Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
3362/10.8TBFUN.L1-2
Relator: EZAGÜY MARTINS
Descritores: USUFRUTO
COMODATO
RESOLUÇÃO DO CONTRATO
CADUCIDADE
ABUSO DE DIREITO
ILEGITIMIDADE
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 07/04/2013
Votação: UNANIMIDADE
Texto Parcial: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: IMPROCEDENTE
Sumário: I - Podendo o usufrutuário entregar em comodato, coisa de que detenha o usufruto, poderá igualmente exigir a restituição da mesma, seja nos quadros da resolução do contrato de comodato com justa causa, seja no exercício do direito de denúncia ad nutum.
II – Pressupondo este último que não foi convencionado prazo para a restituição nem determinado o uso da coisa, ponto é que quando a coisa é entregue para um uso determinado, tem-se em vista a utilização da coisa para uma determinada finalidade, não a utilização da coisa em si.
III – Não constituindo assim comodato para uso determinado o mero empréstimo de uma vivenda para habitação permanente.
IV - Quando a lei, no artigo 1137.º, n.º 2, do Código Civil, admite a restituição ad nutum “se não foi convencionado prazo para a restituição” tem em vista obstar à restituição apenas quando houve estipulação de prazo certo.
V - O falecimento de quem, como comodante, interveio no contrato de comodato, não tem o alcance de fazer caducar aquele.
VI - A invocação do abuso de direito quando está em causa a possibilidade de o contrato de comodato ser denunciado ad nutum não tem a virtualidade de paralisar o exercício do direito que a lei reconhece ao comodante. VII – Isto sem prejuízo de podendo em determinadas circunstâncias a denúncia ad nutum envolver um abuso do direito, dever ter lugar uma atribuição indemnizatória, mas já não aquela paralisia.
(Sumário do Relator)
Decisão Texto Parcial:Acordam na 2ª Secção (cível) deste Tribunal da Relação

I - “A” e “B”, intentaram ação declarativa, com processo comum sob a forma sumária, contra “C” e “D”, pedindo a condenação dos RR:
- a procederem à restituição aos AA. da casa de que são comodatários implantada, livre de pessoas e bens e no estado em que a receberam, no prazo de 30 dias a contar da citação para a presente causa;
- ao pagamento de uma sanção pecuniária compulsória, no valor de € 10,00/dia, até efectiva entrega da casa aos AA.;
- a restituir o prédio dos AA. ao estado que se encontrava quando foi reconhecida a servidão de passagem no âmbito do Proc. .../1994, que correu os seus termos no 1.º Juízo do Tribunal de Círculo do Funchal, realizando a suas expensas as obras necessárias para o efeito, ou subsidiariamente, indemnizar os AA. no valor dos encargos que estes suportarão para tal efeito;
- Indemnizar os AA. no valor de todas as despesas em que estes incorram por força da sua demanda como executados no âmbito do Proc. ...-A/1994, que corre os seus termos na 1.ª Secção das Varas de Competência Mista do Funchal, “cujo objecto é a prestação de facto”.

Alegando, para tanto e em suma, que os AA. são proprietários e legítimos possuidores de um prédio misto localizado no Sítio ..., em ..., que identificam.
Sendo que a parte urbana do referido prédio foi entregue gratuitamente ao R. “C”, para que a usasse para a sua habitação.
O prédio em que se encontra edificada a casa habitada pelos RR. encontra-se onerado com uma servidão de passagem – constituída por transacção judicial – a favor do prédio de que são proprietários “E”, “F” e “G”.
Contudo, os RR., sabedores de tal oneração, edificaram escadas e muro, que estreitam a área de passagem, impossibilitando-a a quaisquer veículos para o prédio dominante.
Em consequência do que os AA. foram demandados por “E”, “F” e “G”, em acção executiva para prestação de facto, que corre termos.
A propositura de tal acção foi levada ao conhecimento dos RR., que foram ainda interpelados para demolirem de imediato e a suas expensas as obras realizadas.
O que aqueles não acataram, antes procedendo a novas alterações, não autorizadas, no portão de acesso ao prédio dos AA., das colunas em que assenta o mencionado portão, e à fixação de uma das metades do portão ao solo., tudo de forma a impedir à passagem de qualquer veículo automóvel.
A necessidade de repor o prédio ao estado originário, de se oporem à acção executiva supra mencionada e de proporem a presente acção contra os RR., faz os AA. incorrerem em prejuízos que estimam cifrar-se em cerca de € 20.000,00.

Contestaram os RR. dizendo, no essencial, serem donos e possuidores do prédio cuja propriedade os AA. se arrogam – e onde vivem há pelo menos trinta e seis anos, exercendo posse pública, pacífica e de boa fé – nunca tendo sido notificados, nem tomado qualquer conhecimento da servidão de passagem em causa, e terem as obras a que os autores aludem sido feitas sempre à vista daqueles, sem qualquer oposição dos mesmos.

Rematam com a improcedência da ação, pedindo ainda, em reconvenção, que se declare serem os RR. donos e legítimos possuidores, com exclusão de outrem, do prédio serviente em causa.
Houve resposta dos AA., concluindo com a improcedência, por não provadas, das “excepções e reconvenção deduzidas pelos RR.”.

Subsequentemente apresentaram os AA. um articulado superveniente, no qual dão conta de que no âmbito do aludido processo executivo, “realizaram obras de eliminação da escada e muro, no que gastaram €1.217,44, pagos à sociedade de construção civil que procedeu àquelas.
Para além das despesas com custas processuais e honorários, da aludida execução, que ainda se não encontram liquidados.
Requerendo o cômputo respetivo “para efeitos da indemnização peticionada no último parágrafo do petitório.”.

Admitido liminarmente tal articulado, e notificados os RR., não se pronunciaram os mesmos a propósito.

O processo seguiu seus termos, operando-se, em audiência preliminar, saneamento – com admissão da reconvenção e relegando-se para final o conhecimento das exceções invocadas – e condensação.

Já após o início da audiência final, requereram os RR. a intervenção principal provocada de “H” e “I”.

O que foi indeferido, por despacho de folhas 225 e 226.

