Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
7341/2003-6
Relator: GRANJA DA FONSECA
Descritores: RESERVA DE PROPRIEDADE
PENHORA
RENÚNCIA
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 10/16/2003
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: AGRAVO.
Decisão: PROVIDO.
Sumário: 1. O facto de as partes terem optado pela reserva de propriedade do veículo automóvel não a favor do vendedor, mas da mutuante, consubstancia uma situação anómala de constituição da reserva de propriedade, mas não se altera o regime legal que decorre da lei.

2. A nomeação à penhora pelo titular da reserva de propriedade sobre o bem concernente não é conforme a regra que resulta da lei, no sentido de que pelas dívidas do executado apenas os seus bens ou os de terceiro afectos ao cumprimento da obrigação, respondem (artigos 601º CC e 821º CPC).

3. Como a reserva de propriedade está inscrita no registo automóvel com anterioridade em relação ao acto de penhora, não podia caducar, por força do disposto no n.º 2 do artigo 824 CC, com o acto da venda do veículo.

4. Em consequência, realizado o acto da venda do veículo automóvel penhorado, não podia o Tribunal ordenar o cancelamento da inscrição relativa à reserva de propriedade, com a consequência do adquirente ter de suportar aquele ónus na sua esfera jurídico – patrimonial.

5. Perante a anomalia de haver sido ordenada e realizada a penhora de um veículo automóvel em relação ao qual a exequente é titular do direito de propriedade e não qualquer dos executados, a solução não pode deixar de ser no sentido da suspensão da acção executiva em relação à referida penhora até que a agravante demonstre em juízo o cancelamento do registo da reserva de propriedade em causa (artigos 276º, n.º 1, al. c), 279º, n.º 1 e 466º, n.º 1 CPC).

Decisão Texto Integral: Acordam no Tribunal da Relação de Lisboa:
1.
T ... – Financiamento de Aquisições a Crédito S. A. intentou, na 3ª Vara Cível de Lisboa, acção executiva baseada em sentença declarativa de condenação para pagamento de quantia certa, com processo sumário, contra Aventino ... e Virgínia ..., a fim de haver deles os montantes correspondentes a capital, juros e imposto de selos sobre os juros, devidamente descriminados no título.
Na referida acção executiva, foi ordenada a penhora do veículo automóvel Opel, modelo Astra, matrícula 39-29-AH, tendo o mesmo sido apreendido, pela Guarda Nacional Republicana, no dia 12 de Junho de 2002, a solicitação do Tribunal.
Relativamente a este veículo constam as seguintes inscrições na Conservatória do Registo Automóvel de Lisboa:
Direito de propriedade a favor de Aventino ..., a partir de 12.6.95.
Reserva de propriedade a favor de do Banco M ..., S. A., a partir da mesma data (12.6.95).
Penhora, desde 12.6.2002, a favor de Banco M ..., S.A., para garantia de 23.650, 55 (vinte e três mil seiscentos e cinquenta euros e cinquenta e cinco cêntimos), tendo o respectivo registo sido efectuado em 26.7.2002. É sujeito passivo o referido Aventino e sujeito activo o Banco M ...
Em 18.11.2002, o Exc. mo Juiz proferiu o seguinte despacho:
“Sobre o veículo penhorado incide uma reserva de propriedade (artigo 409º do Código Civil), a favor da própria exequente.
Para parte da doutrina, a reserva de propriedade traduz-se numa condição suspensiva da alienação, mantendo-se a propriedade na titularidade do alienante até integral pagamento do preço. Para outra parte da doutrina, o adquirente tem uma posição mais forte — propriedade sob condição, expectativa real ou direito real de aquisição -, sendo que a posição do alienante poderá ser configurada essencialmente como um direito real de garantia. Vide, nomeadamente, Pinto Duarte, Rui — Curso de direitos reais, Cascais, 2002, 249 e ss, Peralta, Ana Maria — A posição jurídica do comprador na compra e venda com reserva de propriedade, Coimbra, 1990, 142 e ss, Lima Pinheiro, Luís — A cláusula de reserva de propriedade, Coimbra, 1988, 39 e ss, Antunes Varela — Das obrigações em geral, I, Coimbra, 1991, 308 e ss.
Mas um dado é pacifico: o adquirente não tem a propriedade plena sobre o veículo.
A exequente nomeou à penhora o direito de propriedade plena sobre o veículo. Não nomeou à penhora um mero direito de propriedade sob condição, uma mera expectativa real ou um mero direito real de aquisição. Foi nos referidos termos que a penhora foi realizada.
Consequentemente, é forçoso concluir que foi realizada a penhora de um bem pertencente a terceiro — a própria exequente.
É manifesto que a execução não pode prosseguir quanto ao referido bem.
Repare-se que a venda judicial não determina a extinção da reserva de propriedade (artigo 824º, n.º 2 CC). O Tribunal não pode promover a venda de um bem pertencente a terceiro. A execução só poderá prosseguir quanto ao referido bem assim que estiver demonstrado o registo da renúncia à reserva de propriedade. Neste sentido, vide o Acórdão do Supremo Tribunal Justiça de 12.1.99 (Simões Freire), in www.dgsi.pt”.
E, concluindo, determinou a suspensão da execução relativamente ao veículo descrito a fls 106 até que estivesse demonstrado no processo o registo da renúncia à reserva de propriedade.

