Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
4463/2006-3
Relator: CARLOS ALMEIDA
Descritores: PRAZO
RECURSO
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 06/21/2006
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Meio Processual: RECURSO PENAL
Decisão: NEGADO PROVIMENTO
Sumário: I – O Ministério Público pode interpor um recurso num dos três dias úteis seguintes ao termo do respectivo prazo sem que, para tal, se exija qualquer declaração ou requerimento prévio.
II – Se se exigisse uma tal declaração ou requerimento o Ministério Público ficaria numa situação mais gravosa do que a de qualquer outro sujeito processual colocado numa situação idêntica uma vez que não se lhe daria a oportunidade de corrigir um erro eventualmente cometido na contagem do prazo.
Decisão Texto Integral: Acordam, em conferência, no Tribunal da Relação de Lisboa

I – RELATÓRIO

1 – O Ministério Público, no termo da fase de inquérito do processo n.º 386/02.2PCAMD, deduziu acusação contra A. imputando-lhe a prática de um crime de furto qualificado p. e p. pelos artigos 203º e 204º, n.º 2, alíneas a) e e), do Código Penal (fls. 501 a 507).

Requerida a instrução (fls. 521 a 524), a sr.ª juíza veio, a final, a proferir, no dia 8 de Março de 2006, o despacho (fls. 549 a 552) que, na parte para aqui relevante, se transcreve:

«O arguido A. requereu a abertura de instrução, negando em síntese a prática dos factos que lhe são imputados e apontando o que entende ser a carência de indícios para a acusação que lhe foi feita.
Dúvidas não há que na noite de 14 para 15 de Abril foram retirados dos escritórios da agência referida no primeiro parágrafo da acusação as chaves de seis veículos e um cofre. Quatro daqueles seis veículos estavam estacionados no exterior da agência e foram furtados.
Na referida data o arguido A. trabalhava naquela Avis e tinha as chaves do escritório e o conhecimento do código do alarme, ambos imprescindíveis para aceder às chaves dos referidos veículos sem arrombamento e activação do alarme.
Como se vê dos autos, para além do arguido A. tinham ainda, pelo menos, acesso às chaves e ao código o B. (fls. 89), a C. (fls. 92) e o D. (fls. 103). De acordo com as testemunhas ouvidas inicialmente as suspeitas da autoria do furto recaíram sobre o E. (ouvido a fls. 95 e 296) que não tinha acesso à chave nem conhecimento do código e que é primo do arguido A..
Depois de encetadas várias diligências apurou-se que um dos veículos furtados – o Seat Leon – tinha estado na posse do arguido F.. Este, inicialmente ouvido como testemunha e depois constituído arguido, foi por diversas vezes ouvido nos autos – fls. 248 e 249, fls. 256 e 257 e fls. 291 e 292 – e veio a apresentar versões ligeiramente diversas sobre o modo como tinha entrado na posse do carro; inicialmente falou num "G.", corrigiu para "H." e mais tarde só "A.", amigo do I., filho da J.. Quer o arguido A. quer a J. referem que o F. e o A. se conheciam aquele por ter sido namorado da J. e este por ser visita de casa pela amizade que tinha ao filho desta. Fica assim por esclarecer, ante o conhecimento que os arguidos tinham reciprocamente, porque razão, aquando da primeira e segunda vez que prestou declarações, o arguido F. não identificou com clareza o co-arguido bastando-lhe para tal, ainda que não tivesse a certeza do nome, identificá-lo como amigo do já referido I.. Mais, o arguido F. apresenta na sua última versão pormenores sobre a forma como terá entrado na posse da viatura e locais frequentados pelo arguido A., pormenores estes que a PJ diligenciou por confirmar sem obter resultado positivo.
Temos assim que a descrição dos factos feita na acusação e relativa ao arguido A. encontra apenas assento nas declarações (como vimos pouco consistentes) do co-arguido e no facto, instrumental, de o arguidoF... ter, na noite em que ocorreu o furto, acesso à chave e ao código da referida agência.
Ora, entende-se que há indícios suficientes da prática de um crime quando existe a probabilidade séria de em julgamento vir a ser aplicada ao agente uma pena ou medida de segurança.
Tendo em consideração o que se expôs supra, entendemos que os indícios, relativamente aos factos imputados ao requerente da instrução, não podem considerar-se os suficientes para efeitos do artigo 308º, n.º 1 do Código de Processo Penal.
No que concerne ao arguido F., que não requereu a abertura de instrução, entende-se que se conformou com o teor dela.
Assim e sem necessidade de outras considerações:
a) Decido não pronunciar o arguido A.».

