Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
1978/19.6T8FNC.L1-7
Relator: CARLOS OLIVEIRA
Descritores: COMPETÊNCIA INTERNACIONAL
ACÇÃO DE INDEMNIZAÇÃO
DANOS NÃO PATRIMONIAIS
CÔNJUGES
CAUSA DE PEDIR COMPLEXA E PLURILOCALIZADA
REGRA DA SUBSTITUIÇÃO
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 09/12/2023
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Texto Parcial: N
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: PROCEDENTE
Sumário: 1. Numa ação de condenação destinada a exercer o direito a indemnização emergente de responsabilidade civil por factos ilícitos culposos causados pelo cônjuge durante a vigência do casamento, nos termos do Art.º 1792.º n.º 1 do C.C., a competência dos tribunais é determinada nos termos do Art.º 71.º n.º 2 do C.P.C., sendo competente para a apreciação da ação o tribunal do «lugar onde o facto ocorreu».
2. Sendo a ação baseada em responsabilidade civil, que apresenta uma causa de pedir complexa plurilocalizada, integrada por condutas ilícitas e culposas do Réu e consequentes prejuízos daí gerados para a Autora, basta que um dos factos ilícitos, ou um prejuízo deles derivado, ocorra em Portugal, para se verificar uma conexão objetiva suficiente para conferir aos tribunais portugueses competência internacional (cfr. Art.º 62.º n.º 1 al. a) e b), conjugado com o Art.º 71.º n.º 2, ambos do C.P.C.).
3. O funcionamento da regra de substituição estabelecida no Art.º 665.º n.º 2 do C.P.C. visa garantir uma decisão célere, em processo justo e equitativo, evitando que o processo regresse inutilmente ao tribunal recorrido, para depois ser decidido definitivamente, como sempre o seria, pelo tribunal de recurso.
4. Essa norma não é inconstitucional por violação do Art.º 32.º n.º 1 da Constituição da República Portuguesa, nomeadamente nos casos em que da decisão do Tribunal da Relação de Lisboa não caiba recurso para o Supremo Tribunal de Justiça, por força do valor da causa e das regras da alçada (cfr. Art.º 629.º n.º 1 do C.P.C.).
5. Por força do Art.º 1792.º n.º 1 do C.C., com a redação dada pela Lei n.º 61/2008, de 31/10, o cônjuge lesado tem direito a indemnização por danos não patrimoniais causados durante a vigência do casamento, decorrentes da violação dos deveres conjugais (v.g. Art.ºs 1672.º e ss. do C.C.), que importem essencialmente na lesão dos seus direitos de personalidade, nos termos gerais da responsabilidade civil prevista no Art.º 483.º do C.C., sendo a indemnização de atribuir quando os danos assumam gravidade suficiente para merecerem a tutela do direito (Art.º 496.º n.º 1 do C.C.).
Decisão Texto Parcial:
Decisão Texto Integral: Acordam os Juízes na 7ª Secção do Tribunal da Relação de Lisboa:

I- RELATÓRIO
PR, de nacionalidade portuguesa, residente no concelho de Santa Cruz, na Ilha da Madeira, intentou a presente ação de condenação, em processo declarativo comum, contra JA, também de nacionalidade portuguesa e residente em Londres, no Reino Unido, pedindo a condenação do R. ao pagamento duma indemnização de valor não inferior a €30.000,00, pelo sofrimento contínuo e danos causados pelo R. na saúde mental da A..
Para tanto, alegou em síntese, que A. e R. se casaram em 12 de Julho de 1995 e, na pendência do casamento, o R. cometeu diversas infidelidades, relacionando-se com outras mulheres, tratando a A. com desrespeito, tendo-se verificado diversos episódios de violência, alcoolismo, insultos constantes e violência física contra a A., nunca tendo o R. contribuído para a vida familiar ou sustento do filho. Pelo que, fundando-se na violação dos deveres conjugais por parte do R. (cfr. Art.ºs 1672.º e ss. do C.C.) e na verificação dos pressupostos da responsabilidade civil, nos termos do Art.º 1792.º do C.C. pretende ser indemnizada pelos danos sofridos em montante nunca inferior a €30.000 euros, a título de danos não patrimoniais.
Citado, o R. contestou alegando a incompetência absoluta do tribunal, uma vez que A. e R. fixaram a sua residência no Reino Unido, onde era sita a casa de morada de família do casal, e os factos alegados, a terem ocorrido, terão ocorrido no Reino Unido. Por outro lado, sustentou que o direito pretendido exercer já se encontra prescrito. Sem prejuízo, alegou que sempre pagou as despesas da casa e sempre tratou a A. com carinho e atenção, impugnando os factos alegados na petição inicial. No final, concluiu pela procedência da exceção dilatória da incompetência absoluta do tribunal português, nos termos dos Art.ºs 59º a 63º do C.P.C., com a consequente absolvição do R. da instância, nos termos do Art.º 99.º do C.P.C.; pela procedência da exceção perentória da prescrição, com a consequente absolvição do R. do pedido; e pela improcedência da ação, com as demais consequências legais.
A A. respondeu à contestação, pugnando pela improcedência das exceções alegadas.
Findos os articulados, veio a ser designada audiência prévia, na qual foi julgada improcedente a exceção da prescrição e quanto à questão da incompetência internacional, foi aí consignado o seguinte:
«A Autora invoca que parte dos factos invocados também ocorreu em território português (embora sem especificar os factos concretos em causa). Se efetivamente assim fosse, seria aplicável o art.º 62.º al) a do CPC, o qual, em conjugação com o art.º 71.º n.º 2, do CPC, determinaria a atribuição aos tribunais portugueses da competência para conhecer a ação.
«Quanto à questão da incompetência, para já o tribunal não tem elementos para considerar que o tribunal não é competente. Para efeito do disposto no art.º 62.º al), do CPC, para apreciação, no âmbito do saneamento do processo, da questão de saber se o tribunal é competente, teremos de nos basear na factualidade invocada pela parte ativa, a respeito da causa de pedir, independentemente da prova que vier a ser proferida a respeito, isso tanto no âmbito da alínea da al) a, como no da al. b) do art.º  62.º do CPC.
«Em suma, em face à factualidade invocada pela parte ativa, incluindo no requerimento de resposta à exceção invocada, no sentido de que também ocorreu em Portugal, e mais precisamente, na Madeira, a factualidade que constitui a causa de pedir, não tem o tribunal, para já, elementos para considerar que o tribunal é incompetente para conhecer a ação, sem prejuízo do que vier a ser provado em julgamento e das consequências daí decorrentes.
«Seguirão os autos os seus ulteriores termos».
Na sequência, fixou-se o valor da causa, o objeto do litígio e os temas de prova e, sendo certo que foi apresentada reclamação relativamente à decisão sobre as exceções da prescrição e incompetência absoluta, essa decisão manteve-se nesses precisos termos.
Admitida a prova, veio a realizar-se a audiência final e, finda a discussão da causa, foi proferida sentença que julgou verificada a exceção de incompetência absoluta, por violação das regras de competência internacional e, em consequência, absolveu o R. da instância.
É dessa sentença da A. vem agora interpor recurso de apelação, apresentando no final das suas alegações as seguintes conclusões:
A. O presente recurso vem interposto da sentença proferida no processo à margem identificado, a qual julgou verificada a exceção de incompetência absoluta por violação das regras de competência internacional e absolveu o Réu da instância.
B. A decisão atinente à referida exceção dilatória merece censura, na medida em que apresenta vícios geradores da respetiva nulidade, assim como não faz uma correta aplicação do Direito, violando vários princípios fundamentais do Estado de Direito democrático, designadamente o do acesso ao direito e à tutela jurisdicional efetiva, fazendo tábua-rasa do princípio da primazia da nacionalidade e dos direitos à jurisdição e ao processo justo e equitativo.
C. A decisão recorrida padece ainda de erro de interpretação da matéria de facto alegada e julgada provada e da respetiva subsunção jurídica, tendo incorrido em erro de julgamento, pretendendo a Recorrente a reapreciação da prova gravada e documental para modificação de diversos pontos dos factos provados.
D. A decisão de incompetência internacional padece de nulidade, nos termos do disposto no artigo 615.º, n.º 1, alíneas b), c) e d) do CPC.
E. A Autora apresentou em juízo a presente ação, nos termos da qual peticiona o pagamento de uma indemnização pelos danos não patrimoniais que lhe foram causados pelo Réu, mediante práticas reiteradas de incumprimento dos deveres conjugais de fidelidade, coabitação e de cooperação, e violação dos direitos de personalidade da Autora.
F. O Réu invocou a exceção de incompetência absoluta do Tribunal, alegando que as partes fixaram a sua residência no Reino Unido e que os factos praticados ocorreram no Reino Unido, ao que a Autora respondeu, esclarecendo que os episódios de violência física, alcoolismo e insultos constantes, praticados contra a Autora, inclusive em frente do filho menor de ambos, tiveram lugar tanto no Reino Unido como em Portugal, além de que sucederam por vários anos.
G. Em julgamento, resultou provado à saciedade que o Réu praticou factos ilícitos geradores de responsabilidade civil extracontratual, tendo incumprido diversos deveres conjugais e violado os direitos de personalidade da Autora, tanto no Reino Unido como em Portugal.
H. Estamos perante um litígio plurilocalizado e transnacional, com elementos de conexão às ordens jurídicas inglesa e portuguesa, não tendo a sentença analisado criticamente as provas nem tirado as ilações decorrentes dos factos instrumentais que resultaram da instrução da causa, com vista à atribuição do poder de julgar aos tribunais portugueses, não tendo compatibilizado toda a matéria de facto adquirida nem extraído dos factos apurados as presunções impostas pela lei ou por regras de experiência.
I. Os tribunais são competentes internacionalmente quando se verifique algum dos elementos de conexão referidos nos artigos 62.º e 63.º do CPC, podendo ocorrer competência internacional concorrente.
J. Na situação trazida ao julgamento do tribunal nacional, estamos perante uma causa de pedir complexa, alicerçada em alegação fáctica dos pressupostos da responsabilidade civil (facto, ilicitude, culpa, dano e nexo causal entre o facto e o dano), os quais, como é sabido, podem não se reduzir a um simples facto material com precisa e única localização espácio-temporal.
K. A decisão recorrida concluiu pela incompetência absoluta do tribunal português, assentando que tal pressuposto processual deve ser analisado “em função dos contornos da pretensão deduzida tal como se encontre configurada na petição inicial, não dependendo da prova de qualquer dos factos alegados”, tendo julgado não se encontrar verificado nenhum dos fatores de conexão de atribuição de competência internacional a que aludem as alíneas a), b) e c) do artigo 62.º do CPC.
L. Contudo, não cuidou de apurar o local da materialização dos danos causados.
M. Pese embora não esteja em equação a aplicação do direito comunitário, justifica-se o auxílio dos ensinamentos provindos do Tribunal de Justiça da União Europeia, em contextos litigiosos análogos, no que se refere à temática da competência dos tribunais nacionais em caso de invocação de danos e do local da sua materialização, sendo certo que, de acordo com a jurisprudência firmada pelo TJUE, o conceito de “lugar onde ocorreu ou poderá ocorrer o facto danoso”, contido no artigo 7.º, n.º 2 do Regulamento n.º 1215/2012, refere-se simultaneamente ao lugar da materialização do dano e ao lugar do eventual causal que está na origem desse dano, de modo que o requerido pode ser demandado, à escolha do requerente, perante o tribunal ou outro destes lugares.
N. Estamos cientes das dúvidas na identificação do lugar da materialização do dano nas situações em que os efeitos da atuação ilícita se perpetuam no tempo e no espaço; contudo, e apesar de parte dos factos violadores dos deveres conjugais e ofensivos dos direitos de personalidade da Autora terem sido praticados no estrangeiro, os factos instrumentais que resultaram da instrução do processo, caso se mostrassem analisados, conduziriam à conclusão de que entre as ações violadoras de direitos perpetradas pelo Réu e o Estado Português existe um elemento de conexão suficientemente forte e que permitiria que, no eventual confronto com outros ordenados jurídicos e jurisdições nacionais, fossem os Tribunais portugueses aqueles que se encontram em melhor posição para avaliar e decidir da gravidade e extensão da violação dos direitos da Autora.
O. Nos termos do artigo 5.º, n.º 2, alínea a) do CPC, são considerados pelo juiz na sentença os factos instrumentais que resultem da instrução da causa.
P. Ao olvidar os factos instrumentais, a sentença é nula por falta de fundamentação, sendo certo que, na lógica do Código de Processo Civil de 2013, os factos instrumentais puramente probatórios não têm de ser alegados pelas partes, cabendo a estas apenas alegar os factos essenciais.
Q. Além disso, uma vez que a pertinência da prova dos factos instrumentais dilui-se e é absorvida na apreciação da prova dos factos principais, e atendendo a que resultou provado que “30. Os comportamentos do Réu causaram à Autora um profundo desgaste e desequilíbrio emocional, além da imensa mágoa que sente em ver que o seu casamento fracassou em absoluto. 31. A Autora sentiu dores físicas, medo, vergonha e dificuldades em dormir. 32. Sentiu-se ofendida na sua honra e dignidade, humilhada e rebaixada. 33. Perdeu a sua autoestima, autoconfiança e sentiu-se envergonhada e desconsiderada.”, a sentença é igualmente nula por ambiguidade, obscuridade e ininteligibilidade.
R. Porquanto, considerar que aqueles factos não foram praticados em Portugal, quando estamos perante um facto continuado, um comportamento que se verificava indistinta e independentemente do lugar onde o ex-casal se encontrasse, e que gerou um dano continuado, leva-nos a crer que ocorre contradição entre os fundamentos e a decisão, geradora de nulidade, o que expressamente se invoca.
S. Além disso, ocorre contradição entre o despacho saneador, proferido a 28/01/2020 e transitado em julgado, e a sentença de que se recorre, visto que os contornos da pretensão deduzida tal como se encontrava configurada na petição inicial já existiam tal quale na fase de saneamento; contudo, em julgamento, o Tribunal a quo não inquiriu as partes e as testemunhas apenas com o intuito de aferir a sua competência internacional, nem consignou tal intenção em nenhum despacho, nem tão pouco na sentença.
T. Pelo contrário, a audiência de julgamento realizou-se ao longo de três sessões, tendo Autora e Réu prestado declarações de parte a toda a matéria e tendo sido inquiridas seis testemunhas, duas delas por Webex, também a toda a matéria!
U. Não se compreende como se coaduna a realização completa da audiência de julgamento, com declarações de parte e inquirição de todas as testemunhas relativamente a toda a matéria, e a prolação de decisão sobre a incompetência internacional do tribunal, com os princípios da economia processual, da prevalência da substância sobre a forma, da boa organização da justiça e da organização útil do processo.
V. A negação da competência internacional, indiciada a partir de fatores de conexão territorial de carácter interno, só se justifica quando a sua atribuição aos tribunais portugueses configure um forum non conveniens e, simultaneamente, exista tribunal estrangeiro melhor colocado para julgar o litígio e que não decline a sua jurisdição, o que não foi analisado pela sentença recorrida.
W. O Supremo Tribunal de Justiça também tem vindo a pronunciar-se no sentido de que “sendo o dano um dos elementos essenciais da causa de pedir nas ações de responsabilidade extracontratual, não se pode deixar de admitir que o local onde este se verificou possa conferir competência aos tribunais portugueses para decidirem as ações em que o dano aconteceu em Portugal, uma vez que as provas desse importante elemento da causa de pedir se localizarão em território português, sem prejuízo dessa competência também poder ser determinada pela localização de outros elementos relevantes da causa de pedir.”
X. A sentença é ainda nula por omissão de pronúncia, não tendo considerado a alegação da Autora, em sede de resposta às exceções, no que respeita à sua dificuldade no domínio da língua inglesa, o que configura denegação de justiça.
Y. A decisão proferida revela-se ainda desconforme à Constituição, designadamente aos princípios vertidos no seu artigo 20.º, n.º 1 e 4: direito ao processo justo e equitativo e direito à tutela jurisdicional efetiva, os quais consagram e impõem a prevalência da justiça material sobre a justiça formal, isto é, sobre uma pretensa justiça que, sobre a capa de “requisitos processuais” se manifeste numa decisão que, afinal, não consubstancie mais que uma simples denegação de justiça.
Z. A sentença recorrida olvidou ainda o privilégio da nacionalidade, tendo colocado a Autora na posição absurda de escolher entre desistir da pretensão e ver o seu direito coartado pelos tribunais do seu país, ou propor nova ação no Reino Unido, cuja sentença será ineficaz e inexequível se não for revista e confirmada (numa terceira ação).
AA. A decisão recorrida violou ainda, conforme já aflorado, o princípio do processo equitativo, na dimensão de “justo processo”, porquanto o Tribunal a quo incumpriu o dever de efetuar exame criterioso e diligente das pretensões, argumentos e provas apresentados pelas partes.
BB. O Tribunal a quo afastou a aplicação da alínea a) do artigo 62.º do CPC, olvidando os factos praticados em Portugal e os danos materializados em Portugal.
CC. O Tribunal a quo afastou a aplicação da alínea b) do artigo 62.º do CPC, referindo que o alegado pela Autora relativamente às “diversas infidelidades” e aos “episódios de alcoolismo e insultos constantes” não configura factualidade, tendo feito tábua-rasa de, pelo menos, 12 (doze) temas da prova. (!)
