de apresentação da relação de bens, configura um verdadeiro requerimento autónomo, e por conseguinte, poderá e deverá ser notificado aos outros interessados no inventário que estejam patrocinados por mandatário, através da notificação a que alude o Art.ºs 221º e 255º do CPC.
9. Não assiste razão à Recorrente quando refere no seu libelo recursório que o Tribunal deveria ter dado cumprimento ao disposto no Art.º 1104º nº 2 e 1100 nº 3 ambos do CPC, e proceder à notificação da relação de bens apresentada pelo Cabeça de Casal à requerente do inventário, através da secretaria (Art.º 220º do CPC), pois assim os referidos normativos o exigem.
10. Lavra em erro de interpretação, a ora aqui Recorrente, ao considerar que o Tribunal A Quo, ao proferir despacho onde refere “aguardem os autos pelos decurso do prazo a que alude o Art.º 1104º do CPC” está a reconhecer a necessidade de notificação da relação de bens pela secretaria, na realidade o que o Tribunal A Quo proferiu foi a Requerente do inventário, à data da prolação do referido despacho, ainda dispunha de 2 dias para apresentar, querendo, a respectiva reclamação à relação de bens, pelo que o Tribunal A Quo teria de aguardar o decurso do prazo, que já se encontrava a correr!!!!!
11. Entende o Recorrido que a notificação da relação de bens realizada por mandatário judicial nos termos do Art.º 221º do CPC, produziu efectivamente os seus efeitos, iniciando-se o prazo da Requerente do inventário, para o exercício do contraditório e ou apresentação da reclamação à relação de bens da sua efectiva notificação, que ocorreu em 14.07.2023, tendo o referido prazo terminado a 30.09.2023.
12. Andou bem o Tribunal A Quo quando considerou que a notificação realizada pelo Cabeça de Casal à Requerente de Inventário, através de mandatário, produziu os seus efeitos, tendo considerado extemporânea a reclamação apresentada pela Requerente do inventário em 30.10.2023, devendo, por conseguinte, ser mantido o despacho proferido pelo Tribunal A Quo proferido em 6.11.2023, que considerou extemporânea a reclamação apresentada.»
É a seguinte a questão a decidir:
- da tempestividade da reclamação à relação de bens.
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Para a decisão da questão, importa ter presente que resulta dos autos o seguinte:
1 - No dia 12 de junho de 2023, foi proferido o seguinte despacho:
“Compulsados os autos, dos mesmos resulta que o exercício da função de cabeça-de--casal incumbe ao requerido em virtude de ser o ex-cônjuge mais velho.
Nestes termos, confirmo B na qualidade de cabeça-de-casal nos presentes autos, e determino o prosseguimento destes com a citação do mesmo nos termos do disposto no art.º 1100º, nº 2, al. b) do C.P.Civil.
Notifique.”
2 - A 12 de junho de 2023, foi elaborada no citius a notificação da requerente, na pessoa da sua mandatária, do referido despacho.
3 - A 14 de julho de 2023, a ilustre mandatária do cabeça de casal juntou a declaração de compromisso de honra e a relação de bens comuns do casal, constando do formulário a notificação eletrónica da mandatária da requerente.
4 - Conclusos os autos a 28 de setembro de 2023, foi proferido despacho, nessa data, do seguinte teor:
“Aguardem os autos pelo decurso do prazo a que alude o art.º 1104º do C.P.Civil”.
5 - A 28 de setembro de 2023, foi elaborada no citius a notificação da requerente, na pessoa da sua mandatária, do referido despacho, à qual foi anexado o articulado junto pela cabeça de casal a 14 de julho de 2023.
6 - A 30 de outubro de 2023, foi apresentada a reclamação à relação de bens.
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O art.º 1097º do C.P.C. regula o requerimento inicial apresentado por cabeça de casal e o art.º 1099º do C.C. regula o requerimento inicial apresentado por outro interessado.
