Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
5797/2007-7
Relator: ABRANTES GERALDES
Descritores: ALIMENTOS DEVIDOS A MENORES
ÓNUS DA PROVA
PODER PATERNAL
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 06/26/2007
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: ALTERADA
Sumário: I- É inerente ao poder paternal o dever de “ prover ao sustento” do filho menor, dever que também decorre do artigo 2009.º/1 , alínea c) do Código Civil e que tem assento no artigo 36.º da Constituição da República.
II- Por isso, e porque ao tribunal cabe decidir “ de harmonia com o interesse do menor”, é esta a prioridade que o Tribunal deve ter em consideração que sobreleva a questão da indeterminação ou do não conhecimento dos meios de subsistência do obrigado a alimentos.
III- Deve o Tribunal deve proceder à fixação de alimentos a favor do menor ainda que desconheça a concreta situação de vida do obrigado a alimentos designadamente por ser desconhecido o seu paradeiro.
IV- O ónus da prova da impossibilidade total ou parcial de prestação de alimentos cabe ao obrigado a alimentos (artigo 342.º/2 do Código Civil).
V- O facto de a prestação de natureza social por parte do Fundo de Garantia de Alimentos Devidos a Menores estar dependente da existência de uma sentença que fixe alimentos constitui razão justificativa para que sejam fixados alimentos às crianças deles carecidas.

(SC)
Decisão Texto Integral: Apelação nº 5797-07


I – MARIA […]
intentou contra
ALBERTO […]
acção de regulação do exercício do poder paternal relativamente à filha menor de ambos, L.[…].

Foi proferida decisão que regulou o exercício do poder paternal, confiando-o à A., mas que não ficou qualquer prestação alimentícia a cargo do Réu por desconhecimento da sua situação patrimonial.

Apelou a A. e concluiu que:

a) A sentença que regula o exercício do poder paternal deve fixar a pensão de alimentos a cargo do progenitor a quem o menor não foi confiado, mesmo sendo desconhecido o seu paradeiro e a situação profissional e a sua capacidade económica, já que prescreve a CRP no seu art. 36°, n° 5, que os pais têm o direito e o dever de educação e manutenção dos filhos e no n° 3, que os cônjuges têm iguais direitos e deveres quanto a capacidade civil e política e à manutenção e educação dos filhos.
b) Por outro lado, do artigo 69° resulta que as crianças têm direito à protecção da sociedade e do Estado, com vista ao seu desenvolvimento integral.
c) E o art. 1878°, n° 1, do CC, estatui que compete aos pais, no interesse dos filhos, velar pela segurança e saúde destes, prover ao seu sustento e dirigir a sua educação.
d) E o art. 1905°, n° 1, impõe que a regulação do poder paternal contemple o destino do filho e os alimentos a este devidos e a forma de os prestar.
e) Por alimentos nos termos do art. 2003° do CC entende-se tudo o que é indispensável ao sustento, habitação e vestuário e instrução e educação do alimentado no caso de este ser menor.
f) Nos termos do art. 2004º, n°1, os alimentos serão proporcionados aos meios daquele que houver de prestá-los e às necessidades daquele que houver de recebê-los.
g) A primeira condição para que se possa accionar o mecanismo de acesso ao Fundo de Garantia de Alimentos Devidos a Menores é a fixação judicial do quantum de alimentos devidos a cada menor.
h) Já que, temos uma criança a quem cabe primeiramente aos pais e às pessoas que têm a criança a seu cargo a responsabilidade de assegurar, dentro das suas possibilidades e disponibilidades económicas, as condições de vida necessárias ao desenvolvimento da criança e, em última instância, cabe à sociedade e ao Estado garantir as prestações existenciais que lhe proporcionem as condições essenciais ao seu desenvolvimento e a uma vida digna.
i) Nos termos do disposto no art. 2004° do CC, a medida dos alimentos obtém-se de acordo com o binómio necessidades/possibilidades.
j) As possibilidades dos pais para alimentarem os seus filhos, por modestas que sejam, partirão sempre de um patamar acima de zero, competindo-lhes a natural obrigação de tudo fazerem para garantir aos filhos o máximo que estiver ao seu alcance, ainda que o máximo se venha a traduzir, na partilha da sua modesta condição sócio-económica.
k) Verificando-se que a capacidade alimentar dos pais se mostra insuficiente ou relapsa, cabe ao Estado substituir-se-lhes, garantindo aos menores as prestações existenciais que lhe proporcionem as condições essenciais ao seu desenvolvimento e a uma vida digna.
l) Com esta finalidade, a Lei nº 75/98, de 19-11 criou o Fundo de Garantia dos Alimentos Devidos a Menores, estabelecendo como condição primeira de acesso a fixação judicial do quantum de alimentos devidos a cada menor;
m) Assim é que uma decisão como aquela que agora se questiona, não obrigando o pai a pagar pensão de alimentos ao filho, alimenta-lhe a irresponsabilidade e priva o menor da protecção que o Estado lhe pode e deve proporcionar, caso se verifique que dela venha a necessitar.
n) A esta interpretação, de fixar alimentos, obriga a defesa do superior interesse da criança, já que nos termos do art. 3° da CDC, todas as decisões relativas a crianças aterão primacialmente em conta o interesse superior da criança.
o)
Caixa de texto: VIIE o art. 180°, n° 1, da OTM, estabelece que na sentença o exercício do poder paternal será regulado de harmonia com os interesse do menor.
p) Ora, na situação em apreço, dúvidas não temos de que a defesa do superior interesse da menor impõe que seja fixada pensão de alimentos a cargo do pai.