DD. Mais, apesar de, na ótica do Tribunal a quo, ser “(…) indiferente que não tenham resultado provados factos ocorridos na Ilha da Madeira, uma vez que não foram alegados quaisquer factos ocorridos na Ilha da Madeira ou em Portugal”, a verdade é que, não só foram alegados e levados aos temas da prova, conforme supra, como resultaram provados, designadamente nos pontos 30. a 33. da matéria de facto, já transcritos.
EE. É bom de ver que os sobreditos danos, que integram os factos essenciais na ação de responsabilidade civil extracontratual, foram alegados e provados, tendo sido em Portugal que se materializaram. É em Portugal que a Autora tem a sua família e amigos, é em Portugal que sente vergonha pelo fracasso do seu casamento (celebrado e dissolvido em Portugal), é em Portugal que tem o seu património e a sua ligação cultural e afetiva.
FF. Mas, como se não bastasse, o tribunal português também é internacionalmente competente ao abrigo do disposto na alínea c) do artigo 62.º do CPC.
GG. Não só a Autora alegou que conhece a língua inglesa no limite mínimo da sobrevivência, e que não sabe ler nem escrever além da linguagem básica elementar de espaço e tempo, como, de resto, , é do conhecimento comum que o acesso ao direito e aos tribunais no Reino Unido é manifestamente dispendioso, não estando ao alcance da capacidade financeira de grande parte da população, designadamente da classe média (na qual a Autora nem sequer se integra, visto ser prestadora de serviços domésticos).
HH. Os factos que são do conhecimento geral são, na aceção legal, factos notórios que não carecem de prova nem de alegação, nos termos do disposto no artigo 412.º, n.º 1 do CPC, sendo certo que sobre o Tribunal a quo incumbia ainda o especial dever de ter conhecimento deste facto em virtude do exercício das suas funções.
II. O Tribunal a quo incumpriu ainda os poderes-deveres de gestão processual e de adequação formal, pois não convidou a Autora a suprir as eventuais insuficiências ou imprecisões na exposição da matéria de facto, designadamente quanto aos factos (e/ou danos) ocorridos (e/ou materializados) em Portugal.
JJ. Além disso, realizou três sessões de julgamento, com produção integral de prova, declarações de parte, inquirição de testemunhas, para, simplesmente, aferir a competência internacional “em função dos contornos da pretensão tal como se encontre configurada na petição inicial, não dependendo da prova de qualquer dos factos alegados”. (!)
KK. Donde, resta concluir que a decisão de que se recorre padece de erro de interpretação da matéria de facto alegada e julgada provada e da respetiva subsunção jurídica, tendo incorrido em erro de julgamento.
LL. A Recorrente impugna os pontos 7 e 35 da matéria de facto julgada provada, por entender que a resposta a dar às questões em referência deveria ter sido a seguinte:
7. Na pendência do casamento, o Réu chamava várias vezes a Autora de “cabra” e “puta” e dizia que a mesma tinha amantes, tanto no Reino Unido como em Portugal.
35. Na pendência do casamento, o Réu pintou o apartamento onde residia com a Autora na Região Autónoma da Madeira, colocando candeeiros e polibans.
MM. Os meios probatórios que impunham decisão diversa da proferida são: i) o depoimento das testemunhas LT e NR; 86; ii) as declarações de parte da Recorrente PR; iii) as fotografias juntas pelo Réu à sua contestação; iv) o documento junto pela Recorrente na sua resposta às exceções.
Pede assim que seja dado provimento ao recurso, julgando-se procedentes as invocadas nulidades da sentença e, em todo o caso, revogada a sentença, substituindo-a por outra que julgue o tribunal português internacionalmente competente e que subsuma o Direito aos factos, julgando procedente a ação e condenando o R. no pagamento da indemnização devida à A..
O R. respondeu ao recurso, sobrelevando das contra-alegações que apresentou as seguintes conclusões:
A) A causa de pedir e pedido foram fixadas na P.I., onde resulta expresso que as partes estabeleceram a sua morada de casa de família no estrangeiro, em …, London, … Reino Unido e aqui residiam habitualmente, ou seja, era este o domicílio comum e a sua residência habitual, e ainda que os factos terão ocorridos todos no estrangeiro onde centrava-se a vivência do casal.
B) Assim, nos termos dos artigos 59º a 71º, todos do CPC, o Tribunal Português não é o competente para decidir sobre esta ação de indemnização, devendo ser atribuída ao Reino Unido e não a Portugal, local onde, alegadamente, ocorreram os factos (71º/2 do CPC).
C) Tendo procedido a exceção absoluta de incompetência internacional era, assim, desnecessário ao Tribunal elencar a matéria dada como provada e não provada.
D) Inexiste qualquer nulidade da sentença recorrida, sendo que a recorrente discorda, no essencial, da convicção do julgador, esta insindicável, e que, no caso até foi formada com base na análise crítica das declarações de parte, depoimentos e documentos.
E) Ao contrário do propugnado pela Recorrente, resultou claramente do julgamento que as testemunhas, e a própria Autora, reportam-se somente a episódios alegadamente ocorridos no estrangeiro.
F) Da sentença ressalta um problema patente ao longo da P.I., designadamente com a imputação ao Réu de um sem número de expressões conclusivas e esvaziadas de concretos factos (cfr. a título de exemplo - artigos 26º, 32º, 33º, 56., 57º) e que acabam por perpassar para o despacho saneador.
G) Não obstante o primor e acerto jurídico da douta sentença recorrida, existe apenas uma parte que o ora Réu/Recorrido entende que deve ser objeto da sindicância deste Venerando Tribunal, abaixo melhor explicado, e que contraria a intenção da Recorrente em ver alterada a matéria de facto dada como provada e não provada.
H) Os factos dados como provados fundaram-se essencialmente nos depoimentos de parte da Autora e do Réu, muito embora não tenha efetuado qualquer assentada, bem como dos depoimentos de todas as testemunhas ouvidas em sede de audiência de discussão e julgamento.
I) Para além da testemunha arrolada pelo Réu, AR, que mora no estrangeiro na zona onde as partes trabalham e residem, nenhuma das demais testemunhas era sabedora dos factos de forma direta, mas apenas reproduziram o que “ouviram dizer” por parte da Autora e Réu.
J) Por outro lado, os factos dados como provados pelo Tribunal elencados supra de 6 a 34, resultam exclusivamente das declarações de parte da Autora, interessada nos autos, sendo certo que não foram corroboradas, por prova testemunhal direta, até porque passaram-se alegadamente no estrangeiro, e na residência do casal, tendo como única testemunha, o filho do casal, que não foi, sequer, indicado como testemunha.
K) As declarações de parte que não constituam confissão só devem ser valoradas, favoravelmente à parte que as produziu, se obtiverem suficiente confirmação noutros meios de prova produzidos e/ou constantes dos autos.
L) Resulta assim, que os demais meios de prova existentes nos autos, ou são as testemunhas com recurso a depoimento indireto, ou seja, que apenas “ouviram dizer da própria Autora” algumas situações, ou são dois documentos (Relatórios das autoridades policiais em Londres docs. 4.1 e 4.2), e que terão sido desencadeados, por uma vez a solicitação do próprio Réu e, por outra vez, a solicitação dos vizinhos face à existência de discussões na residência do casal.
M) No que ao depoimento das testemunhas se refere os mesmos só terão relevância, se os factos relatados tiverem sido por elas presenciados, quando, o que se sabe, é que lhes terão sido transmitidos pela Autora, interessada no desfecho dos autos
N) Já dos indicados relatórios policiais resulta apenas o que a interessada Autora relatou determinada situação aos agentes, mas também resulta que os agentes não observaram quaisquer lesões na Autora (cfr. relatório de ocorrência de 31/01/2009).
O) Razão pela qual, as declarações de parte da Autora nunca deveriam ter sido utilizadas para prova dos factos elencados supra de 6º a 34º, como também os documentos supra referidos nunca deveriam ter sido utilizados também para formação da convicção do Tribunal, designadamente quanto aos provados de 15 a 18.
Pede assim que seja negado provimento ao recurso interposto.
O Tribunal a quo, ao admitir o recurso, pronunciando-se sobre as apontadas nulidades da sentença recorrida, deixou consignado o seguinte:
«Não se conformando com a sentença proferida em 22 de Fevereiro de 2022 (cfr. referência citius nº 53140935), veio a Autora, apresentar recurso, tendo por objeto a reapreciação de prova e alegando as nulidades de falta de fundamentação, ambiguidade e omissão de pronúncia.
«Cumpre apreciar e decidir.
«Dispõe o n.º 1 do art.º 641.º do Código de Processo Civil, que “findos os prazos concedidos às partes, o juiz aprecia os requerimentos apresentados, pronuncia-se sobre as nulidades arguidas e os pedidos de reforma, ordenando a subida do recurso, se a tal nada obstar.”
«Cumpre assim, e antes de mais, apreciar as nulidades arguidas pela recorrente.
Foi devidamente fundamentado o motivo pelo qual o Tribunal julgou procedente a exceção de incompetência internacional, considerando-se que os factos alegadamente ocorridos na Ilha da Madeira consubstanciariam factos essenciais e não instrumentais, não tendo esses factos sido alegados, mas sim alegadas conclusões e conceitos.
«Alegou a Autora, no mais, que o Tribunal a quo não inquiriu as partes e as testemunhas apenas com o intuito de aferir a sua competência internacional, nem consignou tal intenção em nenhum despacho, nem na sentença proferida.
«O despacho saneador relegou a decisão relativa à incompetência internacional para final.
«Por esse motivo sempre caberia ao Tribunal, independentemente de apenas ter contatado com o processo em fase posterior, produzir a prova arrolada e admitida e decidir das questões relegadas para final.
«Não conhecer da incompetência internacional invocada pelo Réu é que consubstanciaria uma omissão de pronúncia.
«Tudo o demais, relativamente às alegações genéricas e conclusivas, já se encontra fundamentado em sede de sentença, motivo pelo qual o Tribunal entende que não se verificam as nulidades alegadas no recurso».
Cumpre ainda referir que o relator, por despacho de 27/6/2023 (Ref.ª n.º 20203723 - p.e.), advertindo as partes para a possibilidade do Tribunal da Relação poder conhecer do mérito da causa, em substituição do tribunal recorrido, nos termos do Art.º 665.º n.º 2 do C.P.C., e com vista a prevenir a prolação de decisão-surpresa, determinou a audição das partes, nos termos do n.º 3 do Art. 665.º do C.P.C., com vista a pronunciarem-se sobre essa eventualidade.
Apenas o Recorrido veio exercer esse direito, apresentando as seguintes conclusões:
A) A possibilidade do Tribunal da Relação decidir do mérito da causa pode configurar, para o Recorrido, uma inadmissível impossibilidade de recurso para o STJ, face à alçada deste último, e ainda ao valor da ação, sendo que tal situação deverá ser acautelada, na medida em que, se o Tribunal da Relação decide em substituição da primeira instância, deverá o Recorrido, querendo, recorrer de tal decisão para o STJ, pois este corresponderá à “segunda instância” e a decisão da Relação sobre o mérito corresponderá a uma decisão de “primeira instância”.
B) A não ser entendido deste modo, tal configura uma violação das garantias de defesa do Recorrido, na sua dimensão de direito ao recurso previsto no artigo 32º da CRP conforme tem sido afirmado repetidamente pelo Tribunal Constitucional, inconstitucionalidade o que ora se invoca para os devidos efeitos legais.
C) As contra-alegações do Recorrido não consubstanciam uma mera adesão à sentença recorrida, sendo que na alínea C) realça-se a circunstância dos factos dados como provados pelo Tribunal terem como fundamento apenas os depoimentos de parte da Autora e do Réu, muito embora não tenha efetuado qualquer assentada, bem como dos depoimentos de todas as testemunhas ouvidas em sede de audiência de discussão e julgamento.
D) À exceção da testemunha arrolada pelo Réu, AR, que mora no estrangeiro na mesma zona onde as partes trabalham e residem, nenhuma das demais testemunhas era sabedora dos factos de forma direta, mas apenas reproduziram o que “ouviram dizer” por parte da Autora e Réu.
E) E grande parte dos episódios indicados na P.I. (cfr. artigos 1º a 50º) remontam há mais de vinte anos (data do nascimento do filho do casal) e até finais do ano de 2015, sendo que a ação foi instaurada a 08/04/2019, pelo que já estariam prescritos conforme alegado na contestação, e a alegação dos artigos 51º e seguintes da P.I. refere-se ao abandono do lar conjugal pelo Réu em início de 2018, bem como a uma série de menções e epítetos conclusivos, logo, esvaziadas de quaisquer factos, e que a Autora endereçou ao Réu.
F) Os factos dados como provados pelo Tribunal elencados de 6 a 34, resultam exclusivamente das declarações de parte da Autora, interessada nos autos, sendo certo que não foram corroboradas, por prova testemunhal direta, até porque os factos terão decorrido no estrangeiro.
G) Reitera-se que as declarações de parte que não constituam confissão só devem ser valoradas, favoravelmente à parte que as produziu, se obtiverem suficiente confirmação noutros meios de prova produzidos e/ou constantes dos autos.
H) Ademais há que realçar que a Autora, apenas foi ouvida na terceira sessão de julgamento, recusando ser interrogada diretamente pelo Advogado do Réu, e isto já após a produção de toda a prova e do Réu ter sido ouvido diretamente pelo juiz e pelos advogados de ambas as partes.
I) Resulta assim que os demais meio de prova existentes nos autos, ou são as testemunhas com recurso a depoimento indireto, ou seja, que apenas “ouviram dizer da própria Autora” algumas situações, ou são dois documentos (Relatórios das autoridades policiais em Londres docs. 4.1 e 4.2), e que terão sido desencadeados, por uma vez a solicitação do próprio Réu e, por outra vez, a solicitação dos vizinhos face à existência de discussões na residência do casal.
J) Ora, no que ao depoimento das testemunhas se refere, os mesmos só terão relevância, se os factos relatados, tiverem sido por eles presenciados, quando, o que se sabe, é que lhes terão sido transmitidos pela Autora, interessada no desfecho dos autos.
K) Já no que se refere aos indicados relatórios policiais deles resulta apenas o que a interessada Autora relatou determinada situação aos agentes, mas também resulta que os agentes não observaram quaisquer lesões na Autora (cfr. relatório de ocorrência de 31/01/2009).
L) No entanto, sem prescindir, sempre se dirá que tais documentos não deverão ser levados em linha de conta pelo Tribunal, até porque já tinha sido requerido o seu desentranhamento pelo Réu a 07/12/2021, uma vez que tais documentos juntos e respetiva tradução, deveriam ter sido juntos com o articulado respetivo, e também foi efetuada a sua impugnação na contestação, nos termos do artigo 444º e seguintes do CPC, ora por falsidade da letra e assinatura, ora por tal documento constituir mera cópia de documento, e desprovido, na sua maior parte, de qualquer assinatura, motivo pelo qual foi impugnado o seu teor e exatidão nos termos do artigo 368º do Código Civil.
M) Ademais, naquela mesma data foi também invocado que a segunda tradução junta aos autos reproduzia na íntegra a primeira tradução anteriormente junta pela mandatária, o que levanta sérias dúvidas sobre a sua fidedignidade, pois que é humanamente impossível que duas traduções, feitas por dois tradutores distintos, e em momentos distintos (2018 e 2020), um ligado à parte, e outra que se desconhece, mas conhecida da parte, sejam efetuadas de forma exatamente igual, quanto à perceção dos aspetos técnicos do documento e quanto à configuração do mesmo.
N) Já então realçava-se que era por demais evidente a ocorrência de um mero decalque entre uma e outra tradução, o que não era admissível, e não afastava as suas faltas de credibilidade e isenção que deveria de existir, impugnando-se novamente o teor da “nova” tradução, verificando-se apenas que na primeira tradução constava apenas, na tradução e documento traduzido, a rubrica da mandatária/tradutora, e, na “segunda tradução” junta, constavam apenas a rubrica da tradutora e da Sra. Solicitadora que certificou a tradução.
O) Nesta sequência, face às ostensivas dúvidas sobre a idoneidade da segunda tradução junta, foi requerida pelo Réu a junção aos autos do original do documento, cumprindo-se o disposto no artigo 134º/2 do CPC, e ordenando-se à apresentante que juntasse a tradução feita por notário, ou autenticada por funcionário diplomático ou consular do Estado respetivo.
P) Após o requerido foi a Autora notificada de despacho de 09/03/2021, para juntar os respetivos originais dos aludidos documentos, o que nunca veio a fazer.
Q) Razão pela qual, as declarações de parte da Autora nunca deveriam ter sido utilizadas para prova dos factos elencados supra de 6º a 34º, como também os documentos supra referidos nunca deveriam ter sido utilizados também para formação da convicção do Tribunal, designadamente quanto aos provados de 15 a 18.
R) Por outro lado, ocorreu uma inadmissível inversão da produção da prova, tendo sido ordenada primeiramente a inquirição do Réu e das testemunhas por ele indicadas e só depois foram ouvidas as testemunhas da Autora e no final ela própria, com violação clara do artigo 512º do CPC, nulidade que se invoca para os devidos efeitos legais.
Renova assim a sua pretensão de ser negado provimento ao recurso interposto.
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II- QUESTÕES A DECIDIR
Nos termos dos Art.s 635º, n.º 4 e 639º, n.º 1 do C.P.C., as conclusões delimitam a esfera de atuação do tribunal ad quem, exercendo uma função semelhante à do pedido na petição inicial (vide: Abrantes Geraldes in “Recursos no Novo Código de Processo Civil”, Almedina, 2017, pág. 105 a 106). Esta limitação objetiva da atuação do Tribunal da Relação não ocorre em sede da qualificação jurídica dos factos ou relativamente a questões de conhecimento oficioso, desde que o processo contenha os elementos suficientes a tal conhecimento (cfr. Art. 5º n.º 3 do Código de Processo Civil). Também não pode este Tribunal conhecer de questões novas que não tenham sido anteriormente apreciadas porquanto, por natureza, os recursos destinam-se apenas a reapreciar decisões proferidas (Vide: Abrantes Geraldes, Ob. Loc. Cit., pág. 107).