“Procurou valorizar-se o processo de partes, configurado pelos articulados, o que, de modo significativo, se traduz na imposição ao requerente do inventário, quando este se arrogue ser titular (por direito ou obrigação legal) do exercício das funções de cabeça de casal, de um ónus de alegação e prova em tudo semelhante ao cometido a um qualquer autor numa ação judicial, passando a competir-lhe, nos termos do artigo 1097.º do CPC, trazer aos autos os elementos de identificação e prova suficientes para que sejam conhecidos a causa de pedir (abertura de sucessão) a sua legitimidade e dos demais interessados, todos os elementos que entenda poderem influenciar a partilha, e a relação dos bens e dos créditos e dívidas da herança, deste modo se reunindo naquela peça processual diversos atos até aqui dispersos.
Considerou-se, neste mesmo sentido, promover a substituição do modo e tempo da prestação de compromisso de cabeça de casal, que se prevê passe a ser feita por declaração junta pelo Requerente à petição, nos termos da alínea e) do n.º 2 deste artigo 1097.º.
Com esta previsão transforma-se o requerimento de inventário numa verdadeira petição inicial” (Pedro Pinheiro Torres, Notas Breves de Apresentação do Processo de Inventário na redação dada pela Lei n.º 117/2019, de 13 de setembro, Inventário: o novo regime, CEJ, Maio 2020, pág. 21).
«É claro que o ónus processual imposto ao requerente no artigo 1097.º do CPC, quando a este competir o exercício das funções de cabeça de casal, não poderia ser imposto a outro interessado, que pretendesse requerer o inventário, sem se arrogar a competência para exercer as funções de cabeça de casal, sendo, no entanto, enunciadas no artigo 1099.º obrigações que o inibem da apresentação de simples requerimento de instauração de inventário (como até aqui sucedia), nomeadamente que, “na medida do seu conhecimento, dar cumprimento às obrigações impostas ao requerente/cabeça de casal, pelo n.º 1 do artigo 1097.º.
Esta imposição não pode ser considerada mera retórica, pois poderá ser objeto de apreciação pelo tribunal a conduta do requerente que, ostensivamente, omita ao Tribunal factos de que não pode deixar de ter conhecimento (nomeadamente testamentos, documentos ou mesmo a identificação dos outros interessados) podendo ser severa e exemplarmente sancionado.
Procurou, assim, em suma, evitar-se que seja “relegada para momento posterior” à entrada nos autos do requerimento de inventário a informação aos autos de uma série de elementos essenciais à boa prossecução de inventário, como no regime revogado sucedia e que apenas contribuía para atrasar a tramitação desses autos» (Pedro Pinheiro Torres, obra citada, pág. 22).
O art.º 1100º do C.P.C. dispõe o seguinte:
“1 - O requerimento é submetido a despacho liminar para, além das demais previstas na lei, as seguintes finalidades:
a) Verificação da existência de qualquer deficiência do requerimento, devendo seguir-se o respetivo convite ao aperfeiçoamento;
b) Confirmação ou designação do cabeça de casal.
2 - Se o processo prosseguir, o juiz:
a) Se verificar que o exercício de funções de cabeça de casal cabe ao requerente e que este prestou compromisso de honra válido, procede à sua designação e ordena a citação de todos os interessados diretos na partilha;
b) Se verificar que o cargo de cabeça de casal compete a outrem que não o requerente, ordena a citação daquele;
c) Sempre que se justifique a sua intervenção, ordena a citação do Ministério Público.
3 - O requerente que exerça o cargo de cabeça de casal é notificado do despacho que ordene as citações referidas no número anterior.”
Ao requerimento inicial segue-se “a prolação de despacho liminar, prevista no artigo 1100.º, em claro reconhecimento da existência de razões válidas (nomeadamente a apreciação da legitimidade e qualidade de cabeça de casal invocadas pelo requerente) para não se promover a citação oficiosa de interessados” (Pedro Pinheiro Torres, obra citada, pág. 21).
No presente inventário, a juiz da 1ª instância verificou que o cargo de cabeça de casal competia a outrem que não o requerente e ordenou a citação daquele.
