Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
15988/20.7T8SNT-B.L1-1
Relator: TERESA DE JESUS S. HENRIQUES
Descritores: CONCURSO DE CRÉDITOS
PENHOR
CREDITOS DA SEGURANÇA SOCIAL
IRC
IRS
INTERPRETAÇÃO RESTRITIVA
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 06/20/2023
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Texto Parcial: N
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: PARCIALMENTE PROCEDENTE
Sumário: I. Nas situações de concurso entre créditos garantidos por penhor, créditos da Segurança Social, créditos laborais e créditos reclamados pela Autoridade Tributária (IRC e IRS), verifica-se uma impossibilidade de conciliação de todas as normas envolvidas, já que os créditos laborais e do Estado deverão ser graduados com preferência ao crédito da Segurança Social, mas já não com preferência ao crédito pignoratício, enquanto este último prefere aos créditos laborais e do Estado mas não ao da segurança social ( cfr. art.ºs 666.º, n.º 1 e 749.º, n.º 1 do CCiv, art.º 333.º, n.º 2, al. a), CT, artigo 204.º, n.ºs 1 e 2 do CRCSPSS, art.ºs 736.º e 747.º, n.º 1, al. a), CCiv e art.º 111.º do CIRS).
II. Assim sendo, impõe-se efectuar uma interpretação restritiva do art.º 204.º, n.º 2 CRCSPSS, limitando a aplicação deste preceito às situações de concurso entre,apenas, créditos da segurança social e créditos garantidos por penhor.
Decisão Texto Parcial:
Decisão Texto Integral: I. A
A apelante recorre da sentença de verificação e graduação de créditos que graduou o seu crédito pignoratício depois do crédito reclamado pelo Instituto da Segurança Social, I.P.(ISS).
I. B
Apresenta as seguintes conclusões:
A. O crédito da ora Recorrente beneficia e foi reconhecido como crédito garantido por penhor sobre ações representativas do respetivo capital.
B. O penhor é uma garantia real que confere ao credor o direito à satisfação do seu crédito, bem como dos juros, se os houver, com preferência sobre os demais credores, pelo valor de certa coisa móvel, ou pelo valor de créditos ou outros direitos não suscetíveis de hipoteca, pertencentes ao devedor ou a terceiro (art.º 666.º, n.º 1 do CC).
C. Constituindo-se o penhor de valores mobiliários pelo registo na conta do titular dos valores mobiliários, com indicação da quantidade de valores mobiliários dados em penhor, da obrigação garantida e da identificação do beneficiário (art.º 81.º, n.º 1 do Código dos Valores Mobiliários).
D. O penhor é oponível erga omnes, preferindo aos privilégios mobiliários gerais, os quais, não constituindo verdadeiros direitos reais de garantia (de gozo, de aquisição ou de preferência) sobre coisa certa e determinada, devem ceder perante os direitos reais de garantia de terceiros, individualizados sobre bens concretos, sendo graduados depois daquele quanto aos bens empenhados, ao abrigo das disposições conjugadas dos artigos 666.º, 749.º, n.º 1 e 822.º, todos do Código Civil.
E. No concurso entre o direito de crédito garantido pelo direito de penhor e o direito de crédito da titularidade de instituições da Segurança Social garantido por privilégio mobiliário geral, atualmente, e após bastante discussão na doutrina e jurisprudência, tem-se vindo a entender que deve graduar-se em primeiro o direito de crédito garantido pelo direito de penhor.
F. Para tal foi relevante o acórdão do Tribunal Constitucional nº 363/02, de 17.9.2002, onde se decidiu, com força obrigatória geral, serem, por violação do princípio da confiança ínsito no princípio do Estado de Direito democrático consagrado no art.º 2º da Constituição, inconstitucionais as normas contidas nos art.º 2º do Decreto-lei nº 512/76, de 3 de Julho, e 11º do Decreto-lei nº 103/80, de 9 de Maio, na interpretação segundo a qual o privilégio imobiliário geral neles conferido prefere à hipoteca, nos termos do art.º 751.º do Código Civil.
G. Tendo presente o princípio da proteção da confiança e da segurança do comércio jurídico, interpretando-se restritivamente a norma do art.º 204º e 205º da Lei nº 110/09, de 19 de setembro, há que adotar a regra geral da inexistência de relação ou conexão entre o crédito e os bens que o garantem que os privilégios especiais pressupõem.