2 – Inconformado, o Ministério Público interpôs, em 28 de Março, recurso desse despacho.

A motivação apresentada termina com a formulação das seguintes conclusões:

1. «A pronúncia não exige certeza mas uma probabilidade séria da existência da infracção e da responsabilidade do arguido.
2. Apesar das declarações do co-arguido F. se revelarem algo contraditórias entendemos que tal circunstância não põe em causa, de forma irremediável, a prova indiciária recolhida contra o arguido A..
3. No caso vertente, são manifestas e por demais evidentes as "coincidências" constatadas relativamente ao arguido A..
4. Na verdade, este arguido era possuidor das chaves das instalações e do respectivo código de alarme, circunstância que se revela fulcral atenta a forma como ocorreu a subtracção das viaturas em apreço.
5. Acresce que os co-arguidos se conheciam pessoalmente e o arguido A. admitiu que o co-arguido F. lhe propôs a subtracção dos veículos em causa.
6. Por último, o arguido L. admitiu, quando ainda trabalhava na empresa ofendida, que deparou com o arguido F. na posse de uma das viaturas subtraídas sem ter dado conhecimento de tal facto à sua entidade patronal ou à investigação criminal em curso;
7. O juiz "a quo", salvo o devido respeito, fez uma incorrecta aplicação das regras da lógica e dos princípios da experiência comum aplicáveis ao caso em apreço, desvalorizando a prova indiciária directa existente (declarações do co-arguido F.), com fundamento nas suas contradições iniciais, e não atribuindo a devida relevância às diversas provas circunstanciais recolhidas nos autos.
8. Constitui senso comum que nem sempre os agentes do crime relatam duma forma espontânea e integral o modo efectivo como os factos ocorreram, designadamente quando o relato verdadeiro e pormenorizado pode contribuir, numa fase inicial, para incriminar definitivamente ou para agravar a responsabilidade criminal do próprio declarante.
9. Face aos elementos de prova recolhidos nos autos revela-se como mais provável, em sede de julgamento, a condenação do arguido A. do que a sua absolvição.
10. A decisão recorrida violou, assim, o disposto no artigo 308 n.º 1, 18 parte e 283 n.º 2, "ex vi" do disposto no artigo 308 n.º 2, do Código de Processo Penal ao considerar que os autos não contêm indícios suficientes da prática, pelo arguido A., do crime que lhe foi imputado.
Nesta conformidade, requer-se que o recurso seja julgado procedente e, consequentemente, seja a decisão recorrida revogada e substituída por outra que pronuncie o arguido A. pela prática de um crime de furto qualificado p. e p. nos termos do artigo 203 n.º 1 e 204 n.º 2 al. a) e e), ambos do Código Penal».

3 – Esse recurso foi admitido pelo despacho de fls. 576.



4 – O arguido respondeu à motivação apresentada defendendo a extemporaneidade do recurso e, caso assim se não entenda, a sua improcedência (fls. 136 a 141).

5 – Neste tribunal, o sr. procurador-geral-adjunto, quando o processo lhe foi apresentado, apôs nele o seu visto.

II – FUNDAMENTAÇÃO

A questão da tempestividade do recurso

6 – O arguido suscitou, como questão prévia, a extemporaneidade do recurso interposto pelo Ministério Público porque, segundo ele, o mesmo teria dado entrada no tribunal no dia 29 de Março de 2006 quando o prazo para a prática do acto tinha terminado no dia 23 desse mesmo mês.

Vejamos se lhe assiste razão.

Como se pode ver da acta do debate instrutório, constante de fls. 548 e segs., o despacho recorrido foi proferido no dia 8 de Março de 2006, encontrando-se presente o Ministério Público, razão pela qual o mesmo se tem por notificado nessa mesma data (artigo 113º, n.º 7, alínea a), do Código de Processo Penal).

A partir daí o referido magistrado dispunha do prazo de 15 dias para interpor recurso (artigo 411º, n.º 1, do mesmo diploma), prazo esse que, efectivamente, como diz o arguido, terminou em 23 de Março, uma quinta-feira.

Porém, de acordo com o disposto no n.º 5 do artigo 107º do Código de Processo Penal, «independentemente de justo impedimento, pode o acto ser praticado no prazo, nos termos e com as mesmas consequências que em procedimento civil, com as necessárias adaptações».

É, portanto, aplicável ao processo penal o disposto nos n.ºs 5 e 6 do artigo 145º do Código de Processo Civil.