Assim, em termos sucintos, as questões a decidir são essencialmente as seguintes:
A) As nulidades da sentença;
B) A impugnação da matéria de facto;
C) A incompetência internacional (considerando que, em parte, a apreciação desta exceção ficou dependente do apuramento da matéria de facto provada);
D) A possibilidade de o Tribunal da Relação poder apreciar o mérito da causa em substituição do tribunal Recorrido e sua constitucionalidade; e
E) A responsabilidade civil do R. por danos causados ao cônjuge na pendência do casamento.
Corridos que se mostram os vistos, cumpre decidir.
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III- FUNDAMENTAÇÃO DE FACTO
A sentença sob recurso julgou por provada a seguinte factualidade:
1- A A. e o R. contraíram casamento católico em 12 de Julho de 1995, sem convenção antenupcial, aplicando-se o regime da comunhão de adquiridos.
2- Na constância do casamento nasceu, a 13 de Julho de 2000, BA.
3- Após o casamento, fixaram a sua morada …, London … Reino Unido.
4- O R. pagava a renda de casa.
5- O filho do casal nasceu no Reino Unido.
6- No dia de regresso a casa do hospital, sito no Reino Unido, após o parto, o R. foi buscar a A. à tarde e encontrava-se alcoolizado.
7- Na pendência do casamento, quando chegava a casa após o trabalho, no Reino Unido, o R. chamava várias vezes a A. de “cabra” e “puta” e dizia que a mesma tinha amantes.
8- Na pendência do casamento, o R. saiu de casa, abandonando a residência em comum e separando-se da A..
9- No dia seguinte a A. dirigiu-se ao banco e verificou que já há cerca de um mês, o R. havia retirado mais de metade do dinheiro das contas bancárias que tinham em comum.
10- No primeiro aniversário do filho de ambos, o R. não esteve presente, nem veio ver o filho à pequena festa que ocorreu no Reino Unido e que a A. preparou e convidou o R. a estar presente.
11- Em data não concretamente apurada, o filho de A. e R. ficou doente, tendo ficado hospitalizado cerca de 3 dias, no Reino Unido, sem que o R. tivesse alguma vez ido visitar o filho ou prestado qualquer tipo de apoio ou assistência.
12- Em data não concretamente apurada, o R. pediu à A. para voltar para casa, alegando estar arrependido.
13- A A. aceitou o R. de volta.
14- Nos primeiros meses de reconciliação a vida do casal correu bem.
15- No dia 30 de Janeiro de 2009, na casa da A. e do R., situada no Reino Unido, o R. desferiu um murro nas costas da A., enquanto a mesma preparava o jantar na cozinha, na presença do filho de ambos.
16- O próprio R. acabou por ligar para a polícia, tendo a A. pegado no telefone e relatado o que se tinha passado.
17- Passados alguns minutos a polícia chegou a casa do casal e acabou por levar o R. para a esquadra onde ali pernoitou.
18- No dia seguinte à detenção, o R. voltou para casa mais calmo, mas sem dirigir sequer a palavra ao próprio filho.
19- Em data não concretamente apurada, no interior da residência da A. e R., sita no Reino Unido, o Réu atirou cum garrafão de 5L de água contra o chão da cozinha.
20- No dia 24 de dezembro de 2015, quando chegou a casa, sita no Reino Unido, o R. começou a dar murros nas portas e nos armários de casa.
21- Os vizinhos chamaram a polícia, tendo-se deslocado à casa da A. e do R. vários agentes da polícia.
22- A polícia levou o R. para a esquadra onde ali passou a noite.
23- Nessa noite, de 24 para 25 de dezembro de 2015, a A. foi contactada pela Polícia no sentido de saber se a mesma pretendia apresentar queixa.
24- A A. não apresentou queixa.
25- O R. acordava propositadamente a A. quando chegava a altas horas da noite a casa, sita no Reino Unido, para que a A. não pudesse descansar.
26- Em data não concretamente apura, mas situada no final do ano de 2017, o R. informou a A. e o filho que já não gostava mais desta e que tinha iria refazer a sua vida.
27- A 18 de janeiro de 2018, o R. saiu de casa.
28- Em Maio de 2018, a A. intentou ação de divórcio sem consentimento do outro cônjuge, que deu origem ao processo n.º 2644/18.5T8FNC.
29- A A. e o R. encontram-se atualmente divorciados.
30- Os comportamentos do R. causaram à A. um profundo desgaste e desequilíbrio emocional, além da imensa mágoa que sente em ver que o seu casamento fracassou em absoluto.
31- A A. sentiu dores físicas, medo, vergonha e dificuldades em dormir.
32- Sentiu-se ofendida na sua honra e dignidade, humilhada e rebaixada.
33- Perdeu a sua autoestima, autoconfiança e sentiu-se envergonhada e desconsiderada.
34- A A. tinha vergonha sempre que se cruzava com os seus vizinhos do prédio e os mesmos a olhavam com pena, sabendo que estes ouviam os gritos e palavras do R..
35- Na pendência do casamento o R. pintou o apartamento onde residia com a A., colocando candeeiros e polibans.
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Foram julgados por não provados os seguintes factos:
A) O R. sempre levou uma vida boémia, não dando qualquer assistência familiar, à A. e ao filho.
B) Quando a A. chegou finalmente a casa com o filho recém-nascido, necessitando de adquirir produtos de higiene pós-natal, ausentou-se para ir à farmácia e o R. já a começou a insultar por ter demorado na ida à farmácia.
C) A A. teve ainda que voltar a sair de casa com o filho nos braços para comprar leite e pão, uma vez que na chegada a casa nada havia para a A. se alimentar.
D) A A., em dia que não consegue determinar, telefonou ao R. para ir pôr o filho de ambos, ainda bebé, à ama, e este nunca atendeu o telefone.
E) O R. escreveu cartas à A. onde ameaçava que se matava caso a A. não o aceitasse.
F) O R. gastava todo o dinheiro que tinha nos bares, com amigos e noutras relações amorosas extraconjugais.
G) O R. nunca contribuiu para a educação do filho de ambos e nunca comprou comida.
H) O R. nunca proveu pelo sustento do seu agregado familiar.
I) O R. pagava as despesas da casa, designadamente com água, luz e T.V. cabo.
J) O R. pagava as despesas médicas e medicamentosas do agregado familiar.
K) Quando a A. estava com o R. em casa não podia falar com os seus pais pelo telefone porque era maltratada e ameaçada.
L) O R. forçou a A. a manter com ele relações sexuais.
M) O R. isentou-se de todas as responsabilidades inerentes à vida conjugal e familiar, nunca tendo prestado auxílio à A. e filho.
N) O R. raramente se sentava com a sua família a tomar as refeições.
O) Nos últimos anos de casamento, o casal já não tinha relações sexuais.
P) A A. perdeu a vontade de conviver com os seus familiares e amigos, mesmo por telefone, tendo-se se isolado e perdido as suas relações sociais por temer que o R. a maltratasse em público ou em virtude de desconfianças de relações extraconjugais.
Q) A A. reduziu imenso a sua produtividade no trabalho, porque além do R. não a deixar dormir, a mesma estava sempre devastada, exausta e aterrorizada.
Tudo visto, cumpre apreciar.
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IV- FUNDAMENTAÇÃO DE DIREITO
Estabelecidas que estão as questões de que cumpre tomar conhecimento, iremos então apreciar as mesmas pela sua ordem de precedência lógica, começando pelas alegadas nulidades da sentença recorrida.

1. Das nulidades da sentença recorrida.
A Recorrente veio pôr em causa a validade da sentença recorrida, por alegada violação das al.s b), c) e d) do n.º 1 do Art.º 615.º do C.P.C..
Cumpre então apreciar cada uma das situações concretamente invocadas pela Recorrente.

1.1. Da falta de fundamentação.
No que se refere à falta de fundamentação, veio sustentar que o julgador não analisou criticamente as provas, não apreciou os factos instrumentais, nem deles tirou ilações, não compatibilizando toda a matéria adquirida, nem extraiu dos factos apurados as presunções impostas pela lei e pelas regras da experiência comum.
Muito em particular, considera que da prova produzida em julgamento resultou provada à saciedade que o R. praticou factos ilícitos geradores da responsabilidade civil aqui pretendida fazer valer nesta ação, sendo que estamos perante um litígio plurilocalizado, com elementos de conexão com a ordem jurídica inglesa e portuguesa. Ora, o Tribunal não terá tido o cuidado de apurar o local onde se materializaram os danos causados, tal como é jurisprudência corrente no TJUE, sendo que também não teve em conta os factos instrumentais que resultaram da instrução da causa, resultando dos depoimentos testemunhais que comportamentos ilícitos houve que se verificaram na Região Autónoma da Madeira, onde ambos têm família, o seu património e as suas ligações afetivas e culturais.
Apreciando, ocorre que, de todo este esforço argumentativo, não se evidencia que a Recorrente invoque verdadeiramente qualquer vício que possa ser integrado na previsão da al. b) do n.º 1 do Art.º 615.º do C.P.C..
Efetivamente, nos termos desse preceito a sentença é nula quando não especifique os fundamentos de facto e de direito que justificam a decisão, tratando-se de um vício de natureza meramente formal de constatação muito objetiva.
Já Alberto dos Reis (in “Código de Processo Civil Anotado”, Vol. V, pág. 140) explicitava de forma muito clara a que se referia este vício. Dizia então, este insigne processualista, que: «Há que distinguir cuidadosamente a falta absoluta de motivação da motivação deficiente, medíocre ou errada. O que a lei considera nulidade é a falta absoluta de motivação; a insuficiência ou mediocridade da motivação é espécie diferente, afeta o valor doutrinal da sentença, sujeita-a ao risco de ser revogada ou alterada em recurso, mas não produz nulidade. / Por falta absoluta de motivação deve entender-se a ausência total de fundamentos de direito e de facto».
Este entendimento sobre o sentido objetivo deste vício vem sendo repetido, de forma consistente, pela jurisprudência dos tribunais superiores, desde há longa data, e pela doutrina que sobre este assunto se debruça (vide, por exemplo: Ac. do STJ de 19/10/2004, Relator: Oliveira Barros, acessível em www.dgsi.pt/jstj; Ac. do STJ de 2/6/2016, Relatora: Fernanda Isabel Pereira, Proc. n.º 781/11; Ac. do STJ de 28/5/2015, Relator: Granja da Fonseca, Proc. n.º 460/11; Ac. do STJ de 10/5/2016, Relator: João Camilo, Proc. n.º 852/13; Ac. d. TRC de 14/4/1993, Relator: Ruy Varela, in BMJ n.º 426, pág. 541; Ac. do TRP de 6/1/1994, relator: António Velho, in CJ Tomo - I, pág. 197; Ac. do TRE de 22/5/1997, relatora: Laura Leonardo, in CJ Tomo - II, pág. 266; Rodrigues Bastos in “Notas ao Código de Processo Civil”, Vol. III, Lebre de Freitas in “Código de Processo Civil  Anotado”, Vol. II, 2001, pág. 669 e Tomé Gomes in “Da Sentença Cível”, pág. 39).
Conforme se refere de forma lapidar no Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 26 de abril de 1995 (Relator: Raul Mateus, in CJ, Tomo II, 1995, pág. 58): «(...) no caso, no aresto em recurso, alinharam-se, de um lado, os fundamentos de facto, e, de outro lado, os fundamentos de direito, nos quais, e em conjunto se baseou a decisão. Isto é tão evidente que uma mera leitura, ainda que oblíqua, de tal acórdão logo mostra que assim é. Se bons, se maus esses fundamentos, isso é outra questão que nesta sede não tem qualquer espécie de relevância».
Em suma só a absoluta falta de fundamentação – e não a sua insuficiência, mediocridade, ou erroneidade – integra a previsão da alínea b) do nº 1 do Artigo 615º, cabendo o putativo desacerto da decisão no campo do erro de julgamento.
A não concordância da parte com a subsunção dos factos às normas jurídicas e/ou com a decisão sobre a matéria de facto de modo algum configuram causa de nulidade da sentença (cfr. Ac. do TRL de 17/5/2012, Relator: Gilberto Jorge, Proc. n.º 91/09, disponível em www.dgsi.pt).
Ora, o que a Recorrente faz, ao invocar a falta de fundamentação, é um exercício de inconformismo relativamente à sentença recorrida, quanto ao julgamento constante da qual expressa a sua frontal discordância, não aceitando que o Tribunal tenha feito desse modo uma apreciação crítica da prova, nem tirado ilações dos factos instrumentais, nem compatibilizando toda a matéria que apurou. Estamos, portanto, claramente no domínio da alegação de um “erro de julgamento”, que sai fora do âmbito de previsão da al. b) do n.º 1 do Art.º 615.º do C.P.C..
Nomeadamente, realçamos que, se há omissões na matéria de facto provada, competiria à Recorrente, antes de mais, fazer uso do meio processual adequado, que é a impugnação da decisão sobre a matéria de facto, cumprindo os ónus estabelecidos no Art.º 640.º n.º 1 e n.º 2 do C.P.C., sob pena de rejeição do recurso nessa parte. Sendo claro que, havendo matéria de facto provada e não provada, bem como decisão respeitante ao enquadramento jurídico dessa factualidade, não se verifica a nulidade apontada. Pelo que, improcedem as conclusões apresentadas que sustentam o contrário.

1.2. Da contradição, ambiguidade, obscuridade e ininteligibilidade.
A Recorrente sustenta, de seguida, a nulidade da sentença, por violação da al. c) do n.º 1 do Art.º 615.º do C.P.C., porque aí se julgaram provados os factos constantes dos pontos 30 a 33, que se reportam às consequências não patrimoniais dos comportamentos ilícitos praticados pelo R., sem ter em consideração que se tratam de danos continuados, que se verificam independentemente do lugar onde foi praticado o facto que os gerou, considerando que se verificaria aí uma contradição entre os fundamentos e a própria decisão, geradora de nulidade.
Por outro lado, defende ainda que haveria contradição entre o despacho saneador e o julgamento e sentença, pois no primeiro relegou-se para final a apreciação da exceção dilatória de incompetência, por não ter elementos de facto que pudessem sustentar o seu conhecimento, por se discutir se houveram factos praticados na Madeira, no entanto, na fase de julgamento não se inquiriu as partes e as testemunhas apenas com o intuito de aferir da competência internacional, mas sim, e também, sobre toda a matéria em discussão na ação.
Em suma, depois de fazer uma longa dissertação sobre a justificação da competência internacional do tribunal português para apreciar esta causa, parece que a Recorrente ficou principalmente chocada com o facto de depois de produzida a prova sobre o mérito da causa, o tribunal vir a declarar-se a incompetente em razão da nacionalidade. Ao que acresceria o risco de, com essa declaração, virem agora ocorrer decisões contraditórias, podendo o tribunal inglês vir a dar por não provados os factos aqui já dados por assentes, relembrando que nos sistemas de “Common Law” subordina-se a determinação do direito aplicável às regras da competência para julgar, concluindo assim que se verificam várias ambiguidades e obscuridades, que tornam a sentença ininteligível.
Apreciando, como o devido respeito, nenhum dos argumentos invocados preenche a previsão da al. c) do n.º 1 do Art.º 615.º do C.P.C., não sendo mais que um mero esforço para justificar o entendimento da Recorrente de que a decisão recorrida, de reconhecer a incompetência internacional, está incorreta, por não ser conforme ao direito aplicável. Pelo que, uma vez mais, estamos no domínio do alegado “erro de julgamento” e não do vício formal da sentença previsto no normativo invocado.
Efetivamente, a sentença seria nula se os seus fundamentos estiverem em oposição com a decisão, ou se ocorresse alguma ambiguidade ou obscuridade que tornasse a decisão ininteligível. Só que, de facto, não foi alegada qualquer contradição intrínseca entre os fundamentos e a decisão, no sentido de se verificar uma contradição lógica, nos termos da qual o julgador, no decurso da sentença, segue uma determinada linha de raciocínio, apontando para determinada conclusão e, em vez de a tirar, decide em sentido divergente (vide, a propósito: Ac. do STJ de 13/2/1997, Relator: Nascimento Costa, in BMJ n.º 464, pág. 524; Ac. do STJ de 22/6/1999, Relator: Ferreira Ramos, in CJ Tomo – II, pág. 160; e Ac. TRC de 11/1/1994, Relator: Cardoso Albuquerque, in BMJ n.º 433, pág. 633).
De facto, o que se passou foi apenas que o Tribunal a quo decidiu instruir o processo, em simultâneo, quer quanto aos factos relacionados com a exceção da incompetência absoluta, quer quanto aos factos constitutivos do direito invocado pela A., porquanto os mesmos estavam interligados entre si, por serem parcialmente coincidentes. Daí não decorre qualquer incoerência ou contradição, nem sequer qualquer expectativa legítima de que a causa irá ser definitivamente apreciada pelo tribunal do julgamento, precisamente, porque a questão da competência absoluta ainda estava em aberto, não era suscetível de ser sanada nos termos do Art.º 6.º n.º 2 do C.P.C. e era de apreciação necessariamente prévia ao conhecimento do mérito da causa, por se tratar duma exceção dilatória que obstava à possibilidade de conhecimento do direito pretendido fazer valer na ação (cfr. Art.ºs 278.º n.º 1 al. a), 279.º, 576.º n.º 1 e n.º 2, 577.º al. a) e 578.º do C.P.C.).