H. Também ao nível do Supremo Tribunal de Justiça, mais recentemente podemos notar uma inversão da posição que em tempos foi a maioritariamente adotada, pronunciando- se no sentido da prevalência dos créditos garantidos por penhor sobre os créditos de impostos e da Segurança Social, (Acórdão de 10.12.2009, proc. 864/07.7TBMGR- I.C1.S1; cfr. também acórdãos do STJ de 30.05.2006, proc. 06A1449 e de 08.06.2006, proc. 06B998).
I. Importa, por um lado atentar à natureza dos dois institutos em análise e ao animus do legislador na construção de todo o esquema de garantias: os privilégios gerais, não constituindo verdadeiros direitos reais de garantia sobre coisa certa e determinada, devem ceder sobre os direitos de garantia de terceiros, individualizados sobre bens concretos – como é o caso do penhor.
J. Por outro, ao facto de, em caso de dúvida, a solução ter de ser encontrada com recurso aos princípios gerais: não fornecendo a Lei um sistema coerente, as previsões do Código Civil, que valem como princípios gerais nesta matéria, deverão sempre prevalecer.
K. Como tal, o crédito da recorrente deveria ter sido graduado em primeiro lugar, em exclusivo, para ser pago pelo produto da venda dos valores mobiliários apreendidos.
L. Acresce ainda que, quando para além do crédito pignoratício e do crédito privilegiado da Segurança Social, concorram igualmente créditos laborais (ordenação concursal trilateral), como é o caso, verificando-se uma impossibilidade de conciliação de todas as normais envolvidas, tanto ao nível desta Relação, como ao nível do STJ, se tem entendido que a prevalência do crédito pignoratício saí reforçado, havendo que interpretar restritivamente o art.º 204.º, n.º 2 do CRCSPSS, conforme resulta do recentíssimo Acórdão proferido em 9 de Novembro de 2021 por este Tribunal da Relação de Lisboa – 1.a Secção, no processo 211/11.3TYLSB-C.L1, e do também muito recente Acórdão proferido em 22 de setembro de 2021 pelo STJ, no processo 775/15.2T8STS-C.P1.S1.
M. Não tendo entendido e decidido conforme exposto, a sentença recorrida fez incorreta interpretação e aplicação ao caso das pertinentes disposições legais, designadamente dos artigos 47.º, 140.º, n.º 2 e 174.º do CIRE, 666.º, 749.º e 822.º do Código Civil.
N. Pelo que, no provimento do presente recurso, deve revogar-se a sentença recorrida e, em sua substituição, ser proferida outra que gradue, relativamente às 15.000 ações representativas do capital social da Lisgarante apreendidas nos autos, em primeiro lugar os Créditos reclamados pela ora Recorrente, atendendo ao penhor constituído.
Não há contra-alegações
I.C
A única questão colocada a este Tribunal resume-se a saber se, no caso concreto, o crédito do ISS tem prioridade sobre o crédito pignoratício da recorrente.