Vindo, concluída que foi a sobredita audiência, a ser proferida sentença com dispositivo do teor seguinte:
“Pelo exposto, o Tribunal decide:
“A) Julgar a presente acção procedente por provada e, consequentemente, decide condenar os réus a:
a) proceder à restituição aos AA. da casa de que são comodatários implantada na parte urbana do prédio inscrito na Conservatória do Registo Predial do Funchal sob o n.° ..., livre de pessoas e bens e no estado em que a receberam, no prazo de 30 dias a contar do trânsito em julgado da presente decisão;
b) pagar uma sanção pecuniária compulsória, que se peticiona no valor de € 10,00/dia, até efectiva entrega da casa aos AA., nos termos peticionados na alínea anterior;
c) Restituir o prédio dos AA. no estado que se encontrava quando foi reconhecida a servidão de passagem no âmbito do Proc. .../1994, que correu os seus termos no 1.º Juízo do Tribunal de Círculo do Funchal, realizando a suas expensas as obras necessárias para o efeito, ou subsidiariamente, indemnizar os AA. no valor dos encargos que estes suportarão para tal efeito;
d) indemnizar os AA. no valor de todas as despesas em que estes incorram por força da sua demanda como executados no âmbito do Proc. ...-A/1994, que corre os seus termos na 1.ª Secção das Varas de Competência Mista do Funchal, cujo objecto é a prestação de facto.
B) Mais decide, este Tribunal, julgar o pedido reconvencional improcedente, por não provado e, consequentemente, absolver os AA. do pedido.”.

Inconformados, recorreram os RR., formulando, nas suas alegações, as seguintes conclusões:
(…).
Requerem a revogação da sentença recorrida.

Contra-alegaram os AA., pugnando pela manutenção do julgado.

II- Corridos os determinados vistos, cumpre decidir.
Face às conclusões de recurso, que como é sabido, e no seu reporte à fundamentação da decisão recorrida, definem o objeto daquele – vd. art.ºs 684º, n.º 3, 690º, n.º 3, 660º, n.º 2 e 713º, n.º 2, do Código de Processo Civil – são questões propostas à resolução deste Tribunal:
- a ilegitimidade dos AA./recorridos;
- a caducidade da ação;
- o enriquecimento ilícito dos AA./recorridos.
- o abuso de direito de banda dos AA./recorridos;
*
Considerou-se assente, na 1ª instância, a factualidade seguinte:
1− Os autores são casados um com o outro (A));
2− Os Réus são casados um com o outro. (B));
3− Os Autores são usufrutuários do prédio misto descrito na Conservatória do Registo Predial de ..., sob o nº..., da freguesia de ..., situado no Sítio ..., com uma área total de 6490m2, da qual são cobertos 40m2 e descobertos 6450m2, inscrita a parte urbana, sob o artigo ... e a rústica sob o artigo 10, da Secção AJ, composto por terra e benfeitorias, compreendendo lanços, paredes, um poço, águas nativas incluindo uma fonte nativa com nascente em partilha de outro prédio, entancada no dito poço de pedra, cal e cerro, sendo a casa sobradada, confrontando a norte com o … em partilha de ..., sul com …em partilha com lanço dos …, em parte encostado à casinha, leste … e Oeste com o … (C));
4− Os Autores doaram aos netos a nua propriedade do prédio identificado na alínea anterior, encontrando-se a mesma registada pela Ap.... de 2010/11/03. (D));
5− Os Réus habitam na parte urbana do prédio a que alude a al. C) dos factos assentes (E));
6− Por transacção judicial realizada no dia 24 de Fevereiro de 1995, no âmbito do processo que correu termos no 1º Juízo do Tribunal de Círculo do Funchal sob o n° .../1994, foi constituída uma servidão de passagem sobre o prédio identificado na al. c) dos factos assentes a favor do prédio de que são proprietários “E”, “F” e “G”. (F));
7− No âmbito do processo referido na alínea anterior, os Autores reconheceram que sobre o prédio identificado na al. C) dos factos assentes, incide uma servidão de passagem, para circulação de pessoas e de veículos ligeiros de passageiros e mercadorias, tendo entregue aos referidos “E”, “F” e “G” uma chave do portão de entrada do prédio identificado no artigo 3º da petição inicial (G));
8− A referida servidão está restrita à carga e descarga de mercadorias e tomada e largada de pessoas. (H));
9− Os Autores obrigaram-se a não estacionar qualquer viatura, ou colocar qualquer entrave de outra natureza de forma a dificultar a servidão que beneficia  o prédio de que são proprietários “E”, “F” e “G”. (I).
10− Os Réus edificaram uma escada paralela à rampa que se encontra no prédio de que os Autores são usufrutuários (J);
11− Os Réus ainda construíram um pequeno muro junto à rampa que existe no prédio de que os Autores são usufrutuários (L);
12− Os Réus, no ano de 2008, por se terem desentendido com os Autores, escreveram a estes últimos a comunicar-lhes que desconheciam qualquer processo ou acordo judicial e que tinham a posse da casa há mais de quarenta anos (M));
13− O Réu “C” é funcionário da Sociedade de ..., Ldª há vários anos (N));
14− No âmbito do processo executivo para prestação de facto que correu os seus termos na 1ª Secção da Vara de Competência Mista do Funchal, sob o processo nº...-A/1994, os Autores realizaram obras de eliminação da escada e do muro a que aludem os artigos 26° a 29° da petição inicial (O));
15− Para tal eliminação, os Autores pagaram o montante de € 1.217,44 à sociedade de construção civil denominada “J -Sociedade de Construções, Lda (P));
16− Montante que constitui, além das custas processuais e honorários de mandatário judicial, da aludida execução, cujos montantes ainda não se encontram liquidados, a causa de pedir indicada no último parágrafo do petitório da presente acção (Q));
17− “L” e “M” faleceram, respectivamente em 1978 e 1974 (R)).
18− A parte urbana do prédio referido em C) dos factos assentes foi entregue, gratuitamente, ao Réu “C” para que a usasse para sua habitação (1º);
19− Os Autores nunca receberam qualquer rendimento emergente da habitação da casa por parte dos Réus (2º);
20− Isto há mais de 40 anos (3º);
21− Tendo a entrega da casa, nos moldes referidos, como fim único e exclusivo a habitação (4º);
22− O Réu “C” poderia dormir, fazer as suas refeições e receber os seus convidados na dita casa (6º);
23− Suportando os encargos da casa como os fornecimentos de água e luz (7º);
24− Os Autores comunicaram aos Réus o teor da transacção judicial a que alude a al. F) dos factos assentes (10º);
25− Os Réus foram esclarecidos das obrigações a que se encontravam vinculados em virtude daquela (11º);
26− Os Réu colocaram vários objectos na área de passagem (12º);
27− Estacionaram carros, sem pneus, por longos períodos na área de passagem, impossibilitando, assim, a sua rápida remoção e a circulação dos beneficiários da servidão (13º);
28− Os Autores, várias vezes, solicitaram aos Réus que colocassem o prédio no estado que permitisse o uso da constituída servidão (14º);
29− O que eles não acataram (15º);
30− A construção da escada e edificação por parte dos Réus impossibilitou a passagem de veículos par ao prédio de “E”, “F” e “G” (16º);
31− Quando tomaram conhecimento de tais factos, os Autores exigiram aos Réus que repusessem o estado do prédio à situação em que se encontrava antes da transacção (17º);
32− O que eles não fizeram (18º);
33− E foi em consequência desse facto que “E”, “G” e “F” intentaram contra os Autores a acção executiva para prestação de facto n° ...-A/1999 (19º);
34− A proposição da referida acção foi levada ao conhecimento dos Réus (20º);
35− E foi-lhes requerido que demolissem, de imediato e a suas expensas as obras realizadas (21º);
36− Os Réus não acataram tais instruções (22º);
37− Os Réus, há mais de 40 anos e à vista de toda a gente e com exclusão de outrem que vivem na casa e trabalham a fazenda do prédio identificado na al. C) dos factos assentes (26º);
38− A parte urbana do referido prédio foi entregue aos Réus para que lá vivessem, pelos pais dos Autores, “L” e “M” (29º).
39− O Réu, antes de ter casado, já trabalhava na fazenda do referido prédio, para os pais dos Autores (30º).
40− Ao longo destes anos os Réus fizeram na casa onde habitam algumas obras de manutenção e conservação (38º);
41− A Srª “H” é a responsável geral da empresa onde trabalha o Réu (41º);
42− O Réu sempre trabalhou para o Autor, sem horário de trabalho, trabalhando a qualquer hora do dia e da semana (43º);
43− O Autor há cerca de um ano e meio que começou a ter problemas de saúde (44º);
44− O Réu encontra-se de baixa, há cerca de um ano e meio (45º);
45− Celebraram contratos com o Autor, na qualidade de proprietário, as seguintes entidades: GESBA, IFADAP, Secretaria Regional do Ambiente e Recursos Naturais, a Empresa de Electricidade da Madeira, Madagro, as Finanças Públicas e a Companhia de Seguros Império Bonança (53º);
46− Ao longo dos anos, o Réu “C” sempre tratou da plantação de bananeiras existentes na parte rústica do prédio n° ..., recebendo 50% do lucro daquilo que produzia, deduzidos os respectivos custos e que sempre reconheceu os Autores como seus proprietários (56º);
47− Sendo essa qualidade transmitida à CAPFM, primeiro e à GESBA depois, que a banana entregue pelo Réu “C” provinha da exploração dos Autores (57º);
48− O que foi feito pelo Réu “C” durante mais de 25 anos (58º);
49− Correspondentes à casa de habitação onde vivem os Réus e à área em que é desenvolvida a exploração de bananeira (60º).”.
*
O acervo fáctico assim definido, não foi objeto de impugnação, nada impondo diversamente.
Com duas ressalvas, porém.
- Uma relativa à referência, nas “respostas” aos art.ºs 38º e 39º, aos “pais dos AA.”.
E por isso que, sendo os AA. casados um com o outro, também pelos apelidos de um  e do outro logo se alcança serem os falecidos “L” e “M”, pais do A. marido, que não também da A. mulher.
Devendo assim ler-se, naqueles locais, pais do A. marido, onde se escreveu, pais dos AA.
- Outra respeitante ao teor da alínea Q dos factos assentes: “Montante que constitui, além das custas processuais e honorários de mandatário judicial, da aludida execução, cujos montantes ainda não se encontram liquidados, a causa de pedir indicada no último parágrafo do petitório da presente acção”.
Pois que se trata, aí, de mera conclusão de direito, e, como tal, sendo de considerar não escrita, cfr. art.º 646º, n.º 4, do Código de Processo Civil.
***
Vejamos então.