Sob o ponto de vista da clareza e inteligibilidade, a sentença recorrida, evidentemente que não padece de nenhum dos vícios previstos na al. c) do n.º 1 do Art. 615.º do C.P.C..
Como escrevia Alberto dos Reis (in “Código de Processo Civil Anotado”, Vol. V, pág. 151): «A sentença é obscura quando contém algum passo cujo sentido é ininteligível; é ambígua quando alguma passagem se preste a interpretações diferentes. Num caso não se sabe o que o juiz quis dizer; no outro hesita-se entre dois sentidos diferentes e porventura opostos. É evidente que, em última análise, a ambiguidade é uma forma especial de obscuridade. Se determinado passo da sentença é suscetível de duas interpretações diversas, não se sabe, ao certo, qual o pensamento do juiz».
Ora, nada disso se verifica no caso concreto. A sentença é internamente coerente, não se presta a interpretações divergentes, resultando de processo decisório que estava muito claro na tramitação dos autos e é conforme com a decisão que anteriormente havia sido proferida no despacho saneador. O que se passa é que a Recorrente não concorda com a decisão, e está no seu inteiro direito, mas daí não decorre que a sentença seja nula, com os fundamentos invocados agora em análise. Pelo que, só nos resta dizer que improcedem também nesta parte as conclusões que sustentam o contrário do exposto.

1.3. Da omissão de pronúncia.
A Recorrente insurge-se depois com o facto de na sentença se ter dito que «não foi alegada (nem se demonstrou) qualquer dificuldade da autora no domínio da língua inglesa». O que não seria verdade, porque na resposta à contestação a A. alegou que «A Autora e o Réu conhecem a língua inglesa no limite mínimo da sobrevivência, não sabendo ler nem escrever para além da linguagem básica elementar de espaço e tempo». Considera assim que ocorreu omissão de pronúncia quanto no ato decisório se deixa de decidir alguma das questões suscitadas pelas partes.
Apreciando, como devido respeito não se percebe esta alegação. O que o tribunal fez foi precisamente pronunciar-se sobre uma concreta questão suscitada pela A.. Pode tê-la apreciado incorretamente, segundo a alegação da A., mas apreciou-a efetivamente. Pelo que, não estamos claramente no domínio da previsão da alínea d) do n.º 1 do Art.º 615.º do C.P.C..
Caso a questão esteja colocada em termos de a matéria de facto provada ser omissa relativamente à factualidade alegada no artigo 23.º da resposta à contestação (cfr. fls. 48), o problema não é propriamente de omissão de pronúncia, mas de impugnação da matéria de facto, competindo à Recorrente cumprir os ónus de impugnação estabelecidos no Art.º 640.º n.º 1 e n.º 2 do C.P.C., sob pena de rejeição do recurso nessa parte, sem prejuízo dos poderes que assistem ao Tribunal da Relação de, eventualmente, poder oficiosamente determinar a ampliação da matéria de facto, nos termos do Art.º 662.º n.º 2 al. c) e n.º 3 al. c) do C.P.C..
Por todo o exposto, improcedem todas as conclusões em que se sustenta a pretensão de ver reconhecida a nulidade da sentença recorrida.

2. Da impugnação da matéria de facto.
A Recorrente pretende pôr em causa o julgamento da matéria de facto relativamente a factos dados provados em 7 e 35 da sentença recorrida, que considera terem sido objeto de julgamento incorreto, transcrevendo para o efeito vários segmentos de depoimentos testemunhais e de declarações de parte da A., bem como fotografias juntas com a contestação do R. e documento junto com a resposta à contestação, que, no seu entender, deveriam conduzir a decisão diversa, especificando a redação que cada um desses factos deveria ter.
O Recorrido, nas suas contra-alegações, veio expressar o entendimento de que foi feita prova que os alegados factos ilícitos imputados ao R. ocorreram no Reino Unido, pois os depoimentos testemunhais pretendidos relevar foram todos indiretos, embora sem fazer qualquer concretização dos mesmos, nem indicar concretas passagens donde isso pudesse resultar. Acrescentou ainda que as declarações de parte não poderiam ser relevadas para este efeito, porque provenientes de quem tinha interesse na causa, sendo que a única testemunha que conhecia diretamente os factos foi AR, que mora no Reino Unido e situou os comportamentos verificados nesse local. Por outro lado, chamou a atenção para o facto de os documentos juntos pela A. terem sido requeridos desentranhar pelo R., no requerimento de 7 de dezembro de 2021, e foram oportunamente impugnados, tendo a A. sido notificada para juntar aos autos os originais, o que nunca veio a ocorrer. Finalmente, expressou o entendimento de que as declarações de parte não poderiam ter sido utilizadas para a prova dos factos 6 a 34 e os documentos nunca deveriam ser utilizados para a formação da convicção do tribunal relativamente aos pontos 15 a 18.
Apreciando, temos de partir do disposto no Art.º 662º n.º 1 do C.P.C., que estabelece que a Relação deve alterar a decisão proferida sobre a matéria de facto, se os factos tidos por assentes, a prova produzida ou um documento superveniente, impuserem decisão diversa. No entanto, nos termos do Art.º 640º n.º 1 do C.P.C., quando seja impugnada a matéria de facto deve o recorrente especificar, sob pena de rejeição, os concretos factos que considera incorretamente julgados; os concretos meios probatórios constantes do processo ou de registo ou gravação nele realizada, que imponham decisão sobre os pontos da matéria de facto impugnados diversa da recorrida; e a decisão que, no seu entender, deve ser proferida sobre as questões de facto impugnadas. Nos termos do n.º 2 do mesmo preceito concretiza-se que, quanto aos meios probatórios invocados incumbe ao recorrente, sob pena de imediata rejeição, indicar com exatidão as passagens da gravação em que funda o recurso. Para o efeito poderá transcrever os excertos relevantes. Sendo que, ao Recorrido, por contraposição, caberá o ónus de designar os meios de prova que infirmem essas conclusões do recorrente, indicar as passagens da gravação em que se funda a sua defesa, podendo também transcrever os excertos que considere importantes, isto sem prejuízo dos poderes de investigação oficiosa do tribunal.
A lei impõe assim a quem recorre específicos ónus de impugnação da decisão de facto, sendo o mais importante dos quais o de fundamentar a discordância quanto à decisão de facto proferida, o qual implica a análise crítica da valoração da prova feita em primeira instância, tendo como ponto de partida a totalidade da prova produzida em primeira instância.
Mas não basta só isso.
De acordo com o Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 28/4/2016 (Relator: Abrantes Geraldes - disponível em www.dgsi.pt) deve falar-se aqui de um ónus multifacetado cujo cumprimento não é fácil, mas que tem diversas justificações, entre as quais:
«- A Relação é um Tribunal de 2.ª instância, a quem incumbe a reapreciação da decisão da matéria de facto proferida pela instância hierarquicamente inferior;
«- A Relação não procede a um segundo julgamento da matéria de facto, reapreciando apenas os pontos de facto enunciados pelos interessados;
«- O sistema não admite recurso genéricos contra a decisão da matéria de facto, cumprindo ao recorrente designar os pontos de facto que merecem uma resposta diversa e fazer a apreciação crítica dos meios de prova que determinam resultado diverso;
«- Importa que seja feito do sistema uso sério, de forma a evitar impugnações injustificadas e, com isso, os efeitos dilatórios que são potenciados pelo uso abusivo de instrumentos processuais».
No sumário do acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 20/11/2018 (Revista n.º 67/09.6TBVPA.P1.S1 - 7.ª Secção – Relator: Salazar Casanova – disponível no mesmo sítio: www.stj.pt) é dito, a este propósito, que: «II- A inobservância desse ónus leva a que o tribunal não possa deitar a adivinhar, calcular ou supor, a partir de uma impugnação insuficiente, o sentido a impugnação que o recorrente teria porventura em vista. Assim procedendo, o tribunal infringe o Art.º 685.º-B do C.P.C. (Art.º 640.º do NCPC (2013)), que dita um comando legal – ónus de impugnação –, que obriga o juiz ao seu escrupuloso respeito, não havendo lugar, nestes casos, à possibilidade de uma intervenção oficiosa subsidiária do tribunal».
A impugnação genérica e a manifestação do propósito de se fazer uma repetição completa do julgamento, sem especificação dos concretos segmentos de facto impugnados ou dos meios de prova que justificam a impugnação, é completamente contrária ao nosso sistema legal de recurso sobre a matéria de facto.
Ao exposto, acresce que o não cumprimento desses ónus de impugnação dos factos é insuscetível de despacho de aperfeiçoamento, por ser o recurso a este expediente processual restrito à matéria de direito e nunca à matéria de facto (Vide: Ac. S.T.J. de 13/9/2016 - Revista n.º 166472/13.7YIPRT.P1.S1 – Relator: Hélder Roque – disponível em sumário do S.T.J.; e Ac. S.T.J. de 18/6/2019 – Proc. n.º 152/18.3T87GRD.C1.S1 – Relator: José Rainho – disponível em www.dgsi.pt).
Conforme refere Abrantes Geraldes (in “Recursos no Novo Código de Processo Civil”, 4.ª Ed., pág. 153) o legislador recusou soluções que: «pudessem conduzir-nos a uma repetição de julgamentos, tal como foi rejeitada a admissibilidade de recursos genéricos contra a errada decisão da matéria de facto», o legislador optou por: «restringir a possibilidade de revisão de concretas questões de facto controvertidas relativamente às quais sejam manifestadas e concretizadas divergências por parte do recorrente» (idem, no mesmo sentido: Ac. do T.R.L. de 13/11/2001 in C.J. – Tomo V, pág. 84; e Ac. do T.R.P. de 19/9/2000 in C.J. – Tomo V, pág. 186).
Balizada em termos legais, doutrinários e jurisprudenciais a questão, verificamos que no caso concreto a Recorrente cumpriu, em grande parte, os ónus de impugnação, no que estritamente se refere aos pontos 7 e 35 dos factos provados, ressalvando-se o que adiante melhor se explicitará relativamente à impugnação do ponto 35. Já quanto ao Recorrido, caso fosse sua intenção impugnar os factos provados 6 a 34 – o que, diga-se, não é nada claro, até porque não foi expressa a sua intenção de ampliar o objeto do recurso – é evidente que não cumpriu o ónus de impugnação previstos na al.s b) e c) do n.º 1 e al. a) e b) do n.º 2 do Art. 640.º do C.P.C., o que é suficiente para dever ser rejeitada liminarmente qualquer hipotética pretensão de pôr em causa o julgamento da matéria de facto nos termos genéricos em que o fez.
Cumpre assim apreciar apenas a impugnação apresentada pela Recorrente, verificando cada um dos factos impugnados “per se”.

2.1 Do facto provado 7.
O que está em causa na impugnação do ponto 7 dos factos provados é que a sentença recorrida limita essa factualidade à sua ocorrência apenas no Reino Unido, pretendendo a A. que fique provado que esses factos também ocorreram em Portugal.
Para tanto transcreve segmentos de depoimentos das testemunhas LT (gravação aos minutos 52:39 a 1:03:23), NR (gravação aos minutos 25:48 a 30:41) e das declarações da A. (gravação aos minutos 53:15).
Esses depoimentos, cuja transcrição não foi sequer impugnada pelo Recorrido e cujas gravações tivemos oportunidade de ouvir, não traduzem depoimentos indiretos, tal como o Recorrido invocou, mas sim testemunhos diretos de concretas situações ocorridas em Portugal (na ilha da Madeira). Essas duas testemunhas, apesar de irmãs da A., disseram que presenciaram diretamente esses factos em Portugal, na ilha da Madeira, quando A. e R. vinham aí de férias, não havendo motivo para não acreditar na credibilidade desses depoimentos.
Por isso, não se percebe o motivo pelo qual o Tribunal apenas relevou as declarações de parte da A. relativamente aos episódios que ocorreram no Reino Unido (cfr. fls.123 verso), quando a A. disse que isso também se passou na Madeira. O que foi corroborado pelas testemunhas LT e NR, em depoimentos que não foram indiretos, ao contrário do que é referido na fundamentação da sentença a fls. 123 verso a 124, ainda que aí só a propósito da justificação da sua convicção quanto à matéria do ponto 8.
Efetivamente, não se percebe o motivo pelo qual não se aceitou os depoimentos destas testemunhas numa parte em que os mesmos se sustentavam no conhecimento direto e presencial desses factos.
Julgamos assim o ponto 7 dos factos provados deve passar a ter a seguinte redação:
«7- Na pendência do casamento, o R. chamava várias vezes a A. de “cabra” e “puta” e dizia que a mesma tinha amantes, o que ocorreu tanto no Reino Unido, como em Portugal, quando o casal vinha de férias à ilha da Madeira».

2.2. Quanto ao ponto 35.
A Recorrente pretende ainda que seja alterada a redação do ponto 35 dos factos provados, por forma a ficar esclarecido que a pintura do apartamento e a colocação de candeeiros e polibans por parte do R. ocorreu na casa da Madeira.
Temos de realçar que esse concreto facto resulta do alegado pelo R. no artigo 17.º da contestação, que se refere ao alegado cumprimento por este de deveres de conjugais pela realização de obras e manutenção dos imóveis do casal – portanto, no plural –, sem se identificar aí a que imóveis concretamente se refere.
Dito isto, em bom rigor, considerando o sentido da alegação do R., é completamente indiferente para o conhecimento do mérito da causa se a casa pintada, ou os candeeiros e polibans colocados pelo R., o foram no Reino Unido ou na Madeira.
Aliás, as fotos juntas aos autos com a contestação não nos habilitam a dizer onde é sita a casa aí retratada e a Recorrente não especificou os concretos documentos ou os concretos segmentos da prova gravada donde poderia resultar a demonstração de que esses factos se reportam à casa da Madeira e não à casa de Londres. Pelo que, nesta parte, não cumpriu os específicos ónus estabelecidos na al. b) do n.º 1 e al. a) do n.º 2 do Art. 640.º do C.P.C.. Na mesma medida concluímos que não existem motivos válidos que justifiquem a pretendida alteração do ponto 35 dos factos provados, improcedendo a impugnação nesta parte.

3. Da incompetência internacional.
Fixados os factos provados e não provados, cumprirá então agora debruçarmo-nos sobre a conformidade da decisão recorrida com o direito aplicável.
Relembre-se que a A. intentou a presente ação de condenação contra o R., seu ex-marido, com vista a exercer o direito a indemnização emergente de responsabilidade civil por factos ilícitos culposos causados pelo seu cônjuge, durante a vigência do casamento entre ambos, nos termos do Art.º 1792.º n.º 1 do C.C..
Em causa estavam comportamentos do R. que constituíam alegadas violações de direitos de personalidade da A., ameaçando-a e ofendendo-a na sua integridade física e na sua honra e dignidade, violando deveres conjugais de respeito, fidelidade, coabitação, cooperação e assistência.
Sucede que o R., na sua contestação, logo sustentou a incompetência internacional dos tribunais portugueses para julgarem a presente ação, porque o casal tinha a sua casa de morada de família no Reino Unido e os alegados factos ilícitos, a terem ocorrido, teriam tido lugar nesse país.
Na resposta à contestação, a A. invocou que os factos ilícitos tiveram lugar, tanto no Reino Unido, como em Portugal. Por outro lado, relevou outros elementos de conexão relevantes, como sejam o facto de ambos serem portugueses de nacionalidade, serem naturais da ilha da Madeira, concelho de Santa Cruz, terem casado na Madeira, onde têm casa na freguesia do Caniço, possuindo bens comuns em Portugal, mantendo aí a sua vida e família, apesar de terem domicílio profissional em Londres.
A sentença recorrida, como vimos, veio a julgar procedente por provada a exceção dilatória de incompetência absoluta e, em consequência, absolveu o R. da instância, pois julgou provado que todos os factos ilícitos verificados tiveram todos lugar no Reino Unido.
Considerando o que resulta da impugnação da decisão sobre a matéria de facto, nomeadamente no que se refere à nova redação do ponto 7 dos factos provados, determinada no ponto 2.1 do presente acórdão, está agora assente que, na pendência do casamento, o R. chamou a A. de “cabra” e “puta” e dizia que a mesma tinha amantes, tando no Reino Unido, como em Portugal, quando o casal vinha de férias à ilha da Madeira. Consequentemente, ficou provado que os factos ilícitos que integram a causa de pedir desta ação, tanto ocorreram no estrangeiro, como em Portugal, mais concretamente na ilha da Madeira. O que tem inevitáveis consequências sobre a manutenção da decisão recorrida.
Assim, revelava para o efeito que está em causa o exercício do direito a indemnização emergente de responsabilidade civil por factos ilícitos culposos que determinaram a violação de direitos absolutos da A..
Neste contexto, atendendo apenas às regras de competência territorial internas, nos termos do Art.º 71.º n.º 2 do C.P.C. será competente para a apreciação da responsabilidade civil por facto ilícito o tribunal do «lugar onde o facto ocorreu».
Sem prejuízo, releva ainda que no Art.º 59.º do C.P.C. se estabelece que: «Sem prejuízo do que se encontre estabelecido em regulamentos europeus e em outros instrumentos internacionais, os tribunais portugueses são internacionalmente competentes quando se verifique algum dos elementos de conexão referidos nos artigos 62.º e 63.º ou quando as partes lhes tenham atribuído competência nos termos do artigo 94.º».