II
II.A
A primeira instância considerou a seguinte matéria:
A – G. – G. de I. de O., Lda, pessoa coletiva n.º XXXXXX, com sede na XXXXXXX, foi declarada insolvente, por sentença proferida em 04.01.2021, transitada em julgado, na sequência de requerimento para o efeito apresentado por R. J.C. T. em 18.11.2020;
B - Da lista de credores reconhecidos pelo Sr. Administrador da Insolvência constam os seguintes créditos com natureza privilegiada:
1) A. M. F.C.: €17.869,07, referentes a créditos laborais;
2) A. C. R. F.: €16.946,00, referentes a créditos laborais;
3) A. C. R. V.: €2.517,50, referentes a créditos laborais;
4) A. P. P. R.: €9.091,05, referentes a créditos laborais;
5) A. DA S. D. M.: €3.835,65, referentes a créditos laborais;
6) C. A. S. S.: €29.782,00, referentes a créditos laborais;
7) F. N. P.: €16.022,69, referentes a créditos laborais;
8) F. M. DA C. P.: €9.609,52, referentes a créditos laborais;
9) INSTITUTO DA SEGURANÇA SOCIAL, IP: €103.730,03, referentes a contribuições e quotizações constituídas há menos de 12 meses;
10) J. C. F.: €10.855,81, referentes a créditos laborais;
11) J. F. G. M.: €18.214,30, referentes a créditos laborais;
12) J. C. M. DE O. C.: €15.213,53, referentes a créditos laborais;
13) L. R. V.: €5.526,83, referentes a créditos laborais;
14) L. M. C. R.: €46.236,24, referentes a créditos laborais;
15) L. P. A. S.: €39.450,22, referentes a créditos laborais;
16) M. A. A. V.: €15.830,24, referentes a créditos laborais;
17) N. A. Q. P.: €14.694,12, referentes a créditos laborais;
18) N.M. E. C.: €16.879,85, referentes a créditos laborais;
19) P. C.DE J. P.: €9.138,89, referentes a créditos laborais;
20) P. M. M. DE C.: €15.759,13, referentes a créditos laborais;
21) P. M. M. M. C.: €19.626,01, referentes a créditos laborais;
22) P. N.L. C. M.: €18.083,24, referentes a créditos laborais;
23) R. M. C. C. S.: €12.996,85, referentes a créditos laborais;
24) R. C. F. C.: €43.946,90, referentes a créditos laborais;
25) R. F.D. M. DA F.: €17.258,20, referentes a créditos laborais;
26) R. J. C. T.: €29.357,60, referentes a créditos laborais;
27) S. F. DA S. M.: €28.782,46, referentes a créditos laborais;
28) SERVIÇO DE FINANÇAS OEIRAS 3: €148.781,84, referente a IVA constituído há menos de 12 meses;
29) SERVIÇO DE FINANÇAS OEIRAS 3: €42.083,64, referente a IRS constituído há menos de 12 meses;
30)V. L. A. C.: €29.440,55, referentes a créditos laborais;
B – Da lista de credores reconhecidos pelo Sr. Administrador da Insolvência constam os seguintes créditos com natureza garantida:
1) LISGARANTE – SOCIEDADE DE GARANTIA MÚTUA, S.A: €43.290,07 (que gozam de garantia sobre as ações da Lisgarante apreendidas nos autos);
C – Da lista de credores reconhecidos pelo Sr. Administrador da Insolvência constam os seguintes créditos com natureza comum:
1) A. P., S.A.: €19.970,70;
2) A.-G. – M. E S. LDA: €9.265,00;
3) A.-G. L. A., S.A.: €143.429,06;
4) B. C.L P. S.A.: €78.098,16;
5) B. S. T., SA: €199.610,58 (ou seja, €61.858,26 + €22.581,11 + €18.365,03 + €96.122,87 + €683,31);
6) B. A. G., LDA: €12.921,49;
7) C. E., S.A: €6.000,00;
8) C. P.L, SA: €193,01;
9) C. M. R. E. L.: €11.616,30;
10) C., S.A.: €1.277,20 (ou seja, €1.273,05 + €4,15);
11) D., SA: €1.526,14;
12) D. – C. I.L, LDA: €3.501,37;
13) F. E. SL: €14.644,89;
14) G. R., SA: €13.116,91;
15) I. P. – D. DE P., SA: €133.520,47;
16) I. D & B, LDA: €662,03;
17) INSTITUTO DA SEGURANÇA SOCIAL, IP: €108.973,21;
18) MB&F – G. M. B. % F., LDA: €6.013,92;
19) R. – E., LDA: €1.340,61;
20) SERVIÇO DE FINANÇAS OEIRAS 3: €92.047,17;
D – Foi apresentada impugnação à lista de credores reconhecidos apresentada, pela ENVELOPRINTER, LDA, por requerimento com a Ref.ª 38265171, pugnando pelo reconhecimento à mesma de créditos com natureza comum, no valor global de €2.891,29, referentes a artigos vendidos à Insolvente, a solicitação desta.