Não houve contra-alegações.

Cumpre decidir.

III — Fundamentação:

1. A menor L.[…] nasceu no dia 1-2-05 e é filha de Maria […] e de Alberto […].
2. A requerida e o requerido foram casados entre si tendo sido decretado o divórcio entre ambos por decisão transitada em julgado proferida nos autos principais.
      3. A menor […] vive com a progenitora.
4. A progenitora da menor é enfermeira […] € 1.200,00 mensais líquidos.
5. A progenitora suporta todas as despesas do agregado familiar sendo as mais relevantes as seguintes: € 200,00 com amortização do empréstimo contraído para aquisição de habitação própria, € 175,00 mensais com a ama da menor e € 350,00 mensais com o pagamento da prestação do empréstimo contraído para aquisição de veículo automóvel.
6. O requerido pai não conhece a menor, nunca a visitou, apesar de saber do seu nascimento.
7. A progenitora da menor é uma mãe dedicada, apresentando competências maternais adequadas, tendo estabelecido com a menor relações de interacção saudável e um harmónico.
8. O requerido nunca contribuiu para o sustento da menor.

III – Decidindo:

1. A única questão que cumpre apreciar é se, apesar da falta de apuramento de qualquer facto relativo à condições económicas do pai da menor, que se encontra em paradeiro desconhecido, deve ser fixada uma prestação alimentícia a seu cargo.

A resposta que aprioristicamente se obtém quando nos deparamos com uma situação como a dos autos vai no sentido afirmativo, por forma a que não sejam prejudicados os interesses do menor.

É, afinal, a resposta que se obtém quando se abandona uma estrita lógica formal que subjaz à decisão recorrida.

2. Vejamos:

- O requerido contraiu casamento com a mãe da menor em 10-1-04 (cfr. doc. fls. 15), estando ambos divorciados.
- Tendo a menor nascido em 1-2-05, o requerido nem sequer a conhece.
- Desconhecido é ainda o paradeiro do requerido que foi citado à revelia.
- Recolhe-se ainda dos autos que o requerido tem 35 anos de idade, não se encontrando alegado e provado que sofra de qualquer situação de incapacidade relativamente ao exercício de uma profissão ou obtenção de rendimentos.

3. A simples constatação dos anteriores elementos deixa claro que a decisão recorrida, em vez de tutelar os interesses do menor que estão em causa, acaba por produzir um resultado inadequado, levando a que o requerido, apesar de se encontrar juridicamente vinculado pela paternidade, continue totalmente desonerado de qualquer responsabilidade decorrente do poder paternal, incluindo a contribuição para alimentos da sua filha.

Ao negar a fixação de uma qualquer prestação, ao menos partindo de padrões de normalidade, a sentença recorrida acaba por deixar desprotegido quem o Direito da Família pretende essencialmente tutelar: a menor.

É verdade que, nos termos do art. 2004º do CC, os alimentos deverão se proporcionais aos meios daquele que houver de prestá-los. Mas também resulta de tal preceito que devem ser ajustados às necessidades do credor, sendo que tratando-se de menor de tenra idade, a contribuição dos pais (de ambos os pais) é vital para assegurar o seu desenvolvimento.