É no Art.º 62.º do C.P.C. que se definem essencialmente os fatores de atribuição da competência internacional aos tribunais portugueses.
Assim, nos termos desse preceito: «Os tribunais portugueses são internacionalmente competentes:
«a) Quando a ação possa ser proposta em tribunal português segundo as regras de competência territorial estabelecidas na lei portuguesa;
«b) Ter sido praticado em território português o facto que serve de causa de pedir na ação, ou algum dos factos que a integram;
«c) Quando o direito invocado não possa tornar-se efetivo senão por meio de ação proposta em território português ou se verifique para o autor dificuldade apreciável na propositura da ação no estrangeiro, desde que entre o objeto do litígio e a ordem jurídica portuguesa haja um elemento ponderoso de conexão, pessoal ou real».
Os fatores relevantes de atribuição da competência internacional dos tribunais portugueses fundam-se, nos termos desse preceito, nos critérios da coincidência, da causalidade, da reciprocidade e da necessidade (vide, a propósito: Alberto dos Reis in “Comentário ao Código de Processo Civil”, Vol. I, pág. 128; Manuel Andrade in “Noções Elementares de Processo Civil”, 1993, pág. 92; Anselmo de Castro in “Processo Civil Declaratório”, Vol. II, pág.s 26 e ss.; Antunes Varela in “Manual de Processo Civil”, 2.ª Ed., pág.s 200 a 206; Francisco Ferreira de Almeida in “Direito Processual Civil”, Vol. I, 3.º Ed., pág. 415; Pais do Amaral in “Direito Processual Civil”, 14.ª Ed., pág. 152; e Paulo Pimenta in “Processo Civil Declarativo”, 2.ª Ed., pág.s 96 a 99).
Estes fatores de atribuição da competência são autónomos entre si, funcionando independentemente uns dos outros, sendo a verificação de cada um deles, per si, bastante para suscitar a competência dos nossos tribunais (neste sentido: Manuel de Andrade, in Ob. Loc. Cit.. pág. 92; e Antunes Varela in Ob. Loc. Cit., pág. 199).
Portanto, havendo diversos fatores de conexão territorial que possam justificar a atribuição de competência a tribunais de diversos países, bastará apenas que um deles esteja relacionado com uma das circunstâncias atributivas da competência aos nossos tribunais para que os tribunais portugueses sejam tidos como competentes para julgar a ação.
No caso, a presente ação poderia ser instaurada em Portugal por força das regras de competência territorial internas, mais propriamente a estabelecida no Art.º 71.º n.º 2 do C.P.C., porquanto foram praticados factos em Portugal de onde emerge a responsabilidade civil visada reconhecer nesta ação. Pelo que, verifica-se o critério da coincidência estabelecido no Art.º 62.º al. a) do C.P.C..
Tal como, pelas mesmas razões, se verifica igualmente o critério da causalidade previsto no Art.º 62.º al. b) do C.P.C., porque foi praticado em território nacional o facto que serve de fundamento à ação ou algum dos factos que a integram.
Efetivamente, é unânime o entendimento doutrinal sobre o âmbito de aplicação do Art.º 62.º al. b) do C.P.C., quando em causa está, como é o caso dos autos, uma ação sustentada numa causa de pedir complexa.
Conforme escreveu Antunes Varela (in “Manual de Processo Civil”, 2.ª Ed., pág. 202): «quando, como muitas vezes ocorre, a causa de pedir é complexa, envolvendo mais de um facto, bastará em regra a circunstância de um deles ter ocorrido em Portugal para legitimar a competência dos tribunais portugueses, atenta a forte conexão que desse modo logo se estabelece entre a relação processual e a justiça portuguesa».
De igual modo, Teixeira de Sousa (in “Estudos Sobre o Novo Processo Civil”, Lex, 1998, pág. 199) sustenta             que: «a ação pode ser instaurada nos tribunais portugueses quando o facto que integra a causa de pedir, ou algum dos factos que a constituem, tiver sido praticado em território português (art.º 65.º n.º 1 al. c)). Assim, por exemplo, os tribunais portugueses são internacionalmente competentes quando, apesar do facto ilícito ter ocorrido no estrangeiro, parte dos danos se produziram em Portugal (RC – 23/10/1990 CJ 90/4, 83)».
Também Francisco Ferreira Almeida (in “Direito Processual Civil”, Vol. I, 3.ª Ed., pág. 45, nota 881) afina pelo mesmo diapasão, dizendo que: «Basta que um dos elementos constitutivos da causa de pedir se localize em Portugal para que essa competência esteja assegurada. Uma ação de condenação baseada em responsabilidade civil apresenta uma causa de pedir complexa integrada pela conduta ilícita e culposa do réu, geradora de prejuízos para o autor, ocorrendo o prejuízo em Portugal (…) verifica-se uma conexão objetiva que confere ao tribunal português competência internacional – cfr. Ac. TRL de 21/4/2016 – Proc. n.º 13/15.8YHLSB-A,L1-8 in www.dgsi.pt – António Valente» (ainda no mesmo sentido: Alberto dos Reis in “Comentário …”, vol. I, pág. 136; Anselmo de Castro in “Processo Civil Declaratório”, vol. II, pág.s 26 e ss.; e Paulo Pimenta in “Processo Declarativo”, 2.ª Ed., pág. 97).
Portanto a questão é incontroversa, não parecendo que, em função dos factos provados, se possa ainda pôr em causa que os tribunais portugueses eram competentes para o julgamento desta causa, sem ser necessário sequer recorrer aos regulamentos europeus ou à jurisprudência do Tribunal de Justiça da União Europeia, de onde sempre resultaria a mesma solução prática, sendo certo que, na sequência do “Brexit”, o Reino Unido já não reconhece, nem está subordinado, à autoridade daquele tribunal europeu.
A jurisprudência dos tribunais superior também é unânime neste ponto, limitando-nos aqui a citar, por todos eles, o acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 19/09/2013 (Processo n.º 738/08.4TVLSB.L1.S1 - Relator: Abrantes Geraldes, disponível em www.dgsi.pt) onde se decidiu: «Se, de acordo com a alegação das AA., existirem factos praticados em território nacional que sejam imprescindíveis para a integração da concreta causa de pedir que subjaz ao pedido que foi formulado pode afirmar-se a competência internacional dos tribunais nacionais, na medida em que a redação do Art.º 65º, nº 1, al. c), do CPC, que foi introduzida com a reforma de 1995/96, visou precisamente clarificar que para a atribuição de competência internacional aos tribunais portugueses não se mostra necessário que todos os factos integrantes da causa de pedir tenham ocorrido em território nacional, bastando que tal se verifique relativamente a algum ou alguns deles».
Dito isto, o Tribunal Judicial da Comarca da Madeira era internacionalmente competente para o julgamento desta causa, nos termos dos Art.ºs 59º, 62.º al.s a) e b), 71.º n.º 2 do C.P.C., por existir elemento de conexão suficientemente relevante para a apresente ação poder correr perante os tribunais portugueses. O que conduz inevitavelmente à revogação a sentença recorrida, que deve ser substituída pela decisão de julgar que o tribunal era competente em razão da nacionalidade.

4. Da possibilidade de conhecimento do mérito da causa pelo Tribunal da Relação em substituição do tribunal de 1.ª instância e sua constitucionalidade.
Fixada a competência dos tribunais portugueses para o julgamento desta ação, contrariando-se assim a decisão recorrida que declarou a incompetência absoluta do tribunal e se absteve, em consequência, de apreciar o pedido formulado pela A., cumpre agora debruçarmo-nos sobre as questões relacionadas com o conhecimento do mérito da causa, cuja apreciação havia ficado prejudicada, em conformidade com o disposto no Art. 608.º n.º 2, 2.ª parte, do C.P.C..
Estabelece o Art.º 665.º n.º 2 do C.P.C. que, se o tribunal recorrido tiver deixado de conhecer certas questões, designadamente por as considerar prejudicadas pela solução dada ao litígio, a Relação deve delas conhecer no mesmo acórdão que revoga a decisão recorrida, se entender que a apelação deve proceder e nada obsta à apreciação dessas questões.
No caso, essa possibilidade deveria ser ponderada pela Recorrente nas alegações de recurso, que foram apresentadas no pressuposto de que pudesse a questão da incompetência internacional vir a merecer decisão diversa, no sentido da sua revogação. No entanto, em abono da verdade, na motivação do recurso só implicitamente se percebe que a Recorrente pretende que a ação seja julgada procedente. Sem prejuízo, no final, não há dúvida que formula o pedido de procedência da ação, logo após a apresentação das conclusões do recurso, embora na motivação da sua apelação nada tenha dito a esse respeito.
O Recorrido, por seu turno, nas contra-alegações, limitou-se a sustentar a decisão recorrida, muito centrado no reconhecimento da incompetência absoluta, não se tendo pronunciado sobre a possibilidade concreta de o Tribunal da Relação poder conhecer do mérito da causa em substituição do Tribunal Recorrido, ainda que tenha tecido várias considerações sobre a matéria de facto provada, em termos que, como vimos, não satisfazem as exigências legais estabelecidas no Art.º 640.º do C.P.C..
Em função do exposto, e à cautela, foi por isso permitido a ambas as partes se pronunciarem sobre o mérito da ação, nos termos do n.º 3 do Art.º 665.º do C.P.C., pretendendo-se assim evitar qualquer decisão-surpresa (vide, a propósito: Abrantes Geraldes in “Recursos no Novo Código de Processo Civil”, 4.ª Ed., pág. 323).
Ocorre que apenas o Recorrido fez uso dessa faculdade para repetir, no essencial, o que já havia dito nas contra-alegações anteriores relativamente à valoração feita da prova e dos factos provados, sem verdadeiramente impugnar a decisão sobre a matéria de facto, no estrito respeito pelo disposto no Art.º 640.º do C.P.C., como já anteriormente fizemos notar. No entanto, suscita agora uma questão nova, relativa à eventual inconstitucionalidade do Art.º 665º n.º 2 do C.P.C., por permitir ao Tribunal da Relação decidir em substituição da 1.ª instância, sem qualquer possibilidade de recurso, tendo em atenção que a apresente ação tem o valor de €30.000,00 e, por força das regras da alçada (v.g. Art.º 629.º n.º 1 do C.P.C.), não ser possível recorrer para o Supremo Tribunal de Justiça, violando-se assim a garantia de recurso estabelecida no Art. 32.º da C.R.P..
Apreciando, temos de dizer que não se nega que o funcionamento da regra da substituição estabelecida no Art.º 665.º n.º 2 do C.P.C., que repete regra semelhante estabelecida no Art.º 684.º n.º 1 do C.P.C. para os recursos de revista no Supremo Tribunal de Justiça, neste caso concreto, poderá ter como consequência que a decisão do Tribunal da Relação de Lisboa poder ser definitiva quanto à apreciação de mérito, por no caso já não ser admissível recurso para o Supremo Tribunal de Justiça, na estrita medida em que o valor desta ação se compreende dentro da alçada do Tribunal da Relação (cfr. Art.º 44.º n.º 1 da Lei da Organização do Sistema Judiciário aprovada pela Lei n.º 62/2013 de 26/8, conjugado com o Art.º 629.º n.º 1 do C.P.C.). Salvaguarda-se desta conclusão apenas a eventual situação de as partes poderem recorrer, independentemente do valor da causa ou da sucumbência, com fundamento na violação das regras de competência internacional (cfr. Art.º 629.º n.º 2 al. a) do C.P.C.). Mas, neste último caso, o Supremo Tribunal de Justiça apenas apreciará essa exceção dilatória que, a ser julgada procedente, tal como foi decidido na 1.ª instância, prejudicaria a possibilidade de conhecer o mérito da ação.
O problema é que se o tribunal da 1.ª instância tivesse apreciado efetivamente o mérito da ação, a decisão a tomar pelo Tribunal da Relação de Lisboa, em via de recurso, e salvaguardada a situação específica do Art.º 629.º n.º 2 al. a) do C.P.C., seria sempre também definitiva quanto ao fundo da causa, sem que daí se pudesse sustentar que não havia sido respeitada a nossa Constituição.
O Recorrido apela aqui à aplicação ao caso do disposto no Art.º 32.º da Constituição da República Portuguesa, sendo certo que este normativo constitucional trata das “garantias do processo criminal”, estabelecendo no seu n.º 1 que: «1. O processo criminal assegura todas as garantias de defesa, incluindo o recurso».
Não existe na Constituição norma semelhante ao Art.º 32.º para o processo civil. O que não significa que o direito ao recurso não mereça qualquer tutela constitucional. No entanto, deverá ser nos princípios gerais consagrados no Art.º 20.º da Constituição que deverão ser encontradas as regras que regulam as garantias gerais estabelecidas a favor dos cidadãos no acesso à justiça e à tutela jurisdicional efetiva.
É certo que aí não se estabelece propriamente um “direito ao recurso”, mas sobrelevam as regras consagradas no Art.º 20.º n.º 4 e n.º 5 da C.R.P., segundo as quais: «4. Todos têm direito a que uma causa em que intervenham seja objeto de decisão em prazo razoável e mediante processo equitativo. 5. Para defesa dos direitos, liberdades e garantias pessoais, a lei assegura aos cidadãos procedimentos judiciais caracterizados pela celeridade e prioridade, de modo a obter tutela efetiva e em tempo útil contra ameaças ou violações desses direitos».
A garantia do julgamento em processo justo e equitativo, que se encontra igualmente consagrada, por exemplo, no Art.º 10.º da Declaração Universal dos Direitos Humanos ou no Art.º 6.º da Carta Europeia do Direitos Humanos, traduzem-se na concretização de garantias de imparcialidade, independência do tribunal, de igualdade das partes, de publicidade das audiências, da garantia do juiz legal e natural e de proferimento de decisão num prazo razoável (vide, a propósito: Teixeira de Sousa in “Estudos Sobre o Novo Processo Civil”. LEX, 1997, pág.s 39 a 40). Mas, ainda assim, não se afasta a consideração de que os processos judiciais implicam sempre um certo formalismo que, por vezes, impõe alguns limites formais ao exercício dos direitos.
Lopes do Rego (in “O Direito fundamental de acesso aos Tribunais e a reforma do Processo Civil”, Estudos em Homenagem a Cunha Rodrigues I, Coimbra Editora, 2001, pág. 764), debruçando-se sobre o efeito limitativo das alçadas, em conexão com o valor da ação, relativamente à admissibilidade do recurso não deixa de afirmar que: «é evidente que não pode pretender pôr-se seriamente em causa a existência, no ordenamento processual de limites objetivos à admissibilidade do recurso, estabelecidos para as causas de menor relevância, tendo em conta a natureza dos interesses nelas envolvidos ou a sua repercussão económica para a parte vencida: é que tais limitações derivam em última instância, da própria ‘natureza das coisas’, da necessidade imposta por razões de serviço e pela própria estrutura da organização judiciária de não sobrecarregar os tribunais superiores com a eventual reapreciação de todas as decisões proferidas pelos restantes tribunais – sob pena de o número daqueles ter de ser equivalente ao dos tribunais de 1ª instância e com a consequente dispersão das tendências jurisprudenciais».
É neste pressuposto o Tribunal Constitucional vem aceitando a admissibilidade desses limites de natureza processual, desde que os critérios a considerar não sejam tidos como arbitrários, excessivos ou desprovidos de justificação objetiva, reconhecendo serem apenas estes os limites que a Constituição impõe à liberdade de conformação do legislador ordinário em sede de sistema de recursos fora do âmbito penal (vide, a propósito: Jorge Miranda e Rui Medeiros in “Constituição Portuguesa Anotada”, Tomo I, Coimbra Editora, 2005, pág. 201 e ss.; e Ac.s do TC n.ºs 349/2022, 116/95 (ATC, 30º vol., pág. 683) e 240/04 (Diário da República, II Série, de 4 de junho de 2004).
Em suma, os limites à admissibilidade dos recursos, decorrentes das regras da alçada estabelecidos no processo civil, em conjugação com as leis da organização judiciária, têm vindo a ser aceitos como correspondendo ao exercício razoável e justificado da liberdade que a Constituição reconhece ao legislador para esse efeito, conferindo uma certa racionalidade ao sistema recursivo.
Não existe, portanto, nenhuma racionalidade na exigência de que um processo civil tenha necessariamente de ser decidido por duas instâncias diferentes.
Como escrevem, a propósito, Jorge Miranda e Rui Medeiros (in Ob. Cit., pág. 200 e ss.): «o direito de acesso aos tribunais não impõe ao legislador ordinário que garanta sempre aos interessados o acesso a diferentes graus de jurisdição para defesa dos seus direitos e interesses legalmente protegidos», assistindo-lhe, no âmbito do processo civil, «ampla margem de liberdade na conformação do direito ao recurso».
O que não poderá ser prescindido é que não se garanta às partes um julgamento em processo justo, equitativo e em prazo razoável.
Ora, o funcionamento da regra de substituição estabelecida no Art.º 665.º n.º 2 e n.º 3 do C.P.C. visa precisamente garantir uma decisão célere, em processo justo e equitativo, evitando que o processo regresse inutilmente ao tribunal recorrido, para depois ser decidido definitivamente, como sempre o seria, pelo tribunal de recurso.
Rui Pinto (in “O Recurso Civil, Uma Teoria Geral”, 2017, pág.72) reconhece isso mesmo, quando refere que quando o tribunal de recurso revoga a decisão e julga o objeto do processo num regime de substituição, existem claros ganhos de economia processual, por a decisão única comportar uma fase rescindente e uma fase rescisória.