E - Não foi apresentada resposta à impugnação deduzida;
F – Foram reconhecidos créditos sobre a insolvente à sociedade UV – E. U., S.A., no valor de €18.652,07(dezoito mil seiscentos e cinquenta e dois euros e sete cêntimos), com natureza comum, no Apenso C, por sentença proferida em 17.11.2021, transitada em julgado;
G – Foram reconhecidos créditos sobre a insolvente à sociedade C. P., LDA, no valor de €42.837,95 (quarenta e dois mil oitocentos e trinta e sete euros e noventa e cinco cêntimos), com natureza comum, no Apenso D, por sentença proferida em 19.11.2021, transitada em julgado;
H – Foram reconhecidos créditos sobre a insolvente à sociedade P. – T. E A. DE C. LDA, no montante de €2.999,71 sendo €2.903,85 (referentes a capital e juros de mora vencidos até 04.01.2021), a graduar como créditos com natureza comum e os demais a graduar como créditos com natureza subordinada, no Apenso E, por sentença proferida em 16.09.2021, transitada em julgado;
I – Foram reconhecidos créditos sobre a insolvente a A.DA C. ECIJA & ASSOCIADOS - SOCIEDADE DE ADVOGADOS, SPRL, no valor de €7.991,58 (sete mil novecentos e noventa e um euros e cinquenta e oito cêntimos) a título de honorários, acrescido de juros de mora vencidos desde o vencimento das respetivas faturas (11.03.2020 e 30.04.2020, respetivamente) até 17.05.2021, sendo €8.233,92 com natureza comum e €115,60 com natureza subordinada, no Apenso F, por sentença proferida em 16.09.2021, transitada em julgado;
J - Mostram-se apreendidos nos autos:
1) Bens móveis (cfr. auto de apreensão de bens constante do Apenso A);
2) 15.000 ações da L. – S. de G. M., S.A., depositadas no Banco Santander Totta, S.A. (cfr. auto de apreensão de bens constante do Apenso A);
3) 2.500 ações da Li. – S. de G. M., S.A., depositadas no Banco BCP, S.A. (cfr. auto de apreensão de bens constante do Apenso A);
4) 4.580 ações nominativas G., SA depositadas no Banco Santander Totta, S.A. (cfr. auto de apreensão de bens constante do Apenso A).
II.B
Como se constata, foram reclamados três tipos de créditos- comuns, garantidos (penhor) e privilegiados (laborais e Autoridade Tributária, AT).
No CIRE[1] os créditos encontram-se divididos em três classes: comuns, garantidos/privilegiados e subordinados (art.º 47º, n.º 4), considerando-se garantidos, os créditos que beneficiem de garantias reais, incluindo os privilégios especiais; privilegiados, os créditos que beneficiem de privilégios creditórios gerais; subordinados, os créditos enumerados no art.º 48º.
Consideram-se créditos sob condição suspensiva e resolutiva, respetivamente, aqueles cuja constituição ou subsistência se encontrem sujeitos à verificação ou à não verificação de um acontecimento futuro e incerto tanto por força da lei como de negócio jurídico (art.º 50º, n.º 1).
Refere-se ainda que com a declaração de insolvência extinguem-se: a) Os privilégios creditórios gerais que forem acessórios de créditos sobre a insolvência de que forem titulares o Estado, as autarquias locais e as instituições de segurança social constituídos mais de 12 meses antes da data do início do processo de insolvência;
b) Os privilégios creditórios especiais que forem acessórios de créditos sobre a insolvência de que forem titulares o Estado, as autarquias locais e as instituições de segurança social vencidos mais de 12 meses antes da data do início do processo de insolvência;
c) As hipotecas legais cujo registo haja sido requerido dentro dos dois meses anteriores à data do início do processo de insolvência, e que forem acessórias de créditos sobre a insolvência do Estado, das autarquias locais e das instituições de segurança social;
d) Se não forem independentes de registo, as garantias reais sobre imóveis ou móveis sujeitos a registo integrantes da massa insolvente, acessórias de créditos sobre a insolvência e já constituídas, mas ainda não registadas nem objecto de pedido de registo;
e) As garantias reais sobre bens integrantes da massa insolvente acessórias dos créditos havidos como subordinados. (art.º 97º, n.º 1).

Na lei civil, o privilégio creditório é a faculdade que a lei, em atenção à causa do crédito, concede a certos credores, independentemente de registo, de serem pagos com preferência a outros(cfr. art.º 733º CCiv).
Os privilégios creditórios podem ser mobiliários ou imobiliários (art.º 735º, n.º 1, CCiv).
Os mobiliários são gerais se abrangem o valor de todos os móveis existente no património do devedor à data da penhora, e são especiais quando compreendem, só o valor de determina dos bens. Os privilégios imobiliários estabelecidos no CCiv são sempre especiais (art.º 735º, n.ºs 2 e 3 CCiv).