Inconformada com este despacho, agravou a exequente, finalizando a alegação com as seguintes conclusões:
1ª - Nos autos em que sobe o presente recurso foi logo de início requerida a penhora sobre o veículo automóvel com a matricula 39-29-AH, penhora que foi ordenada pelo Senhor Juiz a quo.
2ª - Não é por existir uma reserva de propriedade sobre o veículo dos autos em nome do ora recorrente que é necessário que este requeira o cancelamento da dita reserva, não tendo, aliás, o Senhor Juiz a quo competência para proceder a tal notificação ao exequente, ora recorrente.
3ª - O facto de a reserva de propriedade estar registada não impede o prosseguimento da penhora, pois de acordo com o disposto no artigo 824º do Código Civil e 888º do Código de Processo Civil, aquando da venda do bem penhorado, o Tribunal deve, oficiosamente, ordenar o cancelamento de todos os registos que sobre tal bem incidam.
4ª - No caso de surgirem dúvidas sobre a propriedade dos bens objecto de penhora, deve-se agir de acordo com o que se prescreve no artigo 119º do Código do Registo Predial caso a penhora já. tenha sido realizada.
5ª - Tendo a ora recorrente optado pelo pagamento coercivo da dívida em detrimento da resolução do contrato e do funcionamento da reserva de propriedade para chamar a si o bem sobre a qual a mesma incide - o que, como referido, seria, neste caso, ilegítimo -; tendo a exequente renunciado ao “domínio” sobre o bem - pois desde o início afirmou que o mesmo pertencia ao recorrido -; tendo, como dos autos ressalta, a reserva de propriedade sido constituída apenas como mera garantia, e para os efeitos antes referidos; prevendo-se nos artigos 824º do Código Civil e 888º do Código de Processo Civil, que aquando da venda do bem penhorado, o Tribunal deve, oficiosamente, ordenar o cancelamento de todos os registos que sobre tal bem incidam; e não se prevendo no artigo 119º do Código do Registo Predial que se notifique o detentor da reserva de propriedade para que requeira o seu cancelamento, é manifesto que no despacho recorrido, se errou e decidiu incorrectamente.
6ª - Caso, assim, não se entenda, sempre se dirá que deveria a exequente – titular da reserva de propriedade – ter sido notificada para se pronunciar pela renúncia ou não à propriedade do veículo, como o foi, tendo respondido, mas não ser notificada para requerer o seu cancelamento.
7ª - No despacho recorrido, ao decidir-se pela forma como se decidiu, claramente se violou e erradamente se interpretou e aplicou o disposto no artigo 888º do Código de Processo Civil, violou também o disposto nos artigos 5º, n. º 1, alínea b) e 29º do DL n.º 54/75, 12 de Fevereiro, artigos 7º e 119º do Código do Registo Predial e artigos 408º, 409º, n. º 1, 601º e 879º, alínea a), todos do Código Civil.