Amâncio Ferreira (in “Manual dos Recursos em Processo Civil”, 9.ª Ed., pág. 238), também o afirma, quando refere: «A alternativa seria mandar baixar o processo à 1.ª instância para o respetivo juiz suprir o vício da sentença ou apreciar as questões cujo conhecimento considerou prejudicado, o que implicaria desperdício de tempo e de atividade, uma vez que, corrigida a nulidade ou conhecidas as questões consideradas prejudicadas, os autos acabariam por voltar à Relação».
Ferreira de Almeida (in “Direito Processual Civil”, vol. II, 2.ª Ed., pág. 559) debruçando-se sobre a possibilidade de supressão de um grau de jurisdição ou da consequente possibilidade de redução do julgamento a uma instância única, defende que o legislador atendeu nestes caso à celeridade do julgamento, considerando que os ganhos com a permissão dada ao tribunal ad quem para apreciar as questões controvertidas valeriam bem mais que o sacrifício da imposição do duplo grau de jurisdição.
Portanto, no âmbito do processo civil, não existe propriamente uma garantia constitucional relativa a um duplo grau de jurisdição necessário. Aceita-se que o legislador tem margem de liberdade suficiente para estabelecer limites ao direito ao recurso, fundados em razões relacionadas com o valor da causa, desde que sustentado em razões objetivas, válidas e atendíveis.
Não sendo o direito ao recurso no processo civil tratado expressamente na Constituição como um direito fundamental, tal como sucede no processo criminal (cfr. Art.º 32.º n.º 1 da C.R.P.), evidentemente que não deixa de dever ser considerado como tal, de forma indireta, no quadro das garantias gerais estabelecidas no Art. 20.º da C.R.P. relativas à tutela efetiva do julgamento em processo justo e equitativo.
Em todo o caso, não sendo o direito ao recurso um direito absoluto e inderrogável, pode ser limitado na medida do estritamente necessário, por razões relacionadas com o valor da causa ou com a celeridade processual, salvaguardadas que sejam as garantias de imparcialidade, independência do tribunal, de igualdade das partes, do juiz legal e natural e do julgamento em prazo razoável (Art.º 18.º n.º 2 da C.R.P.).
Em suma, estamos perante uma situação em que se dá clara prevalência, justificada, à celeridade processual, sem prescindir do cumprimento prévio do contraditório (v.g. Art.º 665.º n.º 3 do C.P.C.), que no caso foi garantido, respeitando-se integralmente os princípios do processo justo e equitativo, numa situação em que não se afigura razoável exigir a observância necessária de um duplo grau de jurisdição, porquanto, no caso, seria completamente inútil, uma vez que as questões em apreço sempre teriam de ser decididas pelo Tribunal da Relação.
Não existe assim a violação de qualquer norma constitucional, muito menos da estabelecida no Art. 32.º da Constituição, tal como invocado pelo Recorrido. Pelo que, improcedem as conclusões que sustentam o contrário do exposto.
Posto isto, cumpre assim apreciar o mérito da causa em função da factualidade provada nos autos.

5. Da responsabilidade civil do R.
Relembremos que a A. instaurou a presente ação tendo em vista a condenação do R. a pagar-lhe uma indemnização de €30.000,00, pelo sofrimento contínuo e danos causados por aquele à sua saúde mental, durante a vigência do casamento de ambos.
Efetivamente, tendo ambos contraído casamento em 12 de Julho de 1995, de lá para cá, segundo foi alegado na petição inicial, o R. teria cometido diversas infidelidades, relacionando-se com outras mulheres e tratado a A. com desrespeito, tendo-se verificado diversos episódios de violência, alcoolismo, insultos constantes e violência física contra a A., nunca tendo o R. contribuído para a vida familiar ou sustento do filho.
Em causa estaria assim a violação de deveres conjugais por parte do R. (cfr. Art.ºs 1672.º e ss. do C.C.) e a verificação dos pressupostos da responsabilidade civil, no quadro da previsão legal do Art.º 1792.º do C.C., pretendendo a A. ser indemnizada pelos danos não patrimoniais que o R. lhe causou.
Refira-se que, anteriormente, o Art. 1792.º do C.C., com a redação que lhe foi dada pelo Dec.Lei n.º 496/77 de 25/11, estabelecia apenas que: «1. O cônjuge declarado único ou principal culpado e, bem assim, o cônjuge que pediu o divórcio  com fundamento da alínea c) do artigo 1781.º devem reparar os danos não patrimoniais causados ao outro cônjuge pela dissolução do casamento. 2. O pedido de indemnização deve ser deduzido na própria ação de divórcio».
O que estava então em causa nesse preceito era que o cônjuge inocente, ou menos culpado, poderia pedir uma indemnização ao outro cônjuge, único ou principal culpado, pelos danos não patrimoniais que resultassem do próprio divórcio, relacionados com o sofrimento e desconsideração social derivados da dissolução do casamento, e não com os factos que serviriam de fundamento ao divórcio (vide, a propósito: Antunes Varela in “Direito da Família”, 1987, pág. 567 e Francisco Pereira Coelho e Guilherme de Oliveira in “Curso de Direito da Família”, vol. I, 3.ª Ed., págs. 753 e 754).
Não existia então norma especial que regulasse o direito a indemnização por danos causados por um cônjuge ao outro, na pendência do matrimónio. O que não significava, necessariamente, que essa possibilidade legal não pudesse ser encontrada no regime geral da responsabilidade civil estabelecida nos Art.ºs 483.º e ss. do C.C. (vide, neste sentido, por exemplo: Ac. do STJ de 23/3/1988 in BMJ 375.º- pág. 390; Ac. STJ de 21/6/1990 in AJ 10.º/11.º- pág. 18; e Ac. STJ de 15/6/1993 in CJSTJ Tomo 2.º, pág. 154; Diogo Leite de Campos in “Lições de Direito da Família e Sucessões”, 2.ª Ed., pág. 309; e Francisco Pereira Coelho e Guilherme de Oliveira in “Curso de Direito da Família”, vol. I, 3.ª Ed., pág. 202).
Atualmente, o Art.º 1792.º do C.C., com a redação dada pela Lei n.º 6/2008 de 31/10, passou a estipular que: «1. O cônjuge lesado tem direito de pedir a reparação dos danos causados pelo outro cônjuge, nos termos gerais da responsabilidade civil e nos tribunais comuns. 2. O cônjuge que pediu o divórcio com fundamento da alínea c) do artigo 1781.º deve reparar os danos não patrimoniais causados ao outro cônjuge pela dissolução do casamento; este pedido deve ser deduzido na própria ação de divórcio».
Portanto, ficou agora estabelecido de forma mais clara, em conformidade com a jurisprudência dos tribunais superiores que a propósito foi sendo produzida, que esse direito à indemnização entre cônjuges, por facto ilícitos praticados na constância do casamento, deveria ser encontrado no quadro legal dos Art.ºs 483.º e ss. do C.C., por remissão do n.º 1 do Art.º 1792.º n.º 1 do C.C., sendo que a jurisdição competente para o exercício autónomo desse direito de ação atribuída aos tribunais comuns, de competência cível (cfr. Art.º 130.º n.º 1 e n.º 2 al. f) da Lei n.º 62/2013 de 26/8), e não aos tribunais de família (cfr. Art.º 122.º e ss. da Lei n.º 62/2013 de 26/8).
“But there´s more than meets the eye”.
É incontornável aqui termos de citar o acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 12/5/2016 (Proc. n.º 2325/12.3TVLSB.L1.S1 – Relator: Tomé Gomes, disponível em www.dgsi.pt) que resume de forma muito assertiva todo um conjunto de problemáticas relevantes subjacentes a este normativo do Art.º 1792.º n.º 1 do C.C..
Do sumário desse mencionado acórdão é dito o seguinte: «I - Sob a vigência do art.º 1792.º do CC, na redação dada pelo DL n.º 496/77, de 25-11, no que respeita à admissibilidade do direito a indemnização por danos decorrentes da violação dos deveres conjugais pessoais, desenhavam-se, na doutrina nacional, duas perspetivas: i) - uma de cariz tradicional, no sentido de negar tal direito, ancorada na tese da denominada fragilidade da garantia daqueles deveres; ii) - outra, a sustentar a possibilidade de indemnização do cônjuge lesado, em ação autónoma à do divórcio, mesmo na constância do casamento, nos termos gerais da responsabilidade civil, considerando que os direitos conjugais revestiam a natureza jurídica de direitos subjetivos, não se justificando que a sua função institucional pudesse desmerecer aquela tutela. II - Por sua vez, a jurisprudência foi abrindo caminho e sedimentando a orientação desta segunda perspetiva. III - Com a entrada em vigor da Lei n.º 61/2008, de 31-10, e face à nova redação dada ao art. 1792.º do CC, reforçou-se a tese da 2.ª perspetiva, embora existam ainda alguns autores a sustentar, face à abolição do divórcio-sanção, que a violação dos deveres conjugais pessoais deixou de merecer a tutela direta por via do instituto geral da responsabilidade civil. IV - Por sua vez, a jurisprudência tem mantido a linha que vinha seguindo, no sentido da admissibilidade daquela tutela, nomeadamente em sede de indemnização dos danos não patrimoniais, desde que, pela sua gravidade, mereçam a tutela do direito nos termos do art.º 496.º, n.º 1, do CC. V - Assim, pelo menos em caso de concomitância de violação dos deveres conjugais pessoais e dos direitos de personalidade do cônjuge lesado, impõe-se reconhecer a admissibilidade do direito a indemnização com base nos termos gerais da responsabilidade civil».
Discernindo sobre as duas perspetivas assim sumariadas, é dito nesse acórdão do Supremo Tribunal de Justiça o seguinte:
«Em defesa da primeira perspetiva, pronunciaram-se, por exemplo, Antunes Varela e Leite de Campos. Segundo aquele autor, “as sanções contra a inobservância dos deveres conjugais, no plano das relações internas, encontram-se geralmente no direito de divórcio e no instituto da separação, sendo certo que nesse domínio se deve admitir a ressarcibilidade, tanto dos danos materiais, como dos danos morais sofridos pelo cônjuge inocente (cf. art.º 1792.º, n.º 1)”[3]. Por seu turno, Leite de Campos, convocando várias razões, mormente o carácter de privacidade e de intimidade da instituição familiar, advoga que “a observância dos deveres familiares pessoais está tutelada por uma garantia mais frágil do que a dos deveres em geral”, não desencadeando, “por si, qualquer espécie de sanção para além da dissolução do vínculo ofendido”, mas não impedindo que, “no caso de um dos membros da família praticar contra outro um ato que implique responsabilidade civil ou criminal”, (…) independentemente do contexto familiar”, tal seja qualificado como facto ilícito relevante nessa sede[4].
«Na linha da segunda perspetiva e, portanto, da negação da tese da “fragilidade da garantia”[5], posicionaram-se Heinrich Hörster[6] e Ângela Cerdeira[7]. Para aquele autor, «os direitos familiares pessoais – pese embora a sua natureza “sui generis” - são concebidos como direitos privados, o que significa que lhes subjaz o binómio “liberdade-responsabilidade», pelo que a lesão de tais direitos faz incorrer o lesante em responsabilidade civil pelos danos assim causados[8]. Também Ângela Cerdeira considera que os deveres conjugais se traduzem em verdadeiros poderes jurídicos de exigir o respetivo cumprimento, que não meros poderes de pretensão, como no domínio das obrigações naturais[9]. E ainda Duarte Pinheiro, depois de uma análise aprofundada, refere, em síntese, que “a despeito de conter uma vertente largamente sancionatória, o regime português dos efeitos do divórcio não torna inútil o recurso ao instituto geral da responsabilidade civil”[10]
«E, em tempos mais recuados, Pereira Coelho defendia que, “para além dos alimentos, e a coberto do princípio geral firmado no artigo 2361.º do Código Civil de Seabra (correspondente ao atual artigo 483.º), o cônjuge culpado do divórcio podia ser compelido a indemnizar o outro dos danos morais e patrimoniais causados, visto os atos culposos que servem de fundamento ao divórcio ofenderem os direitos familiares pessoais do cônjuge inocente”, adiantando que é “nesta obrigação de indemnizar que estará, verdadeiramente a sanção para o não cumprimento dos deveres matrimoniais, visto o divórcio não constituir essa sanção, ainda que o cônjuge inocente possa pedir ao culpado uma indemnização pelos danos patrimoniais e morais, quer pelos resultantes diretamente dos factos que servem de fundamento ao divórcio, quer pelos resultantes do próprio divórcio e que serão consequência indireta daqueles factos”[11].
«De notar que Pires de Lima e Antunes Varela, em comentário ao artigo 1792.º, na redação dada pelo Dec.-Lei n.º 496/77[12], escrevem que:
«Ainda a propósito dos danos (não patrimoniais) abrangidos pelo n.º 2 do artigo 1792.º (que não apenas, como vimos, os danos morais resultantes da própria dissolução do casamento), importa salientar que esta disposição não obsta naturalmente à ressarcibilidade, quer dos danos provenientes da violação dos deveres relativos dos cônjuges, quer da violação dos direitos absolutos de que seja titular o cônjuge ofendido (ofensas à sua integridade física ou ao seu bom nome, violações da sua propriedade, etc.).
«Esses danos terão, evidentemente, que ser apreciados em ação autónoma e não na ação de divórcio, que tem como fundamental objetivo a dissolução da relação matrimonial.»
«Todavia, no domínio da segunda perspetiva acima enunciada, há quem entenda que o direito a indemnização por danos não patrimoniais só terá lugar nos casos de violação simultânea ou concomitante dos deveres conjugais e dos direitos de personalidade, enquanto que outros admitem tal direito mesmo em casos de não simultaneidade ou concomitância, desde que, pela gravidade dos danos, merecessem a tutela do direito, nos termos do n.º 1 do artigo 496.º do CC[13].
«No meio desta polémica, a jurisprudência dos nossos tribunais foi abrindo caminho no sentido de considerar indemnizáveis, em processo comum, os danos não patrimoniais decorrentes da violação dos deveres conjugais, independentemente de tal violação constituir ou não fundamento de divórcio ou de este ter sido pedido.
«Assim, já o acórdão do STJ, de 13/03/1985, tirado em reunião conjunta de das secções cíveis, publicado no BMJ, n.º 345, páginas 414-424, doutrinava que:
«I – O artigo 1792.º do Código Civil compreende os danos não patrimoniais causados pelo próprio divórcio, devendo o respetivo pedido de indemnização ser obrigatoriamente formulado na ação de divórcio;
«II – Os danos ocasionados diretamente pelos factos em que se fundamenta o divórcio, sejam de natureza patrimonial ou não, podem dar lugar à obrigação de indemnizar, nos termos do artigo 483.º do Código Civil, devendo a indemnização ser solicitada em processo comum de declaração;
«III – Se, em ação de divórcio, forem provados exclusivamente danos resultantes de factos em que se funda o divórcio, o tribunal não pode conceder indemnização ao cônjuge lesado, ainda que invoque o disposto no artigo 483.º em vez do artigo 1792.º»
«Também o acórdão do STJ, de 26/06/1991, publicado no BMJ n.º 408, páginas 538 e segs., confirmou, em ação autónoma à do divórcio, a atribuição de uma indemnização por danos não patrimoniais decorrentes da violação culposa dos deveres conjugais de respeito e de coabitação, com base nos mesmos factos em que se fundara a sentença de divórcio.
«Na mesma linha, se pronunciaram no sentido de que os danos patrimoniais ou não patrimoniais emergentes dos factos causais do divórcio são indemnizáveis nos termos gerais, mas através de processo comum e nunca na própria ação de divórcio, entre outros, os acórdãos do STJ de 15/06/ 1993[14], 08/02/2001[15], 27/05/2003[16] e de 07/10/2004[17].
«De notar que, na generalidade dos arestos indicados, a questão foi abordada, nas próprias ações de divórcio, em que se considerou não ser a sede própria para deduzir tais pretensões. Só o acórdão do STJ de 26/06/ 1991 é que foi proferido em ação autónoma à do divórcio. Ao que cremos, não era então frequente a instauração deste tipo de ação autónoma, o que se deverá ao facto de a parte interessada quase sempre preferir acolher-se ao tipo de pretensão prevista no n.º 1 do artigo 1792.º.
«Entretanto, a Lei n.º 61/2008, de 31/10, veio pôr termo ao divórcio litigioso fundado em violação dos deveres conjugais, consagrando o divórcio sem consentimento de um dos cônjuges, por rutura do casamento, nas situações ora configuradas no artigo 1781.º do CC, ainda que não exista culpa de qualquer deles.
«Do mesmo passo, a referida lei deu nova redação ao artigo 1792.º, que, sob a epígrafe Reparação de danos e inserido na subsecção intitulada Efeitos do divórcio (…)
«As alterações desta lei entraram em vigor a partir de 30/11/2008, não sendo aplicáveis aos processos pendentes antes dessa data.
«Assim, manteve-se a indemnização pelos danos não patrimoniais resultantes do próprio divórcio, quando fundado em alterações das faculdades mentais do cônjuge requerente, por mais de um ano, a ser deduzida na própria ação de divórcio e relegou-se para ação autónoma a instaurar nos tribunais comuns a pretensão de indemnização por danos causados ao cônjuge lesado, nos termos gerais da responsabilidade civil, o que se compreende pelo simples facto de, na ação de divórcio, já não serem agora discutidas as violações dos deveres conjugais.