Estipula o art.º 747º, n.º 1, CCiv que: «Os créditos com privilégio mobiliário graduam-se pela ordem seguinte:
a) Os créditos por impostos, pagando-se em primeiro lugar o Estado e só depois as autarquias locais; (...)

Finalmente o art.º 749.º, n.º 1, CCiv estipula que: «O privilégio geral não vale contra terceiros, titulares de direitos que, recaindo sobre as coisas abrangidas pelo privilégio, sejam oponíveis ao exequente.»
Na sentença impugnada priorizou-se o crédito do ISS em detrimento do crédito garantido por penhor e dos demais créditos privilegiados aludindo, singelamente, ao art.º 204º do Código dos Regimes Contributivos do Sistema Previdencial da Segurança Social (CRCSPSS) aprovado pela Lei n.º 110/2009, 19.06.
Este preceito estipula o seguinte: «Privilégio mobiliário
1 - Os créditos da segurança social por contribuições, quotizações e respectivos juros de mora gozam de privilégio mobiliário geral, graduando-se nos termos referidos na alínea a) do n.º 1 do artigo 747.º do Código Civil. 2 - Este privilégio prevalece sobre qualquer penhor ainda que de constituição anterior
Ora o crédito do recorrente encontra-se garantido por penhor, como resulta do art.º 666.º, n.º 1 do CCivil «O penhor confere ao credor o direito à satisfação do seu crédito, bem como dos juros (...), com preferência sobre os demais credores, pelo valor de certa coisa móvel (...)»
Este é, pois, um privilégio mobiliário especial (cfr. art.º 735º, n.º 2, CCiv) e logo o crédito que dele beneficia é considerado «garantido» para efeitos do CIRE e paga imediatamente a seguir às despesas [cfr. art.º 47º, n.º 1, al.ª a) e 174º, n.º1]
Os créditos laborais gozam do privilégio mobiliário geral referido no art.º 333.º do Código do Trabalho (CT), aprovado pela Lei n.º 7/2009, 12.02, que preconiza o seguinte:
«1. Os créditos do trabalhador emergentes de contrato de trabalho, ou da sua violação ou cessação gozam dos seguintes privilégios creditórios:
a) Privilégio mobiliário geral;
(...)
2. A graduação dos créditos faz-se pela ordem seguinte:
a) O crédito com privilégio mobiliário geral é graduado antes de crédito referido no n.º 1 do artigo 747.º do Código Civil;
(...)»
Os créditos da AT (IRS e IVA) gozam do privilégio mobiliário geral que lhes é conferido pelos respectivamente pelo art.111º, CIRS, aprovado pela Lei n.º 82-E/2014, 31.12, e art.º 736º, n.º 1, CCiv, que estipulam o seguinte:
- art.º 111º CIRS«Para pagamento do IRS relativo aos últimos três anos, a Fazenda Pública goza de privilégio mobiliário geral e privilégio imobiliário sobres os bens existentes no património do sujito passivo à data da penhora ou outro acto equivalente.»
- art.º 736º, n.º 1, CCiv« O Estado e as autarquias locais têm privilégio mobiliário geral para garantia dos créditos por impostos indirectos, e também pelos impostos directos inscritos para cobrança no ano corrente na data da penhora, ou acto equivalente,e nos dois anos anteriores
Como se salientou no Ac. STJ de 22.09.2021[2], a cuja fundamentação este Colectivo adere, e para o qual se remete  « Deste conjunto normativo resulta literalmente que o crédito garantido pelo penhor tem preferência sobre o crédito laboral, mas não sobre o crédito da Segurança Social; que o crédito laboral tem preferência sobre o crédito da Segurança Social, mas não sobre o crédito garantido pelo penhor; que o crédito da segurança Social tem preferência sobre o penhor, mas não sobre o crédito laboral. Se a graduação compreender apenas uma díade destes créditos, a forma de os graduar antolha-se como linear. Porém, quando a mesma graduação compreenda todos os três tipos de créditos em causa salta imediatamente à vista que estamos perante uma triangulação conflituante entre si. Numa das possíveis formulações que evidenciam esse conflito, basta observar que se o crédito da Segurança Social se gradua ao nível da alínea a) do n.º 1 do art.º 747.º do CCivil [1], então não tem prioridade sobre o crédito laboral, que, por sua vez, não tem prioridade sobre o crédito garantido pelo penhor, mas apesar disso o crédito da Segurança Social acaba por ter precedência sobre o penhor. Inconciliável.»