Resulta do art.º 1102º nº 1 do C.P.C. que, “se o requerimento inicial não tiver sido entregue pelo cabeça de casal, este é advertido, no ato da sua citação, de que, no prazo de 30 dias, deve:
a) Confirmar, corrigir ou completar, de acordo com o estabelecido no artigo 1097º, o que consta do requerimento inicial e juntar os documentos que se mostrem necessários;
b) Apresentar ou completar a relação de bens nos termos da alínea c) do nº 2 artigo 1097º e do artigo 1098º;
c) Apresentar o compromisso de honra do fiel exercício das suas funções nos termos da alínea e) do nº 2 e do nº 3 do artigo 1097º.”
“Os art.ºs 1097.º a 1102.º regulam a subfase inicial da fase dos articulados. Esta fase inicia-se com a apresentação de uma verdadeira petição de inventário, que comporta a alegação de todos os elementos factuais e documentais relevantes para a definição do universo dos interessados na partilha, do acervo de bens a partilhar e do passivo hereditário (art.º 1097.º), Se o requerimento inicial for apresentado por quem não se apresente nem seja confirmado como cabeça-de-casal (art.º 1099.º), este deve ser citado para apresentar um articulado complementar (art.º 1102.º). Só se passa à subfase da oposição (art.ºs 1104.º a 1107.º) quando o juiz, em despacho liminar, tiver entendido que todos os elementos necessários para o normal prosseguimento do processo constam dos autos (art.º 1100.º)” (Miguel Teixeira de Sousa, Carlos Lopes do Rego, António Abrantes Geraldes e Pedro Pinheiro Torres, O Novo Regime do Processo de Inventário e Outras Alterações na Legislação Processual Civil, Almedina 2020, pág. 59).
Tal como o requerimento inicial deve ser apresentado ao juiz para despacho liminar, conforme resulta do art.º 1100º do C.P.C., também o articulado apresentado pelo cabeça de casal não requerente deve ser apresentado ao juiz, devendo este verificar da conformidade dos elementos fornecidos com o exigido no art.º 1102º nº 1 do C.P.C.
Só após a apresentação pelo cabeça de casal não requerente dos elementos exigidos no art.º 1102º nº 1 do C.P.C. é que os demais interessados podem exercer as faculdades previstas no art.º 1104º nº 1 do C.C., pelo que só então devem ser citados.
As citações dos interessados dependem de prévio despacho judicial quer o requerimento inicial tenha sido apresentado pelo cabeça de casal nomeado quer não.
O art.º 1104º do C.P.C. dispõe o seguinte:
“1 - Os interessados diretos na partilha e o Ministério Público, quando tenha intervenção principal, podem, no prazo de 30 dias a contar da sua citação:
a) Deduzir oposição ao inventário;
b) Impugnar a legitimidade dos interessados citados ou alegar a existência de outros;
c) Impugnar a competência do cabeça de casal ou as indicações constantes das suas declarações;
d) Apresentar reclamação à relação de bens;
e) Impugnar os créditos e as dívidas da herança.
2 - As faculdades previstas no número anterior também podem ser exercidas, com as necessárias adaptações, pelo requerente do inventário ou pelo cabeça de casal, contando-se o prazo, quanto ao requerente, da notificação referida no nº 3 do artigo 1100º e, quanto ao cabeça de casal, da citação efetuada nos termos da alínea b) do nº 2 do mesmo artigo.
3 - …”
A expressão “com as necessárias adaptações” empregue no nº 2 do art.º 1104º do C.P.C. significa que as faculdades que podem ser exercidas pelo requerente do inventário e pelo cabeça de casal não requerente não são as mesmas que podem ser exercidas pelos demais interessados na partilha. A dedução de oposição ao inventário é evidentemente uma faculdade que só pode ser exercida pelos interessados não requerentes. A apresentação de reclamação à relação de bens é evidentemente uma faculdade que não cabe ao cabeça de casal exercer.
Resulta do art.º 1104º nº 2 do C.P.C. que o prazo de 30 dias para o requerente do inventário exercer as faculdades previstas no nº 1 do citado artigo, com as necessárias adaptações, conta-se da notificação referida no nº 3 do artigo 1100º do C.P.C.
O art.º 1100º nº 3 do C.P.C. prevê a notificação do “requerente que exerça o cargo de cabeça de casal”.