Os recorridos não contra – alegaram.

O Exc. mo Juiz sustentou o despacho recorrido.

Colhidos os vistos legais, cumpre decidir:
2.
Consideram-se relevantes para efeitos do recurso os factos que constam do relatório.
3.
A questão essencial a decidir é a de saber se a acção executiva pode prosseguir para a fase da venda não obstante a exequente ser titular da reserva de propriedade sobre o veículo automóvel penhorado.
4.
4.1. A ora recorrente, tendo intentado contra os recorridos acção declarativa com processo sumário, que foi julgada procedente e provada e não tendo os réus, na dita acção, pago à então autora, ora recorrente, as importâncias que pela sentença foram condenados a pagar-lhe, requereu aquela a competente execução de sentença.
No requerimento inicial da execução, a exequente nomeou à penhora diversos bens, nomeadamente, o veículo automóvel de marca Opel/Astra, com a matrícula 39-29-AH.
Pelo despacho de fls. foi ordenada a efectivação da penhora requerida, incidindo, assim, o despacho sobre aquele veículo automóvel, em relação ao qual se ignorava, porque a exequente não esclareceu, (como devia, em cumprimento do seu dever de cooperação), que tinha inscrita no registo, a seu favor, a reserva de propriedade (artigo 266º-A CPC).
Tal despacho não se pode considerar, porém, de mero expediente nem proferido no uso legal de um poder discricionário (artigo 156º, n.º 4 CPC).
É certo também que o referido despacho não foi objecto de adequada fundamentação, mas, na altura em que foi proferido, a questão da admissibilidade da penhora não era controvertida nem sobre ela se suscitava qualquer dúvida (artigo 158º, n.º 1 CPC).
De qualquer modo, ainda que se entendesse que o aludido despacho estaria afectado de nulidade, esse vício não foi invocado pela agravante, razão por que estaria vedado, em sede de recurso, o seu conhecimento (artigos 666º, n.º 3 e 668º, n.ºs 1, al. b) e 3 CPC).
Assim, proferido o despacho determinativo da penhora em causa, que foi efectivada e levada ao registo automóvel, esgotou-se o poder jurisdicional sobre a matéria daquela penhora (artigos 466º, n.º 1 e 666º, n.ºs 1 e 3 CPC).
4.2.
Nos termos da lei do processo, efectuada a penhora de um bem, ela irá, em princípio, subsistir até à venda.
Consagra, porém, o artigo 820º a ampla possibilidade de o juiz rejeitar oficiosamente a execução instaurada, até ao momento da realização da venda ou das outras diligências destinadas ao pagamento, sempre que se aperceba da existência de questões que deveriam ter conduzido ao indeferimento liminar da execução.
Os referidos fundamentos encontram-se previstos no artigo 811º-A do CPC.
Como, in casu, se não verifica qualquer dos pressupostos enumerados nessa norma, não há fundamento para a rejeição da execução.
Para além da referida hipótese, prevê ainda a lei que, efectuada a penhora de determinado bem, possa ocorrer o seu levantamento por ordem judicial, contanto que se verifique uma das seguintes causas[1]:
Uma causa de extinção da acção executiva ou de anulação da venda em razão de acção de reivindicação (artigos 916º, n.ºs 1 e 4, 908º, 909º, n.º 1, al. b), 910º, 911º e 918º CPC);
Procedência do recurso do despacho determinativo da penhora nos termos gerais;
Protesto no acto de penhora (artigo 832º CPC);
Incidentes de embargos de terceiro e de oposição à penhora (artigos 351º, n.º 1, 863-A e 863-B do CPC);
Desistência da penhora (artigos 836º, n.º 2, alíneas b), c) e d) e 871º, n.º 3 CPC);
Paragem da execução decorrente de inércia do exequente na promoção do seu andamento (artigo 847º CPC);
Desaparecimento do bem penhorado no caso de não ocorrer direito a indemnização objecto de sub – rogação real (artigos 730º, al. c) e 823º CC).
Assim, tendo o despacho que ordenou a penhora transitado em julgado, não estando em causa qualquer das referidas situações em que a lei excepcional e expressamente prevê a possibilidade de levantamento da penhora, estando esgotado o poder jurisdicional do juiz e existindo autoridade de caso julgado formal relativamente àquele despacho, é manifesto que não pode a penhora ordenada ser levantada, nem ser dada sem efeito (artigos 466º, 666º n.ºs 1 e 3, e 672º CPC).
4.3. Não obstante, poder-se-á questionar se a penhora do veículo dos autos podia (ou não) prosseguir por existir sobre ele reserva de propriedade em nome da exequente.
Vejamos:
A regra de que a transferência da propriedade se opera por mero efeito da celebração do contrato de compra e venda encontra-se estabelecida no n.º 1 do artigo 408º CC. A possibilidade de diferir convencionalmente o efeito translativo, por via de um pacto de reserva de propriedade, é admitida como excepção àquela regra (artigo 408º, n.º 1, in fine), nos termos do n.º 1 do artigo 409º. “E é admitida de modo tão amplo, que se pode dizer que a regra é, afinal, a da colocação convencional do momento da transferência de propriedade”[2].
Segundo resulta da citada norma (n.º 1 do artigo 409º), a transmissão do direito de propriedade por via do contrato de compra e venda sob reserva de propriedade a favor do devedor fica suspensa até à verificação de um evento futuro e incerto, como é o caso do pagamento do preço ou de um evento futuro e certo, designadamente de um termo inicial.