No caso concreto estão em confronto os créditos privilegiados da AT, laborais, Estado, ISS, e o crédito garantido da recorrente
Como se refere no citado acórdão «Na jurisprudência estão formadas duas correntes interpretativas, que levam a resultados totalmente opostos.
Para uns (caso dos acórdãos da Relação do Porto de 16 de junho de 2020, processo n.º 2720/18.4T8STS-C.P1, da Relação de Coimbra de 21 de maio de 2019, processo n.º 4705/17.9T8VIS-B.C1, da Relação de Coimbra de 28 de maio de 2019, processo n.º 3810/17.6T8VIS-B.C1, disponíveis em www.dgsi.pt, e do Supremo Tribunal de Justiça de 16 de dezembro de 2009, com sumário disponível em www.stj/jurisprudência, isto para citar apenas alguns) importaria graduar em primeiro lugar o crédito da Segurança Social, a seguir o crédito garantido pelo penhor e depois o crédito laboral.
Para outros (caso dos acórdãos da Relação de Lisboa de 13 de outubro de 2016, processo n.º 81/13.7TYLSB-B.L1, da Relação do Porto de 11 de setembro de 2018, processo n.º 1211/17.5T8AMT-E.P1 e da Relação de Guimarães de 8 de julho de 2020, processo n.º 159/15.2T8VLN-B.G1, isto para citar apenas alguns de entre uma vasta coleção de outros) importaria graduar em primeiro lugar o crédito pignoratício, a seguir o crédito laboral e depois o crédito da Segurança Social. Está em linha com esta perspetiva o acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 8 de junho de 2006 (processo n.º 06B998, disponível em www.dgsi.pt), que numa situação paralela à presente[2] decidiu que havia que dar prioridade aos créditos garantidos pelo penhor
E continua «Não pode haver dúvidas de que no confronto desses dois tipos de créditos a lei pretendeu dar prioridade ao crédito destinado a cumprir um desígnio social sobre um crédito destinado a cumprir um desígnio puramente (pelo menos na esmagadora maioria dos casos) particular e quase sempre brotado do espaço empresarial [6]. Na ponderação dos dois interesses em jogo, o legislador entendeu definir desse modo as coisas, privilegiar o público (social) sobre o particular, e não cabe ao intérprete discutir essa opção. Trata-se aqui, todavia, de um singular desvio à regra que vale para a normalidade, pois que essa regra (tal como fixada no Código Civil) estabelece o princípio da prioridade do penhor sobre todo e qualquer privilégio creditório mobiliário geral.
Mas quando de permeio se encontram créditos de trabalhadores, do Estado e das autarquias locais por impostos [7] já aquela opção não terá sido mantida pelo legislador. E isso, bem vistas as coisas, nada tem de estranho ou contraditório.
Pois que não são apenas os créditos da Segurança Social que são de interesse público e social. Também os interesses creditórios do Estado e das autarquias locais por impostos são, por definição, interesses públicos e sociais, da mesma forma que os interesses creditórios laborais não deixam de se resolver em interesses públicos e sociais indiretos ou reflexos, na medida em que são relacionáveis com prestações que o setor público pode ser chamado a suportar para com os trabalhadores e suas famílias em situação de carência económica.
E daqui que se possa intuir que em caso de concurso desses outros créditos com os da Segurança Social o legislador tenha optado por uma solução que não inverta o paradigma que ele próprio estabeleceu como regra em atenção aos diversos interesses em jogo.