II – 1 – Da (i)legitimidade dos AA.

1. Consideram os Recorrentes que do “que se dispõe nos artigos 1446º e 1475º do C. Civil (…) resulta à saciedade (…) que os usufrutuários não têm legitimidade activa/ou qualquer outra legitimidade e/ou pressuposto processual, para requererem e darem continuidade à presente acção;”.
Sendo que do mais por aqueles alegado, e, desde logo, no seu requerimento de intervenção principal provocada de “H” e “I”, logo resulta não estar em causa a qualidade de proprietários dos AA., aquando da propositura da ação, mas a circunstância de serem estes, “atualmente, meros usufrutuários.”.
Aliás, a inscrição da aquisição desse direito real de gozo a favor dos AA., no Registo Predial, documentada a folhas 79, refere como causa a “reserva em doação”, tendo sido feita mediante a ap. ... de 2010-11-03, sendo que a ação foi proposta em 2010-07-13.

Tratando-se assim de saber se, desde que passaram a ser “meros” usufrutuários do prédio em questão, carecem os AA. de legitimidade ativa.

Certo a propósito que nem pela circunstância de o deduzido incidente de intervenção principal provocada, deduzido pelos RR., ter sido indeferido – com fundamento na sua extemporaneidade – por despacho transitado em julgado, queda prejudicada a oficiosa verificação de tal pressuposto processual relativo às partes, cfr. art.ºs 494º, alínea e) e 495º, do Código de Processo Civil.
Não operou o aludido despacho, caso julgado formal, sobre uma questão, a da ora arguida ilegitimidade dos AA., sobre a qual não incidiu, cfr. art.º 672º, n.º 1, do Código de Processo Civil.