«Embora o artigo 1792.º se encontre inserido na subsecção dos “Efeitos do Divórcio”, salvo o devido respeito, não se afigura que tal inserção sistemática se cinja às pretensões indemnizatórias ali previstas que sejam deduzidas depois da decretação do divórcio, como o sustentado na decisão da 1.ª instância. O que, fundamentalmente, ali se pretendeu foi tão só, ante a hipótese da indemnização por danos não patrimoniais decorrentes do divórcio prevista no n.º 2 daquele normativo, deixar clara a ressalva dos casos de indemnização do cônjuge lesado nos termos gerais da responsabilidade civil, a serem peticionados em ação autónoma à do divórcio, aliás na linha do que vinha sendo admitido pela jurisprudência.
«Mas os termos genéricos em que ali se refere à responsabilidade civil deixam ainda em aberto a questão de saber qual o seu alcance, mormente se haverá lugar a indemnização por danos não patrimoniais exclusivamente fundada na violação dos deveres conjugais ou se apenas quando tais violações forem equacionadas, exclusiva ou concomitantemente, com a violação dos direitos absolutos de personalidade, nos termos do artigo 483.º, n.º 1, do CC.
«Neste novo contexto legal, uma boa parte da doutrina vem reforçando a argumentação sobre o fim da doutrina da fragilidade da garantia dos deveres conjugais e sobre a admissibilidade do direito de indemnização do cônjuge lesado pelos danos resultantes da violação dos deveres conjugais, seja em articulação simultânea com a tutela da personalidade nos termos do artigo 483.º, n.º 1, do CC, seja mesmo em casos de inexistência de tal simultaneidade, desde que a gravidade dos danos mereçam a tutela do direito, nos termos do artigo 496.º, n.º 1, do CC[18].
«Também Francisco Pereira Coelho e Guilherme de Oliveira, in Curso de Direito da Família, Volume I, Introdução/Direito Matrimonial, Coimbra Editora, 4.ª Edição, 2001, a p. 156, considerando a sua aceitação, em edição anterior, do princípio da doutrina tradicional da garantia frágil dos deveres conjugais, escrevem: «Admitimos, porém, que o caso tivesse solução diversa se fosse pedido o divórcio ou a separação de pessoas e bens, pois a consideração da essência ética do casamento, a defesa da paz familiar e o propósito de evitar uma excessiva intervenção do Estado na vida da família, razões que poderiam justificar uma interpretação restritiva do art.º 483.º em termos de nele se não abrangerem os direitos familiares pessoais, essas razões já não tinham peso depois de um dos cônjuges intentar contra o outro uma ação de divórcio ou separação. Pensamos hoje, até, que o art.º 483.º não exclui a possibilidade de, independentemente de ter sido requerido o divórcio ou a separação de pessoas e bens, se deduzir pedido de indemnização dos danos patrimoniais e não patrimoniais causados pela violação dos deveres do art.º 1672.º - isto embora a situação raramente se verifique, pois mal se imagina que um dos cônjuges não queira divorciar-se nem separar-se e pretenda obter do outro uma indemnização desses danos. Será nesta impossibilidade ou dificuldade prática que radicará, de alguma maneira, a fragilidade da garantia que assiste aos direitos familiares pessoais.»
«Mais radical no sentido da negação da tutela cível dos deveres conjugais parece ser a posição sustentada por Carlos Pamplona Corte Real / José Silva Pereira, no sentido de que “o casamento enquanto encontro de vontades atinente a uma esfera livre e íntima dos cônjuges representa um projeto de vida com larga margem de modelação por aqueles, renovado ao longo do tempo, o que será incompatível com a noção de casamento enquanto contrato e a inerente atribuição de sinalagmaticidade no exercício do afeto e a correspondente atribuição do regime jurídico previsto para os contratos de que será exemplo a inaplicabilidade do regime da resolução ou modificação das circunstâncias e a exceção de não cumprimento do contrato.”. Nessa linha, segundo aqueles autores, “os deveres conjugais não podem reconduzir-se tecnicamente a deveres jurídicos, sendo meras obrigações naturais”.[19]
«No plano da jurisprudência, continua também a manter-se a linha de orientação no sentido da admissibilidade do direito de indemnização do cônjuge lesado pelos danos não patrimoniais decorrentes da violação dos deveres conjugais nos termos gerais da responsabilidade civil. Foram nesse sentido, entre outros, os acórdãos do STJ, de 09/02/20012, proferido no processo n.º 819/09.7TMPRT.P1.S1, e de 17/09/2013, proferido no processo n.º 5036/11.3TBVNG.P1.S1[20]
«Neste último, considerou, em síntese, que:
«I – Com a redação dada ao n.º 1 do art.º 1792.º do CC pela Lei n.º 61/2008, de 31-10, a reparação dos danos causados ao cônjuge alegadamente lesado, quer dos resultantes da própria dissolução do casamento, quer de factos que possam ter conduzido à rutura da vida em comum, passa a ser feita nos meios comuns, de acordo com os princípios gerais da responsabilidade civil.
«II – Com exceção dos casos em que a rutura do casamento é consequência de alterações das faculdades mentais do outro cônjuge – n.º 2 do art. 1792.º do CC -, a lei deixou de fazer qualquer distinção entre os danos resultantes da dissolução do casamento e os danos diretamente resultantes de factos ilícitos ocorridos na constância do matrimónio, nomeadamente os que possam ter conduzido ao divórcio, sendo, uns e outros, pelo menos em abstrato, ressarcíveis através de ação judicial para efetivação da responsabilidade civil.
«III – Numa e noutra situação, cabe ao cônjuge alegadamente lesado a demonstração de factos sustentadores da responsabilidade civil por factos ilícitos – art.º 483.º do CC.
«Perante esta problemática, afigura-se que será de manter essa linha de orientação, no sentido da admissibilidade do direito de indemnização do cônjuge lesado, nomeadamente pelos danos não patrimoniais, independentemente da dissolução do casamento por divórcio e mesmo na constância do matrimónio, nos termos gerais da responsabilidade civil tal como se ressalva na atual redação do n.º 1 do artigo 1792.º do CC. E, inscrevendo-se esta ressalva na linha do precedente entendimento jurisprudencial, não reveste, por isso, natureza inovatória, nada obstando a que se aplique a factos anteriormente ocorridos, como o dos presentes autos.
«Com efeito, salvo o devido respeito, não se depreende do regime legal elementos decisivos para a tradicional tese da fragilidade da garantia dos deveres conjugais. Bem pelo contrário, o reforço daqueles deveres, em particular com a inclusão do dever de respeito por via do Dec.-Lei n.º 496/77, veio reforçar a tutela da personalidade de cada um dos cônjuges em detrimento do anterior modelo de sociedade conjugal diferenciada, de cunho institucionalista, que esbatia ou comprimia essa tutela ao serviço do matrimónio e da família.
«Acresce que, não obstante a abolição do sistema do divórcio-sanção, fundado na violação dos deveres conjugais, o certo é que se manteve o elenco de tais direitos/deveres enunciados no artigo 1672.º do CC, sendo que essa abolição deixou de fora o sancionamento daquela violação por via da ação de divórcio.
«Assim, independentemente de se discutir a natureza contratual ou não do casamento, parece inegável que a tais direitos/deveres é atribuída juridicidade bastante para assegurar o compromisso de plena comunhão de vida assumido pelos nubentes, nos termos dos artigos 1577.º e 1671.º do CC, não se divisando que a degeneração daqueles direitos/deveres em meras obrigações naturais seja adequada a acautelar os interesses dos cônjuges envolvidos nesse compromisso.
«Por isso, acompanha-se a posição doutrinária de Duarte Pinheiro, quando considera que[21]: «(…) a previsão legal de deveres a que estão reciprocamente obrigados os cônjuges tem de ser interpretada como beneficiando de sanção jurídica, não só porque ao legislador não compete pronunciar-se sobre os assuntos que são do mero foro interno dos indivíduos mas também porque a Constituição incumbe o Estado da proteção da família (…)»
«Na mesma linha de raciocínio, não se afigura que o facto de a atual lei não admitir o divórcio-sanção com fundamento na violação dos deveres conjugais tenha o efeito de derrubar a tutela autónoma daqueles deveres nos termos gerais da responsabilidade civil, dantes já admitida pela generalidade da jurisprudência e por boa parte da doutrina e agora até expressamente ressalvada no n.º 1 do artigo 1792.º do CC.
«Na sentença da 1.ª instância, foi seguido o entendimento adotado por Duarte Pinheiro, além de outros autores ali indicados, de que os direitos familiares pessoais revestem a natureza de direitos absolutos com eficácia erga omnes, merecendo, por isso, diretamente, a tutela prevista no artigo 483.º do CC[22].
«Também Capelo de Sousa[23] salienta que: “(…) os cônjuges não alienam nas relações entre si a generalidade dos seus direitos de personalidade, pelo que, para além da inquestionável tutela civilística de bens essenciais como a vida e a integridade física nas relações entre os cônjuges, nos parecem ressarcíveis mesmo os danos não patrimoniais, desde que, v.g. a honra, a reputação, a liberdade e mesmo a intimidade, verificadas durante a vigência do casamento, que não apenas pela dissolução do casamento.”
«Não se suscitará, pois, grande dúvida de que, pelo menos nos casos de concomitância da violação dos deveres conjugais e da tutela da personalidade, o mesmo é dizer, da violação dos direitos de personalidade ainda que através da violação dos direitos conjugais, assista ao cônjuge lesado o direito a ser indemnizado pelo danos daí decorrentes nos termos gerais da responsabilidade civil.
«Já quando se trate de violação daqueles deveres sem concomitância com a violação dos direitos de personalidade, a solução pode parecer mais duvidosa, o que, se necessário, será aqui equacionada nas circunstâncias do caso». (sublinhados nossos).
No essencial, concordamos com esta posição de princípio, tendendo a identificar a remissão do Art.º 1792.º n.º 1 do C.C. para as regras gerais da responsabilidade civil extracontratual prevista nos Art.ºs 483.º e ss. do C.C., havendo direito a indemnização por parte do cônjuge lesado na medida em que se verifique da parte do lesante violação de deveres conjugais, estabelecidos nos Art.ºs 1672.º e ss., que possam conduzir à lesão de direitos de personalidade do outro cônjuge, cuja tutela “erga omnes” decorre dos Art.ºs 484.º e 70.º e ss. do C.C..
Os meros incumprimentos de deveres conjugais, por si só, podem constituir fundamento de divórcio (Art.º 1781.º do C.C.), mas, por regra, daí não pode resulta obrigação de indemnização (cfr. Art.º 483.º do C.C.), exceto se causarem dano, nomeadamente nos direitos de personalidade do cônjuge lesado. Sendo que, estando em causa danos de natureza não patrimonial, só serão ressarcidos aqueles que, pela sua gravidade, mereçam tutela efetiva do direito (cfr. Art.º 496.º n.º 1 do C.C.).
Neste sentido também vai o acórdão do STJ de 17/9/2013 (Proc. n.º 5036/11.3TBVNG.P1.S1 – Relator: Mário Mendes) disponível em www.dgsi.pt), de cujo sumário destacamos: «I - Com a redação dada ao n.º 1 do art.º 1792.º do CC pela Lei n.º 61/2008, de 31-10, a reparação dos danos causados ao cônjuge alegadamente lesado, quer dos resultantes da própria dissolução do casamento, quer de factos que possam ter conduzido à rutura da vida em comum, passa a ser feita nos meios comuns, de acordo com os princípios gerais da responsabilidade civil. II - Com exceção dos casos em que a rutura do casamento é consequência de alteração das faculdades mentais do outro cônjuge – n.º 2 do art.º 1792.º do CC –, a lei deixou de fazer qualquer distinção entre os danos diretamente resultantes da dissolução do casamento e os danos resultantes de factos ilícitos ocorridos na constância do matrimónio, nomeadamente os que possam ter conduzido ao divórcio, sendo, uns e outros, pelo menos em abstrato, ressarcíveis através de ação judicial para efetivação de responsabilidade civil. III - Numa ou noutra situação, cabe ao cônjuge alegadamente lesado a demonstração de factos sustentadores da responsabilidade civil por factos ilícitos – art.º 483.º do CC».
Ou ainda o acórdão do STJ de 8/9/2009 (Proc. n.º 464/09.7YFLSB – Relator: Sebastião Póvoa, disponível em www.dgsi.pt), de que se destaca o seguinte segmento do respetivo sumário: «3. Na vigência do artigo 1792.º do Código Civil – na redação do Decreto-Lei n.º 496/77, de 25 de Novembro – os factos ilícitos fundamento de divórcio estavam sujeitos ao regime geral da responsabilidade civil do artigo 483.º do Código Civil, sendo o pedido de indemnização deduzível em ação comum. 4. Assim é agora para todos os danos, de acordo com a redação daquele preceito dado pela Lei n.º 61/2008, de 31 de Outubro. 5. O cônjuge que pede a indemnização pelo dano moral que lhe causou a dissolução do casamento tem que alegar e provar o dano causado. 6. O mero desgosto pela rutura da relação conjugal como projeto de vida não traduz particular sofrimento a merecer tutela nos termos do n.º 1 do artigo 496.º do Código Civil».
No acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa de 7/10/2021 (Proc. n.º 58/20.6T8SCG.L1-2 – Relator: Jorge Leal), também se seguiu o entendimento do primeiro dos citados acórdãos do Supremo Tribunal de Justiça de 12/5/2016, resultando do seu sumário que: «A responsabilidade civil emergente da violação de direitos de personalidade pode fundar a instauração de ação de indemnização por danos não patrimoniais de um cônjuge contra o outro, a deduzir nos tribunais comuns».
O mesmo se decidiu no acórdão do mesmo Tribunal da Relação de Lisboa de 25/3/2021 (Proc. n.º 4195/19.1T8ALM.L1 - Relator: Nelson Carneiro), de cujo sumário resulta: «I – A responsabilidade civil entre cônjuges decorrente do art.º 1792º/1, do CCivil, abrange apenas a responsabilidade extracontratual, abrangendo os danos que resultem da violação de direitos de personalidade. II – Assim, o cônjuge que se sinta lesado e pretenda pedir o pagamento da respetiva indemnização terá de alegar e provar os pressupostos da responsabilidade civil previstos nos art.ºs 483º e seguintes do CCivil».
Ou ainda no acórdão do mesmo Tribunal de 28/5/2019 (Proc. n.º 7865/18.8T8LSB.L1-7 – Relatora: Ana Rodrigues da Silva), onde se decidiu que: «O cônjuge que se sinta lesado pela prática, pelo outro cônjuge, na constância do matrimónio, de factos ilícitos violadores dos deveres conjugais, que consubstanciem também a violação dos seus direitos de personalidade, pode demandar o cônjuge lesante, peticionando indemnização por danos patrimoniais e não patrimoniais, nos termos gerais da responsabilidade civil, através de ação intentada nos tribunais comuns e independente da dissolução do matrimónio por divórcio e, consequentemente, dos factos que serviram de fundamento à sentença que o decretou; Por esse motivo, a causa do divórcio não é um elemento determinante para se aferir da possibilidade de intentar ação nos termos do art. 1792º do CC, porquanto não está em causa determinar as causas da rutura da vida comum do casal, nem qual dos cônjuges deu causa a esse divórcio, mas apenas se estão verificados os requisitos constantes do art.º 483º do CC».
No acórdão de 13/7/2017 do Tribunal da Relação de Lisboa (Proc. n.º 2155/15.0T8PDL.L1-2) repete-se que: «I - A lei 61/2008, de 31-10, consagrou o afastamento da denominada tese da “fragilidade da garantia” - consoante o nº 1 do art.º 1792 do CC (na redação introduzida por esta lei) o cônjuge lesado tem o direito de pedir a reparação dos danos causados pelo outro cônjuge, nos termos gerais da responsabilidade civil. II – Assim, verificando-se os pressupostos da responsabilidade civil previstos no art. 483 do mesmo Código, serão indemnizáveis os danos não patrimoniais que, pela sua gravidade, mereçam a tutela do direito, nos termos previstos no nº 1 do art.º 496 do CC. III - Entre os deveres conjugais aludidos no art.º 1672 do CC encontra-se o dever de respeito - cada cônjuge tem o especial dever de respeitar os direitos individuais do outro, abrangendo o dever de respeito desde logo, os direitos inerentes à personalidade; assim, cada um dos cônjuges está obrigado a não lesar física ou moralmente o outro - não atentar contra a saúde, a integridade física, a honra e o bom nome do outro. IV - Correspondem a factos ofensivos da integridade moral, bem como violadores do dever de respeito, quaisquer palavras ou atos de um cônjuge que ofendam a honra do outro, a sua reputação e consideração social de que goza, ou mesmo o seu amor-próprio e brio, a sua sensibilidade e suscetibilidade pessoais».
No acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães de 26/1/2012 (Proc. n.º 365/10.6TBAMR.G1 – Relatora: Maria Luísa Ramos) também se sustentaram os mesmos princípios, conforme resulta do seu sumário, que se reproduz na parte relevante: «I. Com a nova legislação decorrente da Lei n.º 61/2008, de 31/10, e alteração de redação do artigo 1792º do Código Civil, deixou de existir a possibilidade de o cônjuge/ex-cônjuge pedir a reparação dos danos não patrimoniais causados pela dissolução do casamento (salvo nos casos expressamente consignados no n.º2 do citado art.º 1792º).
II. Mas, subsiste o direito de reparação de danos não patrimoniais pelo cônjuge “lesado” no divórcio, constituindo efeito decorrente do próprio Divórcio nos termos do preceituado no art.º 1792º do Código Civil, a deduzir nos termos gerais da responsabilidade civil e nos tribunais comuns».