Sendo tudo isto assim, como nos parece que é, cremos ser razoável supor que nesta última hipótese (concurso que coenvolve créditos pignoratícios, créditos dos trabalhadores, créditos do Estado e das autarquias locais e créditos da Segurança Social) o legislador se limitou a deixar a solução das preferências para as regras que enformam a traça normal dos créditos em confronto, procurando desse modo obviar à preterição desproporcionada (em beneficio injusto da Segurança Social) dos interesses de um conjunto mais alargado de outros credores, nomeadamente dos trabalhadores[3]
E concorda-se que assim seja pois, como se explica linearmente do acórdão, « Está aqui encontrado um racional que justifica uma interpretação restritiva do n.º 2 do art.º 204.º do citado Código dos Regimes Contributivos do Sistema Previdencial de Segurança Social, cuja letra diz mais do que aquilo que terá sido o propósito ou o querer do legislador[8]. O que significa que se impõe restringir a aplicação dessa norma aos casos em que apenas estejam em concurso créditos pignoratícios e créditos da Segurança Social. E não já quando, para além destes, concorram na mesma graduação créditos dos trabalhadores, do Estado e das autarquias locais. O que, diga-se de passagem, retira fundamento à crítica frequentemente avançada por quem defende ponto de vista diferente, e que é a de que não faz sentido que a posição relativa do crédito da Segurança Social fique dependente da circunstância aleatória de haver ou não créditos em concurso dos trabalhadores, do Estado ou das autarquias locais.
E tais regras (as que enformam a traça normal dos créditos em confronto) determinam que o penhor prevalece sobre o privilégio creditório mobiliário geral da Segurança Social e sobre o privilégio mobiliário geral dos trabalhadores, e este último sobre o da Segurança Social. E compreende-se perfeitamente que o penhor deva ter preferência sobre os privilégios mobiliários gerais[9], na medida em que constitui uma garantia de natureza real (firmada necessariamente por contrato, e sobre que a parte credora estabeleceu as suas legítimas expetativas garantisticas), que beneficia de sequela e é oponível erga omnes, enquanto o privilégio mobiliário geral (que não tem natureza real) está talhado para conferir uma mera preferência de pagamento relativamente aos créditos comuns.»
E nesta Secção de Comércio tem sido este o entendimento pacífico como resulta dos seguintes acórdãos,todos disponíveis in www.dgsi.pt :
TRL de 24.11.2020[4] «I – Na ordenação bilateral concursal do penhor com o privilégio creditório mobiliário geral da Segurança Social não subsiste qualquer conflito normativo, sendo a ordem de pagamentos claramente definida pela aplicação do art.º 204º, nº 2 do CRCSPSS que, pela sua natureza de norma especial e imperativa, se sobrepõe à previsão dos art.ºs 666º e 749º, nº 1 do CC, e expressamente define e coloca em primeiro lugar o crédito privilegiado da Segurança Social quando em concurso com crédito pignoratício.
II – Diversamente, a aplicação cumulativa dos artºs. 666º, nº 1 e 749º, nº 1 do Código Civil, 333º, nº 2, al. a) do Código de Trabalho, art.º 204, nºs 1 e 2 do CRCSPSS e art.º 747º, nº 1, al. a) para, nos seus precisos termos, fixar a graduação sucessiva dos créditos pignoratício, créditos laborais, e créditos privilegiados do Estado sobre o produto do bem objeto do penhor, desemboca em conflito de normas de impossível conciliação prática, situação que, por força do art.º 8º, nºs 1 e 3 do Código Civil, determina que pelo menos, mas também pelo mínimo necessário, uma das normas e ordenação legal concursiva por ela regulada tenha que ser preterida em beneficio da aplicação de outra. III – O referido ‘pelo menos, e pelo mínimo’ é cumprido mediante uma interpretação/aplicação restritiva do art.º 204º, nº 2 do CRCSPSS, através do sacrifício/preterição da ordenação bilateral legal do penhor e do privilegio creditório da Segurança Social, com o objetivo de dar cumprimento e primazia à preferência de pagamento do crédito laboral sobre o crédito da Segurança Social prevista pela conjugação dos art.º 333º, nº 2, al. a) do Código de Trabalho e 204º, nº 1 do CRCSPSS, e que, apenas como efeito colateral, conduz à graduação do penhor em primeiro lugar, seguindo-se-lhe na graduação o crédito laboral e os créditos privilegiados do Estado. IV...V...VI...VII...»
TRL de 07.07.2022[5]« I – Na graduação à qual concorram, não apenas um crédito garantido por penhor e um crédito da Segurança Social, mas também um crédito reclamado por trabalhador e créditos reclamados pela Autoridade Tributária (IRS e IRC), sendo que estes três últimos gozam, todos eles, de privilégio creditório mobiliário geral, verifica-se uma impossibilidade de conciliação entre todas as normas envolvidas, já que os créditos laborais e do Estado deverão ser graduados com preferência ao crédito da Segurança Social, mas já não com preferência ao crédito pignoratício, enquanto este último prefere aos créditos laborais e do Estado mas não ao da segurança social – artigos 666.º, n.º 1 e 749.º, n.º 1 do Código Civil, artigo 333.º, n.º 2, al. a) do Código do Trabalho, artigo 204.º, n.ºs 1 e 2 do CRCSPSS, artigos 736.º e 747.º, n.º 1, al. a) do Código Civil, artigo 111.º do CIRS e artigo 116.º do CIRC.