Importa pois definir se, perante os factos narrados na petição inicial, o direito substantivo considera os AA., enquanto usufrutuários, como podendo ocupar-se, nessa posição, do objeto do processo, cfr. art.º 26º, do Código de Processo Civil, e Lebre de Freitas, in “A acção declarativa comum, à luz do código revisto”.[1]

2. Na presente ação os AA., e como visto já, alegaram – para além da sua condição de proprietários do prédio em causa – que os RR. vivem no dito por isso que o mesmo lhes foi cedido em comodato.
Sendo que os mesmos RR., sem autorização dos AA. e contra a sua vontade expressa, têm procedido a obras que impedem a utilização da servidão de passagem constituída sobre o mesmo prédio a favor do prédio – dominante – de que são proprietários “E”, “G” e “F”.
Pretendendo a condenação dos RR. na restituição da casa implantada na parte urbana do prédio, no estado em que se encontrava anteriormente às obras por eles levadas a cabo, ou, subsidiariamente, a indemnizar os AA. no valor dos encargos que estes suportarão para repor essas condições iniciais.
Para além da indemnização “no valor de todas as despesas em que estes (AA.) incorram por força da sua demanda como executados no âmbito” da execução que referenciam, requerida pelos proprietários do referido prédio dominante.

Nos termos do art.º 1439º, do Código Civil, “Usufruto é o direito de gozar temporária e plenamente uma coisa ou direito alheio, sem alterar a sua forma ou substância”.

Podendo o usufrutuário “usar, fruir e administrar a coisa ou o direito como faria um bom pai de família, respeitando o seu destino económico.”, cfr. art.º 1446º.

Finalmente, e pelo que agora aqui pode interessar, dispõe o art.º 1444º - ainda do Código Civil – que:
“1. O usufrutuário pode trespassar a outrem o seu direito, definitiva ou temporariamente, bem como onerá-lo salvas as restrições impostas pelo título constitutivo ou pela lei.
2. – O usufrutuário responde pelos danos que as coisas padecerem por culpa da pessoa que o substituir.”.

3. Como anotam P. Lima e A. Varela,[2] “Apesar de conferir ao titular o direito de gozar plenamente (uti-frui) a coisa ou o direito, o usufruto não lhe atribui o poder de dispor plenamente desta coisa ou direito.
Os poderes do usufrutuário estão sujeitos a um limite, que é o respeito da forma e da substância da coisa ou do direito. (…)”.

E, depois de se referirem ao estabelecido no Código italiano de 1942:
“O limite mantido pela lei portuguesa (cfr., porém, o disposto no art. 1446.º) é, em certos aspectos, mais flexível ou elástico: nada impede, por exemplo, que o usufrutuário arrende o prédio que o proprietário utilizava para sua habitação" ou que nele deixe instalar um estabelecimento comercial ou a sede de uma pessoa colectiva. Essencial é que não introduza modificações ou inovações na forma ou na substância, quer da coisa, quer do direito: aliud est teneri quod accepisset aliud novum facere”.

Dando conta, em anotação ao igualmente transcrito art.º 1444º de que:
“O Código português de 1867, tal como o Código espanhol (art:.480.º), afastou-se abertamente da tradição romanista, dizendo no artigo 2207.º que «o usufrutuário pode gozar pessoalmente da coisa, emprestá-la, arrendá-la ou alugá-la, e até alienar o seu usufruto; mas os contratos que fizer não produzirão efeito, senão enquanto o usufruto durar»
O novo Código manteve a mesma doutrina, mas substituiu por uma referência genérica a enumeração exemplificativa dos actos que ao usufrutuário é lícito praticar.
Em lugar, porém, do termo ceder (em cessão do usufruto fala o art.º 980º do Cód. Civ. Italiano), tradicionalmente adstrito na linguagem técnico-jurídica à transmissão dos direitos de crédito e que de nenhum modo retrata a fisionomia de actos como a locação (cfr. l022.º) ou mesmo o comodato (cfr. arts. 1129.º e segs.), escolheu-se propositadamente um ermo mais genérico e menos comprometido (trespassar... o seu direito, definitiva ou temporariamente), capaz de abranger todas as formas em que é possível desdobrar-se a atribuição do usufruto a terceiro (mediante compra e venda, doação, locação, comodato, dação em cumprimento, etc.).”, (o sublinhado é nosso).

Também Luís Manuel Teles de Menezes Leitão[3] considerando ser o comodato, para o comodante, “um acto de administração extraordinária”, concluindo que “Em termos de legitimidade pode celebrar contratos de comodato quem seja titular de qualquer direito de gozo sobre a coisa, designadamente o proprietário e o usufrutuário.”.

4. Ora em causa não está, tal como configurada a relação jurídica material controvertida, na petição inicial, a afetação, por qualquer modo, da forma e, ou, da substância do direito dos – in casu – nus proprietários, netos dos AA.

Pretendendo os AA., recorda-se, o reconhecimento do seu direito a verem-se-lhes restituída a casa implantada no prédio de que, sendo inicialmente proprietários, se tornaram, na pendência da ação, “meros” usufrutuários, e que fora “entregue gratuitamente ao R. “C” para que a usasse para sua habitação”, assim em comodato, “há já mais de 40 anos”, pelos pais do A.
Bem como de que essa restituição seja feita com a reposição da mesma, “livre de pessoas e bens e no estado em que (os RR.) a receberam”, e em “que se encontrava quando foi reconhecida a servidão de passagem” respetiva.

Tudo isto, como é meridiano, sem a virtualidade de beliscar a consistência do direito de propriedade sobre o prédio em causa.

Não sendo passível de dúvidas sérias que, podendo o usufrutuário entregar em comodato, coisa de que detenha o usufruto, poderá igualmente exigir a restituição da mesma.
E, assim, designadamente, nos quadros da resolução do contrato de comodato – cfr. art.º 1140º, do Código Civil – quando o comodatário incumpra as suas obrigações legais – enumeradas no art.º 1135º, do Código Civil – ou contratuais, não usando da diligência necessária na guarda ou conservação da coisa, ou fazendo uma utilização imprudente da mesma.
Ao que se reconduzem as alegadas atuações dos RR. – que foram informados do teor da transação judicial que constituiu a servidão de passagem sobre o prédio de que os AA. eram então proprietários, e, bem assim, esclarecidos das obrigações a que se encontravam vinculados em virtude daquela – estacionando carros na área de passagem…e procedendo a construções/alterações, na rampa do prédio, portão de acesso e colunas em que o mesmo assenta, que impossibilitaram a passagem de veículos para o prédio dominante, cfr. art.ºs 20º a 30º e 36º a 38º da petição inicial.