Se o requerente não exerce o cargo de cabeça de casal, o prazo de 30 dias para exercer as faculdades previstas no nº 1 do art.º 1104º do C.P.C., com as devidas adaptações, conta-se a partir de quando?
Conta-se a partir da notificação ao requerente do despacho que ordenou a citação dos demais interessados na partilha.
Tal notificação deve ser acompanhada de cópia do articulado apresentado pelo cabeça de casal.
“Só após a entrada nos autos de todo o acervo fáctico e documental necessário (…) ao bom desenvolvimento do processo se procede à citação dos demais interessados e à notificação do requerente do inventário no caso de este não ser o cabeça de casal nomeado” (Pedro Pinheiro Torres, obra citada, pág. 22).
No presente inventário, os interessados são apenas a requerente e o cabeça de casal.
O único despacho de citação proferido pela 1ª instância foi o despacho de citação do cabeça de casal.
 O tribunal recorrido contou o prazo de 30 dias para a requerente apresentar reclamação à relação de bens a partir da notificação da apresentação da relação de bens, notificação essa que foi feita pela ilustre mandatária do cabeça de casal.
 Nos termos do art.º 221º nº 1 do C.P.C., “nos processos em que as partes tenham constituído mandatário judicial, os atos processuais que devam ser praticados por escrito pelas partes após a notificação da contestação do réu ao autor são notificados pelo mandatário judicial do apresentante ao mandatário judicial da contraparte através do sistema de informação de suporte à atividade dos tribunais, nos termos previstos no artigo 255º”.
A notificação entre mandatários foi uma medida introduzida pelo DL 183/2000, de 10 de agosto, em cujo preâmbulo se pode ler:
“A morosidade processual é um dos factores que mais afecta a administração da justiça, originando atrasos na resolução dos litígios, perda de eficácia das decisões judiciais e falta de confiança no funcionamento dos tribunais.
Esta situação tem sido agravada pelo crescente recurso às instâncias judiciais, decorrente de transformações sociais e económicas e de uma maior consciência por parte dos cidadãos dos seus direitos.
Aferidas as principais causas desta situação ao nível do processo civil declarativo comum, impõe-se a adopção de medidas simplificadoras que permitam a resolução dos litígios em tempo útil e evitem o bloqueio do sistema judicial.
(…)
Pretende-se ainda desonerar os tribunais da prática de actos de expediente que possam ser praticados pelas partes, como acontece, por um lado, com a de recepção e envio de articulados e requerimentos autónomos por estas apresentados após a notificação ao autor da contestação do réu, os quais passarão a ser notificados pelo mandatário judicial do apresentante ao mandatário judicial da contraparte, no respectivo domicílio profissional.”
A notificação entre mandatários aplica-se a todos os atos processuais que devam ser praticados por escrito pelas partes após a notificação da contestação do réu ao autor e «cuja admissibilidade não dependa da apreciação prévia do juiz» (www.dgsi.pt Acórdão do STJ proferido a 5 de maio de 2005, no processo 04B419).
Mesmo sendo a requerente e o cabeça de casal os únicos interessados no presente inventário, o articulado apresentado pelo cabeça de casal deve ser apresentado ao juiz para despacho liminar, pelo que o prazo para a requerente apresentar reclamação à relação de bens não pode contar-se da notificação feita pelo mandatário do cabeça de casal ao mandatário da requerente.
Com a prolação do despacho “aguardem os autos pelo decurso do prazo a que alude o art.º 1104º do C.P.Civil”, o processo de inventário deixou a fase inicial (art.ºs 1097º a 1103º do C.P.C.), pelo que o prazo para a requerente apresentar reclamação à relação de bens tem de se contar da notificação desse despacho.
A reclamação apresentada a 30 de outubro de 2023 é, pois, tempestiva.
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Pelo exposto, acordam os Juízes desta Relação em julgar procedente a apelação, revogando o despacho recorrido e ordenando que seja seguida a tramitação subsequente à apresentação da reclamação à relação de bens.
Custas do recurso pelo recorrido.

Lisboa, 7 de março de 2024
Maria do Céu Silva
Amélia Puna Loupo
Teresa Prazeres Pais