No que respeita à eficácia da reserva de propriedade, determina o n.º 2 do mesmo preceito que, tratando-se de coisa imóvel ou de coisa móvel sujeita a registo, só a cláusula constante de registo é oponível a terceiros.
Embora a reserva de propriedade, tal como está prevista na lei, tenha sido pensada para contratos de compra e venda, o certo é que o artigo 409º, n.º 1 abrange, na sua letra e espírito, a hipótese de conexão entre o contrato de mútuo a prestações e o contrato de compra e venda do veículo automóvel por virtude do objecto mediato do primeiro constituir o elemento preço do segundo, situação que se configura como se o pagamento do preço relativo ao contrato de compra e venda do veículo automóvel fosse fraccionado no tempo[3].
In casu, as partes optaram pela reserva de propriedade do veículo automóvel não a favor do vendedor, mas da mutuante, naturalmente por o primeiro haver recebido da segunda o respectivo preço.
Assim, embora se trate de uma situação anómala de constituição da reserva de propriedade, não se altera o regime legal que decorre da lei. Os seus efeitos são idênticos àqueles que derivariam de ela haver sido constituída a favor do vendedor do veículo automóvel que foi penhorado.
4.4. Embora não seja pacífico, cremos que há incompatibilidade entre a permanência da coisa vendida na propriedade do vendedor e a execução daquela pelo mesmo vendedor para pagamento do preço.
Vejamos:
Nos termos do artigo 29º do DL n.º 54/75, de 12 de Fevereiro, ao registo de automóveis são adaptadamente aplicáveis as disposições relativas ao registo predial na medida indispensável ao suprimento das lacunas da regulamentação própria e compatível com a natureza de veículos automóveis e das disposições contidas na lei especial.
Ora o registo definitivo constitui presunção de que o direito existe e pertence ao titular, nos precisos termos em que o direito o define (artigo 7º CRP).
Os factos comprovados pelo registo não podem ser impugnados em juízo sem que simultaneamente seja pedido o cancelamento do registo (artigo 8º, n.º 1 CRP).
Perante a referida presunção não ilidida, não pode deixar de se concluir que a agravante é titular do direito de propriedade sobre o veículo automóvel que na acção executiva foi objecto de penhora.
Ora, na execução para pagamento de quantia certa, o exequente, (credor), visa obter o cumprimento duma obrigação pecuniária através do património do executado (devedor). Apreendidos e vendidos bens deste património, procede-se, com o dinheiro realizado, ao pagamento do exequente, que obterá assim, por esta via, idêntico resultado ao da realização da prestação que lhe é devida, segundo o título executivo.
Assim a nomeação à penhora pelo titular da reserva de propriedade sobre o bem concernente não é conforme a regra que resulta da lei, no sentido de que pelas dívidas do executado apenas os seus bens ou os de terceiro afectos ao cumprimento da obrigação, respondem (artigos 601º CC e 821º CPC).
4.5. Escudando-se no entendimento perfilhado por Vasco da Gama Lobo Xavier[4] e em algumas decisões jurisprudenciais, defende a recorrente ser-lhe lícito nomear à penhora o bem cuja propriedade ficou reservada a seu favor, invocando que, por esse facto, renunciou à vantagem derivada dessa cláusula.
Mas sem razão[5].
Citando o referido acórdão desta secção, dir-se-á que, “se assim fosse, isto é, se se tratasse de renúncia tácita, não havia meio de se conseguir o seu cancelamento no registo automóvel por falta de título documental adequado”.
“Nesta lógica, ainda que o veículo automóvel fosse vendido no âmbito da acção executiva, porque a reserva de propriedade, ou seja, um direito real de gozo, está registada antes do acto da penhora, continuaria a afectar, não obstante a alienação, o veículo automóvel vendido” (cfr. artigo 824º, n.º 2 CC).
Acresce que “a reserva de propriedade tende a manter-se até efectivo pagamento do preço, certo que só esta circunstância desencadeia a transferência do direito de propriedade sobre a coisa vendida”, para além do “facto de a penhora em acção executiva não bastar à realização do direito de crédito do credor reservante do direito de propriedade”.
Por outro lado, atenta a fonte contratual de que a reserva de propriedade deriva, não é um direito a que o vendedor possa renunciar livremente, porque se traduz no diferimento contratual de um dos efeitos do contrato acordado por ambas as partes.
De contrário, estar-se-ia perante uma situação que significaria a extinção da expectativa do comprador de adquirir o direito de propriedade por sua exclusiva vontade, o que se revela contrário ao princípio do consenso contratual que decorre do artigo 406º, n.º 1 CC[6].
Assim, pese embora o facto de a recorrente haver nomeado à penhora o veículo automóvel sobre cujo direito de propriedade tinha reserva, não pode resultar que a ela haja renunciado tácita e eficazmente.
4.6. Defende, de seguida, a recorrente que, no caso de surgirem dúvidas sobre a propriedade dos bens objecto de penhora, deve-se agir de acordo com o que se prescreve no artigo 832º CPC caso a penhora ainda não tenha sido efectuada ou esteja a sê-lo ou com o que se prescreve no artigo 119 CRP caso a penhora já tenha sido realizada e a dúvida surja por o bem não estar registado em nome do executado mas em nome de outrem e não ordenar oficiosamente sem efeito a penhora.