Mais podendo tal restituição ser exigida quando se entenda, como por igual vem alegado naquele articulado, que não foi estipulado prazo para a mesma, posto o que “podem os AA. exigir a restituição da casa comodatada aos RR. a todo o tempo, sem necessidade de invocação de justa causa.”, vd. art.º 50º.
E presente aqui que nos termos do invocado art.º 1137º, n.º 2, do Código Civil, “Se não foi convencionado prazo para a restituição nem determinado o uso da coisa, o comodatário é obrigado a restituí-la logo que lhe seja exigida.”.

Com efeito, como se decidiu em Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 15-12-2011,[4] “quando a coisa é entregue para um uso determinado, tem-se em vista a utilização da coisa para um determinada finalidade, não a utilização da coisa em si. Emprestar a vivenda para a realização de uma festa constitui comodato para uso determinado, mas não constitui comodato para uso determinado o mero empréstimo da referida vivenda para habitação. Por isso, não será ao abrigo do uso determinado da coisa que ficará impedido o comodante de exigir a restituição ad nutum nos termos do artigo 1137.º/2 do Código Civil.”.
E, “o uso só é determinado quando se delimita a necessidade temporal que o comodatário visa satisfazer, pelo que não se pode considerar como determinado o uso de certa coisa se não se ficar a saber quanto tempo ela vai durar, ou seja, um uso genérico e abstracto que pode subsistir indefinidamente, pois que, de contrário, se atingiria a própria noção do contrato dada pelo artigo 1129 do Código Civil, de que faz parte a obrigação de restituir a coisa entregue, o que revela o carácter temporal do uso.”.
Sendo que “Pelas razões expostas, afigura-se-nos preferível continuar a seguir a jurisprudência dominante e quase pacífica que indicámos. Quer isto dizer que quando a lei, no artigo 1137.º/2 do Código Civil, admite a restituição ad nutum “se não foi convencionado prazo para a restituição” ela tem em vista obstar à restituição apenas quando houve estipulação de prazo certo. Não há, para este efeito - o de obstar à restituição - tertium genus. A estipulação de uma cláusula “ para toda a vida” implicaria a vinculação das partes, no âmbito de um contrato de natureza obrigacional, a uma prestação correspondente ao usufruto vitalício, não sendo, portanto, válida uma tal cláusula (artigo 280.º do Código Civil) pelo menos enquanto cláusula que importe a ineficácia da faculdade de denúncia ad nutum.
Para a lei o que releva é que num contrato desta natureza, em que não haja sido estipulado prazo certo, seja reconhecida a faculdade de denúncia ad nutum. Por isso, seja qual for a cláusula que permita considerar que o prazo convencionado não é um prazo certo, os termos estipulados não vinculam o comodante porque a lei optou por fazer sobrelevar a faculdade de denúncia ao princípio pacta sunt servanda. Tudo se passa como se A. convencionasse com B. que este utilizaria a coisa emprestada nas condições estipuladas salvo sempre a possibilidade de A. pedir a restituição da coisa. Atente-se que a fixação de um prazo incerto não será destituída de interesse. Assim, tornado certo o momento (certus an incertus quando) em que o contrato finda, impõe-se ao comodatário a obrigação de restituição da coisa (artigo 1135.º, alínea h) do Código Civil); não tendo sido convencionado prazo algum e atribuindo o comodante ao comodatário o gozo da coisa enquanto este quiser ou por tempo indeterminado, então impor-se-á ao comodante interpelação nos termos do artigo 1137.º/2 do Código Civil. No primeiro caso o comodatário incorre em responsabilidade imediata, no segundo caso só incorre em responsabilidade se não restituir a coisa depois de para tal, ser interpelado.”.

E, em Acórdão de 06-11-2012,[5] “Com efeito, na apontada escalpelização da correspondente problemática jurídica, não pode entender-se que pelo facto de uma determinada habitação ter sido cedida em comodato para habitação (permanente) do comodatário, tal consubstancia um contrato de comodato para uso determinado. Este teria que ter delimitada, com subordinação ao mencionado signo da temporalidade que caracteriza o comodato (dada a respectiva natureza gratuita, alicerçada em posturas de gentileza e cortesia do comodante), a respectiva duração, por forma a que, em tese, a mesma não pudesse transmudar-se em ilimitada ou tendencialmente correspondente a toda a vida activa do comodatário. Na linha do expendido em II antecedente, a afectação a habitação do comodatário representaria, antes e com referência ao preceituado nos arts. 1131º e 1135º, al. c), ambos do CC, o fim ou finalidade do comodato.
Podendo, já e no entanto, ser havida como para uso determinado se cedida, v. g., para habitação do comodatário para lhe propiciar veraneio, junto da barragem, durante o mês de Agosto do ano em causa.”.    

Perspetiva não inteiramente coincidente, mas conduzindo a idêntico resultado no caso em apreço, é, aparentemente, a de Luís Manuel Teles de Menezes Leitão.[6]
Para quem “A referência a prazo faz supor a estipulação de um termo (certus an). Assim, se tiver sido estipulada uma condição (incertus an), como na hipótese de se emprestar um apartamento até que o comodatário encontre outra habitação, parece que se tratará de um comodato sem prazo, podendo o comodante exigir a restituição da coisa a todo o tempo. Já o termo incertus quando como a estipulação do empréstimo até à morte do comodatário poderá considerar-se como fixação de prazo.”.

Sendo esta a solução que melhor se coaduna com a natureza do contrato de comodato, o qual, no ensinamento de Pires de Lima e Antunes Varela,[7] “é, de sua natureza, real, quoad constitutionem – no sentido de que só se completa pela entrega da coisa (…)”, que é feita, desde logo, sob o signo da temporalidade – e “gratuito – onde não há, por conseguinte, a cargo do comodatário, prestações que constituam o equivalente ou o correspectivo da atribuição efectuada pelo comodante”, muito embora possa “o comodante impor ao comodatário certos encargos (cláusulas modais)”, sem natureza correspetiva – meramente consensual e em que há uma simples atribuição do uso da coisa, para todos os fins lícitos ou alguns deles, dentro da função normal das coisas da mesma natureza – vd. art.º 1131º do Código Civil – e não, em princípio, a atribuição do direito de fruição, cfr. art.º 1132º do mesmo Código.

Assegurada estando pois a continuidade da legitimidade dos AA., enquanto usufrutuários do imóvel em que implantada está a casa entregue aos RR. em comodato, para a presente ação.

Com improcedência, nesta parte, das conclusões dos Recorrentes.