No acórdão do Tribunal da Relação de Évora de 30/3/2023 (Proc. n.º 2017/21.2T8STR.E1 – Relator: Tomé de Carvalho) parece que se defende também uma solução restritiva, quando no seu sumário é dito que: «3 – Não existe no atual quadro «uma sanção organizada para o não cumprimento dos deveres familiares» e, ao abrigo do artigo 1792.º do Código Civil, apenas há lugar à atribuição de uma indemnização fundada na violação da esfera da personalidade do cônjuge que não se esgote no cometimento do ilícito conjugal».
No acórdão dessa mesma Relação de Évora de 26/1/2017 (Proc. n.º 18/16.1.TBSRP.E1 – Relator: Silva Rato) reafirma-se que: «I - É legítimo ao cônjuge cuja lesão decorra da prática, pelo outro cônjuge, na constância do matrimónio, de factos ilícitos violadores dos deveres conjugais, que consubstanciem também a violação dos seus direitos de personalidade, demandar o cônjuge lesante, peticionando indemnização por danos patrimoniais e não patrimoniais, nos termos gerais da responsabilidade civil».
Posto isto, em causa está assim, nesta ação, o exercício do direito a indemnização emergente da responsabilidade civil extracontratual, tal como a mesma é regulada nos Art.ºs 483.º e ss. do C.C., com a especificidade dos ilícitos resultarem da violação de deveres conjugais, no pressuposto de que deles resultaram a lesão de direitos de personalidade do cônjuge lesado ou danos não patrimoniais merecedores de tutela do direito.
Nos termos do Art.º 483º n.º 1 do C.C.: «Aquele que com dolo ou mera culpa, violar ilicitamente o direito de outrem ou qualquer disposição legal destinada a proteger interesses alheios fica obrigado a indemnizar o lesado pelos danos resultantes da violação».
São assim pressupostos da responsabilidade civil extracontratual, conforme realçava o Prof. Antunes Varela (in “Das Obrigações em Geral” Vol. I, 10.ª Ed., pág. 526): 1) o facto voluntário (controlável pela vontade do homem); 2) a ilicitude; 3) a imputação do facto ao lesante (ou culpa); 4) o dano; e 5) o nexo de causalidade entre o facto e o dano.
Não se põe em causa a verificação do primeiro dos enunciados pressupostos da responsabilidade civil, porquanto foi o R. quem agiu de forma voluntária em todas as situações dadas por provadas nos pontos 7 a 11, 15, 18, 26 e 27 da sentença recorrida.
Todos esses atos são formas de comportamento humano, logo factos voluntários suscetíveis de integrar o pressuposto da verificação de um facto relevante para efeitos da responsabilidade civil (vide: Antunes Varela in Ob. Loc. Cit., pág. 527).
Passando ao pressuposto da ilicitude, de acordo com o Art.º 483º n.º 1 do C.C. ele pode resultar: ou da violação dos direitos de outrem, ou de uma disposição legal destinada a proteger interesses alheios. Na primeira das mencionadas formas de ilicitude, a doutrina compreende basicamente a tutela dos direitos absolutos (vide: Antunes Varela - Ob. Cit., pág. 533).
No caso concreto, em causa estaria a violação do direito ao bom-nome, honra e reputação da A. (cfr. factos provados 7 com a nova redação dada no ponto 2.1 do presente acórdão), da sua estabilidade emocional (cfr. factos provados 7 a 10, 18 a 20, 26, 27, 30 a 33) e, bem assim, da sua integridade física (cfr. factos provados 15 e 31), cuja natureza de direitos absolutos resulta da previsão do Art.º 484º do C.C. e da tutela específica desses direitos de personalidade, constante dos Art.ºs 70º e ss. do C.C., que assumem claramente na lei um carácter de direitos oponíveis “erga omnes”.
Recorde-se aqui que, tendencialmente, sustentamos uma interpretação restritiva do Art.º 1792.º n.º 1 do C.C., reduzindo essa previsão à responsabilidade delitual, afastando-a da responsabilidade civil por meras violações especificamente matrimoniais que não ofendam os direitos de personalidade do lesado (cfr. Guilherme de Oliveira in “Manual de Direito da Família”, 2.ª Ed., pág. 341).
Meras violações de deveres conjugais podem não constituir necessariamente ofensas a direitos de personalidade e, nessa medida, não merecerão tutela indemnizatória no quadro do Art.º 1792.º n.º 1 do C.C., na redação dada pela Lei n.º 6/2008 de 31/10.
Assim, por exemplo, o abandono do lar pelo R. (cfr. factos provados em 8 e 27), poderia constituir fundamento de divórcio litigioso (cfr. Art.º 1781.º n.º 1 al. a) do C.C.), por violação do dever de coabitação (cfr. Art.ºs 1672.º e 1673.º do C.C.), mas não determina, só por si, a responsabilidade civil daquele para de atribuição de um direito a indemnização.
O mesmo se deve dizer relativamente aos atos relacionados com a retirada pelo R. de dinheiro comum de contas bancárias (facto provado em 9); ou as ausências do R. em eventos festivos, ou em situações de doença do filho (cfr. factos provados em 10 e 11); ou ainda os comportamentos de “amuo” verificados numa situação concreta do retorno a casa após pernoita na esquadra de polícia (cfr. facto provado 18); ou nas situações de violência empregue apenas sobre coisas (cfr. factos provados 19 e 20).
Não basta, portanto, que o R. tenha violado os deveres matrimoniais estabelecidos no Art.º 1672.º e ss. do C.C.. É necessário que essas alegadas violações atinjam igualmente a esfera de tutela dos direitos de personalidade previstos nos Art.º 70.º e ss. e 484.º do C.C..
Em todo o caso, para que os factos voluntários se possam julgar como ilícitos é necessário que os comportamentos considerados lesivos do bom-nome, honra, reputação, estabilidade emocional e integridade física da A., tal como provado nos pontos 30 a 33 da matéria de facto, sejam objetivamente contrário ao direito, sendo, nessa medida, contrários ao âmbito de proteção da norma que tutela os direitos subjetivos alegadamente violados.
Essa ilicitude pode resultar da violação de deveres conjugais, estabelecidos no Art.º 1672.º e ss. do C.C., desde que suscetíveis de causar dano aos direitos de personalidade do cônjuge lesado e de gravidade suficiente para merecer a tutela do direito. Em todo o caso, a licitude resultará, no caso, igualmente da consideração de que se verificaram comportamentos delituais que, concomitantemente, assumem natureza de ilícitos criminais.
É o caso dos insultos proferidos pelo R. relativamente à A., chamando-a de “cabra” e “puta” e acusando-a de ter amantes (cfr. facto provado 7, com redação dada no ponto 2.1 do presente acórdão). O que, claramente, se traduz em comportamentos que podem integrar a previsão dos Art.ºs 180.º e 181.º do C.P. (respetivamente, crimes de difamação e injúria). Ou ainda o caso do murro que o R. desferiu nas costas da A. (cfr. facto provado 15), que certamente preenche a previsão do Art.º 143.º do C.P. (crime de ofensas à integridade física simples).
Não se nega que todos esses crimes estavam dependentes do exercício do direito de queixa, ou acusação particular, que não se verificaram no caso concreto. No entanto, não estão aqui em causa condições procedimentais para o exercício da ação penal, mas sim, e apenas, a consideração de que foram praticados atos contrários ao direito, logo ilícitos, o que é quanto basta para preencher o segundo pressuposto da responsabilidade civil.
Também é verdade que o R. alegou a prescrição da obrigação de indemnização, tendo em atenção a antiguidade de alguns desses factos e o disposto no Art.º 498.º n.º 1 do C.C.. Sucede que, essa exceção perentória foi julgada improcedente no despacho saneador (cfr. “Ata” de 28-01-2020 – Ref.ª n.º 48169746 - p.e.), por decisão de que não houve recurso (cfr. Art.º 644.º n.º 1 al. b) do C.P.C.), nem agora é posta em causa, pelo que essa decisão transitou em julgado (cfr. Art.º 621.º do C.P.C.). Em todo o caso, a prescrição da obrigação de indemnização nunca teria por efeito a convolação de um facto ilícito em facto lícito. Simplesmente torna inexigível o cumprimento da obrigação de indemnização, por força da sua extinção.
Concluímos assim que se verificou o segundo pressuposto da responsabilidade civil, porquanto o R. assumiu comportamentos que determinaram a violação de direitos de personalidade da A., de forma objetivamente desconforme ao que era exigido pelo direito, não tendo existido qualquer causa justificativa da ilicitude.
No que se refere à culpa, ou imputação subjetiva dos factos ao seu autor, não existem dúvidas sobre a autoria dos atos em causa. O R. agiu pessoalmente como autor dos comportamentos julgados ilícitos. Portanto, nos termos do Art.º 490º do C.C., é autor material dos factos ilícitos suscetíveis de integrar os crimes de injúria ou difamação e ofensa à integridade física simples, p. e p. nos Art.ºs 1180.º, 181.º, 143.º n.º 1 do C.P.. Sendo que, no seu conjunto, todos os comportamentos verificados e provados também poderiam ainda integrar o crime de violência doméstica sobre o seu cônjuge, p. e p. no Art.º 153.º n.º 1 al. a) do C.P..
Não existem razões que nos possam levar a pensar que o R. não agiu com discernimento e liberdade de determinação suficientes nas condutas que assumiu durante o casamento (cfr. Art.º 488º do C.C.). Pelo que, o seu comportamento pode ser objeto de um juízo de censura.
Mais, tudo indicia que o seu comportamento foi doloso, porque a objetividade dos factos indicia que agiu com intenção direta de ofender a honra e bom-nome da A. e a sua integridade física e emocional, através de um conjunto de comportamentos que afetaram a lesada.
Na verdade, estando o lesante casado com a pessoa lesada, até se exigiria mais do R., na medida em que para lá dos deveres de respeito geral devidos a qualquer outro cidadão, o R. estava especificamente subordinado aos deveres de respeito, fidelidade, coabitação, cooperação e assistência, estabelecidos nos Art.ºs 1672.º e ss. do C.C..
Não existe assim a mínima dúvida em concluir que o R. agiu com culpa, e com culpa grave, não existindo nos autos nenhuns elementos probatórios que nos permitam dizer que a A., de alguma forma, contribuiu para os danos que sofreu, não havendo por isso de considerar para o caso o disposto no Art.º 570.º do C.C..
Passando agora ao pressuposto da responsabilidade civil relativo aos danos, cumpre reafirmar o princípio básico de que a obrigação de indemnização depende necessariamente da existência de danos ou prejuízos decorrentes do facto ilícito culposo.
Os danos constituem a perda “in natura” que o lesado sofreu nos seus interesses materiais, espirituais ou morais em consequência do facto lesante e que o direito tutela.
No caso a A. pediu uma indemnização de €30.000,00 por danos de natureza não patrimonial por si sofridos, em consequência do comportamento do R., que se prolongou pelo tempo que durou o casamento.
Estando em causa apenas danos de natureza não patrimonial, existe uma maior dificuldade achar o seu quantitativo, precisamente porque estes se caracterizam pelo facto de não serem suscetíveis de avaliação pecuniária, na medida em que atingem bens que não integram o património do lesado. Assim, o lesado apenas pode ser compensado pelo estabelecimento duma obrigação pecuniária imposta ao lesante, que corresponde mais uma satisfação do que propriamente uma indemnização em sentido próprio (Antunes Varela - Ob. cit. - Vol. I, pág. 561).
Nos termos do Art.º 496º n.º 1 do C.C. na fixação dessa indemnização deve atender-se somente aos danos que pela sua gravidade mereçam a tutela do direito, sendo que, para efeitos da fixação do montante da indemnização, o Art.º 496º n.º 3 do C.C. estabelece que se deve atender à equidade, ao grau de culpabilidade do agente, à sua situação económica e do lesado e demais circunstâncias que o justifiquem.
No caso dos autos, sabemos que o casal estava emigrado no Reino Unido (cfr. factos provados 3 a 5), desconhecendo-se por completo as suas condições económicas.
Por outro lado, da matéria de facto resulta que, apesar de terem casado em 1995 (cfr. facto provado 1), aparentemente o comportamento mais violento da parte do R. mais antigo mostra-se localizado no tempo no ano de 2009 (cfr. facto provado15). Portanto, os factos relevantes para o caso ocorreram desde pelo menos 2009 (cfr. facto provado 15) até 2018, ano em que o R. saiu definitivamente de casa e a A. instaurou ação de divórcio (cfr. factos 27 e 28).
É certo que a matéria de facto transmite-nos a perceção de que teria ocorrido antes um abandono do lar por parte do R. (cfr. facto provado 8) e uma série de outros comportamentos (cfr. factos provados 9 a 11), que depois culminaram com a reconciliação do casal (cfr. factos provados 12 a 14), perdendo nessa medida todas essas situações a gravidade que poderia justificar a tutela do direito (cfr. Art. 496.º n.º 1 do C.C.).
No fundo, o que a matéria de facto agora mencionada reflete é que a A. perdoou o R. e, consequentemente, deixou de haver dano relevante a ressarcir.
Assim, releva apenas que em 30 de janeiro de 2009 o R. agrediu a A. com um murro nas costas (cfr. facto 15), tendo depois passado a assumir comportamentos violentos, não diretamente lesivos da integridade física da A. (cfr. factos 18 a 16), mas que perturbaram fortemente o equilíbrio emocional desta (cfr. factos provados 25, 30 a 34), tendo o R. chamado a A. de “cabra” e “puta”, dizendo que ela tinha amantes (cfr. facto provado 7).
Todos esse comportamentos causaram à A. profundo desgaste e desequilíbrio emocional, imensa mágoa (facto 30), dores físicas, medo, vergonha e dificuldades em dormir (facto 31), sentindo-se ofendida na sua honra e dignidade, humilhada e rebaixada (facto 32), perdendo a sua autoestima e autoconfiança, sentindo-se envergonhada e desconsiderada (facto 33), tendo vergonha sempre que se cruzava com os vizinhos do prédio, que a olhavam com pena, sabendo que eles ouviram os gritos e palavras que o R. dizia (facto 34).
Existe assim um espaço de tempo, de cerca de 9 anos, em que o R. fez sujeitar a A. a um conjunto de comportamentos lesivos de direitos de personalidade desta, dolosos e completamente injustificados, que terão conduzido à iniciativa da A. de peticionar o divórcio. Sendo certo que, se o objetivo do R. era divorciar-se da A., estamos perante um esforço completamente inútil, ostensivamente danoso, gratuito e injustificado, não fazendo qualquer sentido sujeitar a esposa a semelhante tipo de tratamento.
Assim, em função dos critérios de fixação da indemnização estabelecidos no Art.º 496.º n.º 4 e 494.º do C.C., sobrelevando muito particularmente a “culpabilidade do agente” – realçando-se que estamos perante ilícitos criminais dolosos –, a intensidade com que a A. sentiu a ofensas sofridas e ponderadas todas as circunstâncias do caso, julgamos adequado ao caso a fixação equitativa da indemnização devida a título de danos não patrimoniais em €15.000,00.
Quanto ao pressuposto do nexo de causalidade, sobre ele não oferecem os autos quaisquer dúvidas. Decorre claramente do processo que os factos imputados ao R. foram causa direta e necessária dos danos descritos e considerados relevantes (Art.º 563º do C.C.).
Estão assim preenchidos todos os pressupostos da responsabilidade civil por factos ilícitos culposo prevista no Art.º 483º n.º 1 do C.C., para o qual remete o Art.º 1792.º n.º 1 do C.C., devendo a indemnização ser fixada em €15.000.00.
Quanto aos juros, a A. pediu a condenação em juros de mora a contar da citação. Sucede que, em causa estão danos de natureza não patrimonial, cujo valor fixado se considera atualizado à data da prolação do presente acórdão. Pelo que, nos termos do acórdão de uniformização de jurisprudência de 9 de Maio de 2002 (publicado no D.R., 1ª Série, n.º 146º-A de 27/6/2002), os juros de mora são apenas devidos desde a prolação da presente decisão.
A taxa de juro a pagar é a de 4%, emergente da Portaria n.º 291/2003, de 8 de abril, aprovada nos termos do Art.º 559.º do C.C..
Em conformidade com o exposto, a sentença recorrida deverá ser revogada, concordando-se com as conclusões apresentadas pela Recorrente na estrita medida do supra considerado, devendo a ação ser julgada parcialmente procedente por provada.
A responsabilidade por custas, quer da instância recursiva, quer da 1.ª instância, por arrastamento, será na proporção do decaimento das partes, conforme resulta do disposto no Art.º 527.º n.º 1 e n.º 2 do C.P.C..
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V- DECISÃO
Pelo exposto, acorda-se em julgar a apelação parcialmente procedente por provada, revogando a sentença recorrida que julgou  verificada a exceção dilatória de incompetência absoluta por violação das regras de competência internacional e, em consequência, absolveu o R. da instância, a qual é substituída pela decisão de julgar o tribunal recorrido competente, em razão das regras de competência internacionais, para julgar esta causa e, em substituição deste, nos termos do Art.º 665.º n.º 2 do C.P.C., julgamos a ação parcialmente procedente por provada, condenando o R., JA, a pagar à A., PR, uma indemnização no valor de €15.000,00, acrescida de juros de mora, à taxa supletiva prevista para os juros civis, contados desde a data do presente acórdão até integral pagamento, absolvendo-se o R. do demais pedido.
- Custas pela Apelante e pelo Apelado na proporção do respetivo decaimento (Art.º 527º n.º 1 e n.º 2 do C.P.C.).
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Lisboa, 12 de setembro de 2023
Carlos Oliveira
Luís Pires de Sousa
Edgar Taborda Lopes