Relativamente a esta questão, ficou assente que a penhora, no momento em que foi proferido o despacho recorrido, já se encontrava realizada, não sendo, por isso, aplicável o disposto no artigo 832º CPC.
E porque, no caso presente, bem ou mal, não estamos perante um registo provisório mas perante um registo tendencialmente definitivo, o disposto no n.º 1 do artigo 119º CRP é igualmente inaplicável.
E também o não abrange por analogia, em razão da falta de similitude fáctica que justifica a aplicação analógica em geral (artigo 10º, n.º 2 CC).
Com efeito, a razão de ser do mencionado normativo visou solucionar a desactualização dos factos inscritos no registo para evitar o não prosseguimento das acções executivas por o bem penhorado estar indevidamente registado a favor de pessoa diversa do executado.
Com base no referido normativo, por via de uma simples notificação judicial ao titular inscrito e com base no seu silêncio, a execução deve prosseguir como se o bem penhorado se inscrevesse efectivamente na titularidade do executado.
Ora, no caso vertente, o interesse na remoção do obstáculo à prossecução da acção executiva na fase da venda do veículo automóvel penhorado é exclusivamente da recorrente.
E, como ficou demonstrado, há conhecimento exacto e sem controvérsia da titularidade do direito de propriedade sobre o veículo automóvel penhorado.
Donde a inexistência de fundamento legal, por absolutamente inútil, para que se ordenasse o cumprimento do disposto no n.º 1 do artigo 119 CRP.
4.7. Sustenta, por fim, a recorrente que o facto de a reserva de propriedade estar eventualmente registada não impede o prosseguimento da penhora, pois de acordo com o disposto no artigo 824º CC e 888º do CPC, aquando da venda do bem penhorado, o Tribunal deve, oficiosamente, ordenar o cancelamento de todos os registos sobre tal bem.
Cremos que as normas citadas não têm a virtualidade de fundar a pretensão da agravante.
Com efeito, na venda em execução, os bens são transmitidos livres dos direitos de garantia que os onerarem, bem como dos demais direitos reais que não tenham registo anterior ao de qualquer arresto, penhora ou garantia, com excepção dos que, constituídos em data anterior, produzam efeitos em relação a terceiros, independentemente de registo (artigo 824º, n.º 2 CC).
Dispõe, por sua vez, o artigo 888º CPC, que, após o pagamento do preço e do imposto devido pela transmissão, são oficiosamente mandados cancelar os registos dos direitos reais que caducam, nos termos do n.º 2 do artigo 824º CC, entregando-se ao adquirente certidão do respectivo despacho.
Ora, como a reserva de propriedade, direito real de gozo, sobre o veículo automóvel penhorado está inscrita no registo automóvel com anterioridade em relação ao acto de penhora, não podia caducar, por força do disposto no n.º 2 do artigo 824 CC, com o acto da venda do veículo.
Em consequência, realizado o acto da venda do veículo automóvel penhorado, não podia o Tribunal ordenar o cancelamento da inscrição relativa à reserva de propriedade, com a consequência do adquirente ter de suportar aquele ónus na sua esfera jurídico – patrimonial.
Concluindo:
Estamos perante uma situação em que a penhora tem de manter-se mas, com base nela, não pode seguir-se para a fase da venda.
A agravante, para poder fazer prosseguir a acção executiva para a fase da venda do veículo penhorado tem, prévia e necessariamente, de diligenciar no sentido do cancelamento da inscrição registral da reserva de propriedade em causa.
Perante a anomalia de haver sido ordenada e realizada a penhora de um veículo automóvel em relação ao qual a exequente é titular do direito de propriedade e não qualquer dos executados, a solução não pode deixar de ser no sentido da suspensão da acção executiva em relação à referida penhora até que a agravante demonstre em juízo o cancelamento do registo da reserva de propriedade em causa (artigos 276º, n.º 1, al. c), 279º, n.º 1 e 466º, n.º 1 CPC).