II – Perante tal conflito, impõe-se efectuar uma interpretação restritiva do artigo 204.º, n.º 2 CRCSPSS no sentido de a prioridade nele imposta ter de ceder, uma vez que que, enquanto verdadeiro direito real de garantia, o penhor não poderá ser postergado pelo crédito do trabalhador e pelos créditos referentes a impostos, o que, para além de violar as expectativas jurídicas do credor pignoratício, não foi a intenção do Legislador, nem tem qualquer assento no texto da lei, como decorre, aliás, do estatuído no artigo 749.º, n.º 1 do CC.III...»
TRL de 24.01.2023[6]« I – Nas situações de concurso entre créditos garantidos por penhor, créditos da Segurança Social, créditos laborais e créditos reclamados pela Autoridade Tributária (IRC e IRS), verifica-se uma impossibilidade de conciliação de todas as normas envolvidas, já que os créditos laborais e do Estado deverão ser graduados com preferência ao crédito da Segurança Social, mas já não com preferência ao crédito pignoratício, enquanto este último prefere aos créditos laborais e do Estado mas não ao da segurança social (artigos 666.º, n.º 1 e 749.º, n.º 1 do Código Civil, artigo 333.º, n.º 2, al. a) do Código do Trabalho, artigo 204.º, n.ºs 1 e 2 do CRCSPSS, artigos 736.º e 747.º, n.º 1, al.ª a) do Código Civil e artigo 111.º do CIRS).
II – Perante tal conflito, impõe-se efectuar uma interpretação restritiva do artigo 204.º, n.º 2 CRCSPSS, limitando a aplicação deste preceito às situações de concurso entre créditos da segurança social e créditos garantidos por penhor. III...»
As conclusões da recorrente procedem.
O seu crédito prevalece sobre o do ISS.
Considerando que ninguém mais se insurgiu contra a sentença, cumpre apenas apreciar a graduação da recorrente no tocante às acções sobre as quais beneficia de penhor, atento o trânsito em julgado do demais sentenciado.
Assim sendo, altera-se a sentença impugnada como se segue, tendo em atenção que, como consta do art.º 4º, al.ª a)da reclamação de créditos efectuada em 21.01.2021 todas as acções estão oneradas com penhor a favor da recorrente[Para garantia das obrigações emergentes da celebração dos referidos contratos, a ora insolvente....a) adquiriu um total de 19.200 ações representativas do capital social da Reclamante, no valor de 1,00€ cada, tendo constituído penhor sobre as mesmas a favor da Reclamante,...].
No campo “D”
1. Pelo produto da venda das acções da L., dar-se-á pagamento:
- Em primeiro lugar ao crédito da L.;
- Em segundo lugar o ISS;
-mantém-se a restante graduação.


III
Considerando o que se acaba de expor, julga-se procedente a apelação e:
1. Altera--se parcialmente a sentença impugnada nos seguintes termos:
Pelo produto da venda das acções da L., dar-se-á pagamento:
- Em primeiro lugar ao crédito da L.;
- Em segundo lugar o ISS;
2. Mantém-se o demais sentenciado.

Sem custas

Lisboa, 20.06.2023
Teresa de Sousa Henriques
Isabel Brás Fonseca
Fátima Reis Silva
_______________________________________________________
[1] Diploma a que se aludirá sempre por defeito.
[2] Proc. n.º775/15.2T8STS-C.P1.S1 (José Rainho) in www.dgsi.pt
[3] Destaque acrescentado.
[4] Proc. n.º 1536/10.0TYLSB-G.L1-1 (AMÉLIA SOFIA REBELO) in www.dgsi.pt
[5] Proc. n.º 7525/21.2T8SNT-C.L1-1(RENATA LINHARES DE CASTRO)
[6] Proc. n.º 671/13.8TYLSB-I.L1(NUNO TEIXEIRA)