II – 2 - Da caducidade da ação.
1. Tanto quanto se logra alcançar, pretendem os RR./recorrentes, que tendo falecido os pais do(s) A(A)., caducou o contrato de comodato celebrado entre aqueles primeiros e os RR.
Posto o que assim teria também caducado “o direito dos autores/recorridos poderem exercer esta acção”.

Desde logo, cumpre referir que, diversamente do ficcionado pelos Recorrentes – vd. § 2º de folhas 4 – em parte alguma da sentença recorrida se afirma que com a morte dos comodantes – pais do A. marido – ocorreu a caducidade do contrato de comodato.

O que apenas se consignou naquela peça, foi que “com a morte do comodatário caduca o contrato de comodato”, vd. folhas 8, in fine, da sentença recorrida – folhas 261 dos autos.

E, por outro lado, que são coisas diversas e não assimiláveis, a caducidade de um contrato e a caducidade do direito de ação.

No primeiro caso, tem-se em vista a cessação da vigência do contrato, designadamente pela verificação de um termo ou prazo de vida[8] – cfr. art.º 278º, do Código Civil.

No segundo trata-se da extinção da perspetiva ou prerrogativa da realização do direito, que por força de lei ou de convenção se deve exercer dentro de certo prazo, pelo seu não exercício durante esse prazo, cfr. art.º 298º, n.º 2, do Código Civil.[9]

Sendo, nas palavras de Aníbal de Castro,[10] que “O termo é a extinção normal da eficácia, a violação dos prazos de exercício ou a ocorrência de actos ou factos impeditivos daquela, a extinção prematura.”.

2. Mas nem a circunstância do falecimento de quem, como comodante, interveio no contrato de comodato celebrado com os R., tem o alcance de fazer caducar aquele.
Com efeito, dispondo a lei que o contrato de comodato caduca por morte do comodatário – vd. art.º 1141º, do Código Civil – já não se prevê, porém, idêntica solução para a morte do comodante.
Dando Menezes Leitão[11] notícia de ocorrer, em consequência, alguma discussão sobre se, nessa hipótese, os herdeiros estão obrigados a respeitar o prazo estabelecido no contrato, uma vez que nele sucedem, ou se poderão exigir do comodatário a imediata restituição da coisa.”.
Propendendo “a admitir a primeira solução, podendo, no entanto, os herdeiros do comodante resolver o contrato se para isso tiverem justa causa”, nos termos do art.º 1140.° do Código Civil.
Com citação, em abono, na doutrina italiana, de Ângelo Luminoso, in “I contratti tipici e atipici. Contratti di alienazione, di godimento, di credito, I, Milano Giuffre, 1995, pág. 662.
Desse modo defendendo que na hipótese considerada, o contrato de comodato não caduca ope legis.

Entendimento aquele que se sufraga, face à ausência de previsão legal, na hipótese de decesso do comodante, por contraponto à expressa previsão da situação de decesso do comodatário.
E na consideração de a solução adoptada para a segunda hipótese, radicar no cariz intuitu personae,[12] do contrato de comodato – como de todos os contratos gratuitos – que operando, a partir do comodante, na direção do beneficiado/comodatário, já se não equaciona, em termos equiparáveis, no sentido inverso, do comodatário para o comodante.

Improcedendo assim, também aqui, as conclusões dos Recorrentes.

II – 3 – Do enriquecimento ilícito dos AA.
Apenas em sede de conclusões se referem os Recorrentes àquele, considerando que “os, ora, recorridos/autores vão ter um enriquecimento ilícito à custa do trabalho, dinheiro e esforço e dedicação profissional dos recorrentes durante mais de quarenta anos sobre o prédio, já, melhor identificado nos autos”.
Sem que o assim concluído corresponda, portanto, à síntese de um qualquer segmento do corpo das alegações.
E, logo por isso, resultando inconsiderável.

Assinalando-se, conquanto, na circunstância, apenas marginalmente, que o comodatário “é equiparado, quanto a benfeitorias, ao possuidor de má fé”, cfr. art.º 1138º, n.º 1, do Código Civil.
E, assim, apenas tem direito a ser indemnizado das benfeitorias necessárias que haja feito e a levantar as benfeitorias úteis realizadas, contanto que o possa fazer sem detrimento da coisa.
Devendo o titular do direito, quando, para evitar o detrimento da coisa, não haja lugar ao levantamento das benfeitorias, satisfazer-lhe o valor delas, “calculado segundo as regras do enriquecimento sem causa”, cfr. art.º 1273º, do Código Civil.  
Com perda, em qualquer caso, das benfeitorias voluptuárias realizadas, vd. art.º 1275º, n.º 2, daquele Código.

Nada na factualidade apurada interessando a uma tal matéria de benfeitorias, nem permitindo integrar os requisitos desse subsidiário instituto do enriquecimento sem causa – cfr. art.ºs 473 e 474º, do Código Civil.
Sendo certo que, como se julgou no Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 17-10-2006,[13] “a matéria do ónus da prova constitui um dos “raros oásis de consenso” no âmbito do enriquecimento sem causa: na verdade, é doutrina praticamente pacífica e jurisprudência largamente dominante a tese de que cabe ao autor demonstrar a ausência de causa da sua prestação, não obstante tratar-se de um facto negativo Cfr, por último, o acórdão deste STJ de 22.1.04 (Pº 03B1815).”.

II – 4 – Do abuso de direito.
1. Pretendem os Recorrentes terem os AA./recorridos, actuado em “abuso de direito e/ou litigar em venire contra factum proprium.” (sic).
E assim, por isso que “depois de terem criado, nos réus/recorrentes a convicção justificada de que o direito, já, não seria exercido, vêm exercer esse direito”.
Reportando-se, concede-se, ao direito de exigir a restituição do bem emprestado.
Baseando a invocada convicção, tanto quanto se logra alcançar, na sustentada circunstância de “como expressam todos os factos provados, somente, depois de passados 32 anos, ou seja, desde o decesso de “L”, no ido ano de 1978, é que, no ano de 2010, e bem assim depois dos réus/recorrentes, mormente o réu marido ter ficado doente (factos 43º e 45º da resposta à base instrutória), ao que acresce algumas celeumas e dissensões de opinião, tendo por meio outros litígios judiciais, mormente o processo (…), os, aqui, recorridos/autores, num assombro de clarividência, e depois de terem deixado passar longo e tanto tempo sem exercer os seus direitos de acção e potestativos, lembraram-se de requerer a presente acção e/ou feito judicial contra os réus/recorrentes.”.