Acresce que no caso concreto a requerente limita-se a peticionar a prestação mensal de € 125,00 mensais, sendo que a decisão de alimentos nunca é definitiva, permitindo-se a sua modificação caso se modifiquem circunstâncias relevantes.

Perante este quadro é caso para perguntar: que indivíduo, não afectado por qualquer incapacidade grave, tendo sobre si o encargo de suportar uma parte dos alimentos de uma filha de tenra idade, não está em condições de dispor, pelo seu trabalho, daquela quantia, se necessário, fazendo um esforço suplementar?

A resposta que imediatamente se intui quanto a essa questão elementar é a de que, nessas circunstâncias (e outras não são visíveis no caso concreto, não podendo, por isso, ser consideradas), também ao requerido pode e deve ser fixada uma prestação alimentícia como reflexo (mínimo) do seu poder/dever paternal. Ainda que estivesse apurado - e não está - que o requerido não aufere qualquer rendimento, tal não contenderia com aquela obrigação, já que é inerente à relação de paternidade a necessidade de realizar esforços e de ajustar a vivência por forma a que se consigam obter rendimentos que, além do mais, possam servir para prover às necessidades de quem, como o filho menor, não tem possibilidades de sobrevivência autónoma.

Para o efeito, ganha toda a pertinência mencionar o que Maria Clara Sottomayor propugna relativamente a situações de desemprego ou de deliberada redução do rendimento, quando refere que “se o alimentante se colocar voluntariamente numa situação em que é incapaz de arranjar emprego, não dispensa o alimentante de cumprir a obrigação de alimentos. Para este efeito devem ser elaboradas regras para imputar rendimentos a pais desempregados de acordo com a sua capacidade de trabalhar e ganhar dinheiro (Regulação do Exercício do Poder Paternal nos Casos de Divórcio, 3ª ed., pág. 184).

Num outro registo, Remédio Marques indica que “a obrigação de alimentos pode ser judicialmente peticionada logo que o alimentando esteja numa situação de necessidade. As possibilidades do devedor [1] só relevam - para além da respectiva quantificação -, em princípio, em sede de extinção da obrigação, como facto impeditivo do direito peticionado pelo autor, ou para efeitos de alteração da obrigação alimentar já fixada” (Algumas Notas Sobre Alimentos, pág. 185).

Nestas circunstâncias, é, ao menos, possível concluir, com a necessária segurança, que o requerido está em condições de, exercer uma profissão que, no mínimo, lhe garanta o salário mínimo nacional, sendo os alimentos peticionados compatíveis com esse nível salarial.

É esta a resposta que mais se ajusta à concreta situação, sendo, aliás, a que também se retira de diversos acórdãos desta e de outras Relações, sendo disso exemplos, o Ac. da Rel. de Lisboa, de 29-11-06 (www.dgsi.pt), que também subscrevi, relatado por Pimentel Marcos, onde se citam outras decisões desta Relação no mesmo sentido, a que se acrescenta ainda o Ac. da Rel. do Porto, de 22-4-04 (www.dgsi.pt).

Discorda-se, assim, frontalmente do teor do acórdão da Rel. de Lisboa, de 17-1-07 (www.dgsi.pt), perante um caso semelhante de ausente em parte incerta, assim como do Rel. de Évora, de 18-12-90, BMJ 402º/690, quando nele se decidiu que “nada se sabendo, de concreto e preciso, sobre a situação patrimonial de quem está constituído na obrigação legal de prestar alimentos a filhos menores (pessoa há vários anos ausente em parte incerta e que não foi possível localizar no decurso do processo) não deve tal pessoa ser condenada a pagar alguma pensão alimentícia.

4. Ampliando a sustentação jurídica da solução que defendemos, confrontamo-nos com as regras de distribuição do ónus da prova que apontam no mesmo sentido.

Nos termos do art. 1878º do CC é inerente ao poder paternal o dever de “prover ao sustento” do filho menor, o qual também decorre do art. 2009º, nº 1, al. c). Tal dever encontra assento no art. 36º, nº 5, da Constituição.

De acordo com o disposto no art. 1905º, nº 2, do CC, na falta de acordo dos pais quanto à regulação do exercício do poder paternal, incluindo o vector dos alimentos, cabe ao tribunal decidir “de harmonia com o interesse do menor”. São ainda os interesses do menor a que o art. 180º da OTM faz apelo quando regula a sentença que deva ser proferida.

Por outro lado, nos termos do art. 2009º, nº 3, do CC, a dispensa obrigação de prestar alimentos e a sua transferência para outros obrigados depende da prova de que se não podem prestar.