Improcede, por isso, o recurso.

Vencida no recurso, é a agravante responsável pelo pagamento de custas respectivas (artigo 446º, n.ºs 1 e 2 CPC).
4.
Termos em que, negando provimento ao agravo, se decide confirmar a douta decisão recorrida.
Custas pela agravante.

Lisboa, 16 de Dezembro de 2003
Granja da Fonseca
Alvito de Sousa
Pereira Rodrigues

[1] Lebre de Freitas, in A Acção Executiva à Luz do Código Revisto, 2ª ed. pp. 220 e 221Ac. RL, de 5 de Março de 1997, CL, Ano XXII, Tomo 2, pág. 79.

[2] Luís Lima Pinheiro, in A Cláusula de Reserva de Propriedade pág. 21.
[3] Luís Lima Pinheiro, obra citada, pp. 33 e 34 e Ac. RL, de 11.12.97, CJ, Ano XXII, Tomo 5, p. 120.
“Venda a prestações. algumas notas sobre os artigos 934º e 935º do Código Civil”, Revista de Direito e de Estudos Sociais, Ano XXI, 1974, pp. 216 a 219.
[5] Ac. RL, de 21.2.2002, Processo 789/2002, 6ª Secção
[6] Raul Ventura, O Contrato de Compra e Venda no Código Civil, Revista da Ordem dos Advogados, Ano 43, 1983, pág. 614
Ana Maria Peralta, A Posição Jurídica do Comprador na Compra e Venda com Reserva de Propriedade, pp. 90 a 97.