2. O Código Civil, no seu art.º 334º, dispõe que “É ilegítimo o exercício de um direito, quando o titular exceda manifestamente os limites impostos pela boa fé, pelos bons costumes ou pelo fim social ou económica desse direito”.
A referência à boa fé – que representa em direito um conceito polissémico – tem, no citado preceito, um sentido objectivo ou normativo, que se manifesta noutras disposições do mesmo Código, quais sejam os art.ºs 227º, 239º, 437º e 762º, n.º 2, concretizando, em todos esses casos, regras de actuação,[14] exprimindo “os valores basilares da ordem jurídica, vocacionados para intervir em cada caso concreto considerado.”.[15]
Mas sendo também que, como ensina Antunes Varela,[16] “Se para determinar os limites impostos pela boa fé e pelos bons costumes, há que atender de modo especial às concepções ético-jurídicas dominantes na colectividade” – apelando “a consideração do fim económico ou social do direito…de preferência para os juízos de valor positivamente consagrados na própria lei” – “não pode, em qualquer dos casos, afirmar-se a exclusão dos factores subjectivos, nem o afastamento da intenção com que o titular tenha agido, visto esta poder ser interessar quer à boa fé ou aos bons costumes, quer ao próprio fim do direito.”.

2. Reportando-se os Recorrentes, e como visto, à actuação dos AA. como sendo em abuso de direito, na modalidade de “venire contra factum proprium”.

Como ensina Menezes Cordeiro, trata-se, o venire contra factum proprium, de exemplo típico de exercício inadmissível de direito ao qual se aparenta aquela “outra” modalidade típica de tal exercício inadmissível, a saber a supressio,[17] em que o exercício do direito, decorrido um determinado lapso de tempo, a par de indícios objectivos de que esse direito não seria mais exercido, contrariaria a boa-fé.
Apenas sendo considerável “a contradição directa entre a situação jurídica originada pelo factum proprium e o segundo comportamento do autor”.
E havendo “venire contra factum proprium, em primeira linha, numa de duas situações: quando uma pessoa, em termos que, especificamente não a vinculem, manifeste a intenção de não ir praticar determinado acto e, depois, o pratique e quando uma pessoa, de modo, também, a não ficar especificamente adstrita, declare pretender avançar com certa actuação e, depois, se negue”.[18]
Mais assinalando aquele Autor chegar-se, quanto à supressio, “por uma via independente, a conclusões paralelas às alcançadas no estudo do venire contra factum proprium. Não é apenas coincidência”.[19]
Também Rita Amaral Cabral[20] recusando autonomia a tal figura – de que a surrectio será a contraface[21] – no confronto do venire contra factum proprium.

A proibição da chamada conduta contraditória exige a conjugação de vários pressupostos reclamados pela tutela da confiança.[22]
Assim, a invocação do venire contra factum proprium pressupõe, forçosamente, “a situação objectiva de confiança, o investimento da confiança e a boa fé subjectiva de quem confiou” .[23]
Sendo necessário que a segunda conduta, contraditória do factum proprium, atenta a reprovabilidade decorrente da violação dos deveres de lealdade e correcção, represente uma manifesta ultrapassagem dos limites impostos pela boa fé.
Devendo o venire contra factum proprium atingir proporções juridicamente intoleráveis, traduzidas em aberrante e chocante contradição com o comportamento anteriormente adoptado pelo titular do direito.[24]
Havendo contradição inadmissível em boa fé entre uma omissão prolongada do exercício do direito, em circunstâncias tais que suscitam a expectativa de que ele não virá a ser exercido. Uma vez consolidada a confiança e a expectativa - a fé - e desde que essa consolidação da confiança seja imputável ao titular do direito, a brusca inflexão de atitude é contrária à boa fé.
 
Sem perder de vista que “A decisão última sobre a valia da recondução do venire contra factum proprium ao desrespeito de actos jurídicos depende da posição assumida quanto aos comportamentos concludentes como modo de manifestar uma vontade negocial.”.[25]
E que, como também refere Menezes Cordeiro, não se pode “concluir, sem mais, pela natureza inadmissível do comportamento contraditório. Pelo contrário: é importante focar a inexistência, na Ciência do Direito actual e nas ordens jurídicas por ele informadas, de uma proibição genérica de contradição. Apenas circunstâncias especiais podem levar à sua aplicação”.[26]

Nesta linha, ensinando aquele Autor que considerar-se que a pessoa que se retrate, na hipótese de negócio nulo, “incorre em venire contra factum proprium, representa uma limitação à própria estatuição da nulidade, em termos de ponderação delicada”.[27]
E tanto assim, pelo que à arguição da nulidade respeita, que aquela pode ter lugar a todo o tempo, sendo, por via de regra, oficiosamente declarável pelo tribunal, vd. art.º 286º do Código Civil.

Tendo o Supremo Tribunal de Justiça, no supracitado Acórdão de 15-12-2011, considerado que “A invocação do abuso do direito quando está em causa a possibilidade de o contrato ser denunciado ad nutum conduziria a que afinal se pusesse em causa a própria determinação legal, considerando-se, assim, interpretação diversa do artigo 1137.º/2 do Código Civil.”.
Ressalvando, porém, não ser “de rejeitar o entendimento de que em determinadas circunstâncias a denúncia ad nutum envolva um abuso do direito, impondo-se uma atribuição indemnizatória, mas já não a paralisia do exercício do direito que a lei reconhece ao comodante.”.
Citando, nesse sentido, o Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 23-3-1999,[28] “assim sumariado:
II - Não integra, porem, a figura do artigo 334.º, daquele diploma substantivo, de abuso de direito, impeditiva de exigir tal retribuição o facto de tal ser levado a cabo ao fim de sete anos de habitação, e sem que igual atitude tivesse sido tomada para com os restantes filhos, e sabendo os donos que aquela sua filha e genro pretenderam ao casar, ir habitar outra casa, e porque nem sempre o abusivo exercício dos direitos implica a respectiva paralisação, sob pena de legitimação de situações que a ordem jurídica repele.
III - O titular da coisa emprestada ficará contudo constituído na obrigação de indemnização e ao exigir a restituição daquela, que é uma outra forma de a ordem jurídica, reprovar e desincentivar o exercício ilegítimo do direito no quadro do artigo 1137 do C.Civil.”.