Resulta claro de tais disposições que o facto constitutivo essencial do direito a obter alimentos do pai é integrado pela relação de filiação e pela situação de menoridade. Além disso, a prioridade atribuída ao interesse da menor, no caso totalmente incapaz de prover ao seu sustento, determina que se passe para um plano secundário aquilo que, na perspectiva de quem é obrigado à prestação alimentícia, poderia ter relevo para fixar o seu quantitativo.

Nesta linha se insere o Ac. da Rel. de Évora, de 5-12-85, BMJ 354º/626, segundo o qual na acção de alimentos, cabe ao autor o ónus de provar o estado de necessidade e também a relação que vincula o réu a tal prestação. Por outro lado, cabe ao réu o de provar que os meios de que dispõe não permitem realizá-la integral ou mesmo parcialmente.

Aliás, relativamente à quantificação, a lei substantiva e processual atribui ao tribunal poderes que permitem ponderar todo o circunstancialismo, sem exclusão sequer dos padrões de normalidade da vida que sempre devem servir de orientação ao juiz quando não possua elementos que o façam abandonar esse quadro de normalidade, sempre sob a orientação de critérios de equidade ajustados a processos de jurisdição voluntária como o são os processos tutelares cíveis.

Também por esta via somos levados a concluir pela verificação de elementos que impõem uma decisão diversa daquela que foi proferida em relação à prestação de alimentos.

5. Mas ainda que porventura se considerasse que todos os factos atinentes à quantificação dos alimentos constituíssem encargo do credor, a sujeição do caso concreto à escapatória do art. 344º, nº 3, do CC, reconduzir-nos-ia a uma solução que de modo algum visse na ausência de elementos sobre a situação económica do pai da menor um obstáculo intransponível à fixação de uma prestação alimentícia.

Segundo tal preceito, procede-se a “inversão do ónus da prova, quando a parte contrária tiver culposamente tornado impossível a prova ao onerado …”.

Ora, o requerido, apesar do estatuto jurídico que lhe advém da paternidade, desinteressou-se por completo do destino da sua filha, que nem sequer conhece. Além disso, encontra-se ausente em parte incerta, tendo sido infrutíferas todas as diligências no sentido de identificar o local onde se encontra tornando objectivamente impossível a obtenção de elementos definidores das suas condições económicas.

Aliás, no relatório social afirma-se que o casamento do requerido com a mãe da menor terá sido de “conveniência”, pretendendo este garantir desse modo a legalização da sua residência em Portugal.

Neste contexto, de inequívoco incumprimento culposo de deveres paternais elementares, a fixação de uma prestação alimentícia nos moldes pretendidos pela requerente é a solução que, além de ser substancialmente mais justa, procede a uma adequada distribuição de responsabilidades, sem exclusão sequer do requerido.

6. A necessidade de fixação de uma prestação alimentícia encontra ainda no ordenamento jurídico um outro fundamento suplementar.

Em determinadas circunstâncias, a lei admite que se recorra ao Fundo de Garantia de Alimentos Devidos a Menores, sendo que a Lei nº 75/98, de 19-11, faz depender esse recurso da existência de uma sentença que fixe alimentos e do seu incumprimento por parte do obrigado.

Sem necessidade sequer de ponderar se, no caso concreto, estão reunidas as demais condições exigidas por lei para que a menor possa beneficiar dessa prestação de natureza social, a sua atribuição poderá estar dependente da prolação de uma sentença que lhe reconheça o direito a alimentos devidos pelo seu pai.

Este um argumento adicional que, no contexto de um litígio de natureza familiar, também conflui para uma solução que melhor compatibiliza os diversos interesses em confronto, sem jamais esconder que o interesse que fundamentalmente deve ser tutelado e que em grande parte justifica a existência de Tribunais de Família é o do menor, que não deve ser prejudicado por juízos assentes numa lógica formal, que passe para um plano secundário o verdadeiro objectivo que através dos processos de natureza tutelar devem ser prosseguidos.

III – Em conclusão, decide-se julgar procedente a apelação, modificando a sentença de modo a incluir também na regulação do exercício do poder paternal a obrigação de alimentos no valor de € 125,00 mensais a cargo do requerido.
Custas da apelação a cargo do requerido.
Notifique.
Lisboa, 26-6-07


António Santos Abrantes Geraldes



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[1] No texto refere-se “credor”, mas parece evidente o lapsus calami.