Ora, o mencionado n.º 5 admite a prática do acto até ao 3º dia útil posterior ao termo do prazo fixado, ficando a sua validade dependente do pagamento de uma multa variável calculada, no processo penal, tendo como base a taxa de justiça mínima correspondente à forma do processo em causa (artigo 81º-A, n.º 1, do Código das Custas Judiciais), multa essa que, como é entendimento maioritário (1), não é aplicável ao Ministério Público.

Por isso, e porque não vemos fundamento constitucional ou legal para exigir qualquer declaração ou requerimento (2) por parte do Ministério Público quando pretenda praticar o acto num dos três dias úteis seguintes ao termo do prazo (3) (4), o recurso poderia ter sido interposto até ao dia 28 de Março, data em que ele efectivamente deu entrada na secretaria do tribunal, por telecópia, como se certifica a fls. 10.

Daí que se julgue improcedente a questão prévia suscitada pelo arguido.

A suficiência dos indícios

7 – Sustenta o recorrente que existem nos autos indícios suficientes de que foi o arguido A. que, no dia 15 de Abril de 2002, entrou nas instalações da sociedade “S…”, na Amadora, onde trabalhava, e daí retirou um cofre, que continha cerca de 500 €, diversos documentos e seis chaves de veículos pertencentes ou que se encontravam à guarda daquela sociedade, tendo utilizado quatro delas para levar os automóveis a que respeitavam do local em que estavam estacionados, apropriando-se deles.

Fundamenta essa sua pretensão nas declarações prestadas pelo outro arguido, F., que admite serem “algo contraditórias”, e na existência de diversas coincidências.

Afigura-se-nos, porém, salvo o devido respeito, que as declarações prestadas pelo mencionado F., mais do que “algo contraditórias”, são completamente inverosímeis, como muito bem é assinalado no relatório elaborado pela Polícia Judiciária (5), juízo que, de resto, transparecia das perguntas efectuadas durante os interrogatórios (6) e a acareação (7) a que ele foi sujeito, em que já eram apontadas pelos inspectores as manifestas incongruências que se detectavam. Essas declarações só têm, na realidade, alguma consistência na parte em que se referem a elementos relativos ao arguido A. de que, comprovadamente, o arguido F. tinha conhecimento por ele ser amigo de dois dos filhos da sua companheira de então (8). Tudo o resto, que é o que respeita à prática do crime (9), foi desmentido ou, no mínimo, não comprovado pelas diligências efectuadas pela Polícia Judiciária e pelas declarações das pessoas ouvidas no decurso do inquérito (10).

E se é verdade que o arguido A. possuía a chave das instalações e conhecia o código do alarme, o que lhe permitia ter praticado ou participado no crime, também não é menos verdade que diversos outros responsáveis, empregados e colaboradores da empresa (11) se encontravam nessas mesmas circunstâncias. Os autos denotam mesmo que as precauções tomadas pelos responsáveis daquela empresa quanto à segurança das instalações não deveriam ser muitas. Isso é indiciado claramente pelo número de pessoas que possuíam ou tinham possuído a chave, conheciam o código do alarme (12) e até mesmo pelos números que o compunham.

O facto de o arguido A., depois de ter tomado consciência das declarações do F. (13), que o incriminavam, ter afirmado que essas declarações eram falsas e que, pelo contrário, tinha sido o F. que, repetidamente, lhe tinha proposto a subtracção de um veículo da empresa, proposta essa que ele sempre tinha recusado, e que, tempos depois do furto, o tinha visto a conduzir um automóvel idêntico a um dos que havia sido então subtraído, longe de contribuir para reforçar os indícios da autoria imediata (14) do crime quanto a ele existentes, podem explicar o comportamento do arguido F..

Não nos podemos esquecer que foi o F. que, comprovadamente, utilizou um dos veículos subtraídos até que teve um acidente quando o conduzia, que esse veículo, na altura, ostentava uma matrícula falsa (15), que as chapas originais se encontravam no porta bagagens (16) e que, para explicar tudo isto, ele declarou que tal veículo lhe foi vendido pela pessoa que mais tarde veio a identificar como sendo o arguido A. pelo preço de 2.200.000$00, preço este que ele se comprometeu a pagar, sem dar qualquer garantia, em prestações mensais não inferiores a 30.000$00! Acrescentou que depois de ter o acidente não foi buscar o carro ao local onde ele tinha ficado imobilizado, nem nada pagou, não tendo sido aparentemente incomodado pelo vendedor.

Mesmo que a porta das instalações assaltadas tenha sido aberta com a chave confiada ao arguido, ou com uma sua cópia, o que se desconhece, e que o conhecimento do código do alarme tenha provindo de um comportamento seu, o que também se ignora, não tem a necessária consistência a suposição de que tais contributos teriam sido dolosamente prestados. Bem poderia ter acontecido, como o arguido A. admitiu ser possível, que o J... lhe tivesse subtraído a chave sem ele dar conta e tivesse tomado conhecimento do código que, segundo diz, estava anotado no porta-chaves. Ou poderia ter sido outrem a fazê-lo, nomeadamente o terceiro arguido (17), que, estranhamente, faltou ao trabalho no dia seguinte ao furto alegando doença, o que não impediu que nesse mesmo dia viesse a ser abordado pelas forças policiais e tivesse prestado declarações.

Acrescente-se apenas que não seria espectável que o crime tivesse sido cometido, com a contribuição do arguido A., durante a noite de domingo para segunda-feira quando nesse dia da semana lhe competia abrir a porta, o que provocava que fosse ele, como foi, a comunicar aos responsáveis o sucedido.

Não seria também natural que, trabalhando este arguido naquele local há cerca de quatro meses, ele aí se dirigisse naquela noite pelo menos quatro vezes para levar consigo outras tantas viaturas.

Pelo exposto, não se pode deixar de considerar, tal como fez a sr.ª juíza de instrução e tinha anteriormente feito a Polícia Judiciária, que não existem nos autos indícios suficientes da prática pelo arguido F... de um crime de furto qualificado.

III – DISPOSITIVO

Face ao exposto, acordam os juízes da 3ª secção deste Tribunal da Relação em negar provimento ao recurso interposto pelo Ministério Público do despacho de não pronúncia do arguido A..

Sem custas.


Lisboa, 21 de Junho de 2006

(Carlos Rodrigues de Almeida)

(Horácio Telo Lucas

(António Rodrigues Simão)

____________________________________________________



(1).-Veja-se, por exemplo, em sentido oposto, o voto de vencido do Conselheiro Paulo Mota Pinto no acórdão do Tribunal Constitucional n.º 355/2001 (DR II Série de 13/10/2001).

(2).-O que, como argutamente assinala o Dr. João Vieira, procurador-geral-adjunto neste tribunal, em parecer recentemente emitido no processo n.º 7651/05, desta mesma secção, se não estivesse associado a um mecanismo equivalente ao previsto no n.º 6 do artigo 145º do Código de Processo Civil, constituiria uma solução mais gravosa para o Ministério Público do que para os restantes sujeitos processuais uma vez que não lhe reconhecia uma oportunidade de corrigir o eventual erro cometido.

(3).-Ao contrário do sustentado no acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 2 de Outubro de 2003, proferido no recurso n.º 2849/03, acessível através da base de dados do ITIJ (http://www.dgsi.pt/jstj.nsf/) e no acórdão n.º 355/2001 do Tribunal Constitucional. Note-se, porém, que este último acórdão se referia a uma questão suscitada no processo civil.

(4).-Tal como foi sustentado no acórdão desta secção e tribunal de 2 de Junho de 2004, relatado pelo sr. desembargador Dr. António Simões, que também subscrevemos, e em conformidade com o entendimento que fez vencimento no acórdão do Tribunal Constitucional n.º 59/91 (DR II Série de 1/7/1991).

(5).-Fls. 467 a 472.

(6).-Nomeadamente a fls. 440.

(7).-Fls. 451 a 453.

(8).-Como sejam a sua actividade profissional, o seu local de trabalho e o veículo que possuía.

(9).-Em 23/2/2004, cerca de dois anos depois, o arguido F... ainda se lembrava da marca, do modelo e da cor dos quatro veículos furtados naquela noite, que ele diz apenas lhe terem sido mostrados uma vez pelo arguido F....

(10).-Vejam-se as declarações de M e de J e os contactos efectuados com A e MC.

(11).-RG, HG, MM, CG e PB.

(12).-Vejam-se ainda a declarações de VP a fls. 105.

(13).-Que começou por incriminar um P H (fls. 248 verso), depois um NF (fls. 256), a seguir um F (fls. 291) e, por fim, um P (fls. 440).

(14).-Se não se pode excluir que ele tenha tido alguma conduta dolosa que o fizesse incorrer em responsabilidade criminal, nada aponta para que ela fosse a da autoria imediata do crime.

(15).-Que coincidia com a matrícula de um automóvel semelhante pertencente a um seu vizinho, mas de que disse nada saber visto que o automóvel lhe tinha sido entregue com elas já afixadas.

(16).-Ver fls. 144.

(17).-Sobre o comportamento deste arguido vejam-se as declarações de vários colegas e, em especial, as de PB, a fls. 102, sobre um incidente ocorrido dois dias depois do furto.