Nenhuma indemnização havendo sido peticionada, na deduzida reconvenção, pelos RR./recorridos.

3. Diga-se, em qualquer caso, que nem a factualidade assente traduziria comportamento contraditório, e, muito menos, concludente, no sentido de renunciarem os AA. ao seu direito de exercerem a denúncia do contrato, ad nutum.

Recorde-se ter resultado não provado que os pais do A., de forma verbal e após o casamento dos Réus, lhes tenham dado a casa de habitação para aí viverem, como se fosse sua.
Ou que desde há 36 anos e até à data da sua morte, os pais do Autor sempre reconheceram, diziam e viam os Réus como donos da referida casa.
Nem que, depois deles, assim o tenham feito os AA.
Bem como não que os pais dos Autores diziam à vizinhança local e comunidades locais que os donos da casa de habitação eram os Réus.
Ou que os AA. sempre disseram que, por tudo quanto os Réus fizeram, trabalharam e dedicaram à casa de habitação, era um crime não ficarem donos e proprietários dela.
E também não que há alguns anos atrás os Autores prontificaram-se a ser testemunhas numa escritura de justificação notarial do direito de propriedade, que os Réus prepararam para porem em seu nome a casa de habitação, vd. “respostas” negativas aos art.ºs 32º a 36º, e 50º e 51º, da base instrutória.

Nada mais havendo sido alegado, que pudesse interessar ao recorte de conduta dos pais do A., ou dos AA., apta a criar nos RR. a convicção de não pretenderem aqueles vir a exercer o direito de denúncia em causa.
Nem uma tal convicção, independentemente do seu fundamentado, estando provada, vd. ainda respostas negativas aos art.ºs 37º e 52º, da base instrutória.

Assinalando-se, a propósito, e no tocante à comprovada realização de “algumas obras de manutenção e conservação” na casa de habitação, que as mesmas podem ter sido feitas no cumprimento do dever do comodatário de conservar ou manter a coisa, cfr. art.ºs 1135º, 1136º e 1137º, do Código Civil…
…E que, fora desse quadro, sempre seriam os RR. quanto às benfeitorias assim realizadas, e como visto já, equiparados a possuidores de má-fé…
*
Não sendo pois equacionável abuso de direito de banda dos AA.

Com improcedência, por igual nesta parte, das conclusões dos Recorrentes.

III – Nestes termos, acordam em julgar a apelação improcedente, confirmando a sentença recorrida.

Custas pelos Recorrentes, que decaíram totalmente.
***
Em observância do disposto no n.º 7 do art.º 713º, do Código de Processo Civil, passa a elaborar-se sumário, da responsabilidade do relator, como segue:
(…)
*
Lisboa, 2013-07-04
 
Ezagüy Martins
Maria José Mouro
Maria Teresa Albuquerque
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[1] Coimbra Editora, 2000, pág.95.
[2] In “Código Civil, Anotado”, Vol. III, 2ª ed., 1984, pág. 460.
[3] In “Direito das obrigações”, Vol. III, 2ª ed., Almedina, 2004, pág. 368.
[4] Proc. 3037/05.0TBVLG.P1.S1, Relator: SALAZAR CASANOVA, in www.dgsi.pt/jstj.nsf.
[5] Proc. 629/06.3TBPRG.P1.S1, Relator: FERNANDES DO VALE, in www.dgsi.pt/jstj.nsf.
[6] In “Direito das obrigações”, Vol. III, 2ª ed., Almedina, 2004, pág. 379, nota 709.
7 In “Código Civil, Anotado”, Vol. II, 2ª ed., 1997, pág. 741. Também assim, no domínio do anterior Código Civil de 1867, Inocêncio Galvão Telles, in “Manual dos Contratos em Geral”, 3ª ed., 1965, Coimbra Editora, Lda., pág. 380.   
[8] Cfr. Aníbal de Castro, in “A caducidade, na doutrina, na lei, e na jurisprudência”, 3ª ed., Livraria Petrony, págs. 153-159.
[9] Vd. Luís A. Carvalho Fernandes, in “Teoria geral do direito civil”, II, 3ª ed., UCE, 2001, pág. 661.
[10] In op. cit., pág. 157.
[11] In op. cit., pág. 379.
[12] Cfr. P. Lima e A. Varela, in op. cit., pág. 760, e Luís Manuel Teles de Menezes Leitão, in op. cit., pág. 379.
[13] Proc. 06A2741, Relator: Nuno Cameira, in www.dgsi.pt/jstj.nsf.
[14] Menezes Cordeiro, in op. cit., pág. 180; cfr. também Teles de Menezes Leitão, in “Direito das Obrigações”, Vol. I, 4ª ed., Almedina, 2005, pág. 54.
[15] Menezes Cordeiro, op. cit., pág. 193.
[16] In “Das Obrigações em Geral”, Vol. I, 10ª ed. (Reimpressão), Almedina, 2003, pág. 546.
[17] Vd. a propósito, Menezes Cordeiro, in “Da Boa Fé no Direito Civil”, Almedina (2ª Reimpressão), 2001, pág. 810-811.
[18] Menezes Cordeiro, in op. cit. págs. 746-747.
[19] Idem, pág. 821.
[20] In RDES, 1993, pág. 315.
[21] Cfr. Menezes Cordeiro, in “Tratado…” cit., pág. 205-206.
[22] In “Da Boa Fé no Direito Civil”, Almedina (2ª Reimpressão), 2001,, pág. 753-770.
[23] Vd. o Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 24-01-2002, in CJAcSTJ, Ano X, Tomo I, págs. 51-54.  
[24] Vd. Acórdão cit. em nota 14. No Acórdão do mesmo Tribunal, de 20-06-2000, proc. n.º 00A1605, in www.dgsi.pt/jstj.nsf, refere-se a necessidade de o excesso cometido representar uma clamorosa ofensa do sentimento jurídico socialmente dominante. A. Varela, citando M. Andrade, refere-se, a propósito do abuso de direito, indiferenciadamente, ao exercício daquele «em termos clamorosamente ofensivos da justiça», in Das Obrigações em Geral, Vol. I, 10ª Ed., Almedina, 2003, pág. 545.
[25] Menezes Cordeiro, in op. cit., pág.769.
[26] Idem, pág. 750.
[27] In op. cit. pág. 749
[28] Proc. 99B710, Relator: Quirino Soares, in www.dgsi.pt/jstj.nsf.
Decisão Texto Integral: